Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
118/11.4PBCTB.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: INQUIRIÇÃO DE AGENTES POLICIAIS COMO TESTEMUNHAS.
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 356º, N.º 7 E 357º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: No caso, tendo os arguidos relatado espontaneamente aos Agentes de Polícia J… e N…, antes da existência de processo e, consequentemente, antes da constituição daqueles na dita qualidade, o acto subtractivo versado nos autos, a valoração dos depoimentos das duas referidas testemunhas, ao narrarem em audiência o que ouviram dizer aos arguidos, não viola qualquer norma de índole processual penal, nomeadamente, o disposto nos art.ºs 356º, n.º 7 e 357º, n.º 2, ambos do C. Proc. Penal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No âmbito do processo n.º 118/11.4PBCTB, o Ministério Público deduziu acusação, no âmbito de processo sumário, contra os arguidos:

- A..., residente na Rua … ; e

- B..., residente na … ,

aos quais imputou a prática, em co-autoria material, de um crime  de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.


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2. “W... -, Lda.” deduziu pedido de indemnização civil contra os dois arguidos, nos precisos termos constantes da acta de julgamento a fls. 49/55, impetrando a condenação dos demandados no pagamento à demandante, sob a forma solidária, da quantia global de € 7.666,50, a título de indemnização civil pelos danos que refere terem sido provocados pela conduta ilícita descrita na acusação.

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3. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, após julgamento, foi proferida sentença,  no dia 11-03-2011, que condenou cada um dos arguidos, pela prática, em co-autoria material, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 5,00.

Relativamente ao pedido civil, foi decidido julgá-lo parcialmente procedente e, em consequência, condenar os arguidos/demandados a pagar à demandante:

- A quantia de 54,00 €, relativa ao custo do combustível furtado e que não irá ser utilizado;

- O montante de € 250,00, para substituição dos tampões estroncados; e

- O que se vier a liquidar em incidente de liquidação quanto aos custos que a demandante terá de suportar com a transfega do combustível e a limpeza dos tanques e circuito de alimentação das três máquinas em causa e, bem assim, o custo do combustível que existia no interior do tanque, que não foi furtado mas que não irá ser usado pelos receios que a sua utilização suscita.


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4. Interposto recurso pelo arguido, esta Relação de Coimbra, por acórdão de 19-10-2011, conferindo-lhe provimento, declarou a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo do disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, para que fosse «proferida nova decisão onde se procedesse não só à análise da admissibilidade da prova produzida como à sua valoração e exame crítico, exteriorizando ou fazendo constar esse exame e processo lógico do julgador na motivação da matéria de facto (…)».

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5. No tribunal a quo foi proferida, em 12-12-2011, nova sentença, que manteve a condenação dos arguidos/demandados nos precisos termos referidos no n.º 4 do relatório do presente acórdão.

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6. Ainda não conformados, os arguidos recorreram de novo, conjuntamente, tendo extraído da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

São as conclusões que delimitam o objecto do recurso, tal como se refere no Acórdão de 92.06.24, D.R.I.S.-A de 92.08.06 (disponível em www.dgsi.pt).

Os Recorrentes recorrem de facto e de direito.

1.ª - Desde logo os arguidos recorrem porque estão inocentes não tendo praticado o crime pelo qual foram condenados. E pugnarão pela reposição da verdade até ao fim, tendo a prova produzida em audiência sido apreciada de forma errada, dando-se por provado o que não o poderia ter sido.

2.ª - Na verdade e sempre com o devido respeito, não se podem conformar os ora recorrentes quer da matéria de facto dada como provada, quer da pena aplicada decorrente da primeira.

3.ª - Aliás, neste particular ponto cumpre afirmar que para os ora recorrentes, a condenação que lhes foi imposta e que ora se impugna é, salvo melhor opinião a saber, desadequada, excessiva e desproporcional para as circunstâncias do caso.

4.ª - Daí que se discorde, também, do direito aplicado e da desajustada dosimetria da pena, bem sustentada sim numa equívoca apreciação da prova produzida em julgamento, como adiante se detalhará.

