Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
723/12.1T2AVR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
PREJUÍZO
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 238º Nº1 AL. D) DO CIRE
Sumário: I – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, ao abrigo do disposto no art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE, é o prejuízo efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que, portanto, há-de corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo ou da diminuição do activo que, entretanto, tenha ocorrido.

II – O atraso na apresentação à insolvência determina um efectivo prejuízo para os credores quando o devedor, apesar de se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações, não se apresenta à insolvência no prazo de seis meses, optando por recorrer a contratos de crédito para pagar créditos anteriores, assumindo com esses contratos encargos substanciais que não consegue cumprir, agravando o seu passivo e diminuindo, por essa via, as possibilidades de os credores recuperarem o valor dos seus créditos.

III – Para a verificação da situação prevista na norma citada não se exige que o devedor esteja ciente e perfeitamente consciente de que não existe qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, bastando, para o efeito, que ele não pudesse ignorar, sem culpa grave – e portanto, sem uma violação grosseira dos mais elementares deveres de cuidado e prudência –, que tal perspectiva não existia.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... e B... , residentes na Rua (...), Aveiro, vieram apresentar-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante.

Por decisão proferida em 19/04/2012, foi declarada a insolvência dos Requerentes.

O Administrador da Insolvência não se opôs à concessão da exoneração do passivo restante, mas a credora, C..., S.A., veio deduzir oposição a esse pedido, com fundamento no disposto na alínea e) do art. 238º do CIRE, alegando que existe culpa dos Insolventes no agravamento da sua situação de insolvência, porquanto, desde 1992, têm recorrido a créditos para pagamento de outros créditos que já se encontravam em dívida, além de que os Insolventes não têm qualquer rendimento para ceder à massa.

Por decisão proferida em 26/02/2013, foi indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.

Inconformados com essa decisão, os Insolventes vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª. De acordo com a alínea d) do artigo 289.º, n.º 1 do CIRE, para que o despacho inicial de exoneração não seja proferido é necessário que verifiquem cumulativamente os pressupostos ali explanados, atraso na apresentação à insolvência, existência de prejuízo para os credores e sabendo (o devedor) ou não podendo ignorar com culpa grave, não existir perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

2ª. O Tribunal "A Quo" deu como provado a existência de prejuízo pela conclusão de que ao longo dos anos os insolventes fizeram do crédito, não um recurso para obviar a uma qualquer aquisição de bens ou a um qualquer evento pontual, mas antes para constituir um aditivo aos rendimentos que auferiam, suportando o seu modo de vida à custa dos créditos financeiros.

3ª. Tal conclusão não se consubstancia em qualquer facto e é errada, porquanto a contratação de novos empréstimos foi a forma de evitar o incumprimento e substituiu empréstimos anteriores, sendo contratada em melhores condições financeiras, consequentemente baixando os encargos dos insolventes.

4ª. Não cabe ao tribunal, actuar oficiosamente, quando, não existem no processo elementos que permitam concluir pela verificação de algum dos factos ou circunstâncias que devem conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, como in casu se verifica.

5ª. Sobre o prejuízo, decidiu o ST J no acórdão de 21.10.2010, no processo n.º 4850/09.9TBVLG- D.P1.S1, relatado pelo Cons. Oliveira Vasconcelos que, actualmente e em face do regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasionaria qualquer prejuízo aos credores. Dito doutro modo: se no regime anterior, estabelecido no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual, que se aplica ao presente processo, tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito ao juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da divida." Sublinhados nossos.

6ª - Não está assim verificado o pressuposto aludido pela alínea d) do artigo 289º do CIRE.

7ª. Também, não constam da sentença recorrida, factos concretos que provem que os requerentes sabiam, ou não podiam ignorar com culpa grave que não existiam perspectivas sérias de melhoria da sua situação económica, apenas conjecturas.

8ª. Não se verifica assim também, um dos pressupostos essenciais para a não prolação do despacho inicial de exoneração.

9ª. O tribunal "A Quo" não indica um único facto concreto que suporte a decisão, refere-se genericamente que, insolventes fizeram do crédito, não um recurso para obviar a uma qualquer aquisição de bens ou a um qualquer evento pontual, mas antes para constituir um aditivo aos rendimentos que auferiam, suportando o seu modo de vida à custa dos créditos financeiros

10ª. Tal alegação não consiste em nenhum facto concreto, é uma mera conjectura.

