Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
167/22.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
CUSTO DO ALUGUER
TABELA DA ANTRAM
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 412.º, DO CPC
ARTIGO 566.º, 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Assente a ressarcibilidade do dano da privação do uso de um veículo, para se fixar o quantum da indemnização podem ser seguidos diversos critérios.
II – O custo do aluguer de um veículo além de cobrir a margem de lucro a que qualquer atividade económica aspira, tem que necessariamente cobrir os custos inerentes ao desenvolvimento de tal atividade, sob pena de insolvência a breve trecho da entidade que a desenvolve.
III – E porque assim é, o dano da privação do uso do veículo sinistrado, sempre que o lesado não prova a efetiva realização de despesas com o aluguer de um veículo de substituição, não se pode aferir pelo valor locativo de um veículo similar ao sinistrado, sob pena de um injustificado enriquecimento do lesado.
IV – Assim como não podem os valores previstos na tabela da ANTRAM, para efeitos de compensar a paralisação dos veículos dos respetivos associados, ser aplicados “tout court”, antes e apenas como mero referencial a considerar no juízo de equidade a fazer nos termos do nº 3 do art. 566º do Código Civil.
V – Concluindo-se pelo dano, e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no citado artigo 566º, nº 3, do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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1 – RELATÓRIO

A..., S.A.”, com sede em ..., ..., demanda, para o que ora releva, a “B..., S.A.”, com sede em Madrid, España, na presente ação declarativa de condenação com processo comum, pedindo a condenação da ré no pagamento do total de € 60.678,59 e juros, desde a citação e até integral pagamento. Justifica o pedido – e em muito breve súmula – por ter sido um seu veículo atingido e danificado por via de acidente de viação que se ficou a dever a culpa exclusiva de condutor de um outro automóvel, seguro na ré, e a quantia em causa resultar dos prejuízos sofridos pela reparação do veículo da autora, bem como da sua paralisação e das despesas suportadas para o trazer do local do acidente até à sede da autora, onde foi reparado.

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Contestou a seguradora ré, alegando – para o que ora releva, e também em muito breve síntese – que aceita que o acidente se ficou a dever a culpa do seu segurado, bem como que lhe cumpra indemnizar a autora pelos prejuízos daí decorrentes, mas sustenta que desconhece as despesas avançadas pela autora, e invoca que o longo tempo de paralisação se não pode imputar ao acidente, pelo que lhe não cumpre custear tal prejuízo.

                                                           *

Foi proferido despacho saneador, no qual, para o que ora releva, se procedeu à delimitação do objeto do litígio e dos temas da prova, sem reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, dentro do formalismo legal (como se alcança da respectiva Ata), com discussão nela da prova documental e testemunhal apresentada pelas partes.

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e não provados, relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que no tocante à indemnização à Autora pelos prejuízos decorrentes da paralisação que o veículo sofreu, era de atribuir o valor de € 11.961,35, e no demais procedendo os parciais peticionados a título de reparação do veículo, transporte do mesmo para Portugal e pagamento dos honorários a advogados e notário, assim se vindo a concluir pelo seguinte concreto “Dispositivo”:

«Julgo a presente acção parcialmente provada e, nessa medida, procedente, pelo que condeno a ré, B... SA, no pagamento à autora, A... SA, das seguintes quantias:

1- € 11.961,35, a título de paralisação do veículo;

2- € 6.021,72, a título de reparação do veículo;

3- € 720,57, a título de transporte do veículo para Portugal;

4- € 1.269,36, a título de pagamento de honorários a advogados e notário;

5- Juros, à taxa legal e até integral pagamento, desde a citação, quanto às verbas 2, 3 e 4, e desde a data desta decisão relativamente ao valor referido em 1;

e absolvo a mesma ré de tudo o mais contra ela pedido.

Custas por autora e ré, na razão directa dos respectivos decaimentos.»

                                                           *

Inconformada, apresentou a Autora recurso de apelação contra a mesma, cuja alegação finalizou com as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos e datada de 09/01/2023 e que, dando parcial procedência à presente ação intentada pela autora/recorrente, condenou “a ré, B... SA, no pagamento à autora, A... SA, das seguintes quantias:

1- € 11.961,35, a título de paralisação do veículo;

2- € 6.021,72, a título de reparação do veículo;

3- € 720,57, a título de transporte do veículo para Portugal;

4- € 1.269,36, a título de pagamento de honorários a advogados e notário;

5- Juros, à taxa legal e até integral pagamento, desde a citação, quanto às verbas 2, 3 e 4, e desde a data desta decisão relativamente ao valor referido em 1;

e absolvo a mesma ré de tudo o mais contra ela pedido.

Custas por autora e ré, na razão directa dos respectivos decaimentos.”

II. A recorrente discorda da sentença ora recorrida pois, mui respeitosamente, a sentença de que se recorre incorre em erro de julgamento sobre a matéria de facto, bem como incorre em erro de interpretação e aplicação do direito, revelando-se assim injusta e desproporcionada.

Primeiramente,

III. A autora considera que foram incorretamente julgados, pelo tribunal a quo, e que deveriam ter sido, (e não foram), considerados provados, os seguintes factos:

III.a. 136 Tendo ficado impossibilitada de afectar o mesmo (veículo) à sua normal utilização, como seja a realização de serviços de transporte de mercadorias;

III.b. 137 O que fez com que não tivessem podido ser feitos serviços de transporte internacionais de mercadorias;

III.c. 138 Durante aqueles 201 dias, período em que a autora viu o seu veículo paralisado, total e permanentemente impossibilitado de circular, a autora teve sempre solicitação de serviços de transportes.

III.d. 139 Serviços esses, que lhe permitiam uma utilização normal e regular do veículo.

III.e. 140 E que deixou de efectuar durante todo aquele período.

III.f. 145 De resto, a autora manteve inalterados todos os seus custos de exploração, apesar de ter perdido a fonte de produção que o veículo representava.

IV. Sendo que, quanto aos factos 139, 140 e 145, os mesmo foram considerados parcialmente provados, razão pela qual deverá, na medida do exposto, alterar-se a redacção dos mesmos para a agora sugerida, e ainda, excluírem-se do acervo dos factos não provados a parte que, relativamente a tais factos, ali ficou a constar.

Assim,

V. Para fundamentar a impugnação à matéria de facto, concretamente a supra enumerada, e o sentido em que a mesma deveria ter sido respondida, deverá atender-se às declarações reproduzidas em sede de audiência de discussão e julgamento e que ficaram gravadas através do sistema integrado de gravação digital em uso no tribunal, por referência à ata de Audiência de Discussão e Julgamento de 06.01.2023, com início às 10 horas e 30 minutos e terminus às 12 horas e 30 minutos, de:

V.a.AA, motorista de pesados na sociedade autora e que, na data dos factos, tripulada o veículo sinistrado, com a referência 20230106110058_3568025_2871922, nas concretas passagens daquela gravação, entre os 00:05:22 minutos e os 00:06:04 minutos; os 00:06:30 minutos e os 00:06:51 minutos, os 00:06:56 minutos e 00:07:20 minutos;

V.b.BB, responsável da manutenção da frota da sociedade autora, com a referência 20230106110904_3568025_2871922, nas concretas passagens daquela gravação, entre os 00:05:02 minutos e os 00:06:00 minutos;

V.c. CC, operador de tráfego há mais de duas décadas na sociedade autora, com a referência 20230106111752_3568025_2871922, nas concretas passagens daquela gravação, entre os 00:00:25 minutos e os 00:02:29 minutos, os 00:02:30 minutos e os 00:02:58 minutos, os 00:03:09 minutos e os 00:03:55 minutos, os 00:03:56 minutos e os 00:04:20 minutos, os 00:10:29 minutos e os 00:10:43 minutos, os 00:11:21 minutos e os 00:13:13 minutos.

