Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
| Descritores: | CONTRATO-PROMESSA DAÇÃO EM CUMPRIMENTO EFICÁCIA REAL EXECUÇÃO ESPECÍFICA MORA MARCAÇÃO DA ESCRITURA BOA-FÉ | ||
| Data do Acordão: | 02/07/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 762.º, N.º 2, 804.º, 805.º E 830.º, DO CÓDIGO CIVIL | ||
| Sumário: | I – Em ação para execução específica de promessa de dação em cumprimento, cabendo à autora, nos termos acordados, a marcação da data da escritura pública referente ao contrato prometido, não tem esta direito a tal execução específica se não diligenciou pela marcação da escritura, o que afasta a situação de mora da contraparte quanto ao cumprimento da promessa.
II – Em tal caso, não basta a prova de que a autora interpelou várias vezes a ré a fim de dar cumprimento ao clausulado prometido, visto que cabia à autora diligenciar pela marcação da escritura, sendo a falta a tal escritura que poderia constituir a ré em mora, e não a citação da ré para a ação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Relator: Emídio Francisco Santos 1.ª Adjunta: Catarina Gonçalves 2.ª Adjunta: Maria João Areias Processo n.º 3206/21.5T8CBR.C1
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
U..., Lda, com sede na Praceta ... ... ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra N..., Lda, com sede na Estrada ..., ... – ... ... ..., pedindo se proferisse sentença, substitutiva da declaração negocial faltosa e cujos efeitos se traduzam na transferência, para a autora, da propriedade da metade indivisa do prédio urbano, composto de lote de terreno destinado a construção urbana, designado pelo n.º 3, sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...91 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55. Para o efeito alegou: Citada, a ré não contestou. O Meritíssimo juiz do tribunal a quo considerou confessados os factos articulados pela autora. Notificada para efeitos do n.º 1 do artigo 567.º do CPC, a autora alegou no sentido de ser julgada procedente a acção. De seguida, o Meritíssimo juiz do tribunal a quo proferiu sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu a ré do pedido. O recurso A autora não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação. Pediu a revogação da sentença e a substituição dela por acórdão que determinasse a declaração negocial faltosa, cujos efeitos se traduzam na transferência da propriedade da metade indivisa do prédio urbano, composto de lote de terreno destinado a construção urbana, designado pelo n.º 3, sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...91 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55. Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes: * Questão principal suscitada pela apelação: Saber se a sentença sob recurso errou ao entender que a ré, ora recorrida, não estava em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de dação em cumprimento. * Factos considerados provados: 1. A ré é dona e legítima possuidora de metade indivisa do prédio urbano, composto de lote de terreno destinado a construção urbana, designado pelo n.º 3, sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...91 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55. 2. Através de documento escrito com data de 2 de Agosto de 2013, a ré confessou-se devedora à autora da quantia de € 118.000,00 (cento e dezoito mil euros), acrescida de juros de mora à taxa convencionada de 7,5%. 3. A autora e a ré acordaram que o pagamento integral da quantia referida em 2) seria efectuada no prazo de 5 anos, contados da data de 2 de Agosto de 2013. 4. A autora e a ré acordaram que, caso não fosse efectuado o pagamento da quantia supra-referida no aludido prazo de 5 anos, para além dos juros referidos no ponto n.º 2, seriam devidos juros de mora, vencidos no final do período de 5 anos, contabilizados desde 2 de Agosto de 2013 até 2 de Agosto de 2018, à taxa de 7,5%. 5. A autora e a ré acordaram que, caso não fosse efectuado o pagamento nos termos fixados no n.º 2, a ré prometia dar à autora em cumprimento da totalidade do montante referido em 2 e 4, os seguintes prédios: a) Metade indivisa do prédio descrito no ponto n.º 1; b) Metade indivisa do prédio urbano, composto de lote de tereno destinado a construção urbana, designado pelo n.º 9, sito na Avenida ..., n.