Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
305/14.3T9LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 11/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL GENÉRICA DA NAZARÉ)
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: INDEFERIDO O INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Legislação Nacional: ART. 92.º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, APROVADO PELA LEI Nº 145/2015; ART. 135.º, DO CPP
Sumário: I – No âmbito do segredo profissional a regra geral é que o mesmo abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 961).

II – O segredo profissional do advogado não é absoluto, podendo ser revelado em determinadas circunstâncias;

III – Tendo o arguido dispensado o seu Advogado do segredo profissional e arrolado o mesmo como testemunha, para depor sobre as conversas exclusivamente havidas entre ambos, no âmbito de aconselhamento jurídico, relativas à conduta do primeiro que constitui o objecto dos autos, não existe direito à escusa pois que, com a dispensa verificada, deixaram tais conversas de estar sujeitas ao segredo;

IV – Não se revelando o depoimento do Ilustre Advogado imprescindível para a descoberta da verdade nem se descortinando, dada a reduzida gravidade do crime imputado e o relevante dano que a concessão da escusa causaria ao segredo profissional, qualquer razão para que o interesse do Estado na realização da justiça penal deva prevalecer sobre o interesse da reserva da vida privada e da relação de confiança entre o advogado e o cliente, não deve ser deferido o incidente.

Decisão Texto Integral:

            Acordam em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

            I. RELATÓRIO

Corre termos no Juízo de Competência Genérica da Nazaré do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o processo comum, com intervenção do tribunal singular, nº 305/14.3T9LRA onde, mediante despacho de pronúncia, foi sujeito a julgamento, o arguido …, a quem foi imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, a) do C. Penal, em concurso aparente com um crime de desacatamento ou recusa de execução de decisão de tribunal, p. e p. pelo art. 13º da Lei nº 34/87, de 16 de Agosto.

Na fase de julgamento, o Ilustre Advogado, Sr. Dr. …, apresentou nos autos o seguinte requerimento:

“ (…).

Exma. Senhora Dr.ª Juiz de Direito

…, que também usa o nome de …, advogado, tendo sido notificado na qualidade de testemunha, para comparecer nesse Tribunal, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento,

Considerando a qualidade profissional que detém;

Considerando que os factos sobre os quais poderia depor, advieram ao seu conhecimento no exercício da actividade profissional, no âmbito de aconselhamento jurídico;

Nos termos do seu estatuto profissional, e, tendo em consideração a enorme relevância do testemunho, para a defesa do arguido e para a realização da justiça;

Solicitou-se ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Lisboa, a dispensa do sigilo profissional, para prestar depoimento;

O Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Lisboa indeferiu o requerido, não autorizando a prestação de depoimento, nos termos expressos na decisão.

Considerando a enorme relevância do testemunho, para a defesa do arguido e para a realização da justiça;

Manifesta-se, inequivocamente, a total disponibilidade para prestar depoimento, após verificada a quebra do segredo profissional, nos termos previstos no artigo 135º do CPP.

Junto decisão do Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Lisboa.

(…).

A decisão do Conselho Regional de Lisboa do Ordem dos Advogados, junto pelo Ilustre Advogado requerente tem o seguinte teor:

“ (…).

PROCESSO Nº 289/2018

PEDIDO DE DISPENSA DE SIGILO PROFISSIONAL

CONFIDENCIAL

PROPOSTA DE DESPACHO

RELATÓRIO

Mediante requerimento que deu entrada neste Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia I de Outubro de 2018, com o n° 000..., veio o Sr. Dr. …, Advogado com domicílio profissional na Rua …, Caldas da Rainha, solicitar a dispensa do sigilo profissional nos termos e com os fundamentos seguintes:

O Sr. Advogado requerente refere prestar consultadoria jurídica e é mandatário do … e do Sr. ….

No que é do conhecimento do Sr. Advogado requerente, o Sr. …, não só não é jurista, como não tem conhecimentos jurídicos gerais, de direito administrativo, substantivo ou adjetivo,

Sucede que o Sr. …, foi constituído arguido no processo 305/14.3T9LRA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica da Nazaré, por alegada desobediência no cumprimento de decisão judicial, nomeadamente, e no que ao pedido de dispensa de sigilo interessará, do determinado em sentenças proferidas nos processos 822/14.5BELRA e 822/14.5BELRA-A que correram termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

O Sr. Advogado requerente terá sido constituído defensor, do Sr. …, no processo 305/14.3T9LRA, tendo exercido o mandato, nas fases de inquérito e da instrução, até à notificação do despacho de pronúncia.