V.d.DD, administrador da sociedade autora e, nessa medida, representante legal da mesma, com a referência 20230106120402_3568025_2871922, nas concretas passagens daquela gravação, entre os 00:08:57 minutos e os 00:11:08 minutos, os 00:11:09 minutos e os 00:12:03 minutos, os 00:12:06 minutos e os 00:15:30 minutos, os 00:16:50 minutos e os 00:17:32 minutos.

VI. Já o período de paralisação, por 201 dias, de 05/09/2019 a 23/03/2020, resulta provado pelos documentos juntos aos autos, designadamente os documentos 9 e 10, sendo estes o relatório de peritagem e despacho judicial sobre a entrega do veículo à autora, respectivamente. Além de que, ressalve-se, o tribunal a quo aceitou tal facto, constando o período da paralisação dos factos provados.

Assim,

VII. Apreciando as declarações das testemunhas e do representante legal da autora, resulta provado (ou deveria ter resultado) que durante aqueles 201 dias em que a autora esteve impedida de usar o veículo sinistrado, na sequência do sinistro ocorrido, a autora teve sempre solicitação de serviços de transporte. Quais serviços, em concreto, ficaram por realizar em razão do veículo estar impedido de circular, não foi possível apurar; contudo, a prova testemunhal produzida não deixou dúvidas quanto ao volume de solicitações diárias de serviços de transporte que a autora tem. Aliás, que tem no presente, que tinha antes da ocorrência do sinistro e que, naturalmente, teve durante os referidos 201 dias em que se viu privada daquele veículo. Assim como dúvidas não podem restar de que a autora não possui veículos suficientes para dar resposta aos serviços de transporte para os quais é solicitada. Logo, se o veículo sinistrado esteve imobilizado durante 201 dias (o que é facto assente), tendo a autora, consequentemente, ficado privada do seu uso por igual período, é evidente que também o não pôde afectar à actividade a que está adstrito, que é o transporte de mercadorias. Logo, ficou a autora impedida de fazer um uso “normal” do veículo sinistrado, que é (naturalmente) o transporte de mercadorias. Ora, se o veículo não foi adstrito à realização dos serviços de transportes, durante 201 dias, logo esteve a autora privada da correspondente facturação e inerente lucro resultante dessa actividade. Estas conclusões, imprescindíveis à decisão final, partem todas do mesmo pressuposto, que é a paralisação do veículo, e assentam em pressupostos cuja prova foi, salvo melhor opinião, positivamente conseguida em sede de audiência de discussão e julgamento.

VIII.Ademais, a tais conclusões sempre chegaria o tribunal pelas regras de lógica e experiência comum.

IX. Além disso, diga-se que igualmente se discorda da posição do tribunal a quo, no que diz respeito à avaliação e ponderação do depoimento prestado pela testemunha CC em audiência de julgamento, pondo em dúvida a credibilidade do mesmo, sem esclarecer as razões para tal juízo, sendo que, na verdade, a invocada falta de credibilidade carece de qualquer sustentação fáctica, como esse tribunal poderá constatar através da audição atenta e imparcial das gravações que efectuará.

Logo,

X. São aqueles os supramencionados pontos da matéria de facto da sentença que a recorrente considera incorretamente julgados e, por isso, impugna, considerando que a análise crítica da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento impõe decisão diversa da proferida, enfermando a decisão proferida de erro de apreciação, violando o disposto no artigo 607º, nºs 4 e 5 do CPC,

XI. Tudo o que justifica a alteração à matéria de facto nos termos aqui propostos, devendo considerar-se provados os factos 136, 137, 138, 139, 140 e 145 da petição inicial, na formulação acima exposta e, por conseguinte, a alteração da decisão, concluindo-se pela procedência total da acção.

Por outro lado,

XII. A recorrente não concorda com o o valor indemnizatório respectivo à privação do uso do veículo, determinado pelo tribunal a quo segundo critérios de equidade, pugnando pela alteração da quantia arbitrada.

XIII.Efectivamente, foi determinado indemnizável, na sentença recorrida, o dano de paralisação do veículo, no valor total de € 11.961,35, o que é o mesmo que atribuir €59,51 por dia de paralisação, ou €87,31 por dia útil,

XIV.Tendo o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo decidido segundo um juízo de equidade e, como decorre da sentença, num raciocínio “compatível com a legislação espanhola”. Ora,

XV. A privação do uso de um bem patrimonial constitui um ilícito, por impedir o proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade (direitos conferidos pelo artigo 1305.º do CC) e implica, por si, um dano que deve ser indemnizado. Ideia esta que a autora defende e com a qual, grosso modo, o tribunal a quo concordou.

XVI. Assim, ainda que não tenha ficado demonstrado o prejuízo efetivo da Autora pela impossibilidade de utilização do veículo, tal não impede a fixação de indemnização, dada a possibilidade legal de recurso à equidade, que a lei permite.

XVII. Ademais, entendeu aquele tribunal que, ao presente litígio seria de aplicar a legislação substantiva do Estado Espanhol. A ser assim, deveria o tribunal a quo ter considerado a Lei dos Contratos de Transporte Terrestre (Lei 15/2009 de 23 de Dezembro), a qual prevê, no seu artigo 22º, a indemnização por paralisação que servirá de referência para calcular os montantes devidos ao transportador, desde a entrada em vigor da referida lei, ou seja, a partir de 12 de fevereiro de 2010. Desde a sétima disposição adicional do Real Decreto-Lei 3/2022, os custos da paralisação podem ser cobrados no caso de o transportador sofrer uma paragem do veículo causada por qualquer circunstância que não lhe seja imputável, designadamente um acidente. Segundo aquele critério, a compensação a reclamar por cada hora de paragem calcula-se multiplicando por 2 o Indicador Público de Efeitos Múltiplos Rendimento/dia, não tendo em conta a primeira hora nem computando mais de dez horas por dia para este conceito. No segundo dia, a compensação aumentará 25% e quando a paragem da viatura for superior a dois dias, ao terceiro dia e seguintes será paga uma sobretaxa de 50%, Ora, se atentarmos nos valores vigentes no ano de 2019, ano em que o Indicador de Renda Pública de Efeito Múltiplo, mais conhecido como IPREM, se fixou em 17,93€/dia, os montantes da indemnização serão de:

custo de uma hora = € 35,86

custo do primeiro dia = € 358,60

custo do segundo dia = € 448,30 (+25%)

custo a partir do terceiro dia = € 537,90 (+50%)

XVIII. Assim, é notório que os valores considerados pela legislação espanhola são muito superiores ao valor a que o tribunal a quo chegou. Logo, estes valores não foram aplicados pelo tribunal a quo, ou sequer influenciaram o respetivo cálculo da indemnização, pese embora aquele tribunal tenha admitido ser de aplicar a lei espanhola.

