Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
105/18.1JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PECULATO
VIOLAÇÃO DE SEGREDO DE CORRESPONDÊNCIA
CONCURSO EFECTIVO
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J4)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 30.º, N.º 1, 375.º E 384.º DO CP
Sumário: I – Há uma relação de concurso efectivo entre o crime de violação de correspondência e o crime de peculato, mesmo quando o primeiro ilícito se insere num plano mais vasto consistente em o funcionário se apropriar, em proveito próprio, de bens contidos em encomendas por si abertas.

II - A subordinação do crime de violação de correspondência ao do crime de peculato redundaria na incompreensível desprotecção absoluta do bem jurídico tutelado pelo artigo 384.º do CP.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em audiência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                                         

I. Relatório:                                                                                    

            No âmbito do processo comum (tribunal coletivo) n.º 105/18.1JACBR que corre termos na Comarca de Coimbra, Vagos – Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 4, em 9/6/2020, foi proferido Acórdão, cujo dispositivo é o seguinte:

Pelo exposto e decidindo:

Julgando a acusação deduzida contra o arguido L., procedente por provada o Tribunal condena-o:

A. Como autor material de um crime de peculato, previsto e punível pelos artigos 375.º, n.º 1, do Código Penal na pena de 3 [três] anos e 6 meses de prisão;

B. Como autor material de um crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, previsto e punido pelos art.ºs 384.º, al. b), e 386.º, n.º 2, do Código Penal na pena de 2 [dois] anos e 6 [seis] meses de prisão.

C. Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido L., o Tribunal condena-o, a final, na pena única de 5 [cinco] anos de prisão.

D. Suspende a execução da pena única em que o arguido L. é condenado pelo período de 5 [cinco] anos sujeitando tal suspensão a regime de prova a elaborar pela D.G.R.S.P.

E. Declara-se a perda a favor do Estado, da vantagem patrimonial lograda obter pelo arguido L., importando a mesma no montante de €9.982 [nove mil novecentos e oitenta e dois euros ]37 considerando o montante já depositado nos autos pela coarguida M., determinativa da suspensão provisória do processo que concedida lhe foi em sede de decisão instrutória.

F. Estabelece-se o pagamento das custas criminais pelo arguido L. com taxa de justiça que se fixa em 2 Ucs.

G. Notifique.

H. Deposite o presente acórdão.

I. Após trânsito:

a) remeta boletim ao registo criminal.

b) Proceda-se a recolha de ADN ao arguido L. - cfr. art.° 8.°, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro.

c) Comunique, enviando certidão do acórdão condenatório, com nota de trânsito em julgado, ao Instituto Nacional de Medicina Legal, IP (cfr. arts. 5.° da Lei n.° 5/2008, de 12 de Fevereiro e 7.° do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN), dando conta do paradeiro actualizado do arguido e da identidade e endereço profissional da ilustre defensora daquele.”

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            Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 9/7/2020, o arguido, pugnando, a título principal, pela sua revogação e substituição por outra que o absolva da prática dos factos constantes das alíneas c) e t) do n.º 10 dos factos provados e que o condene apenas pela prática de um crime de peculato na pena de dois anos, extraindo da Motivação as seguintes conclusões:

Impugnação da matéria de facto

Erro de julgamento

            1ª. (…).

            2ª – A) Concretos pontos de facto incorretamente julgados: (Tendo em consideração a numeração usada no douto Acórdão recorrido para discriminar os factos provados):

            10. c) – “(…) No dia 02/12/2016, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em Coimbra, pelo valor de 205,00 €”,

            t) “t) Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2018, mas posterior ao dia 8 e anterior ao dia 15, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo da encomenda enviada por Express Mail pela firma “…” e cujo destinatário era S., residente na Rua (…), nº 34, (…) e que continha no seu interior vários artefactos em ouro, nomeadamente três alianças em ouro e ouro de lei (matéria prima) no valor total de 3.927,30 €.”

            3º - B) Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida:

            O Douto Acórdão, na sua fundamentação e no que à prova documental diz respeito, refere: “…para além e concretizando em maior pormenor a atuação do arguido, remetida a cada passo em nota de rodapé para os factos a cada passo elencados, teve-se ainda em conta:…”

            10. C) Quanto a estes factos, na nota de rodapé consta “cfr. objetos assinalados nas listagens de fls. 232 a 237”.

            Consultando tais folhas, verifica-se que é uma relação semanal de compras de materiais preciosos (art.º 66.º da Lei n.º 98/2015, de 18 de agosto) da firma “…”, de 02-08-2016 a 14-02-2016. A fls. 235, na identificação do vendedor não consta o arguido, ora recorrente, mas sim a anterior coarguida M..