5.ª - Os aqui recorrentes, recorreram da primeira sentença proferida nos autos, cujo recurso veio a ser admitido e dado provimento pelo Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo que:

“Mostrando-se insuficiente a fundamentação da matéria de facto dada como provada nos termos explicitados, a conclusão a tirar é a de que estamos perante uma nulidade de sentença, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, ambos do Código Processo Penal”.

6.ª - De uma leitura atenta da sentença inicialmente proferida e da sentença que agora se recorre, verificamos que a única alteração efectivamente efectuada, foi no sentido de o tribunal a quo, ter vindo tentar fazer uma análise crítica da prova, acrescentando na sentença anteriormente proferida apenas o seguinte:

“Assente a admissibilidade de valoração pelo tribunal do depoimento dos dois agentes da PSP ouvidos em julgamento, quer na parte em que aqueles referem que, quando chegaram ao local dos factos, encontraram os arguidos no passeio junto a um buraco existente na rede que vedava o acesso ao local onde se encontravam as máquinas de onde foi retirado o combustível, tendo junto de si as vasilhas com o gasóleo e mangueiras; quer na parte em que no seu depoimento afirmam terem ouvido da boca dos arguidos que tinham sido eles a retirar o gasóleo das máquinas; diremos que a convicção do Tribunal acerca da matéria de facto vertida nos pontos 1 a 5 (de 2.1.1.) teve na sua base esses depoimentos dos referidos agentes da FSP, segundo os quais:

- no dia, hora e local dos factos, em giro de patrulha, quando avistaram os arguidos (ainda antes de terem assumido essa condição e apenas enquanto meros cidadãos que ali se encontravam) verificaram que aquelas tinham junto deles as duas vasilhas com o combustível e as mangueiras apreendidas nos autos; e bem assim;

- que tendo perguntado aqueles que ali se encontravam, na sequência da denúncia que haviam recebido de que alguém andaria a furtar combustível naquele local, se tinham sido eles os autores dos factos.

Ao que os arguidos (ainda antes de o serem no processo e apenas como meros suspeitos) responderam que sim!

Assim, da conjugação destes depoimentos com o facto de os arguidos terem sido encontrados na sua posse com as vasilhas com o combustível, junto a uma abertura na rede que dá entrada ao local onde estava parqueada a maquinaria, e bem assim com mangueiras, tudo isto conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer - a explicação encontrada pelo Tribunal para aquela sucessão de actos é a mais lógica e não se descortina outra consentânea com o facto de os arguidos no local terem admitido serem eles que andavam a furtar gasóleo e terem junto de si, nas imediações do acesso às máquinas, os objectos aptos à sua extracção e transporte - leva-nos a concluir, na falta de melhor explicação, que foram eles os autores do furto”.

7.ª - Com o devido respeito, tal análise, não é mais do que aquilo que já havia sido dito anteriormente, ou seja, a sentença que agora se recorre continua a não efectuar uma análise crítica da prova, chegando mesmo o tribunal a quo a concluir com a seguinte expressão, que não nos pode deixar de merecer realce “(...) leva-nos a concluir, na falta de melhor explicação, que foram eles os autores do furto”, negrito nosso.

8.ª -  Daí a razão de ser da interposição do presente recurso.

9.ª - Ou seja, em nada se encontram alterados os pressupostos de facto e de direito anteriormente expostos no recurso anterior.

10.ª - Da audiência de discussão e julgamento e dos documentos juntos aos autos, com interesse para a resolução da causa, resultaram provados os factos ali constantes.

11.ª - Desde logo os arguidos voltam a recorrer desta nova decisão porque estão inocentes não tendo praticado o crime pelo qual foram condenados. E pugnarão pela reposição da verdade até ao fim, tendo a prova produzida em audiência continuado a ser apreciada de forma errada, dando-se por provado o que não o poderia ter sido.

12.ª - Existiu assim erro notório na apreciação da prova.

13.ª - Na verdade, não existe nenhuma prova nos autos de que os arguidos tenham procedido ao furto pelo qual foram condenados, porquanto não foram vistos a furtar nem tão pouco no interior do estaleiro de onde foram furtados os litros de gasóleo.