11ª. O tribunal "a quo" ignora que os empréstimos novos resgataram os anteriores, impediram a entrada em incumprimento e foram contratados em condições mais favoráveis.

12ª. Na verdade os requerentes sempre acreditaram que a sua situação iria melhorar.

13ª. Factos concretos, são factos que se podem provar, que se podem determinar sem margem para duvidas, as circunstancias em que ocorrem e, quanto a estes, nada consta na, aliás douta, sentença, que se baseou assim em meras suposições.

14ª. A decisão recorrida viola o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE "a contrário".

Com estes fundamentos, concluem pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que profira despacho inicial da exoneração do passivo restante.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se está ou não verificada algumas das situações enunciadas no art. 238º, nº 1, alíneas d) e e) do CIRE e se, em função disso, deverá ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo.


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III.

Na decisão recorrida, foram considerados os seguintes factos (alegados pelos Insolventes e não impugnados):

1. Os insolventes nasceram em 1945 e 1948 e estão casados entre si desde 1969.

2. Em 1992 os insolventes contrataram crédito para construção de habitação, construção que iniciaram mas não concluíram porquanto aquele (crédito) revelou-se insuficiente.

3. A mãe do insolvente passou a estar ao total encargo do casal e, face ao estado de saúde da mesma, colocaram-na num lar, assumindo os respectivos encargos.

4. Perante a ausência de rendimentos suficientes para cumprirem todas as prestações que haviam assumido, os insolventes venderam a casa que tinham em construção, mas o seu produto não foi suficiente para liquidar todas as dívidas, restando ainda dívidas a fornecedores de carpintaria e alumínios, ferro, etc.

5. O insolvente celebrou então contrato de trabalho, cumulando o vencimento com a pensão de reforma, altura em que decidiram contratar créditos pessoais para liquidação das dívidas que ainda mantinham.

6. Declarada a separação judicial de pessoas e bens dos insolventes em 04.03.2005, o insolvente passou a afectar o seu vencimento ao cumprimento de todos os créditos contraídos, havendo meses que não conseguia pagar, com a consequente acumulação de juros. Em Fevereiro de 2007 foi homologada a reconciliação dos cônjuges.

7. Em Junho de 2004 os insolventes contrataram cartão de crédito da Caixa Geral de Depósitos com o qual procederam a pagamentos a crédito (combustível, seguro, água, gás, etc), obrigando-se ao pagamento de prestação mensal de €550,00, estando em dívida € 2.349,53.

8. Em Março de 2005 contrataram cartão de crédito com Cetelem, SA no montante de € 7.000,00 a pagar em prestações mensais de € 226,00, que cumpriram até Janeiro de 2012, permanecendo em dívida o montante de € 5.666,43.

9. Em Março de 2007 contrataram crédito ao consumo com GE Consumer Finance, IFIC, SA no montante de €7.000,00, obrigando-se ao seu reembolso em prestações mensais de € 165,00, permanecendo em dívida €4.764,65.

10. Em Maio de 2007 os insolventes contrataram cartão de crédito da Caixa Geral de Depósitos com o qual procederam a pagamentos a crédito, obrigando-se ao pagamento de prestação mensal de €445,00, estando em dívida €1.794,99.

11. Em Junho de 2007 contrataram cartão de crédito com Barc1ays Bank até ao montante de €3.400,00, obrigando-se ao seu pagamento em prestações mensais de € 205,00, permanecendo em dívida € 3.535,69.

12. Em Novembro de 2007 os insolventes contrataram crédito ao consumo com Cetelem, SA no montante de € 9.000,00, obrigando-se ao pagamento de prestações mensais no montante de € 244,00, permanecendo em dívida € 2.690,00.

13. Em Fevereiro de 2008 contrataram cartão de crédito com Cetelem, SA até ao montante de €2.500,00, a pagar em prestações mensais de €100,00, permanecendo em dívida €2.491,05.

14. Em Março de 2008 contrataram linha de crédito com Cofidis no montante de €10.000,00, obrigando-se ao seu pagamento em prestações mensais de € 230,00, permanecendo em dívida €9.961,97.