            Entendemos assim que o simples confronto com tal relação permite considerar como não provado ter sido o arguido, ora recorrente, quem procedeu à venda de tais objetos.

            10. T) 1) Depoimento em audiência de julgamento do arguido, ora recorrente, nos trechos seguintes (…).

            (…)

            2) Depoimento em audiência da Testemunha (…).

            (…).

            3) Depoimento em audiência da Testemunha (…), funcionário dos CTT, na área da Inspeção.

            (…).

            4) Faturas de fls. 184 a 190 (38 alianças)

            Mapa de desaparecimento de fls. 339.

            Relatórios de Ocorrência de fls. 143 a 145, 178, 200, 201, 221, 222.

            Auto de visionamento de registo de imagens de fls. 535.

            Autos de busca e apreensão de fls. 281, 284 a 296.

            O arguido nega ter-se apoderado da encomenda referida no ponto t, continuam a desaparecer encomendas nos CTT após ter rescindido o seu contrato laboral, o ofendido R. não foi confrontado com nenhum objeto tendo apenas visionado umas fotografias, tendo-lhe parecido reconhecer uma das alianças, sendo certo que não foi apreendida na sua posse ou na casa do arguido nenhuma das alianças, das 38 que desapareceram.

            Acresce que a encomenda só chegou ao Centro de distribuição de (…), local de trabalho do arguido, ora recorrente, no dia 10 de fevereiro, no dia seguinte ao envio, data em que não existe nenhum relatório de ocorrência da PSG, Segurança Privada, que descreva um qualquer movimento suspeito do arguido, apesar de estarem focados nos movimentos do arguido, cfr. relatórios de ocorrência de fls. 143 a 145, 178, 200, 201, 221 e 222 e auto de visionamento de registo de imagens de fls. 535.

            4ª C) A conjugação das mencionadas provas permite concluir:

            Que não foi o arguido que, no dia 02/12/2016, procedeu à venda dos sobreditos objetos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 205,00€;

            Que o arguido não se apoderou da encomenda referida no ponto t, dos factos provados;

            O Acórdão recorrido traduz uma incorreta análise e valoração da prova produzida.

            6ª (…).

            A condenação do arguido, ora recorrente, assenta em presunções. (…).

            In casu, a conjunção factual não permite, segundo as regras da experiência, uma conclusão sobre a prova, para além da dúvida razoável, dos factos imputados ao arguido L., ora recorrente, pelo que estamos, salvo o devido respeito que é muito, perante uma situação de apreciação arbitrária da prova.

            (…).

            10ª (…).

            11ª A interpretação feita pelo Douto Tribunal a quo da prova produzida é violadora dos Princípios Básicos do Estado de Direito Democrático, nomeadamente o artigo 32.º da CRP, ferindo-a de inconstitucionalidade material que, desde já, se invoca.

            12ª Deste modo, considerando o atrás exposto, o Tribunal não assentou a sua decisão em factos certos, antes, pelo contrário, em meras convicções e presunções. Ora, perante tal incerteza, deve o arguido ser absolvido destes factos pelos quais foi condenado.

            Sem prescindir do atrás exposto, sempre se dirá:

             Concurso de crimes: concurso real/aparente (consunção)

            13ª (…). Não ignorando que tais crimes visam tutelar bens jurídicos distintos, temos para nós que a mesma factualidade não permite a imputação autónoma ao arguido de um crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, pelo que entendemos que estamos, no caso dos autos, perante uma situação de concurso aparente de crimes, encontrando-se o crime de violação de segredo consumido pelo crime de peculato.   

            14ª Conclusão a que se chega lançando mão dos critérios da unidade de sentido do facto ilícito global-final e, particularmente, dos critérios do crime instrumental ou crime-meio e da unidade de desígnio criminoso.

            15ª (…).

            16ª No caso dos autos, o arguido, ora recorrente, numa convergência temporal procedia à abertura das encomendas, para se apropriar do seu conteúdo, numa continuidade de desígnio criminoso, numa única opção desvaliosa, correspondendo a uma única resolução, inexistindo, portanto, um desdobramento numa repetição do querer por parte do arguido.