º 2ª, freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...36, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...61, com o valor de € 25 500,00 (vinte mil e quinhentos euros). 6. A autora aceitou a promessa de dação em cumprimento nos termos contratuais exarados. 7. A autora e a ré acordaram que, não sendo efectuado o pagamento, a escritura pública de dação em cumprimento seria realizada no prazo de 30 dias, a contar de 2 de Agosto de 2018, competindo à segunda outorgante (a ora autora) a marcação da mesma, devendo para o efeito notificar a primeira outorgante (a ora ré), com quinze dias de antecedência, por meio de carta registada, com aviso de recepção, do dia, hora e local da realização da mesma. 8. As partes declararam conferir eficácia real ao contrato. 9. As partes acordaram a faculdade de requererem a execução específica das obrigações contratuais assumidas pela parte faltosa, nos termos do art.º 830.º do CC. 10. O prazo para pagamento da obrigação assumida pela ré perfez-se a 2 de Agosto de 2018. 11. A ré não liquidou qualquer quantia por conta da dívida assumida. 12. Várias foram as interpelações extrajudiciais efectuadas pela autora à ré, a fim de dar cumprimento ao clausulado prometido. * Resolução das questões: O pedido da autora, ora recorrente, suscitava a questão de saber se lhe assistia o direito de executar especificamente a obrigação de a ré dar em cumprimento a ela, autora, metade indivisa do seguinte prédio: lote de terreno destinado a construção urbana, designado pelo n.º 3, situo na Rua ..., freguesia concelho ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...30, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...55, com o valor de € 92 500,00 (noventa e dois mil e quinhentos euros). Na hipótese de o tribunal entender que tal direito assistia à autora, cabia-lhe proferir sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial da ré, ou seja, sentença que declarasse transmitida para a autora o direito de propriedade sobre metade indivisa do prédio acima descrito. A sentença sob recurso não acolheu a pretensão da demandante, ora recorrente. No essencial, disse que era condição da execução específica que a ré estivesse em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de dação em cumprimento, mas que ela não estava em tal situação. As razões deste entendimento foram em síntese as seguintes: A recorrente contesta esta fundamentação com base, em síntese, na seguinte linha argumentativa: A resposta à questão suscitada pelo recurso está directamente relacionada com a questão da execução específica do contrato-promessa e com a da mora do devedor. Assim sendo, importa, antes de mais, indicar e interpretar os preceitos aplicáveis a estas duas questões. A execução especifica do contrato-promessa está sujeita ao regime do artigo 830.º do Código Civil. Para o caso interessa-nos de modo especial o n.º 1, cujos termos são os seguintes: “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso sempre que a isso nãos e oponha a natureza da obrigação assumida”. Resulta deste preceito que a execução especifica do contrato-promessa pressupõe a verificação cumulativa das seguintes condições: No recurso não estão em questão as seguintes condições:
Em questão está, pois, apenas a segunda condição (não cumprimento da promessa). E em relação a ela cabe precisar que não está em discussão saber se a ré, ora recorrida, não cumpriu a promessa de dação em cumprimento. É facto incontrovertido que a não cumpriu. Na verdade, dizendo o n.º 2 do artigo 762º do Código Civil que “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” e o n.º 1 do artigo 406º do Código Civil que “o contrato deve ser pontualmente cumprido…”, dá-se o não cumprimento do contrato-promessa quando algum dos promitentes não emite a declaração negocial correspondente ao contrato prometido nos precisos termos que constam da promessa. É o que se passa no caso com a declaração negocial de dação em cumprimento. O que está em discussão é saber se a ré, ora recorrida, está em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de dação em cumprimento. A resposta a esta questão é essencial para a decisão sobre a execução específica visto que, para efeitos do n.º 1 do artigo 830.º do CC, o não cumprimento basta-se com o atraso, com a mora no cumprimento da obrigação. Citam-se abono desta interpretação do n.º 1 do artigo 830.