14.ª - Sendo este, entre outros, um dos pontos com os quais não se concorda com o decidido, como seguidamente se especifica.

15.ª - Os arguidos ora recorrentes, durante toda a fase do processo optaram pelo seu direito ao silêncio, conforme alude o art. 61.º, n.º l, al. d), do Código Processo Penal, não prestando declarações em nenhuma das fases processuais.

16.ª - O princípio nemo tenetur se detegere, tem um significado literal de “não produzir provas contra si mesmo”, sendo chamado pela doutrina de princípio da presunção de inocência ou ainda princípio do estado de inocência.

17.ª - O silêncio do arguido, traduz-se como exercício da individualidade e personalidade, inserindo-se também no direito à privacidade e fulcrado no vector maior que é o princípio da dignidade da pessoa humana e que rege as relações entre o Estado e o indivíduo.

18.ª - Na precisa lição de Germano Silva Marques o princípio da presunção de inocência consagrado no art. 32.º, n.º 2 da CRP integra uma norma directamente vinculativa e constitui um dos direitos fundamentais do cidadão (art. 18.º, n.º l da CRP)[1].

19.ª - O direito à prova no processo penal tem ligação com o princípio da verdade material, fazendo uma tensão com o princípio da não inculpação, em especial no direito ao silêncio, ora examinado. Formando-se uma antinomia entre este direito, o direito da investigação criminal por parte do Ministério Público e o direito do arguido de não fornecer qualquer elemento de prova ao Estado, que deverá obtê-la por seus próprios meios. No âmbito da prova a tensão estabelecida deita raízes no ónus da prova e no princípio in dubio pro reo.

20.ª - A palavra prova vem do vocábulo probation, que significa verificação, exame, confirmação, reconhecimento e é utilizado em dois sentidos, sendo um sentido comum ou vulgar significa tudo aquilo que pode levar o conhecimento de um facto de uma qualidade, da existência ou exactidão de uma coisa, com o significado jurídico, representa os actos e os meios usados pelas partes e reconhecido pelo Juiz como sendo a verdade dos factos alegados. Trata-se da descoberta da verdade material com vista ao convencimento do juiz, ou seja, a reconstituição histórica da verdade material, pois tem o sentido de reconduzir o juiz ao momento dos factos.

21.ª - É certo que a utilização da prova, não é despida de valorações, todavia deve obediência aos princípios e garantias constitucionais, em especial à garantia do contraditório, que não tem apenas como objectivo a defesa entendida em sentido negativo - como oposição ou resistência - mas sim principalmente a defesa vista em sua dimensão positiva. Como influência, ou seja, como direito de incidir activamente sobre o desenvolvimento e o resultado do processo.

22.ª - O que no caso em apreço, não aconteceu como iremos demonstrar mais à frente, pois apesar das provas existentes no processo, apenas as de dimensão positiva foram tidas em linha de conta, pois o Tribunal a quo, apenas fundamentou a sua decisão com base no depoimento indirecto das testemunhas de acusação, que nada viram, limitando-se apenas a fazer menção a uma suposta confissão feita pelos arguidos no momento da detenção.

23. Ressalva Rodriguez Fernandez[2] que os requisitos da prova capazes de “abalar a presunção de inocência são os seguintes: a) que exista: as provas têm de ser objectivas e ter consistência processual nos autos; b) que seja válida e garantida, excluindo-se, portanto, a prova invalidamente adquirida ou praticada sem as garantias processuais fundamentais; c) que seja lícita, e assim devem excluir-se as provas ilicitamente obtidas, aquelas que lesam as garantias ou direitos fundamentais; d) que seja suficiente ou minimamente suficiente, pois não basta que se tenham utilizado meios de prova, mas é preciso que com o emprego de tais meios se tenha chegado a um “resultado probatório” que se afigure “suficiente” para fundar razoavelmente a acusação e, por conseguinte, a condenação.