XIX.Idêntica norma podemos encontrar no ordenamento jurídico português, concretamente o DL nº 57/2021, de 13 de julho, que veio alterar o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias e que fixa uma compensação horária de € 35,00/hora (no máximo de 10 horas), com um limite diário de € 437,50€, nos artigos 23º-A e seguintes e respectivo anexo, para os veículos destinados ao transporte rodoviário internacional e com as características do veículo em causa nos autos (i.é. veículos pesados com peso superior a 26 toneladas e até 44 toneladas).

XX. Contudo, salvo melhor interpretação, diferente do que sucede no país vizinho, as referidas normas aplicam-se, somente, às situações de paralisação em razão das operações de carga/descarga. Já não quando estamos diante uma situação de sinistro. O que, contudo, não é impeditivo a que sejam tomados por referência no cálculo da indemnização, mas, dada a discrepância de valores, não o foram.

Assim, tal qual foi peticionado pela Autora,

XXI. Impunha-se que o tribunal a quo aplicasse o valor de paralisação acordado entre a ANTRAM e APS para um veículo de idêntica classe (serviço internacional), no ano de ocorrência dos factos, isto é, €262,62 por dia de paralisação.

XXII. O que o tribunal a quo não fez, pese embora tenha referido que nada obstava a que aquele valor sopesasse na formulação do juízo equitativo, declarando-se conhecedor de tal acordo.

Sem prescindir,

XXIII. A quantificação da indemnização comporta uma mera operação de avaliar, em termos pecuniários, o desequilíbrio causado pela privação, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que, no caso, está afecto à sua actividade comercial de transporte internacional de mercadorias.

XXIV. Logo, na falta de elementos concretos, o acordo estabelecido entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguros deverá servir como base de referência para a fixação da indemnização pela privação do uso de veículo por recurso à equidade.

XXV. Por isso prescreve o nº 3 do art. 566º CC que “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados”; por outras palavras, se não for possível determinar o valor exato dos danos, o tribunal deve julgar segundo a equidade.

XXVI. Quando o juiz valora equitativamente o dano, fá-lo no uso de um arbítrio discricionário, fixando discricionariamente a medida justa ressarcível; a equidade dirige e enforma essa discricionariedade. Este quantum do dano a ressarcir não constitui um facto nem o resultado de um julgamento de facto; representa, antes, o resultado de um julgamento jurídico, logo, em função de critérios jurídicos coerentes com as exigências previstas no ordenamento jurídico relativamente ao ressarcimento; a certeza do montante exacto dos danos fixado por equidade não corresponde a um julgamento de facto mas sim a um julgamento de direito.

XXVII. E mesmo não sendo aplicável diretamente tal acordo, o mesmo sempre servirá, como elemento de referência para a fixação da indemnização na falta de outros elementos de facto mais concretos, mas que servem para a formação de um melhor juízo de equidade e de forma a afastar o mais possível qualquer arbitrariedade na fixação da indemnização.

XXVIII. O valor diário da imobilização previsto no acordo referido para 2019 era de €262.62. E, a verdade, é que os valores aí acordados não deixaram de ser montantes indemnizatórios considerados equilibrados, quer por parte da estrutura representativa das seguradoras, quer por parte da ANTRAM, que representa grande parte das empresas transportadoras com sede em Portugal.

XXIX. Digamos ainda que nem o facto do sinistro no caso sub judice ter ocorrido na Espanha e a ré ser uma seguradora estrangeira, obsta à consideração dos valores determinados por acordo entre a ANTRAM e a APS, pois que a jurisprudência portuguesa não mostra qualquer resistência à aplicação da tabela, em situação de sinistro ocorrido em país estrangeiro, (veja-se o acórdão do TRL, de 18/05/2017, processo 1458/12.0TVLSB.L2-2 e o acórdão, do mesmo tribunal, de 11/07/2013, processo 3774/12.2TJLSB-A.L1-7) .

Contudo,

XXX. Salvo melhor entendimento, o tribunal a quo desmereceu os valores ali acordados, entre ANTRAM e APS, parecendo, até, que determina o dano com base no montante dos lucros cessantes, referindo que o prejuízo efectivo, a provarem-se as declarações do representante legal da sociedade autora, seria a de €12.800,00.

XXXI. Ora, não pode concordar-se com tal entendimento, pois que para apuramento dos danos de privação de uso, não deverá atender-se só ao lucro que a autora deixou de obter, pois que os lucros cessantes pressupõem um direito ao ganho que se frustrou pela privação do uso, mas não uma efectiva compensação pelo prejuízo, nomeadamente, o custo fixo inerente à privação e respectivos àquela unidade de produção. Ora são custos fixos de cada unidade de exploração o custo de amortização/depreciação da viatura, custos de estrutura, impostos (IUC), custos financeiros, despesas de conservação, taxas de inspeção, taxas de aferição e inclusivamente seguros, entre outros. Recorde-se que, no caso em apreço, o veículo, após 201 dias de paralisação, depreciou significativamente o seu próprio valor comercial.

XXXII. Em jeito de conclusão, por estarmos perante uma situação cuja quantificação do dano não foi possível em termos objectivos, e que, por isso, se torna legítimo o recurso à equidade para fixar o valor da compensação devida à autora pela privação do dano, para que tal juízo não seja uma porta aberta à discricionariedade do julgador, deverá este auxiliar-se em princípios como o da adequação, da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo sempre ter “em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida,” para assim “encontrar uma solução adequada ao caso concreto que exprima a ideia de realização efectiva da justiça.”

XXXIII. Nessa medida, na falta de outras referências e/ou critérios, então há que analisar as decisões dos nossos tribunais sobre o tema, devendo seguir-se os valores que têm sido aplicados, segundo um critério de igualdade, preservando o sentimento de segurança que os cidadãos precisam ter na Justiça.

XXXIV. Efectivamente, considerando a variada jurisprudência portuguesa que sobre esta matéria se tem posicionado, nas situações em que foi impossível aos tribunais apurar o valor do dano com base em critérios objectivos, os valores diários determinados por parâmetros de equidade, para veículos com características semelhantes ao veículo ora em causa e igualmente destinados ao transporte de mercadorias, já no ano de 2015, não se fixavam abaixo dos 100,00€! (Veja-se, designadamente, os acórdãos citados nas alegações.)

XXXV. Ora, considerando os valores que os tribunais portugueses têm vindo a fixar a título de compensação pela paralisação de um veículo com as característica do veículo em causa nos presentes autos, em condições muito semelhantes, desde logo, nos acórdãos acima invocados a título exemplificativo, é evidente que a quantia fixada na sentença recorrida é manifestamente desadequada.

XXXVI. Face a todo o exposto, entendemos que o valor previsto no acordo outorgado entre a ANTRAM e a APS, com referência ao ano 2019 e para a paralisação de um veículo com as características do aqui sinistrado, é mais equilibrado e proporcional, de acordo com parâmetros de equidade, atendendo às circunstâncias apuradas dos autos, considerando a quantia reparatória diária de €262,62, o que, multiplicado por um período de 201 dias de paralisação, perfaz o montante de €52.786,62. É este, pois, em equidade, o adequado quantum, para ressarcir o demonstrado dano da privação do uso do veículo sinistrado.