            17ª Estamos perante um crime-meio, cuja prática surge indissociável do crime de peculato, precisamente porque o modus operandi pressuponha, indispensável e necessariamente, o abrir das encomendas. (…).

            18ª Verifica-se o aludido critério de indispensabilidade do crime de violação do segredo de correspondência (crime-meio) relativamente ao crime de peculato, que permite retirar autonomia ao crime instrumental (ou crime-meio), pelo que a situação terá de ser enquadrada a favor da incriminação exclusiva pelo crime-fim, por aplicação das regras da consunção impura.

            19ª (…).

            20ª A não se entender assim, a interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, 375.º, n.º 1, 384.º, al. b), do Código Penal, no sentido de que, apesar de ambos os crimes de peculato e violação de correspondência serem integrados por um mesmo e único comportamento, e por uma mesma e única resolução criminosa, numa concentração temporal única e simultânea, deve, ainda, assim, o seu agente ser punido pela prática dos dois crimes em concurso real, é inconstitucional por violação do princípio ne bis in idem previsto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP. Inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca.

            Sem prescindir do supra referido,

Determinação elevada da medida concreta da pena

            21ª (…).

            22ª (…).

            23ª (…).

            24ª Atento o exposto – os factos considerados provados, o circunstancialismo em que ocorreram (dificuldades económicas por si sentidas), a ausência de antecedentes criminais, (…), (tudo conforme consta do Douto Acórdão) – a pena de prisão deveria situar-se próxima do limite mínimo da moldura penal, revelando-se, deste modo, a aplicação da pena de prisão de 2 (dois) anos pela prática do crime de peculato como suficiente para alcançar os fins de prevenção pretendidos.

            25ª Subsidiariamente, caso porventura se entenda que existe concurso real entre os crimes de peculato e de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, - oque apenas se admite por cautela de patrocínio – ainda assim, entendemos que a pena a aplicar ao arguido pelo crime de peculato não deverá exceder os dois anos de prisão e a pena a aplicar ao crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, considerando o facto de a abertura das encomendas ser levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim (peculato) e de nele se esgotar a sua danosidade social, nunca deverá exceder os mínimos previstos na lei, ou seja, os seis meses de prisão.

            26ª Violou, assim, o Douto Acórdão recorrido os artigos 30.º, n.º 1, e 71.º, do Código Penal, o artigo 127.º, do CPP, os artigos 2.º, 13.º, 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, bem como os princípios in dubio pro reo e ne bis in idem.

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            O recurso, em 15/7/2020, foi admitido.

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O Ministério Público respondeu ao recurso, em 1/10/2020, defendendo a sua improcedência, e apresentando as seguintes conclusões:                                      

1. Quanto aos factos descritos no ponto 10. al. c), foram os mesmos confessados pelo próprio arguido. 

2. A listagem citada na douta decisão ora posta em causa, serve para ilustrar o rol de objetos de que o arguido se apoderou nessa circunstância, já que a nota de rodapé se encontra inserta no primeiro parágrafo sendo no segundo parágrafo que se descreve a venda.

3. No que concerne às alianças que se destinavam ao ofendido R., é certo que o recorrente não admitiu tais factos, tendo sido os únicos que não confessou mas adianta uma razão para afirmar que não foi ele: o facto de aquela encomenda não pertencer ao seu “giro”, e esta é a única razão pela qual o arguido diz que acha que não se teria apropriado da mesma, acrescentando que achava nunca ter ficado com bens de tão elevado valor.

4. Do depoimento da testemunha L. resulta que por mero engano, a encomenda acabou por cair também no “giro” do arguido tendo sido sinalizado o seu desaparecimento durante o período de tempo em que aquele esteve a exercer funções.

5. Não se verifica qualquer erro de julgamento.

6. O que recorrente na verdade pretende não é sindicar a boa ou má valoração da prova, mas sim a convicção do tribunal, e neste aspeto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

7. O art. 30.º do CP dá-nos o critério para a identificação de um concurso de crimes, estabelecendo que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

8. Há concurso real quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações), e concurso ideal quando através de uma mesma ação se violam várias normas penais ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação).

9. Há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma ação típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor. 

10. O critério do bem jurídico como referente da natureza efetiva da violação plural é, pois, essencial para determinar se estamos perante um concurso real ou aparente.