15. Em Maio de 2008 contrataram crédito ao consumo com Barc1ays Bank no montante de € 4.328,61, obrigando-se ao seu pagamento em prestações mensais de € 286,00, permanecendo em dívida € 2.860,00.

16. Em Março de 2011 os insolventes contrataram com a Caixa Geral de Depósitos crédito ao consumo no montante de €9.000,00, a que se seguiram créditos complementares nos montantes de € 2.900,00 e €2.000,00, obrigando-se ao pagamento das prestações mensais de € 262,00, €889,00 e €550,00, respectivamente, que cumpriram até à data da apresentação à insolvência (Abril de 2012), permanecendo em dívida os montantes de €7.714,25, € 3.498,18 e €2.349,53.

17. Os insolventes devem a C..., SA a quantia de €3.242,59 desde Junho de 2006, a que corresponde uma prestação de €288,30, e a quantia de €288,30 desde Março de 2011, a que corresponde uma prestação de € 25,00.

18. Os insolventes têm divida ao Banque PSA Finance, que cumpriam em prestações mensais de € 125,00 e que deixaram de pagar desde Outubro de 2007, permanecendo em dívida €1.315,00.

19. Os insolventes devem à farmácia Oudinot, em Aveiro, desde Janeiro de 2012, a quantia de €1.641,45.

20. Os insolventes devem à Fundação CESDA, em Aveiro, desde Outubro de 2010, a quantia de €1.527,80.

21. Com a contratação dos créditos supra aludidos os insolventes obrigaram-se ao pagamento de prestações mensais que totalizam € 4.506,90.

22. Os rendimentos dos insolventes correspondem às respectivas reformas, que somam € 2.410,00 mensais, sendo que até à apresentação à insolvência acrescia o vencimento do insolvente, no montante de cerca de €625,00.

23. Os insolventes não têm antecedentes criminais (doc. de fls. 52 e ss.).


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IV.

Apreciemos, pois, a questão que constitui o objecto do presente recurso.

Segundo o disposto no art. 235º do CIRE[1]se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.

Conforme se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o legislador – ao conferir aquela possibilidade ao insolvente – pretendeu conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica.

É certo, todavia, que a concessão desse benefício pressupõe, da parte do devedor insolvente, uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, quer no período anterior à insolvência (cuja inexistência conduzirá ao indeferimento liminar do pedido por verificação de qualquer uma das situações a que alude o art. 238º), quer no período posterior e, designadamente, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (por força das obrigações impostas pelo art. 239º e cujo incumprimento conduzirá à recusa da exoneração, nos termos do art. 243º).

Pressupondo o legislador – como se disse – que a exoneração do passivo restante apenas se justificaria relativamente aos devedores que, no período anterior à insolvência, tivessem adoptado uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, estabeleceu – no art. 238º – que a verificação de qualquer uma das situações aí mencionadas determinaria o indeferimento liminar do pedido por corresponderem a situações que, na sua perspectiva, evidenciam uma conduta contrária àquela que justificaria esse benefício.

E a questão que se coloca no presente recurso prende-se, precisamente, com a verificação (ou não) de fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

Considerou a decisão recorrida que, no caso sub júdice, se verificavam as situações a que aludem as alíneas d) e e) do nº 1 do citado art. 238º, e, com este fundamento, indeferiu liminarmente o pedido.

Resta-nos, pois, saber – e é esse o objecto do presente recurso – se decidiu correctamente.

Dispõe-se na citada alínea d) que o pedido de exoneração do passivo é liminarmente indeferido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Como resulta da letra da lei e como tem sido entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[2], os requisitos ali enunciados são cumulativos, razão pela qual apenas será de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, ao abrigo da citada norma, se, cumulativamente:

a) o devedor não cumpriu o dever de apresentação à insolvência ou se, não estando obrigado a tal apresentação, não o tiver feito nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência;

b) o atraso na apresentação à insolvência redundou em prejuízo para os credores;

c) o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Resta saber se, no caso sub judice, estão ou não verificados esses requisitos.