XXXVII. Assim, também por aqui, a procedência dos presentes autos deveria ser total, condenando-se os réus/reconvintes em conformidade.

XXXVIII. Ao ter decidido da forma como decidiu, a sentença recorrida e o tribunal a quo violaram, entre outros, as disposições conjugadas dos artigos 411º e 607º nºs 4 e 5, do CPC, os artigos 4º; 405º, nº 1; 483º; 496º; 562º; 566º, em especial o seu nº 3, e 1305º do CC, o artigo 22º de la Ley 15/2009 del 11 de noviembre e o artigo 23º-A do DL nº 57/2021, de 13 de julho,

XXXIX. Bem como, entre outros, os princípios da equidade, proporcionalidade, razoabilidade, adequação, igualdade, justiça material e segurança jurídica na aplicação do direito,

XL. Revelando-se totalmente oposta à prática/tradição jurisprudencial, respeitante a similares condições contextuais e, assim, potencialmente comprometedora do ideal de segurança na aplicação do direito e do princípio constitucional da igualdade relativa, em violação do disposto nos artigos 8º, nº 3 do Código Civil e 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, merecendo, também por isso, censura por parte dessa Relação.

Assim,

XLI. Deve a sentença ser revogada e proferida outra que consagre o supra exposto, condenando a Ré no pagamento à Autora, a título indemnizatório, dos montantes de:

1- € 52.786,62, a título de paralisação do veículo;

2- € 6.021,72, a título de reparação do veículo;

3- € 720,57, a título de transporte do veículo para Portugal;

4- € 1.269,36, a título de pagamento de honorários a advogados e notário.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, na medida e de acordo com o que foi sucessivamente elencado supra, com as legais consequências, devendo a sentença recorrida ser alterada em conformidade com o explanado nas conclusões supra formuladas.

Assim decidindo, farão V. Exas. Venerandos Desembargadores, a costumada

Justiça!»

                                                           *

Apresentaram a Ré “B... SA.contra-alegações a este recurso, no final das quais pugnou no sentido de que o recurso interposto devia ser julgado integralmente improcedente.

                                                           *

De referir que esta Ré apresentou igualmente e em via paralela recurso subordinado tendo por objeto autonomamente a decisão interlocutória proferida em sede de audiência prévia realizada em 4.05.2022, através da qual foi julgada improcedente a exceção de prescrição do direito da Autora (invocada por essa ora recorrente subordinada), mas já por despacho proferido singularmente nesta instância de recurso pelo ora Relator, por se considerar não ser autonomamente recorrível o recurso subordinado que tinha por objeto essa decisão interlocutória, nos termos do art. 655º, nº1 do n.C.P.Civil, foi decidido que não se conhecia do objeto do dito recurso subordinado interposto pela Ré.

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

- incorreto julgamento da matéria de facto, que se traduziu na incorreção de não considerar “provados” os pontos “136”, “137”, “138”, “139”, “140” e “145” que constavam da p.i. [relativamente aos quais reclama que sejam dados como “provados”, com a concreta redação que propõe, e com inserção no elenco atinente];

- incorreto julgamento da matéria de direito [no particular do valor indemnizatório relativo à privação do uso do veículo (determinado pelo tribunal a quo segundo critérios de equidade), no montante de € 11.961,35, pugnando-se pela alteração da quantia arbitrada para o montante de € 52.786,62].

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que um dos recursos tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.

Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo[2]:

«petição

1

A autora é uma sociedade comercial anónima, que tem por objecto e se dedica com carácter lucrativo, ao exercício da actividade de transportes rodoviários de mercadorias, nacionais e internacionais, e ao aluguer sem condutor de veículos de mercadorias.

2

No exercício daquela sua actividade comercial, no dia 05 de Setembro de 2019

3

Procedia a autora ao transporte rodoviário de mercadorias destinadas à sociedade C... SL.

4

Fazendo uso do veículo pesado de mercadorias, composto por tractor de marca ..., modelo ..., matrícula ..-TG-.., e semi-reboque de marca ..., modelo ..., de matrícula GD-....,

5

Ambos pertencentes à autora.

6

E conduzido por AA,

7

Trabalhador da autora, com a categoria de motorista, que naquele dia e no momento se encontrava ao serviço da mesma.

11

Naquele dia 05/09/2019, no decurso daquele transporte, pelas 08:50h, circulava o referido veículo pesado de mercadorias, tripulado por aquele motorista da autora supra referido, na autoestrada A1, no seu quilómetro 71,000,

12

No sentido Burgos / Madrid, atento o seu sentido de marcha,

13

Na respetiva via, atento o seu sentido de trânsito,

14

Dispondo a estrada em causa de 6 vias de trânsito, três em cada sentido,

15

Circulando na via do meio,

25

O veículo ligeiro de passageiros, marca ..., modelo ..., matrícula ....-DYL,

27

Conduzido, naquele momento, por EE,

28

E de propriedade de FF, pai do aludido condutor,

29

Que circulava à retaguarda do veículo pesado de mercadorias da autora,

30

Na mesma via daquela faixa de rodagem e no mesmo sentido de marcha,

31

Aquele veículo ... embate com sua parte frontal na parte traseira direita do semi-reboque do veículo da autora,

32

Deslocando-se aquele veículo ... para baixo do veículo desta,

33

Imobilizando-se parte do referido veículo debaixo do veículo da autora,

34

Tendo, por força da dinâmica da eclosão do embate, sido parcialmente esmagado pelo veículo da autora,

36

Sem que o motorista da autora tivesse tido tempo para desviar o veículo que conduzia,

41

Como consequência do embate do veículo ... no veículo da autora, o semi-reboque, que compunha o conjunto, sofreu vários danos,

42

Nomeadamente, no pára-choques central traseiro,

43

No pára-choques lateral direito e esquerdo traseiro,

44

No farolim esquerdo e direito,

45

Na porta traseira,

46

No farolim de matrícula esquerdo e direito,

47

No suporte da roda sobresselente,

48

No suporte de cunha,

49

Na caixa de ar traseira da lateral direita,

50

Na roda de reserva direita,

51

No pneu de reserva direito,

52

Na chapa de veículo longo,

53

No guarda-lamas traseiro direito,

54

No batente de borracha,

55

No limitador da porta direita,

56

Nos dois batentes de rolo,

57

Na fita refletora,

58

Nas duas malas de ferramentas,

59

Na pintura da porta traseira direita, pilar traseiro direito e da travessa piso.

64

O condutor do veículo ... conduzia sob o efeito de estupefacientes,

65

Designadamente cannabis.

73

O tractor da autora, à data do sinistro, tinha a inspecção periódica obrigatória em dia.

74

Tendo sido aprovado com total ausência de anotações de deficiências.

75

O semi-reboque da autora também possuía a devida aprovação em inspecção periódica obrigatória, com total ausência de anotações de deficiências.

78

A autora possui a devida licença, emitida pelo I.M.T., para o transporte rodoviário internacional de mercadorias por conta de outrem.

80

Do acidente relatado resultou o falecimento do condutor do veículo ....

81

Não tendo resultado quaisquer danos corporais no condutor no veículo da autora.