11. O objeto do crime de peculato é duplo: por um lado, a tutela de bens jurídicos patrimoniais e, por outro, a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários.

12. No crime de violação de correspondência tutela-se a privacidade do destinatário da carta ou encomenda.

13. São distintos os bens jurídicos violados por cada uma das condutas do arguido pelo que são autonomizáveis os dois crimes que as mesmas preenchem e que, assim, se encontram numa relação de concurso real não havendo entre eles qualquer consunção.

14. O recorrente atuou com dolo muito intenso, traduzido numa vontade muito determinada de fazer seus todos os objetos de valor que encontrava em encomendas a cuja distribuição deveria proceder, sendo menos acutilante, mas nem por isso menos preocupante, a indiferença, que se traduz em dolo eventual que manifestou na violação da correspondência que lhe era entregue por força das suas funções profissionais.

15. O grau de ilicitude do facto é elevado, tendo em conta o desvalor da conduta do arguido, considerando sobretudo os valores apropriados e o período de tempo durante o qual praticou tais factos, que apenas parou por ter sido descoberto.

16. As exigências de prevenção geral são consideráveis, sendo todavia estas que mais relevaram para permitir ao recorrente vir a beneficiar da benévola pena única em que foi condenado e que lhe permite, em liberdade, atingir os fins de tal pena máxime na sua vertente de reintegração especial positiva.


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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 19/10/2020, emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, tendo o arguido, em 2/11/2020, exercido o direito de resposta.

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Colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida:

“(…).

2. Fundamentação de facto

2.1 Factos provados

Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1 – CTT – Correios de Portugal, SA é uma empresa concessionária do serviço público de prestação de serviço postal universal que opera em todo o território nacional, sendo concedente o Estado português (Lei de bases da concessão de serviço postal universal, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 448/99, de 4/11, alterada pelos Decretos-Lei n.º 150/2001, de 7/5, 116/2003, de 12/6 e 112/2006, de 9/6 e art. 57º, n.º 1 da Lei n.º 17/2012, de 26/4);

2 – O arguido L. foi funcionário dos “CTT-Correios de Portugal, S.A”, com o número mecanográfico (…), desde (…) até ao dia (…), prestando serviço no Centro de Produção e Logística do Centro, sito em (…);

3 – No âmbito das suas funções, o arguido procedia, além do mais, ao tratamento da correspondência e encomendas postais recebidas naquele Centro de Distribuição, separando-as pelas diversas zonas de distribuição para posterior entrega aos seus destinatários;

4 – Desde data não concretamente apurada do ano de 2015, no âmbito das funções que desempenhava como trabalhador dos CTT, o arguido decidiu apoderar-se de objectos de ouro, prata e relógios expedidos na modalidade “Express Mail” e encomendas registadas que se encontrassem no Centro de Distribuição de (…) para tratamento (triagem dos envios postais) e posterior distribuição e transporte.

5 – Para tanto, aproveitando-se da confiança e liberdade de movimentação de que dispunha no interior do seu local de trabalho e quando se encontrava sozinho no exercício das suas funções de triagem dos envios postais, o arguido dirigia-se aos contentores ali existentes que continham as encomendas, retirava-as e escondia-as no interior do seu casaco, fazendo-as deste modo suas;

6 – Seguidamente, em local recatado, e sem que para tal estivesse autorizado, procedia à abertura das encomendas, tomava conhecimento do seu conteúdo, e contendo as mesmas no seu interior objectos de valor, nomeadamente relógios e/ou artefactos em ouro e prata, retirava-os do seu interior, apropriando-se deste modo do seu conteúdo;

7 – Assim procedeu o arguido, apoderando-se dos objectos contidos nas encomendas, que abria depois de as retirar do seu circuito normal, ao longo de mais cerca de três anos, em datas não concretamente apuradas mas com regularidade, até ao dia 8 de Março de 2018, data em que foram realizadas buscas no âmbito destes autos;

8 – Na posse dos objectos obtidos nos moldes supra referidos, o arguido, após a sua jornada de trabalho transportava os mesmos para a sua residência com vista a posterior venda em várias lojas de compra de ouro usado nas cidades de (…) e (…);

9 – A fim de não causar estranheza junto dos compradores atenta frequência e a quantidade de artefactos propostos, e assim mais facilmente iludir e furtar-se à acção das autoridades fiscalizadoras, o arguido, para além de se deslocar a variadas empresas de compra e venda de metais preciosos sitas nas cidades de (…) e de (…), entregou à sua esposa, a arguida (…), artefactos por si subtraídos nos moldes já supra descritos para que esta procedesse à venda dos mesmos.