Como resulta dos factos alegados pelos Insolventes, os seus problemas financeiros terão tido a sua origem na casa de habitação que decidiram construir em 1992 com recurso a crédito bancário e que terá vindo a revelar-se insuficiente para aquele efeito, a que acresceram as despesas inerentes aos seus problemas de saúde e ao pagamento do lar onde se encontrava a mãe do Insolvente.

Mais alegam os Insolventes que, não conseguindo suportar essas despesas, venderam a moradia, sendo certo, porém, que o dinheiro obtido não foi suficiente para pagar todas as dívidas.

Importa notar, desde já, que os Insolventes não alegaram a data em que venderam essa moradia, não alegaram o preço recebido e não alegaram o valor do seu passivo nessa data, pelo que não sabemos se esse valor foi efectivamente destinado ao pagamento do passivo que já existia e qual o passivo que ficou por liquidar.

A verdade é que, pelo menos a partir de 2004, os Insolventes – sem que expliquem muito bem porquê e sem que digam qual era, à data, o seu passivo – começaram a recorrer a créditos sucessivos.

Em Fevereiro de 2007 – data em que foi homologada a reconciliação dos cônjuges, após a separação judicial que havia sido decretada em Março de 2005 – os Insolventes, por força de dois cartões de crédito que haviam contratado, já tinham os encargos mensais que lhe eram inerentes e que ascendiam a 550,00€ e 226,00€, reconhecendo os Insolventes que, nessa data, já haviam perdido o controlo dos créditos adquiridos a que acresciam juros desmesurados e reconhecendo, portanto, que, nessa data, já se encontrariam em situação de insolvência.

Mas, ao invés de se apresentarem à insolvência, os Insolventes começaram a contrair créditos sucessivos – eventualmente para fazer face ao pagamento dos créditos anteriores.

Assim, sendo já responsáveis perante a C... pelo pagamento de uma prestação de 288,30€ mensais, desde Junho de 2006, os Insolventes, só no ano de 2007, contrataram quatro créditos com diversas instituições bancárias, cujos encargos mensais ascendiam ao total de 1.059,00€ (o que, somado aos três créditos anteriores, ascendia a um encargo mensal de 2.123,30€).

Mas os Insolventes não se ficaram por aí, já que, durante o ano de 2008, recorreram a mais dois créditos, cujos encargos mensais ascendiam a 516,00€ (o que, somado aos anteriores, ascendia a 2.639,30€) e, em Março de 2011, contrataram mais três créditos cujos encargos mensais ascendiam a 1.701,00€ (o que, somado aos anteriores, ascendia a 4.340,30€), a que acrescia ainda uma prestação mensal de 125,00€ que era devida ao Banque PSA Finance e que deixaram de pagar a partir de Outubro de 2007.

Importa notar que nenhum dos aludidos créditos foi integralmente liquidado, encontrando-se em débito o valor total de 54.233,86€.

Ora, perante uma situação destas, parece-nos claro que não existiu, por parte dos Insolventes, a conduta recta, cumpridora e de boa fé, que poderia legitimar o benefício da exoneração do passivo restante e que, de algum modo, pudesse justificar o sacrifício que esse benefício implica para os credores.

Parece-nos claro, desde logo, que a situação de insolvência dos aqui devedores remonta, pelo menos, a Março de 2011, quando os Insolventes contraíram três empréstimos, cujos encargos mensais, somados aos já existentes, ascendiam a um valor muito superior aos seus rendimentos (aliás, essa situação de insolvência já existiria em 2008, quando os encargos mensais decorrentes dos créditos concedidos quase equivaliam aos rendimentos).

Mas, apesar de a insolvência ser, então, evidente, os Insolventes não se apresentaram à insolvência e apenas o fizeram um ano depois.

Mostra-se, pois, verificado o primeiro requisito a que alude a alínea d) da norma acima citado: os Insolventes/Apelantes não se apresentaram à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação.

Além do requisito, cuja verificação acabamos de demonstrar, a possibilidade de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo pressupõe ainda que o atraso na apresentação à insolvência tenha determinado prejuízo para os credores.

Na linha do entendimento que é propugnado pelo Acórdão do STJ que é citado pelos Apelantes, também a nós se nos afigura que, ao exigir que o atraso na apresentação à insolvência tenha causado prejuízo aos credores, o legislador terá pretendido reportar-se a prejuízo que não decorra sempre e de forma quase automática daquele atraso e, portanto, terá pretendido reportar-se a prejuízo diverso daquele que corresponde ao mero vencimento de juros de mora[3].