º na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, a título de exemplo, as seguintes decisões do STJ: o acórdão do STJ proferido em 5 de Março de 1996, no recurso n.º 87 846 [acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ Ano IV, Tomo I – 1996, páginas 115 a 118], o acórdão do STJ de 07-10-2020, no processo n.º 341/18.0T8ABT.E1.S1 e o acórdão do mesmo tribunal proferido em 28-01-2021, no processo n.º 1790/17.7T8VFX.L1., ambos publicados em www.dgsi.pt. Daí que o n.º 1 do artigo 830.º, do Código Civil, na parte em que se refere ao não cumprimento da promessa, tenha de ser conjugado com o regime da mora do devedor, especialmente com a noção de mora constante do n.º 2 do artigo 804.º do CC e com o momento da constituição em mora definido nos números 1 e 2 do artigo 805.º do mesmo diploma. Assim: De acordo com o n.º 2 do artigo 804.º do Código Civil, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devida. O n.º 1 do artigo 805.º estabelece que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. O n.º 2 do mesmo preceito prevê casos em que há mora do devedor, independentemente de interpelação. Decorre destes preceitos que a noção de mora remete para o tempo devido da prestação e para a possibilidade dela, ou seja, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela: “A simples mora supõe a possibilidade futura do cumprimento da obrigação” [Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, página 61]. Assim, se a prestação não foi efectuada porque ainda não chegara o tempo devido para a sua realização não há mora. E se havia um tempo devido para a realização da prestação, mas se ela não foi efectuada em tal tempo porque ela se tornou impossível, a situação também não é de mora; será de impossibilidade da prestação ou de incumprimento definitivo. Interpretando o n.º 2 do artigo 804.º do Código Civil com o sentido exposto, a resposta à questão de saber se a ré, ora recorrida, estava em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de dação em cumprimento de metade indivisa do lote de terreno, remete-nos para o tempo devido para esse cumprimento e para a possibilidade desse mesmo cumprimento. Observe-se que a questão da possibilidade do cumprimento da promessa é de resolução obrigatória. Como se escreveu no acórdão do STJ proferido em 18 de Fevereiro de 1997, no recurso n.º 472/96 “… o tribunal só pode substituir-se ao devedor faltoso no caso de este se recusar a celebrar o contrato prometido, podendo embora fazê-lo. As partes não podem conseguir, …, através do recurso ao tribunal, um efeito contratual que não pudessem elas próprias levar a cabo [acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência Acórdãos do STJ ano V Tomo I- 1997, páginas 111 a 113]. No caso, não há elementos de facto que apontem no sentido de que não é possível o cumprimento da promessa de dação por parte da ré. Em relação ao momento devido para o cumprimento da promessa, está provado que a autora, ora recorrente e a ré, ora recorrida, convencionaram o seguinte: “verificando-se as condições fixadas na cláusula 3.ª do presente contrato, a escritura pública de dação em cumprimento será realizada no prazo de 30 dias, a contar de 2 de Agosto de 2018, competindo à segunda outorgante a marcação da mesma, devendo para o efeito notificar a primeira outorgante, com quinze dias de antecedência, por meio de carta registada com aviso de recepção, do dia, hora e local da realização da mesma”. Observe-se que o acordo que se acaba de transcrever não versa apenas sobre o momento do cumprimento da promessa. Ele trata em primeiro lugar da produção dos efeitos da promessa. Na verdade, as partes convencionaram que a produção de efeitos da promessa ficava dependente do seguinte facto: o não pagamento da dívida até 2 de Agosto de 2018. Isto é, considerando a noção de condição constante do artigo 270.