10 – Assim:

a) Em data não concretamente apurada do ano de 2015 mas anterior ao dia 21/09/2015, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 13 alianças, 3 anéis, 3 fios, 2 medalhas, 1 par de brincos, 1 pulseira, 28 contas, sucata) de valor não concretamente apurado1.

b) Em data não concretamente apurada do ano de 2016 mas anterior ao dia 29/07/2016, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 5 alianças, 2 fios) no valor de pelo menos 295,00 €.2

c) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 02/12/2016, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 4 alianças) no valor de pelo menos 205,00 €.

No dia 02/12/2016, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 205,00 €;

d) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 02/02/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 cordões) no valor de pelo menos 1.220,00 €.4

e) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 28/08/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 par de brincos, 2 anéis, 1 fio) no valor de pelo menos 680,00 €.5

f) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 31/08/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 anéis, brincos, 1 pulseira, 1 alianças, 2 fios) no valor de pelo menos 610,00 €. 6

No dia 31/08/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 610,00 €;

g) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 16/09/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 fios, 2 alianças, 3 anéis) no valor de pelo menos 799,99 €. 7

No dia 16/09/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 799,99 €;

h) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 06/10/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 pulseira, 1 aliança) no valor de pelo menos 244,00 €. 8.

No dia 06/10/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 244,00 €;

i) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 12/10/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 anéis, 1 aliança, 3 medalhas) no valor de pelo menos 240,00 €. 9.

No dia 12/10/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 240,00 €;

j) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 17/10/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 alianças, 2 argolas) no valor de pelo menos 225,00 €.10

No dia 17/10/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 225,00 €;

k) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 23/10/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 anel, 1 aliança, 2 pulseiras, 1 sucata) no valor de pelo menos 455,00 €.

No dia 23/10/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos nos estabelecimentos comerciais propriedade das sociedades “…” e “…”, ambos sitos em (…), pelo valor total de 445,00 €;

l) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 30/10/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 3 alianças) no valor de pelo menos 168,22 €12

No dia 30/10/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor total de 168,22 €;

m) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 03/11/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 3 alianças, peças de ouro, peças de brincos) no valor de pelo menos 195,00 €13

No dia 03/11/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor total de 195,00 €;

n) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 16/11/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 3 alianças) no valor de pelo menos 115,00 €14.

No dia 16/11/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 115,00 €;

o) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 21/11/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 3 alianças, 1 pulseira, 4 travões de brincos) no valor de pelo menos 280,00 €15.

No dia 21/11/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 280,00 €;

p) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 12/12/2017, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 pulseira, 2 brincos e 4 travões, 2 alianças, 1 medalha) no valor de pelo menos 440,00 €.

No dia 12/12/2017, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 440,00 €;

q) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 11/01/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 4 alianças, 2 anéis, 4 travões de brincos) no valor de pelo menos 190,00 €.

No dia 11/01/2018, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “(…)”, sito em (…), pelo valor de 190,00 €;

r) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 18/01/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 aliança, 3 anéis, 4 argolas) no valor de pelo menos 300,00 €

No dia 18/01/2018, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 300,00 €;

s) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 31/01/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro e prata (nomeadamente 1 anel, 5 pulseiras, 2 fios) no valor de pelo menos 160,00 €

No dia 31/01/2018, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 160,00 €;

t) Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2018, mas posterior ao dia 8 e anterior ao dia 15, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo da encomenda enviada por Express Mail pela firma “…” e cujo destinatário era S., residente na Rua (…), nº (…), (…) e que continha no seu interior vários artefactos em ouro, nomeadamente três alianças em ouro e ouro de lei (matéria prima) no valor total de 3.927,30 €.

u) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 15/02/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 1 aliança, 1 brincos, 1 fio) no valor de pelo menos 445,00 €.