Portanto, esse prejuízo deverá corresponder a um prejuízo que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que não teria sido produzido se o devedor se tivesse apresentado à insolvência no momento oportuno, devendo, por isso, corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar).

Só nesses casos se poderá afirmar que, se a insolvência tivesse sido declarado em momento oportuno, os credores teriam mais e melhores hipóteses de obter a satisfação dos seus créditos, porquanto, com um passivo inferior (que não teria sido contraído se a insolvência tivesse sido declarada em momento anterior) e com um património mais vasto (que não teria sido dissipado ou delapidado), os credores então existentes teriam, seguramente, melhores condições para obter a satisfação dos seus direitos, pelo que, nesses casos, o atraso na apresentação à insolvência redundará, em princípio, num prejuízo concreto e efectivo que os credores não sofreriam se a insolvência tivesse sido declarada no momento oportuno.

Mas, não foi isso que aconteceu no caso sub júdice?

De facto, se os Insolventes se tivessem apresentado à insolvência no momento oportuno – ou seja, quando constataram que os seus rendimentos não lhes permitiam prover ao seu sustento e satisfazer os encargos que haviam assumido –, não teriam recorrido a novos créditos para assegurar esse passivo e, portanto, teriam evitado a “bola de neve” que se formou com o sistemático recurso a novos e sucessivos créditos a cujos encargos os Insolventes não conseguiam fazer face e que apenas avolumaram o passivo já existente.

São os próprios Insolventes a alegar, na petição inicial, que, em 2007, já haviam perdido o controlo dos créditos adquiridos a que acresciam juros desmesurados, mas, não obstante esse facto, os Insolventes, após esse momento, ainda recorreram a, pelo menos, dez créditos que foram sendo contratados, de forma sucessiva, assumindo a responsabilidade pelo respectivo reembolso e pelo pagamento de juros, obrigações essas que não podiam cumprir (como, efectivamente, não cumpriram).

Parece-nos certo, portanto, que, caso se tivessem apresentado à insolvência no momento oportuno, ao invés de recorrer a novos créditos para pagar os anteriores, o passivo dos Insolventes não teria atingido as proporções que atingiu.

Daí que o atraso na apresentação à insolvência tenha determinado efectivo prejuízo para os credores que, com o avolumar do passivo (decorrente de novas obrigações assumidas pelos Insolventes), viram claramente diminuídas as possibilidades de recuperar o valor dos seus créditos.

Insurgindo-se contra a decisão recorrida, quando afirma que, ao longo dos anos os Insolventes fizeram do crédito, não um recurso para obviar a uma qualquer aquisição de bens ou a um qualquer evento pontual, mas antes para constituir um aditivo aos rendimentos que auferiam, suportando o seu modo de vida à custa dos créditos financeiros, dizem os Apelantes que essa conclusão não se consubstancia em qualquer facto e é errada, porquanto a contratação de novos empréstimos foi a forma de evitar o incumprimento e substituiu empréstimos anteriores, sendo contratada em melhores condições financeiras, consequentemente baixando os encargos dos insolventes.

Mas, salvo o devido respeito, não é isso que decorre da matéria de facto, já que os empréstimos anteriores não eram liquidados (ainda hoje permanecem, em parte, por liquidar) e os novos empréstimos não baixavam os encargos dos Insolventes, antes aumentavam, de forma considerável, esses encargos (porque os anteriores encargos subsistiam) e, como é evidente, os Insolventes não evitaram o incumprimento; os Insolventes apenas terão conseguido pagar uma parte dessas obrigações e, ao invés de reconhecer que não tinham recursos financeiros para satisfazer totalmente essas obrigações (apresentando-se à insolvência), optaram por continuar a viver a crédito (o que, eventualmente, lhes permitia um determinado nível de vida que não lhes seria permitido com a declaração de insolvência), contraindo novos encargos que também não conseguiram cumprir, aumentado o seu passivo e diminuindo, por essa via, a possibilidade de os seus credores obterem a satisfação dos seus créditos e, assim, lhes causando prejuízo.