24.ª - Desta forma, a busca da verdade material sofre atenuações na limitação da prova insusceptível de ser produzida, quer pelo juiz ex offïcio, quer pelas partes, como por exemplo na inadmissibilidade da produção da prova ilícita, no direito ao silêncio, das provas obtidas mediante colaboração activa do arguido, daquelas que ferem a sua vida privada, da dignidade da pessoa humana, que fere a moralidade e os bons costumes e no principio in dubio pro reo.

25.ª - O que no caso em apreço, não aconteceu, pois apesar de não existir qualquer prova de que os arguidos praticaram o crime de que vinham acusados, o tribunal a quo, baseando-se em prova completamente ilícita, pois foi obtida mediante a colaboração activa dos arguidos em circunstâncias não concretamente apuradas, este veio a punir os mesmos por algo que não praticaram nem tão pouco lograram praticar.

26.ª - Quanto ao livre convencimento do juiz, este traduz-se como uma autêntica limitação ao livre convencimento ou persuasão racional, porquanto a livre convicção do juiz, não pode ir ao ponto de desfavorecer o arguido (art., 61.º, n.º l, alínea c), conjugado com o art. 343.º, n.º l, ambos do CPP).

27.ª - Sendo o ónus da prova primariamente da acusação, pelo menos em um primeiro momento, curial, que o acusado não pode colaborar activamente na produção da prova, sob pena de ferir o principio nemo tenetur, além de ter reflexos no princípio da dignidade da pessoa humana.

28.ª - Disserta com habitual precisão Germano Marques da Silva, que o arguido presume-se inocente pelo que não se exige actividade probatória alguma em ordem de comprovar esta verdade interina do processo, tendo em conta de que se isto lhe fosse exigido lhe estaria a impor o encargo às vezes de impossível realização. Por isso, dizer-se que incumbe à acusação a prova dos factos imputados ao arguido[3].

29.ª - O que uma vez mais não se verifica, pois na falta de prova dos factos imputados aos arguidos aqui recorrentes, com o devido respeito, a sentença sub judice puniu os mesmos baseando-se em meras convicções ou em prova nula.

30.ª - Uma vez que, apesar de inquiridas as testemunhas de acusação, certo é que ambas foram peremptórias em afirmar que não viram nenhum dos arguidos dentro do estaleiro assaltado; não viram nenhum dos arguidos na posse de nenhum dos objectos que lhes foram apreendidos, nomeadamente os dois bidões de gasóleo e as duas mangueiras; não viram nenhum dos arguidos a retirar gasóleo de nenhuma máquina e que apenas procederam à sua detenção porque estes terão afirmado que teriam sido eles os autores do referido furto.

31.ª - Ao contrário daquilo que é reafirmado na sentença de que agora se recorre, ou seja, na referida sentença é referido que as testemunhas, agentes da PSP, terão referido que “no dia, hora e local dos factos, em giro de patrulha, quando avistaram os arguidos (ainda antes de terem assumido essa condição e apenas enquanto meros cidadãos que ali se encontravam) verificaram que aqueles tinham junto deles as duas vasilhas com o combustível e as mangueiras apreendidas nos autos”.

32.ª - Porém, conforme resulta das suas declarações, o que efectivamente foi dito pelos Srs. Agentes da PSP é de que:

Testemunha - … : CD 20110228151713_121634_64269, passagens:

Minuto 1:57 - (...) Vimos os dois indivíduos fora da vedação não dentro do estaleiro, mas no exterior, junto ao passeio, com duas vasilhas, perguntei-lhe se eram das máquinas e eles confessaram tudo (...).

Minuto 3:20 - (...) havia derrame de combustível no chão junto às máquinas (...).

Minuto 3:45 - (...) Tinham as duas mangueiras e as duas vasilhas (...) eles tinham tudo cá fora, estavam junto aos vasilhames (...).

Minuto 4:30 - (...) não reagiram, simplesmente confessaram logo (...).

Minuto 6:44 - (...) estavam aí sensivelmente a três metros (...) - (Quando lhe foi perguntado a quantos metros os arguidos estariam do acesso usado para entrar pela vedação para o estaleiro).