O Sr. …, tendo agido sempre e nos exatos termos, dos conselhos jurídicos prestados pelo requerente, não só, solicitou a prestação do meu testemunho no processo em curso, como também terá autorizado o Sr. Advogado requerente:

a) A revelar, em prestação de testemunho judicial, todos os factos, relativos aos conselhos jurídicos verbais prestados por mim, e as posições manifestadas pelo próprio,

b) Em reuniões, com o mesmo, sem a presença de terceiros,

c) Relativamente ao quando, sentido e âmbito, do cumprir, as sentenças judiciais,

d) Proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria,

e) Nos processos 822/14.5BELRA e 822/14.5BELRA-A.

Cumpre decidir.

FUNDAMENT AÇÃO

Nunca é de mais repetir que o segredo profissional constitui um dos elementos estruturantes da profissão.

O princípio do dever de guardar segredo profissional consolidou-se ao longo dos tempos, não só nas leis que a consagram, como na importância que assume o elo de confiança entre o cliente e o Advogado, o qual conforma a opção do legislador.

Defendê-lo e preservá-lo é uma obrigação primeira da Advocacia, sob pena de se ver desfigurado aquilo que é a essência da profissão.

Como se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto do sigilo profissional, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.

Sem segredo profissional a advocacia não pode existir. Por isso aquele deve ser defendido c preservado sem tibiezas, sob pena de se questionar a alma da profissão e da atividade dos advogados.

E, decidindo, desde já se diga que é inaceitável autorizar a depor um Advogado que esteja ou tenha estado constituído no mesmo pleito.

Apesar de tal proibição não constar de norma expressa, seria a completa subversão do sistema processual c altamente desprestigiante para a Advocacia admitir tal hipótese.

A doutrina refere-o bastamente. Cite-se a título de exemplo, o referido pelo Bastonário Lopes Cardoso, in "O segredo profissional na Advocacia", pg 82-83: "Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo penal no qual esteja constituído. É que embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a Acão, as principais condicionantes do seu decurso. (…). Não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trate de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que antes ocupara."

Tal como também o refere a jurisprudência da Ordem dos Advogados.

A sustentar esta posição podemos citar, a título de exemplo:

a) Parecer do Conselho Geral de 30.10.1952, in ROA, 12-III/V – 404 – "o Advogado, em regra, não deve ser testemunha, conforme este Conselho Geral tem acentuado. Há sempre casos execpcionais em que esta regra não é de observar, visto que a própria lei os prevê expressamente, mas é sempre inadmissível que o Advogado deixe o patrocínio duma causa com o propósito de nela tornar a posição de testemunha."

b) Parecer do Conselho Geral de 5.5.1954 in ROA, 14 a 16, 334: "deve o Advogado recusar-se a depor quando indicado como testemunha e processo ao qual esteja junta procuração a que haja renunciado."

c) Acórdão do Conselho Superior de 23.10.1951, in ROA, 11 – III/IV: "constitui infracção disciplinar o facto de o Advogado deixar de patrocinar o constituinte, com o propósito de ser testemunha."

Esta doutrina (em sido, aliás, largamente reafirmada, no âmbito de diversos processos de pedidos de dispensa de sigilo profissional apreciados pela Ordem dos Advogados (como exemplo, a título meramente indicativo, e apenas referindo alguns dos pedidos apresentados na área territorial de competência do Presidente do Conselho Distrital de Lisboa, recordamos aqui os processos nºs 15/2005, 47/06, 228/07, 112/08, 140/09, 14/2011).

Assim, e sendo ou tendo sido o Sr. Advogado requerente mandatário no processo crime no qual pretende agora depor, e por toda a ordem de razões evidenciadas, propõe-se indeferir o pedido de dispensa de sigilo profissional apresentado.

(…).