No dia 15/02/2018, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 445,00 €;

v) Em data não concretamente apurada do mês de Fevereiro de 2018 mas anterior ao dia 27/02/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo da encomenda registada com a referência DA126549985PT enviada por R., residente em (…) e cujo destinatário era a firma (…), e que continha no seu interior vários artefactos em ouro e prata um conjunto com pedra, avaliados em 432,57 €

Além daquela sobredita encomenda, no mesmo período temporal, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 2 anéis, 1 aliança, 1 brincos, 1 cruz/crucifixo) no valor de pelo menos 550,00 €.

No dia 27/02/2018, o arguido procedeu à venda dos sobreditos objectos no estabelecimento comercial propriedade da sociedade “…”, sito em (…), pelo valor de 550,00 €;

x) Em data não concretamente apurada mas anterior ao dia 05/03/2018, o arguido apropriou-se nos moldes acima descritos do conteúdo de encomenda postal, cujo remetente e/ou destinatário não se logrou identificar, que continha no seu interior vários artefactos em ouro (nomeadamente 4 alianças, 1 pulseira, 6 travões de brincos) no valor de pelo menos 440,00 €.23.

11 – Desde 21 de Setembro de 2015, com a venda dos mencionados artefactos em ouro, prata, o arguido, obteve pelo menos a quantia de 12.822,71 €, que fez sua;

12 – No dia 8 de Março de 2018, cerca das 21h30, o arguido encontrava-se no seu local de trabalho, no Centro de Produção e Logística do Centro dos CTT, em (…), nesta comarca de (…), onde desenvolvia a sua actividade laboral;

13 – Pelas 21h36m, o arguido, junto da zona de tratamento e encaminhamento de encomendas express mail, realizou um agachamento e retirou de um “carro” uma encomenda tendo, de imediato, dissimulado o objecto postal junto ao corpo, por debaixo o colete que trajava e que compõe a farda que os CTT faculta aos seus trabalhadores, junto ao seu braço esquerdo;

14 – Transportando o objecto escondido nos moldes supra descritos, dirigiu-se para a casa de banho existente nas imediações daquele local, onde procedeu a um ligeiro rasgão no envelope acondicionador com vista a aferir do conteúdo para assim se apropriar do mesmo;

15 – Pelas 21h40, quando o arguido abriu a porta da casa de banho, saindo da mesma, foi imediatamente abordado pela Policia Judiciária e instado a entregar o citado objecto postal, o que fez de imediato;

16 – No decurso da busca efectuada na residência do arguido, sita na Rua (…), nº (…), (…), no dia 8 de Março de 2018, pelas 22h20m, foram-lhe apreendidos vários artefactos em ouro e prata e relógios, subtraídos nos moldes acima descritos e que se encontravam, acondicionados em sacos de plástico e guardados numa gaveta da cómoda existente no quarto.

17 – O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de fazer seus os objectos, designadamente artefactos em ouro e prata, bem como relógios, que lograsse retirar das encomendas postais, às quais tinha acesso por força das funções de funcionário dos CTT, empresa concessionária do serviço público de correio postal, apropriando-se, assim, em proveito próprio de valores que se computam em pelo menos 12.822,71 €;

18 – Mais actuou o arguido, de forma livre, voluntária e consciente, ao abrir as diversas encomendas que retirava dos contentores existentes no interior do centro de tratamento de (…), seu local de trabalho, tomando conhecimento do seu conteúdo, pondo assim em causa a privacidade que as mesmas continham e que visavam proteger os seus destinatários, indicados em v) e t) e todos aqueles que não foi possível identificar, abalando a confiança da comunidade na integridade dos serviços postais que lhe incumbia assegurar;

19 – Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

20 – O arguido rescindiu o seu contrato de trabalho com os CTT no dia 12 de Março de 2018.

B. Condições pessoais do arguido

(…).

C) Antecedentes criminais do arguido

O arguido não apresenta criminais registados.

2.2 Factos não provados

Da instrução e discussão da causa [considerando o objeto do processo tal como surge nos autos recortado pelo despacho de pronúncia] não resultaram quaisquer factos não provados.

2.3. Motivação da decisão de facto

2.3.1 Factos provados

(…).


****

III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

As questões a conhecer são as seguintes:

- Saber se:

1) há erro de julgamento, no que diz respeito aos factos que constam das alíneas c) e t) do ponto 10 dos factos dados como provados.

2) existe concurso real ou aparente entre os crimes pelos quais o arguido foi condenado.

3) a medida concreta da pena é excessiva.