85

A responsabilidade civil (obrigatória) do veículo ... encontrava-se transferida para a ré, com o número de apólice ...99,

87

A autora reclamou o ressarcimento dos danos sofridos no seu veículo junto da ré,

90

Que transmitiu à autora que assumia a sua responsabilidade na eclosão do sinistro em causa,

91

E sempre foi transmitindo à autora as concretas posições em relação à indemnização da cada concreto valor indemnizatório peticionado pela autora.

93

Foi efectuada peritagem pela Sinistrauto – Gabinete Técnico de Regularização de Sinistros Automóvel Lda.

94

O valor de reparação do tractor da autora foi estimado em €6.021,72 (IVA excluído).

95

Valor esse aprovado pela ré.

96

Aquela reparação veio a ser feita no mês de Março de 2020,

97

Nas oficinas da autora.

99

Por virtude do falecimento, no próprio dia do acidente, os veículos envolvidos no dito embate, ou seja, o veículo de marca ... e o trator e semi-reboque da autora, foram apreendidos à ordem do processo n.º ...19, cujos termos correram no Al Juzgado de 1ª Instância e Instrucción n.º1 de Torrelaguna, em Espanha,

100

Tendo o referido tribunal, por despacho de 19-02-2020, determinado a libertação do veículo da autora.

101

A autora, assim que notificada do referido despacho, diligenciou no sentido de proceder ao levantamento do referido trator e semi-reboque junto das autoridades competentes,

102

Tendo sido libertados pelas referidas autoridades em 03-03-2020,

103

Data em que foram transportados até às instalações da autora e aí aguardaram até fosse agendada a referida peritagem,

104

A qual veio a ser realizada no dia 09-03-2020,

105

Determinando o início da reparação para o dia seguinte (17-03-2020).

106

Demandando uma paralisação 04 dias úteis do veículo da autora para efeitos da sua reparação,

107

A reparação foi dada por concluída no final do dia 23-03-2020.

108

Razões pelas quais o veículo da autora se encontrou em paralisação por 201 dias (05-09-2019 a 23-03-2020),

110

Por forma a permitir a deslocação do seu veículo de Espanha a Portugal, concretamente, às suas instalações, a autora, no dia 03-03-2020, deslocou se às instalações onde se encontrava o veículo apreendido, por forma a executar provisoriamente a reparação e substituição do pára-choques traseiro,

111

Sem a qual, de forma alguma, seria possível a dita deslocação,

112

O que importou custos para a autora,

113

Nomeadamente os custos relativos ao combustível,

115

À afectação de mão-de-obra para a substituição e reparação,

119

A autora a fim de defender os seus direitos e interesses junto do processo n.º ...19, que correu termos no Al Juzgado de 1º Instância e Instrucción n.º1 de Torrelaguna, recorreu aos serviços de um advogado e de uma procuradora,

120

A fim de ser representada por aqueles no âmbito do supra identificado processo,

121

Com vista à mais rápida libertação do veículo,

122

Pelos quais despendeu cerca de € 1.149,68,

125

E ainda €119,68 por conta de serviços de Notário, em Ciudad Rodrigo.

129

A ré declinou o ressarcimento total do dano de privação de uso sofrido pela autora,

130

Apenas aceitando liquidar parte desse valor.

135

Durante os 201 dias que o veículo da autora esteve parado, a autora deixou de poder usar e fruir do mesmo (tractor + semi-reboque),

136

Tendo ficado impossibilitada de afectar o mesmo à sua normal utilização, como seja a realização de serviços de transporte de mercadorias,

138

Durante aqueles 201 dias, a autora teve solicitação de serviços de transporte,

139

Serviços esses, que lhe permitiam a utilização do veículo,

145

A autora manteve inalterados alguns dos seus custos de exploração,

apesar de ter perdido a fonte de produção que o veículo representava.

146

Designadamente seguros, impostos, custos de exploração da empresa em geral.

149

€262,62 é o quantitativo previsto no acordo firmado entre a Antram e a APS para a imobilização de um veículo com as características do sinistrado da autora,

contestação

38

O veículo da A. esteve apreendido por ordem das autoridades judiciais Espanholas, em virtude de ter falecido o condutor do veículo seguro na B....

43

Descontando o período de tempo em que o veículo esteve em Espanha, decorreram, ao todo, 13 dias (um para a peritagem, 8 entre esta e o inico da reparação e 4 para a reparação)»

*

Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo:

«petição

63

A uma velocidade pelo menos de 150 km/hora.

97

E o custo estimado foi efetivamente suportado pela autora.

114

Aos quilómetros percorridos das suas instalações até à referida localização onde se encontrava o seu veículo,

115

À mão-de-obra a que teve de recorrer

116

No valor total de €720,57 (sem IVA).

117

O qual também foi integralmente suportado pela autora,

119

(…) viu-se obrigada a

138

Durante aqueles 201 dias (…) a autora teve sempre solicitação de serviços de transporte,

139

(…) normal e regular.

140

E que deixou de efectar durante todo aquele período

145

(…) todos os seus custos de exploração.».

                                                                       *

3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz no alegado incorreto julgamento da matéria de facto, que se traduziu na incorreção de não considerar “provados” os pontos “136”, “137”, “138”, “139”, “140” e “145” que constavam da p.i. [relativamente aos quais reclama que sejam dados como “provados”, com a concreta redação que propõe, e com inserção no elenco atinente].

Que dizer?

Apreciemos com o necessário pormenor e detalhe cada um dos pontos de facto questionados.

Sem prejuízo de esta apreciação ser feita conjuntamente, quando justificada in casu.

Começando pela apreciação relativamente ao ponto “136” da p.i., logo ressalta que a sua impugnação só se compreende como fruto de eventual lapso ou distração.

Com efeito, o seu teor literal era:

«136 Tendo ficado impossibilitada de afectar o mesmo à sua normal utilização, como seja a realização de serviços de transporte de mercadorias,»

O mesmo foi dado como “provado” com o seguinte teor literal:

«136

Tendo ficado impossibilitada de afectar o mesmo à sua normal utilização, como seja a realização de serviços de transporte de mercadorias,»

Sendo que a A./recorrente pugna por que o mesmo seja dado como “provado” com o seguinte teor literal:

«136 Tendo ficado impossibilitada de afectar o mesmo (veículo) à sua normal utilização, como seja a realização de serviços de transporte de mercadorias,»

Que dizer?

Salvo o devido respeito, a factualidade do dito ponto de facto da p.i. já se encontra dada como “provada”.

Improcede assim a pretensão quanto a esse particular.

                                                           ¨¨

Pontos de facto “137”, “138”, “139” e “140” da p.i., cujo teor literal é, respetivamente:

«137 O que fez com que não tivessem podido ser feitos serviços de transporte internacionais de mercadorias,»;

«138 Durante aqueles 201 dias, período em que a autora viu o seu veículo paralisado, total e permanentemente impossibilitado de circular, a autora teve sempre solicitação de serviços de transporte,»;

«139 Serviços esses, que lhe permitiam uma utilização normal e regular do veículo,»;

«140 E que deixou de efectar durante todo aquele período»

É certo que o ponto de facto “137” não consta efetivamente do elenco dos factos “provados” [nem dos “não provados”].

Já quanto aos seguintes pontos de facto, os mesmos foram dados como “provados” com o seguinte teor literal:

«138

Durante aqueles 201 dias, a autora teve solicitação de serviços de transporte,»

«139

Serviços esses, que lhe permitiam a utilização do veículo,»

E como “não provados” nos seguintes segmentos:

«138

Durante aqueles 201 dias (…) a autora teve sempre solicitação de serviços de transporte,»

«139

(…) normal e regular.»