DESPACHO

Concordo e homologo a proposta anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

Nestes termos, indefere-se o requerido, não se autorizando o Sr. Advogado requerente a depor como testemunha no processo crime autuado com o nº 305/14.3T9LRA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica da Nazaré, sobre todos e quaisquer factos que tenha praticado ou de que tenha tido conhecimento no âmbito e serviços de Advocacia por si prestados.

Notifique-se.

Lisboa, 12 de Outubro de 2018

(O Vice-Presidente do CRL).

(…).

O Digno Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de não estarem verificados os pressupostos do incidente de quebra do sigilo profissional ou, assim não se entendendo, que seja a quebra de sigilo profissional indeferida.

Na audiência de julgamento de 25 de Outubro de 2018 a Mma. Juíza presidente proferiu o seguinte despacho:

Visto o requerimento apresentado pela testemunha … sob a referência já indicada e acerca do qual se pronunciaram agora o Assistente e o arguido nada mais há acrescentar para além do já consignado no despacho proferido em 24-10-2018, por se entender que, em rigor, a testemunha não vem expressamente deduzir incidente de escusa.

No entanto a parte final do nº 3 do artigo 135º do CPP, no qual se mostra prevista a quebra do segredo de justiça por Tribunal superior aquele onde deve ser suscitado tal incidente consigna que tal intervenção é suscitado pelo Juiz, oficiosamente, ou a requerimento, sendo que a norma em causa não consagra expressamente, quanto à verificação dos pressupostos do nº 3, a quem cabe legitimidade para a dedução de tal requerimento.

Por outro lado, em face da posição manifestada pela testemunha no seu requerimento em que alude à referida norma, e à posição assumida pelo arguido relativamente à mesma, entende-se, a bem da descoberta da verdade e boa decisão da causa, ser de suscitar o referido incidente junto do Tribunal Superior, devendo proceder-se em conformidade. Instruindo o referido incidente com as seguintes peças processuais: do requerimento apresentado pela testemunha acompanhado de cópia da decisão do Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Lisboa, da promoção que sobre o mesmo recaiu por parte do Ministério Publico, e da presente ata de acompanhada de suporte informático.

Notifique.


*

            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

1. No âmbito do segredo profissional a regra geral é que o mesmo abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 961). Trata-se, portanto, da reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício (Ac. da R. de Coimbra de 21 de Setembro de 2011, processo nº 968/09.1TACBR.C1, in www.dgsi.pt).

O segredo profissional na Advocacia encontra-se regulado no art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados [doravante EOA], aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro (entrada em vigor a 9 de Outubro de 2015).

Dispõe este artigo no seu nº 1 que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, seguindo-se depois a enunciação, não taxativa, nas suas alíneas a) a f), de específicas situações sujeitas ao referido segredo que traduzem meras explicitações da norma que constitui a matriz.   

O seu nº 4 estabelece que, o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.  

O seu nº 5 dispõe que, os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

E o seu nº 6 estatui que, ainda que dispensado nos termos do disposto no nº 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

Não estamos, pois, perante um segredo absoluto, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o Advogado o possa quebrar.

Brevitatis causa, diremos que uma primeira situação em que o Advogado deixa de estar sujeito ao segredo profissional decorre da sua desvinculação pelo próprio cliente isto é, quando este autoriza a revelação do segredo. Uma segunda situação corresponde à dispensa do segredo profissional requerida pelo Advogado ao Presidente do Conselho Regional respectivo e por este autorizado [trata-se do procedimento previsto no art. 92º, nº 4 do EOA]. E uma terceira situação corresponde ao incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art. 135º do C. Processo Penal [aplicável ao processo civil, por força do disposto no art. 417º, nº 4 do C. Processo Civil].

Correspondendo esta última à situação trazida ao conhecimento da Relação, atentemos na regulação legal do incidente.

 

2. Estabelece o nº 1 do art. 135º do C. Processo Penal que, os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

O incidente é assim processado:

- Invocada a escusa por quem a lei permite ou impõe que guarde segredo e existindo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, o tribunal onde ela foi deduzida procede às averiguações necessárias e caso conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento ou da forma de cooperação pretendida (art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal);

- Sendo legítima a escusa, compete ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente foi suscitado decidir sobre a quebra do segredo (art. 135º, nº 3 do C. Processo Penal), depois de ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (nº 4 do mesmo artigo).