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1) Do erro de julgamento:

(…)


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2) Do concurso de crimes:

No que tange a esta questão, o recorrente, não colocando em causa a prática dos dois crimes, defende que estamos perante uma situação de concurso aparente de crimes, encontrando-se o crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações consumido pelo crime de peculato, daí devendo ser retirada a devida consequência jurídica.

                                                           ****

São elementos constitutivos do crime de peculato, previsto e punido nos termos do artigo 375.º, n.ºs 1 a 3, do Código Penal:

1. a nível objetivo:

a) que o agente seja um funcionário;

b) que o mesmo se aproprie (subtraia), em proveito próprio ou de outra pessoa;

c) de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular;

d) que lhe tenha sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções; e

e) que essa apropriação seja ilegítima.

2. a nível subjetivo exige-se que o agente atue com intenção de apropriação desses bens, sabendo que tal atuação é proibida e punida por lei.

O peculato, além do mais, é considerado pela doutrina como um crime específico impróprio, sendo certo que o agente terá que ser um funcionário (cujo conceito está mencionado no artigo 386.º, do Código Penal), funcionário esse que, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objeto do crime.

A propósito do bem jurídico protegido em causa, podemos ler, no Comentário Conimbricense, do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, página 688, o seguinte:

“É dupla a proteção concedida pelo tipo legal de peculato: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios (no caso de apropriação consubstancia um furto ou abuso de confiança – cf. infra parágrafo 4); por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública”…”

Pois bem, não havendo dúvidas que o ora recorrente era funcionário para efeitos da previsão deste crime (cfr. artigo 386.º, n.º 2, do Código Penal) e de se mostrarem verificadas as demais situações previstas nas atrás explanadas alíneas a), b), c), d), e), dúvidas não há de que foi cometido o crime de peculato

É de realçar que as encomendas desaparecidas eram acessíveis ao arguido em razão das suas funções, pois está demonstrado que foram retiradas das áreas de distribuição do giro que executava, e não por uma qualquer causa fortuita.


****

São elementos constitutivos do crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, previsto e punido nos termos do artigo 384.º, al. b), em conjugação com o artigo 386.º, n.º 2, ambos do Código Penal:

1. a nível objetivo:

a) que o agente seja um funcionário;

b) que o mesmo abra carta, encomenda ou outra comunicação que lhe seja acessível em razão das suas funções, ou, sem a abrir, tomar conhecimento do seu conteúdo;

2. a nível subjetivo exige-se que o agente atue com intenção de violar a privacidade de terceiros, sabendo que tal atuação é proibida e punida por lei.

Este crime, além do mais, também é considerado pela doutrina como um crime específico impróprio, sendo certo que o agente terá que ser um funcionário (cujo conceito está mencionado no artigo 386.º, do Código Penal), funcionário esse que, em razão das suas funções, tenha acesso ao objeto do crime.

A propósito do bem jurídico protegido em causa, podemos ler, no Comentário Conimbricense, do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, página 793, o seguinte:

“O bem jurídico é a privacidade em sentido formal: …E mais concretamente, a confiança da comunidade na integridade dos serviços postais…”


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Para sustentar a sua pretensão, o recorrente lança mão dos critérios da unidade de sentido do facto ilícito global-final e, particularmente, dos critérios do crime instrumental ou crime-meio e da unidade do desígnio criminoso.

Concede-se que o crime de violação de segredo de correspondência se inseriu num plano mais amplo, o de se apropriar de bens valiosos, para posterior venda, constituindo, nessa medida, um meio indispensável, no plano gizado pelo arguido, à consecução de um fim.

Coloca-se, pois, a questão de saber se tal relação meio/fim entre as duas condutas típicas constitui um concurso aparente ou efetivo, para os efeitos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal.

Ora, para lá das diferentes conceções doutrinárias existentes a propósito do concurso de crimes, não devemos esquecer que, de acordo com o citado preceito legal, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Como vem sendo afirmado pela jurisprudência e pela doutrina, o mencionado artigo 30.º consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes.

Se a conduta do agente integra um único tipo de crime constitui uma única infração; se preencher vários tipos de crime haverá várias infrações.

A unidade de tipo de crime avalia-se de acordo com a unidade de bem jurídico infringido.

Podemos ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/4/2019, Processo n.º 308/12.2TAABF.S1, 3ª Secção, relatado pelo excelentíssimo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt:

“No caso de várias condutas violarem o mesmo bem jurídico, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto, existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e, portanto, de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas.