Finalmente, o ponto de facto “140” da p.i. foi integralmente dado como “não provado”, como tal constando do correspondente elenco.

A A./recorrente, para fundamentar a sua pretensão quanto a este particular, invoca a prova gravada, mais concretamente os depoimentos das testemunhas AA [motorista de pesados da A., e que, na data dos factos, tripulava o veículo sinistrado], BB [responsável de manutenção na A.], CC [funcionário da A. há 23 anos, onde exerce as funções de operador de tráfego], e bem assim as declarações do legal representante da Autora [DD], fazendo uma pequena súmula dos respetivos depoimentos, e com invocação precisa e concretizada do local e momento da gravação onde tal constava, para, além do mais, concluir enfaticamente que «(…) dúvidas não podem restar de que a autora não possui veículos suficientes para dar resposta aos serviços de transporte para os quais é solicitada.»

Que dizer?

Desde logo se constata que o Exmo. Juiz  a quo, na “motivação” que fez constar da sentença recorrida, invocou, com exceção da testemunha BB, as demais referidas testemunhas e declarante, apreciando criticamente o que por cada uma delas foi dito em audiência, inclusive quanto aos segmentos que a A./recorrente invoca mais particularmente nas alegações recursivas.

Ora é precisamente por assim ser, que compulsados os depoimentos invocados – a cuja audição integral se procedeu! – se conclui que não existiu qualquer erro de julgamento neste particular, posto que os meios de prova produzidos em audiência não “impunham” uma decisão diversa [cf. art. 662º, nº1 do n.C.P.Civil], termo verbal este que obviamente tem um sentido e significado muito estrito, naturalmente muito restritivo do deferimento das alterações das decisões proferidas sobre a matéria de facto, donde ficarem de fora as situações em que os meios de prova “permitiam” uma decisão diversa…

Vejamos.

Quanto aos pontos de facto “137” e “140” da p.i., s.m.j., estava neles em causa a afirmação de que durante os 201 dias de paralisação do veículo sinistrado, serviços de transporte internacionais de mercadorias por parte da A. tivessem ficado por efetuar.

Ora essa é conclusão que, salvo o devido respeito, os meios de prova produzidos – e invocados! – não autorizam.

Atente-se que se, conforme afirmado pelas testemunhas, e em linha com as melhores regras de prudência e boa gestão, a A. tinha uma “bolsa” de veículos para as emergências/falhas/faltas, até é difícil compreender uma tal alegação, aliás, devendo ser interpretada a afirmação por parte do legal representante da A., DD de que «a sociedade tem trabalho diário para todos os veículos da frota», com o sentido de que tal não se estende nem engloba os veículos da “bolsa”!

E nem se argumente que foi enfatizado na prova produzida que havia falta de veículos na empresa e que não havia veículos de sobra, posto que esse foi aspeto sobre o qual a prova feita não logrou convencer no nosso entender.

Ademais, nesta linha de interpretação, sublinhou o Exmo. Juiz a quo na sua “motivação” o seguinte quanto ao referido precisamente pelo dito legal representante DD:

«(…) quando poderia haver invocado quanto, por via da paralisação forçada, ficou impossibilitado de facturar, limitou-se a avançar que “os valores de referência que normalmente são usados têm um valor definido”, e que existe um decreto-lei que estipula 35 euros à hora e 350 dia. Concretamente – ressalvando sempre o devido respeito – nada. Unicamente a declaração genérica, na sequência de insistências, de que “felizmente temos” serviço para todos os veículos. Insistindo, e questionado sobre se a A..., quando teve o veículo em causa apreendido, recusou serviços, respondeu que “sim, porque nós quase que diariamente estamos a fazer gestão de recursos para satisfazermos o mercado”. Ou seja, e perdoar-se-me-á, não foi capaz de dizer – e creio que tal deve ter ocorrido porque, efectivamente, isso se não verificou – que o transporte para o país “a” a pedido do cliente “x” foi recusado, por impossibilidade, ou mesmo diferido para daí a meses, por momentânea indisponibilidade. Referiu que, em casos de dificuldade, sempre se “procurasse alocar outro serviço noutro camião”, até porque, como referiu, “há sempre uma bolsa”.»

Também relativamente ao operador de tráfego testemunha CC, ficou sublinhado na mesma “motivação” que «Questionado sobre se a empresa encarou prejuízos, “obviamente que sim”, pois que tinham cargas para esse carro se ele cá estivesse, se bem que, em concreto, nada a adiantar, apenas o estribilho de que “cada carro parado é um prejuízo para a empresa”. (…) Numa derradeira tentativa de colocar o “preto no branco”, e questionado sobre se “sabe, em concreto, se algum cliente não foi servido por este camião ter estado parado”, responde militantemente que “é óbvio que sim”, mas não justifica essa resposta com indicação de nenhum caso, antes porque, como faz questão de reafirmar, “há um camião parado, há prejuízo”.»

Sendo certo que nem se entende verdadeiramente a invocação do depoimento da testemunha BB para este efeito, quando relativamente ao mesmo só se alude a que «(…) a testemunha esclareceu que o motorista do veículo sinistrado – AA, durante o período de tempo em que o veículo esteve imobilizado, não ficou sem trabalho, pois que terá substituído outros colegas (sem saber precisar se um ou mais colegas) que se encontravam de baixa médica»…

Ora se assim é, cremos que está encontrada a resposta para os pontos de facto “138” e “139” da p.i.: é que, se bem atentarmos, no primeiro deles está em causa a omissão da expressão “sempre” e, no segundo deles, a omissão da expressão “normal e regular”.

Sucede que, salvo o devido respeito, para além da falta de concretização e evidenciação que ficou patente na prova produzida [nos termos vindos de explicitar!],  essas expressões até representavam juízos conclusivos de facto ou de direito face ao que estava em causa, donde, e bem, se ter optado na sentença recorrida por não lhe dar correspondente acolhimento nos factos “provados”.

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, improcede a impugnação relativamente a este conjunto de 4 pontos de facto a cuja análise se procedia.

                                                           ¨¨

Ponto de facto “145” da p.i., cujo teor literal era:

«145 De resto, a autora manteve inalterados todos os seus custos de exploração, apesar de ter perdido a fonte de produção que o veículo representava.»

Deste ponto de facto foi dado como “provado” «145 A autora manteve inalterados alguns dos seus custos de exploração, apesar de ter perdido a fonte de produção que o veículo representava.», e como “não provado” o segmento «(…) todos os seus custos de exploração».

Está em causa a opção pela expressão “alguns”, em contraponto com “todos”, no que respeita aos “custos de exploração”.

Que dizer?

É certo que não foi alegado que concretos “custos de exploração” deixaram de existir durante o período de paralisação do veículo.

Contudo, é um facto notório [cf. art. 412º do n.C.P.Civil] que estando o veículo sem circular e sem desenvolver a sua atividade comercial, não existem, seguramente, gastos de combustível nem despesas de manutenção relativamente ao mesmo.

Nesta ponderação, também não existe razão à A./recorrente quanto a este particular, termos em que vai indeferida a impugnação que tinha por objeto a decisão relativamente a este último ponto de facto [o ponto “145” da p.i.].