Minuto 7:27 - (...) estavam parados e as bilhas estavam mais ao lado (...).

Minuto 8:07 - (...) Não não - (Quando lhe foi perguntado se viu os arguidos com as vasilhas na mão).

Minuto 9:50 - (...) Eles confessaram tudo (...) (Respondeu quando lhe foi perguntado: Abstendo-se daquilo que os arguidos lhe disseram na altura como pode afirmar ao tribunal que foram os arguidos que furtaram o gasóleo?)

Minuto 10:15 - (...) Uma vez que confessaram não fizeram mais diligências - (Respondeu quando lhe foi perguntado - O que é que o Sr. viu?)

Minuto 14:04 - (...) Não (...) - (quando lhe foi perguntado: Foi apurada a forma como entraram no estaleiro?)

Minuto 14:20 - (...) A rede tinha um buraco (…) mas eu não verifiquei isso (...).

33.ª - Das declarações da testemunha … , verifica-se que as mesmas assentam numa suposta confissão por parte dos arguidos, porque a bem saber, este nada viu em concreto, nem logrou apurar se efectivamente o que os arguidos estavam a dizer faria algum sentido.

34.ª - Estamos, assim, perante um testemunho indirecto por parte da referida testemunha, ou seja violando o preceituado no art. 356.º, n.º 7, do CPP.

35.ª - Ora, esta é a questão principal que cumpre resolver, ou seja, saber se estas declarações prestadas pelos arguidos, poderiam ter sido valoradas pelo tribunal a quo, na medida em que o tribunal a quo, entendeu que na fase em que os mesmos teriam prestado essas declarações ainda não eram arguidos no processo, por isso não se encontravam sujeitos ao direito ao silêncio.

36.ª - Salvo o devido respeito que aliás é muito, não podemos concordar com essa posição, porquanto viola e colide claramente com os direitos constitucionalmente consagrados.

37.ª - Aliás, ninguém entenderia que proibindo a lei a inquirição como testemunhas quer dos órgãos de polícia criminal que receberem declarações cuja leitura não seja permitida, quer de quaisquer pessoas que a qualquer título, participarem da sua recolha (art. 356.º n.º 7 CPP), se admitisse a possibilidade de valoração do depoimento de pessoa que viesse relatar uma alegada “confissão” recebida do arguido, ao arrepio de todas as regras de recolha de prova.

38.ª - É que se se admitisse que toda e qualquer pessoa pudesse vir a julgamento transmitir uma alegada “confissão” por si recebida do arguido no circunstancialismo já referido, em total desrespeito pela regras que regem a recolha da prova, violaria manifesta e claramente as garantias de defesa do arguido consagradas no art. 32.º CRP.

39.ª - Neste sentido, partilhamos a posição na declaração de voto vencido, no processo 2847/2005, em que foi relatar o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro, Dr. Jorge Dias, do Tribunal da Relação de Coimbra[4].

40.ª - Na sua motivação, o tribunal a quo, veio citar o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 04/07/2007, no processo 0647256[5], porém, tal acórdão não tem qualquer aplicação ao caso sub judice, na medida em que os pressupostos de ambos são completamente diferentes, na medida em que as testemunhas que prestaram um depoimento indirecto dos factos, em primeiro lugar não são Órgãos de Polícia Criminal e em segundo lugar as arguidas nesse processo não se remeteram ao silêncio, não se encontrando aí violado nenhum direito das arguidas, ao contrário do que acontece no presente caso, em que ambos os arguidos se remeteram ao silêncio e os depoimentos indirectos prestados pelos Órgãos de Polícia Criminal, colidem claramente com este direito, para além de que não existe mais qualquer prova que possa consubstanciar tais depoimentos.

41.ª - Não podem, no entanto, os depoimentos das testemunhas de acusação serem aproveitados uma vez que estas testemunhas, enquanto agentes policiais e no exercício das suas funções, fazem referências expressas a declarações dos arguidos, sendo certo que estes depoimentos estão sujeitos a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, do CPP, sendo ainda certo que tal proibição veda o aproveitamento das suas declarações enquanto agente policial, quer tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito, que a testemunha venha a ser instrutor do inquérito ou não.