Havendo violação de vários bens jurídicos pela atividade do agente, haverá sempre pluralidade de crimes, ainda que exista uma só resolução criminosa (a não ser que as normas concorrentes se excluam mutuamente).

É este basicamente o critério vertido no nº 1 do art. 30º do CP, segundo a lição de Eduardo Correia.

Esta posição foi, porém, contestada por Figueiredo Dias, que propõe como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica. A essência do facto punível reside, para Figueiredo Dias, não na mera ação típica, nem na norma (no bem jurídico tutelado), mas no “substrato de vida” dotado de sentido jurídico-penalmente negativo. Daí que, em seu entender, seja a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude do comportamento global a determinar a unidade ou pluralidade de crimes.

Em caso de concurso de crimes, ou seja, de prática pelo agente de uma pluralidade de ilícitos típicos, haverá que distinguir entre as situações em que existe uma pluralidade de sentidos de ilicitude, e então estaremos perante um concurso efetivo; e as situações em que o comportamento global do agente é dominado por um único ou predominante sentido dos vários ilícitos cometidos, sendo os restantes dominados ou subordinados, hipótese em que se verifica um concurso aparente.

Ainda segundo este mesmo autor, a dominância de um dos sentidos de ilícito sobre os outros pode resultar de diversos critérios, nomeadamente: unidade de sentido social do acontecimento global/final; instrumentalidade de um ilícito (crime-meio) em relação a outro (crime-fim); unidade de desígnio criminoso; conexão espácio temporal das realizações típicas; serem certos ilícitos meros estádios de evolução da realização típica final. Relativamente à relação de instrumentalidade, ela abarcaria as situações em que um ilícito surge perante o ilícito principal unicamente como meio de o realizar e nessa realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.

Contudo, esta posição doutrinal, meritoriamente preocupada em evitar a violação do princípio da proibição da dupla censura do mesmo facto, acaba por subalternizar, ou mesmo desproteger, de forma insustentável do ponto de vista político-criminal, bens jurídico-penais relevantes, tratados como meros “sentidos de ilícito subordinados”.

Com efeito, o crime-meio pode assumir, na conduta executada pelo agente, uma relevância penal superior, pela especial ilicitude ou censurabilidade da conduta, à do crime-fim, sendo então intolerável subordinar a proteção do bem jurídico por ele tutelado à que é concedida por este último. Nesse caso, aliás, dificilmente se poderia dizer que o crime-meio “esgota” o seu sentido ao desempenhar a sua função instrumental. Assim como dificilmente se poderia considerar que a proteção jurídica dada ao crime principal esgotaria a tutela do crime subordinado.

Conclui-se, pois, que o critério legal consagrado no art. 30.º, n.º 1, do CP é basicamente o defendido por Eduardo Correia, segundo o qual há concurso (efetivo) de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a crimes que protegem bens jurídicos diferentes (ou, protegendo o mesmo bem jurídico, forem cometidos em ocasiões diferentes).” – (nossos negritos e sublinhado).

                                                           ****

Tendo em atenção o critério legal consagrado na lei, somos levados a concluir que, em virtude de estarmos, como já vimos, perante bens jurídicos diferentes, os respetivos crimes são autonomizáveis, encontrando-se, assim, numa relação de concurso real.

A subordinação da punição do crime de violação de correspondência à do crime de peculato redundaria na incompreensível desproteção absoluta do bem jurídico protegido no artigo 384.º, do Código Penal, sendo certo que a inviolabilidade da correspondência é garantida pela nossa Lei Fundamental (artigo 34.º) – ver, neste sentido, também, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/11/1994, Processo 046380, N.º Convencional JSTJ00025883, relatado pelo Excelentíssimo Conselheiro Lopes Rocha, em www.dgsi.pt.

Por conseguinte, soçobra a pretensão do recorrente.


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3) Da medida concreta das penas:

(…).


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IV – DECISÃO:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, indo o arguido, em consequência, condenado, como autor material de um crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações, previsto e punido pelos artigos 384.º, al. b), e 386.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspendendo-se  a execução da pena única pelo período de 4 (quatro) anos, sujeitando tal suspensão a regime de prova a elaborar pela D.G.R.S.P, mantendo-se, no mais, o acórdão recorrido.

Sem custas.


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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

Coimbra, 16 de dezembro 2020

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)