Concluimos, portanto, que o atraso na apresentação à insolvência determinou um efectivo prejuízo para os credores, assim se verificando o segundo requisito que é exigido pela norma acima citada.

Além dos dois requisitos cuja verificação já demonstrámos, exige ainda a norma em questão que o devedor saiba ou não possa ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Sustentam os Apelantes que não existem quaisquer factos que suportem a conclusão pela verificação desse requisito, que a decisão recorrida se baseou em meras suposições e conjecturas e que sempre acreditaram que a sua situação ia melhorar.

Ora bem. Não sabemos se os Apelantes acreditavam ou não que a sua situação ia melhorar (pois que a capacidade de acreditar em factos ou circunstâncias mais ou menos inverosímeis varia de pessoa para pessoa), mas a verdade é que, perante a matéria de facto provada, não existiam quaisquer razões que sustentassem esse alegado “optimismo” dos Apelantes.

Importa notar que, para a verificação do apontado requisito, não é necessário que o devedor esteja ciente e perfeitamente consciente de que não existe qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, bastando, para o efeito, que ele não pudesse ignorar, sem culpa grave, que tal perspectiva não existia.

A culpa – traduzindo um juízo de censura ou reprovação sobre a conduta do agente que, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo – é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (cfr. art. 487º nº 2 do Código Civil) e corresponde, na prática, à omissão da diligência e deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, eram exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normalmente diligente. Estabelecendo a distinção entre culpa grave e culpa leve, refere Inocêncio Galvão Telles[4] que quer a culpa grave quer a culpa leve “…correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida”. A culpa grave – que também poderemos designar por negligência grosseira – pressupõe, assim, um grau de diligência muito inferior àquele que seria exigível e que seria adoptado por uma pessoa normalmente diligente, correspondendo a uma violação grosseira dos deveres de cuidado e prudência que, no caso, eram exigíveis e eram elementares.

Sendo difícil afirmar que os Apelantes/Insolventes soubessem, efectivamente, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, resta-nos saber se, ao ignorar essa situação – acreditando que essa perspectiva existia – os Apelantes terão actuado com culpa grave, o que equivale a saber se o facto de não terem tomado consciência dessa realidade se ficou a dever à omissão da diligência que, naquelas circunstâncias, não deixaria de ser adoptado por uma pessoa minimamente diligente.

E parece-nos que sim, já que, na nossa perspectiva, só uma conduta particularmente negligente e só a total inobservância de todo e qualquer dever de diligência e prudência seria susceptível de determinar a ignorância daquela situação e a convicção (ou crença) de que ainda era expectável uma melhoria da situação económica de modo a fazer face a todo o passivo que os Apelantes já haviam acumulado.

Vejamos.

Se os Apelantes reconhecem (na petição inicial) que, em 2007, já haviam perdido o controlo dos créditos que haviam contraído e a que acresciam juros desmesurados, se reconhecem que tais encargos já então eram insuportáveis e se alegam que, nessa data, começaram a surgir os seus problemas de saúde, como poderiam os Apelantes acreditar que a solução para esses problemas estava no recurso a créditos sucessivos, durante vários anos, que representavam encargos avultados e que estavam acima dos seus rendimentos?

Supomos que seja – ou devia ser – do conhecimento geral que o recurso a crédito é um meio de satisfazer, pontualmente, uma determinada necessidade e não um modo sistemático de angariar rendimentos para fazer face às despesas correntes e para pagamento de outros créditos anteriormente assumidos.

A verdade é que os Apelantes recorreram, durante vários anos, a créditos para, alegadamente, pagar créditos anteriores, assumindo encargos cada mais avultados, que eram incomportáveis para os seus rendimentos e não se vislumbra como poderiam perspectivar uma melhoria da sua situação económica que lhe permitisse fazer face a todos esses encargos.