º do Código Civil, a promessa de dação em cumprimento foi feita sob condição suspensiva, ou seja, as partes subordinaram a um acontecimento futuro e incerto (o não pagamento da dívida até 2 de Agosto de 2018) a produção de efeitos da dação em cumprimento. A condição verificou-se, pois provou-se que a ré, ora recorrida, não pagou a dívida de que se confessou devedora à autora até 2 de Agosto de 2018. Em consequência, ficou obrigada a cumprir a promessa, ou seja, a dar em cumprimento à autora, ora recorrente, a metade indivisa do prédio acima descrito. Quanto ao momento do cumprimento da promessa, que consistia na celebração da escritura pública de dação em cumprimento do imóvel, foi acordado que ela teria lugar “no prazo de 30 dias a contar de 2 Agosto de 2018”. As partes não se limitaram, no entanto, a estabelecer o prazo dentro do qual a ré, ora recorrente, estava obrigada a cumprir a promessa. Resolveram ainda, por acordo, os seguintes aspectos práticos relevantes para o cumprimento da promessa: Em relação ao primeiro, convencionaram que seria a autora, beneficiária da promessa, que ficava com o encargo de marcar a escritura; Quanto ao segundo, estabeleceram que a autora ficava com o dever de notificar a ré, ora recorrida, com quinze dias de antecedência, por meio de carta registada com aviso de recepção, do dia, hora e local da realização da mesma”. O acordo sobre estes aspectos tem as seguintes implicações em matéria de mora no cumprimento da promessa por parte da ré: Em matéria de ónus da prova, cabia à autora, ora recorrente, provar a mora, ou seja, que praticou todos os actos necessários ao cumprimento da obrigação, mas que a ré não compareceu no dia hora e local designados para a realização da escritura. Como bem se assinalou na sentença esta prova não foi feita. Contra a sentença não vale a seguinte alegação da recorrente: Em primeiro lugar, não está provado: 1) que a ré, instada, não respondia ou se recusava a prestar fosse o que fosse; 2) que a autora sugeriu à ré datas para a marcação da escritura; 3) que a ré não forneceu elementos que permitissem o agendamento da escritura pública ou que se recusou a comunicar com a autora. Em segundo lugar, é exacto que está provado que a autora interpelou várias vezes a ré a fim de dar cumprimento ao clausulado prometido. Se isto é exacto, também temos por exacto que estas interpelações não constituíram a ré em situação de mora quanto ao cumprimento da promessa de dação em cumprimento. Vejamos. A interpelação extrajudicial constitui o devedor em mora nas hipóteses em que a exigibilidade da obrigação está dependente de interpelação do credor. É o que sucede nas chamadas obrigações puras, ou sejam, naquelas em que na falta de estipulação ou disposição da lei não está determinado o prazo para o cumprimento da obrigação (n.º 1 do artigo 777.º do Código Civil). Não é o que se passa no caso com a obrigação de dar em cumprimento a metade indivisa do imóvel. A exigibilidade desta obrigação estava dependente da realização, pela autora, ora recorrente, dos actos acima mencionados. Só a prática deles tornava exigível o cumprimento da promessa. A mera interpelação da ré para cumprir a promessa não supria a prática de tais actos nem tornava exigível o cumprimento da promessa de dação em cumprimento. A citação da ré para a acção também não a constitui em mora quanto ao cumprimento da promessa. Com efeito, decorre da alínea b) do n.º 2 do artigo 610.º do Código de processo Civil que a dívida considera-se vencida/exigível com a citação quando a inexigibilidade derive unicamente da falta de interpelação do devedor ou do facto de não ter sido pedido o pagamento no domicílio do devedor (alínea b) do n.º 2 do artigo 610.º do Código de processo Civil). Como se escreveu acima, não era o que se passava com a obrigação de a ré dar em cumprimento a metade indivisa do imóvel. Deste modo, não havendo prova de que a autora realizou os actos necessários ao cumprimento da promessa de acção em cumprimento e sendo a realização deles essencial para a constituição da ré em mora, tem inteiro amparo na lei a decisão recorrida quando afirmou que não havia prova de que a ré estava em mora quanto ao cumprimento da promessa e que não estavam reunidos os pressupostos da execução específica pedida pela autora, ora recorrente. Na realidade, quem está em mora é a autora, visto que não praticou os actos necessários ao cumprimento da obrigação pela ré (2.ª parte do artigo 813.º do Código Civi). Pelo exposto, improcede a alegação de que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 762.º, n.º 2, 805.º, n.º 1, e 830.º, n.º 1, todos do Código Civil. * Decisão: Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida. * Responsabilidade quanto a custas: Considerando o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas. Coimbra, 7 de Fevereiro de 2023
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