Suscitado o incidente e chegado este ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do art. 135º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.

O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, sobrepor-se ao outro.

Os interesses em confronto são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão que a Lei Fundamental considera elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa).

Neste confronto, foi intenção da lei, como nota Costa Andrade, sujeitar o tribunal a padrões objectivos e controláveis, admitindo a justificação da violação do segredo desde que esteja em causa a dimensão repressiva da justiça penal relativamente aos crimes mais graves, aos que provocam maior alarme social, mas apenas quando o sujeito ao segredo é chamado ao processo penal na qualidade de testemunha (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 1157).

Aqui chegados.

3. O processado do presente incidente apresenta algumas particularidades, a exigirem clarificação.

Em primeiro lugar, o Ilustre Advogado, aparentemente, não recusa prestar depoimento, como testemunha, na audiência de julgamento.

Com efeito, tendo tomado a iniciativa de solicitar ao órgão competente da Ordem dos Advogados a dispensa do segredo profissional, e tendo o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, por despacho do seu Vice-Presidente, datado de 12 de Outubro de 2018, indeferido a requerida dispensa, veio então manifestar nos autos a sua inteira disponibilidade para depor, desde que decidida a quebra do segredo profissional, nos termos do disposto no art. 135º do C. Processo Penal.

Ainda assim, numa interpretação a contrario, a manifestação do Ilustre Advogado, permite concluir que, não lhe sendo concedida a quebra do segredo profissional, recusará prestar depoimento, o que vale deverá considerar-se equivalente à dedução de escusa.

Em segundo lugar, a Mma. Juíza presidente, a quem competia, nos termos do disposto no art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal apreciar a legitimidade ou ilegitimidade da escusa [não em sentido processual, mas em sentido substantivo isto é, apreciar se o Ilustre Advogado tinha ou não o direito à escusa] não o fez expressamente, mas suscitou o incidente, o que deverá ser entendido como o reconhecimento implícito da legitimidade da escusa.

Quanto ao mais. 

4. Nos autos supra identificados é imputada ao aí arguido a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, a) do C. Penal, em concurso aparente com um crime de desacatamento ou recusa de execução de decisão de tribunal, p. e p. pelo art. 13º da Lei nº 34/87, de 16 de Agosto por, no essencial, ter, na qualidade de …, não ter acatado nem executado as decisões judiciais proferidas em dois processos de natureza administrativa contra o respectivo ….

O Ilustre Advogado, no requerimento por si apresentado, limitou-se à conclusiva afirmação de que os factos sobre os quais poderia depor, advieram ao seu conhecimento no exercício da actividade profissional, no âmbito do aconselhamento jurídico, e que o seu depoimento poderia ter grande relevância para a defesa do arguido e para a realização da justiça, sem precisar a relação existente com o arguido do processo. E é na decisão do pedido de dispensa de sigilo profissional, proferida pelo Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, que esse relacionamento se encontra definido, aí constando, além do mais, que o Ilustre Advogado foi mandatário constituído do arguido nas fases do inquérito e da instrução, até à notificação do despacho de pronúncia, bem como, bem como que o arguido solicitou e autorizou que prestasse depoimento sobre todos os factos relativos aos conselhos jurídicos verbais prestados por mim, e as posições manifestadas pelo próprio, com a justificação de que o arguido agiu sempre e nos exactos termos, dos conselhos jurídicos prestados pelo requerente.   

A ser exacta a informação de que o arguido dispensou o Ilustre Advogado do sigilo profissional e solicitou que o mesmo prestasse depoimento em audiência de julgamento e na qualidade de testemunha [aparentemente, arrolado pelo arguido], sobre conversas entre ambos havidas, tendo por objecto aconselhamento jurídico, versando a problemática decorrente do não acatamento e execução das decisões judiciais em questão nos autos de processo comum, pelo arguido, no pressuposto de que o sigilo foi estabelecido em exclusivo benefício do arguido, não existirá então, na decorrência do supra dito, direito à escusa, pois deixou de estar sujeito ao segredo profissional, por dele ter sido desvinculado pelo cliente ou ex-cliente.