Se, em 2007, os Apelantes já não conseguiam fazer face ao seu passivo e recorreram a crédito para pagar outros créditos (como reconhecem na petição inicial) e se, em 2011 – depois de terem contraído vários créditos, cujos encargos não conseguiam suportar – a sua situação económica não havia melhorado (antes havia piorado), porque razão contraíram (em 2011) novo crédito ao consumo a que se seguiram mais dois créditos complementares, no valor total de 13.900,00€, que representavam um encargo mensal de 1.701,00€? Como esperavam os Apelantes suportar estes encargos, fazer face às suas despesas pessoais e pagar todo o passivo anterior que já haviam acumulado? Teriam ainda razões sérias para acreditar que a melhoria da sua situação económica – que não se havia concretizado nos anos antecedentes – ainda iria surgir, a ponto de conseguirem satisfazer o elevado passivo que haviam acumulado nos anos anteriores?

Parece-nos evidente que não.

Pelo menos em 2011 – quando recorreram aos últimos créditos que antecederam a sua apresentação à insolvência – os Insolventes sabiam que iam assumir os encargos avultados que eram inerentes a esses créditos e sabiam que já tinham um elevado passivo acumulado. Note-se que, como resulta da matéria de facto, os Insolventes ficaram obrigados ao pagamento de prestações mensais que totalizavam 4.506,90€, quando é certo que os seus rendimentos ascendiam apenas a cerca de 3.000,00€, com os quais também tinham que fazer face às despesas inerentes ao seu sustento e saúde.

Perante este quadro, só uma pessoa particularmente negligente poderia acreditar que ainda existiam perspectivas sérias de ultrapassar essa situação, recorrendo a novos créditos como meio de pagar outros créditos anteriores, sem que dispusesse de rendimentos que lhe permitisse fazer face a todos esses encargos e sem que dispusesse de quaisquer outros meios que lhe permitissem aumentar estes rendimentos (a não ser o recurso a novos créditos). Se os Apelantes tivessem actuado de forma minimamente diligente e prudente, teriam avaliado a situação em que se encontravam, teriam constatado que os vários créditos a que tinham recorrido durante os anos (vários) antecedentes não tinham contribuído para melhorar a sua situação económica e sim para a agravar e, como tal, teriam tomado consciência que o recurso a novos créditos (como fizeram em 2011) não poderia contribuir para a melhoria da sua situação (antes pelo contrário) e que, não tendo outra forma de angariar rendimentos, não poderiam assumir mais obrigações.

Assim, se, eventualmente, os Apelantes não sabiam ou não tomaram efectiva consciência de que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica (o que não é de admitir como muito provável), parece-nos seguro concluir que a eventual ignorância dessa situação apenas poderá decorrer da grave e grosseira omissão de todo e qualquer dever de cuidado e prudência, pois que, se não tivessem omitido esses deveres, não poderiam ignorar que aquela perspectiva não existia.

Concluimos, pois, pela verificação da situação prevista no citado art. 238º, nº 1, alínea d), o que conduz ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Assim sendo, confirma-se a decisão recorrida.

    


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, ao abrigo do disposto no art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE, é o prejuízo efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência e que, portanto, há-de corresponder a uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo ou da diminuição do activo que, entretanto, tenha ocorrido.

II – O atraso na apresentação à insolvência determina um efectivo prejuízo para os credores quando o devedor, apesar de se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações, não se apresenta à insolvência no prazo de seis meses, optando por recorrer a contratos de crédito para pagar créditos anteriores, assumindo com esses contratos encargos substanciais que não consegue cumprir, agravando o seu passivo e diminuindo, por essa via, as possibilidades de os credores recuperarem o valor dos seus créditos.

III – Para a verificação da situação prevista na norma citada não se exige que o devedor esteja ciente e perfeitamente consciente de que não existe qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica, bastando, para o efeito, que ele não pudesse ignorar, sem culpa grave – e portanto, sem uma violação grosseira dos mais elementares deveres de cuidado e prudência –, que tal perspectiva não existia.


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V.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.

Custas a cargo dos Apelantes.

Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 25/03/2010, 06/10/2009, 01/10/2009 e 20/11/2008, com os nºs convencionais JTRP00043744, JTRP00043002, JTRP00042985 e JTRP00041972, respectivamente, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2009, processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1.1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 19/05/2010 e 11/01/2010, com os nºs convencionais JTRP00043920 e JTRP00043328, respectivamente, bem como os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11/07/2012 e 20/06/2012, proferidos nos processos nºs 1058/11.2TBCNT-C.C1 e 1933/11.4TBACB-D.C1, respectivamente, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 304.