                                                           *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Questão do incorreto julgamento da matéria de direito [no particular do valor indemnizatório relativo à privação do uso do veículo (determinado pelo tribunal a quo segundo critérios de equidade), no montante de € 11.961,35, pugnando-se pela alteração da quantia arbitrada para o montante de € 52.786,62].

Está em causa neste recurso a problemática da ressarcibilidade do dano de privação do uso (in casu, de um veículo automóvel pesado de mercadorias), não propriamente dessa ressarcibilidade em si, mas apenas do quantum da mesma.

Na verdade, o recurso foi interposto pela Autora nos autos – que era a lesada na circunstância – e apenas questionando o montante que lhe foi atribuído na sentença recorrida [de € 11.961,35, pugnando a A./recorrente pela alteração da quantia arbitrada para o montante de € 52.786,62].

Não obstante, importa ter presente que esta questão da ressarcibilidade do dano de privação do uso tem sido discutida quer na doutrina quer, sobretudo, na jurisprudência, perfilando-se, essencialmente, três posicionamentos.

Vejamos então, tendo aqui presente o alinhamento constante de douto aresto[3]:

«(…) para uns[5], o dano da mera privação do uso não é indemnizável, já que para que a privação seja ressarcível, terá de fazer-se prova do dano concreto e efetivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes diretamente da não utilização do bem; para outros[6], a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem; outros[7] ainda advogam que se, por um lado, não basta a simples privação do uso do bem, por outro, também não se exige a prova de danos concretos e efectivos, sendo, contudo, essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.

Das enunciadas teses tem sido a segunda aquela que vem obtendo maior acolhimento na doutrina[8], que vem sustentando ser essa a posição que melhor tutela a lesão dos interesses do proprietário de um veículo que se vê privado de extrair dele todas as vantagens e utilidades que o seu uso lhe proporciona, não podendo deixar de reconhecer-se como lesiva do seu património a perda, em si mesma, da possibilidade de continuar a usufruí-lo, por facto ilícito de um terceiro, durante o período de tempo em que tal se verificar. De facto, um veículo está, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário ou legítimo detentor utilidades (designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser) que só podem ser fruídas por via do uso.

Ora, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata, mas que, em regra, importa a frustração do gozo.

(…)

[5] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 5.07.2007 (processo nº 07B2111) e de 30.10.2008 (processo nº 07B2131), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

[6] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ 5.07.2007 (processo nº 07B1849), de 12.01.2010 (processo nº 314/06.6TBCSC.S1), de 16.03. 2011 (processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1) e de 10.01.2012 (processo nº 189/04.0TBMAI.P1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 04.10.2007 (processo nº 3077/2007-6) e de 18.09.2007 (processo nº 6066/ 2007-1) e acórdãos da Relação de Coimbra de 20.03.2007 (processo nº 226/04.8 TBFN D.C1), de 25.01.2005 (processo nº 3498/04) e de 6.06.2006 (processo nº 1605/06), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

[7] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 26.05.2009 (processo nº 09A0531) e acórdão desta Relação de 27.01.2020 (processo nº 944/18.3T8PFR.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.

[8] Assim, JÚLIO GOMES, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, 1998, págs. 274 e seguintes e, do mesmo autor, Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?, in Cadernos de Direito Privado, nº 3, págs. 62 e seguintes; ABRANTES GERALDES, Temas da Responsabilidade Civil, vol. I - Indemnização do dano da privação do uso, 3ª edição, págs. 72 e seguintes; MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 297 e seguinte e AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª edição, págs. 359 e seguintes.»

No caso vertente, na medida em que não está questionada a ressarcibilidade do dano, podemos dar como assente o direito da lesada a receber uma indemnização, e é por assim ser que no recurso estamos restringidos e reconduzidos a apurar e definir o valor ajustado e adequado à consequência da perda de rendimento que o veículo propiciava.

De referir que a própria Autora ora recorrente, na p.i. que propôs, não alegou sequer um concreto lucro cessante, antes optou por invocar a este título, “por recurso à equidade”, a um “valor diário de referência, no ano de 2019, o de € 262,62”, esclarecendo que «Este quantitativo é o previsto no acordo firmado entre a Antram e a APS para a imobilização de um veículo com as características do sinistrado da autora, (…), Perfazendo, assim, um total, relativo a este dano em concreto, de € 52.786,62 (€262,62 x 201).»

A indemnização neste particular veio a ser acolhida na sentença recorrida através da fixação duma indemnização no montante de € 11.961,35, reeditando a Autora em sede do recurso que interpôs essa pretensão, a saber, pugnando a A./recorrente pela alteração da quantia arbitrada para o dito montante de € 52.786,62.

Sendo ainda que em sede recursiva a A./recorrente igualmente invoca a aplicação ao caso duma lei espanhola, mais concretamente do artigo 22.º da Ley 15/2009, de 11 de noviembre, del contrato de transporte terrestre de mercancías e do DL 57/2021 de 13 de julho, isto porque o sinistro ocorreu em território espanhol.

Que dizer?

Quanto a esta linha de argumentação da aplicação ao caso da citada lei espanhola, resulta decisivamente que a mesma está prevista aplicar-se a casos de responsabilidade contratual [indemnização pela paralisação referente aos atrasos na carga e descarga dum transporte acordado entre as partes contratantes], quando no caso vertente estão em causa os danos decorrentes de responsabilidade civil extracontratual.

Do que resulta, s.m.j., a sua inaplicabilidade liminar ao caso vertente.

Será então de aplicar ao caso vertente o acordo celebrado entre a ANTRAM e a APS [ainda que como mera referência a considerar no juízo de “equidade”]?

A propósito da aplicação do acordo celebrado entre a ANTRAM e a APS vem contraposto nas contra-alegações recursivas que «Quanto ao acordo entre a ANTRAM e a APS, note-se, desde logo, que não resulta da matéria de facto dada como provada que a Apelante, à data do sinistro em causa nos autos, fosse associada da ANTRAM, nem a Apelante peticiona a alteração da matéria de facto nesse sentido, razão pela qual jamais poderão ser tidos em consideração a aplicação de valores de um acordo que não se provou que a Apelante fazia parte à data do sinistro.»

Esta linha de argumentação parece-nos incontornável.

E nem se argumente – como faz a A./recorrente nas suas alegações recursivas! – que «(…) a autora é associada da ANTRAM, sendo que, para aferir de tanto, basta consultar o site da respectiva associação. Logo, tal acordo sempre lhe seria aplicável. O tribunal a quo, por sinal, também não contesta tal facto, nem mesmo os valores referência previstos na dita tabela, o qual deu por facto assente.»

É que, salvo o devido respeito, não é esta materialidade um facto notório [cf. art. 412º do n.C.P.Civil].