Logo, não haveria lugar ao presente incidente.

5. Outro foi, porém, o entendimento do Ilustre Advogado que, através do requerimento apresentado, e depois de consulta ao órgão próprio da respectiva Ordem, o desencadeou. E a propósito da intervenção da Ordem dos Advogados, cabe desde já referir que a Relação não determinou a audição do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, como se estabelece no nº 4 do art. 135º do C. Processo Penal, pela simples razão de que, tendo o Ilustre Advogado juntado o despacho proferido em 12 de Outubro de 2018, do Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, proferido ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 92º do EAO, que indeferiu o, por si, requerido pedido de dispensa de sigilo profissional, tal audição se traduziria numa mera e desnecessária repetição e portanto, na prática de um acto inútil.     

Pois bem.

O crime de desobediência, punível com prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, integra a pequena criminalidade, próxima das, sem qualquer desrespeito, comummente designadas bagatelas penais.

In casu, estão em conflito o interesse do Estado na realização da justiça penal e o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional, a reserva da vida privada e ainda, o interesse da protecção da relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, mas também aqui se interpõe o direito de defesa do arguido em processo penal.

Os específicos conhecimentos que a testemunha, Sr. Dr. …, possa ter sobre a matéria que consta do despacho de pronúncia resultam apenas do por si afirmado no requerimento que apresentou nos autos resumindo-se a que a conduta do arguido quanto à posição que assumiu perante as decisões proferidas pelo tribunal administrativo observou, estritamente, os conselhos jurídicos que lhe deu, no exercício da sua actividade de advogado.

Sendo do conhecimento geral que as decisões dos tribunais, depois de transitadas em julgado, devem ser por todos acatadas e executadas, no pressuposto de que o arguido, na qualidade de autarca, foi regularmente notificado de tais decisões, a circunstância de ter actuado como actuou, aconselhado pelo seu advogado é irrelevante para efeitos de eventual preenchimento do tipo imputado, não se vendo, por isso, que o depoimento do Ilustre Advogado seja imprescindível para a descoberta da verdade.

Por outro lado, atenta a pequena gravidade do crime imputado e o relevante dano que constituiria para o segredo profissional do advogado a concessão da escusa no presente caso – dela resultaria uma complicada uma situação que a Ordem dos Advogados, aliás, considerou inaceitável, no pedido de dispensa de sigilo profissional que lhe foi dirigido, onde viria a depor como testemunha o mandatário de arguido que deixou de o ser, para que este o pudesse arrolar como testemunha –, sendo inquestionável que se o interesse público na descoberta da verdade é importante, também o é, o interesse que justifica o segredo profissional na advocacia, tanto mais que o patrocínio forense é elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa).

Assim, cremos não existirem razões que justifiquem a prevalência do interesse do Estado na realização da justiça penal sobre o interesse da reserva da vida privada e da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão, pelo que, não deve ser deferido o incidente.


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 Em síntese conclusiva:

- O segredo profissional do advogado não é absoluto, podendo ser revelado em determinadas circunstâncias;

- Tendo o arguido dispensado o seu Advogado do segredo profissional e arrolado o mesmo como testemunha, para depor sobre as conversas exclusivamente havidas entre ambos, no âmbito de aconselhamento jurídico, relativas à conduta do primeiro que constitui o objecto dos autos, não existe direito à escusa pois que, com a dispensa verificada, deixaram tais conversas de estar sujeitas ao segredo;

- Para além disso, não se revelando o depoimento do Ilustre Advogado imprescindível para a descoberta da verdade nem se descortinando, dada a reduzida gravidade do crime imputado e o relevante dano que a concessão da escusa causaria ao segredo profissional, qualquer razão para que o interesse do Estado na realização da justiça penal deva prevalecer sobre o interesse da reserva da vida privada e da relação de confiança entre o advogado e o cliente, não deve ser deferido o incidente.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em indeferir o presente incidente de quebra do segredo profissional de Advogado.

Incidente sem tributação.

Coimbra, 28 de Novembro de 2018



Heitor Vasques Osório (relator)


Helena Bolieiro (adjunta)