42.ª - Por outro lado, o tribunal a quo, vem ainda citar o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/05/2010, proferido no processo com o n.º 00043936[6], porém, e salvo o devido respeito, uma vez mais o tribunal a quo, se limitou a interpretar o referido acórdão somente na parte em que lhe interessava, pois de uma leitura atenta do mesmo, facilmente nos apercebemos que a situação dos autos é completamente diferente daquela que foi citada, pois ali a arguida prestou declarações. Todavia, a situação agora em análise, prende-se com o depoimento indirecto de Órgãos de Polícia Criminal, claramente vedado pelos arts. 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do Código Processo Penal, aliás, facto esse, bem vincado na decisão do referido acórdão e absolutamente vedada a sua valoração:

“Atendendo à fundamentação da matéria de facto resulta que a questão suscitada pela arguida coloca-se, apenas, em relação às testemunhas E............., F............ J.,.......... e K............. uma vez que quanto à testemunha Q............. o relevo da sua intervenção restringiu-se ao conteúdo do relatório que elaborou, e que consta do processo, na sequência de inspecção feita à casa da arguida.

Considerando as normas acima citadas, é seguro que os órgãos de polícia que tenham recebido declarações cuja leitura não seja permitida em audiência não podem ser inquiridos sobre o conteúdo das mesmas: os art. 356.º, n.º 7, e 357.º, n.º 2, do C.P.P. vedam o aproveitamento, como meio de prova, de declarações prestadas por órgãos de polícia criminal sobre o que ouviram aos vários intervenientes processuais no decurso do inquérito.

«Estas disposições ... pretendem prevenir a utilização probatória indirecta na audiência de declarações que a lei não permite que sejam utilizadas, como as que são prestadas em momento processual anterior e cuja leitura e, consequentemente, utilização probatória não seja permitida. No caso de declarações do arguido, resulta do regime específico de leitura previsto no artigo 357.º que, optando o arguido pelo silêncio na audiência, não pode haver leitura de declarações anteriores e, consequentemente, os órgãos de polícia criminal não podem ser inquiridos como testemunhas sobre tais declarações» [6 - Acórdão da Relação do Porto de 7-3-2007, processo 0642960]”.

43.ª - Verifica-se assim que a factualidade dada como provada inerente aos arguidos ora recorrentes foi incorrectamente julgada e que a única prova, e tendo sempre presente o princípio do in dubio pro reo, são apenas e tão só os depoimentos indirectos dos Srs. Agentes da PSP arrolados como testemunhas de acusação, porquanto na realidade estes nada viram limitando a depor sobre factos que os arguidos alegadamente lhes terão dito em conversa informal, violando desta forma o preceituado nos arts. 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, do CPP.

44.ª - Note-se que ao longo da audiência de discussão em julgamento em apreço, nenhuma prova logrou resultar no sentido de que os ora recorrentes tivessem cometido o furto pelo qual vinham acusados.

45.ª - Foi assim que a Polícia de Segurança Pública evidenciou a fraqueza da sua investigação, tratou de apresentar os recorrentes como os responsáveis das acções de outros de quem nada sabiam, nem cuidaram em identificar. Dos ora recorrentes se passou a dizer, a pensar, a presumir, mas de concreto nunca nada se apresentou.

46.ª - Não lograram os Órgãos de Polícia Criminal, recolher mais qualquer tipo de prova, nomeadamente recolha de impressões digitais, vestígios de gasóleo na roupa ou nas próprias mãos dos arguidos, nem tão pouco comparar o “suposto” gasóleo apreendido com o que estava nas máquinas de onde fora furtado.

47.ª - A defesa vai mais longe, não consta sequer do processo qualquer análise ou perícia efectuada ao “gasóleo” apreendido, pelo que se questiona se o que estaria dentro dos referidos bidões, efectivamente seria gasóleo ou outro produto qualquer.