Ademais, não bastava apurar-se que a A. era associada da ANTRAM para concluir pela aplicação in totum e indiscriminada do invocado acordo, rectius, do valor diário de paralisação em causa [€ 262,62/dia]: havia que atentar na circunstância de apenas o reboque ter sido efetivamente danificado, o que determinaria uma redução daquele valor a 40% [cf. art. 3º, nº 4 do aludido acordo]; no período de paralisação apenas são contabilizados os dias úteis [cf. art. 3º, nº 7 do aludido acordo], pelo que, considerando o período entre o acidente e a reparação do veículo, tal período seria de 140 dias úteis [e não 201]; quando seja caso de veículo impossibilitado de circular, apenas são considerados nos períodos de paralisação o lapso temporal que decorre desde a data do acidente - caso a participação do acidente à seguradora tenha sido efetuada no dia útil seguinte - até ao dia proposto para a realização da peritagem e o período estritamente necessário para a reparação do veículo, sendo que caso a participação não ocorra no primeiro dia útil seguinte, o período de paralisação tem de necessariamente ser contabilizado desde a receção da participação de sinistro [ora, na medida em que não foi dado como provada a data da participação à seguradora, logo estaríamos colocados perante a questão de definir quantos dias seria efetivamente in casu legítimo contabilizar].

O que tudo serve para dizer que, in casu, importa concluir pela não aplicação directa e sem mais dos valores/diários (muito menos integrais!) definidos na tabela resultante do acordo entre a ANTRAM e a APS.

Assim sendo, resta-nos formular um juízo de equidade para a determinação do valor indemnizatório.

Esta foi também a via perfilhada na sentença recorrida, aduzindo-se, para tanto o seguinte:

«(…) Aqui, nesta matéria, é sabido que foi firmado um acordo entre os gigantes empresariais para a definição de valores a praticar a título de indemnização por paralisação de veículos. Quando o legislador assim o determinar, o julgador – ou uma entidade terceira, a definir ou criar – fixará tais montantes, independentemente de se tratar de um veículo que raramente trabalhava, ou de um outro que, afecto a determinado tipo de transportes, gerava sistematicamente rentabilidades muito superiores. Enquanto assim não for definido por quem de direito, em meu entender, devem aqui aplicar-se as regras gerais de direito; dentre elas, o já referido e citado art.º 566º do código civil.»

Que factores e critérios são então de ponderar à luz e para efeitos do juízo de equidade?

 Desde logo, poderia ser atendido e ponderado o preço médio de aluguer de um veículo automóvel pesado de mercadorias, com as características do sinistrado, mas essa não foi a via seguida nos autos, ademais desconhecendo-se – por tal não ter sido alegado, nem constar dos autos! – qual seja esse concreto valor.

Ademais, não tendo a A. ora recorrente feito uma tal despesa, o valor locativo do veículo não se nos afigura que pudesse ou deva figurar como critério adequado para este efeito, posto que, insofismavelmente, «basta pensar que neste custo [de aluguer] entram as mais diversas componentes, incluindo as despesas de exploração da empresa de aluguer e o seu lucro que a partir do momento em que o autor de facto não procedeu ao aluguer não têm de ser suportadas pela ré, cuja responsabilidade vai apenas até onde for o dano provocado»[4]

Poder-se-ia também intentar calcular o valor de uso do veículo para uso próprio, a que se chegaria através  da soma do preço de aquisição e das despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo[5], mas, s.m.j., sucede que estamos liminarmente impedidos de prosseguir esta via porque, para os cálculos a tanto necessários e uso dos mecanismos a essa luz propostos, as partes teriam de fornecer factos para que o tribunal pudesse chegar a alguma conclusão, o que não foi o caso.

O que idem se diga relativamente aos critérios doutamente propostos pela melhor doutrina, a saber, «Pensamos que o dano da privação do uso deverá ser quantificado num valor que pode ser obtido de uma de duas formas; ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, mas “depurados” do lucro do locador, dos custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc. (no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos de aluguer normalmente praticados); ou (como que “de baixo para cima”), designadamente, para viaturas de profissionais e empresas, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex., os custos necessários para constituir uma reserva de um bem como o que está em causa)»[6].

Neste quadro, isto é, porque a indemnização pela indisponibilidade do veículo nunca se poderia pautar em termos exatos, entendemos ser perfeitamente justificada a opção perfilhada pelo Exmo. Juiz de 1ª instância de recorrer à equidade para fixar a respectiva indemnização, já que, como emerge do nº 3 do art. 566º do C.Civil, a avaliação desse dano, se outro critério não puder ser adotado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado.

 De referir que no caso vertente, apelando precisamente ao disposto no nº 3 do citado art. 566º do C.Civil, o Exmo. Juiz a quo entendeu adequado fixar um montante diário de € 59,51 por dia de paralisação (ou € 87,31 por dia útil) a título de indemnização pelo dano em questão, valor esse que não se nos se revela ajustado, por escasso, mormente tendo em conta os valores que, em análogas situações, vêm sendo fixados na jurisprudência.

Na verdade, como para este efeito foi evidenciado nas alegações recursivas, encontra-se amiúde a quantia reparatória diária de €100,00.[7]

Sendo certo que, se na falta de elementos concretos, o acordo estabelecido entre a ANTRAM e a APS poderia servir como base de referência para a fixação da indemnização pela privação do uso de veículo por recurso à equidade, importa não olvidar que o peticionado valor de € 262,62/dia correspondia a um cálculo em função de dias úteis, o que, transpondo para o caso vertente, nos determinaria, só por aí, 140 dias, em vez dos 201 reclamados pela A./recorrente!

Consequentemente, entende-se que o valor diário peticionado pela autora (€ 262,22) é excessivo, afigurando-se justo e equitativo o referido valor diário de € 100,00, que a aplicar ao período de privação efetiva de uso (de harmonia com o peticionado), perfaz um total, relativo a este dano em concreto, de € 20.100 (= € 100,00 x 201).

A esse montante acrescerão os juros de mora, nos termos decididos na sentença, bem como os demais montantes conferidos e não objeto do recurso.

Nestes termos e medida procedendo as alegações recursivas e o recurso.

            (…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acordam a final em dar apenas parcial procedência à apelação do Autora, e, em consequência, em revogar o ponto “1-” do dispositivo da sentença recorrida, que se substitui pela condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de vinte mil e cem euros (€ 20.100), a título de dano de privação do uso do veículo/paralisação do veículo, mantendo-se, no demais, a sentença recorrida.

Custas da ação e do recurso, a cargo de Recorrente e Recorrida na exata proporção do decaimento, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.

                                                                       *

                                           Coimbra, 7 de Novembro de 2023

 Luís Filipe Cravo

 João Moreira do Carmo

Fernando Monteiro


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
[2] Esclarecendo-se que «Para facilitar operações de escrutínio, vão os mesmos sob a numeração que, originariamente, lhes coube no articulado donde provêm.»
[3] Trata-se do acórdão do TRP de 10.01.2022, proferido no proc. nº 8064/18.4T8SNT.P2, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[4] Neste sentido vide o acórdão do STJ de 5.03.2002, proferido no proc. nº 3968/01, acessível em www.dgsi.pt/jstj
[5] Assim se fez, inter alia, no acórdão do TRC de 6.03.2012, proferido no proc. nº 86/10.0T2SVV.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[6] Cf. PAULO DA MOTA PINTO, in “Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo”, Vol. I, Coimbra Editora, 2008, a págs. 592.
[7] Cf., inter alia, o acórdão do TRC de 06/02/2018, proferido no proc. nº 189/16.7T8CDN.C1, e o acórdão do mesmo TRC de 23/11/2021, proferido no proc. nº 2319/18.5T8ACB.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt/jtrc.