48.ª - «NEMO INNOCENS, SI ACCUSARE SUFFICIT»

49.ª - Ninguém seria inocente se bastasse a mera acusação. Princípio basilar do Direito, antigo e moderno. Pior ainda se a acusação surge de meras suposições como no caso sub judice. Nada além de suposições, e das declarações vagas e baseadas no depoimento indirecto dos próprios arguidos, arrimaram a acusação dos arguidos.

50.ª - Veja-se a antiga doutrina de Bento de Faria: “As presunções, por mais veementes que possam ser, não dão lugar a imposição de pena.”

51.ª - Tudo está em dar crédito absoluto ao trabalho policial, sendo certo que toda a prova assentou, exclusivamente, no depoimento indirecto dos arguidos, confirmando que relativamente aos ora recorrentes não existiam referências, não conheciam o seu modo de vida e a sua rotina diária, quer profissional, quer familiar e que naquele dia o que é certo é que não foram vistos por nenhum dos Agentes a praticar o furto pelo qual foram condenados.

52.ª - Importa ainda salientar que a acusação, bem como a própria decisão final, reiteram uma prática judiciária que vem sendo frequente mas que, salvo o devido respeito, não é correcta.

53.ª - Falamos, é bom de ver, da circunstância das conversas informais mantidas entre os Agentes e os arguidos se tratar, em larga medida, não da imputação de factos com relevo típico, ou para a medida da pena, mas antes da mera descrição de resultados de um meio ilícito de prova.

54.ª - O qual, salvo o devido respeito, não serve como meio de prova, no entanto se alicerçado por outros elementos de prova, poderá ser uma “ajuda” ou um “meio” para se atingir um “fim”. Ou seja, a defesa admite que os agentes possam ter as chamadas “conversas informais”, no entanto não se pode admitir é que as mesmas sejam valoradas como meio de prova. Podem sim, e salvo o devido respeito, servir de base à investigação, no sentido de os ajudar na recolha de outros meios de prova lícita, ou seja, existindo fundada suspeita que determinado cidadão praticou determinado crime e que supostamente confirmou ser ele o autor, cumpre agora aos Srs. Agentes recolher prova bastante nesse sentido, ou seja, efectuar recolha de impressões digitais, recolher vestígios no local do crime, etc....

55.ª - E não somente basear uma acusação no “tal” depoimento indirecto, pois a ser assim, mal estaria a nossa justiça, não sendo sequer necessário proceder a mais qualquer recolha de prova durante qualquer que fosse do processo, bastando para tal que os próprios agentes viessem a julgamento afirmar que os arguidos, já o sendo ou antes de o ser, teriam afirmado ser eles os autores de determinado crime.

56.ª - Ora, a sede própria da consideração do teor dos depoimentos indirectos, designadamente do que deles se pode ou deve concluir, é a motivação da decisão em matéria de facto, não a própria relação de factos provados e não provados - e é esse o critério que iluminará a selecção deles.

57.ª - Como bem refere ADAUTO SUANNES, com a respeitosa reserva de não se colocar os elementos policiais em crise, “o policial está interessado em defender a legalidade dos actos que pratica e tenderá a depor contra o indiciado, pois caso proceda em contrário, estará a admitir a prática de abuso de autoridade. Daí que não se deva condenar alguém apenas com base em tais testemunhos”, (destacado e sublinhado nosso).

58.ª - Donde, o Tribunal a quo,

59.ª - Ao formar a sua convicção íntima, valorou erradamente a prova produzida em audiência, pois uma correcta apreciação e valoração da mesma imporiam decisão diferente da aplicada aos ora recorrentes.

Da matéria de facto

Do erro notório na apreciação da prova

60.ª - Reportando Simas Santos e Leal Henriques, o erro notório na apreciação da prova consiste na “falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

61.ª - Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o sensu comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.

62.ª - Erro notório, no fundo, é pois a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido).

63.ª - Assim, não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art. 127.º”, in Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, p. 74. Na senda de Teresa Pizarro Beleza, o princípio da livre convicção, tal como está inscrito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, significa, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na «liberdade para a objectividade»[7].

64.ª - Tal como resulta expressamente da lei, qualquer um dos vícios enunciados no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal tem que resultar “expressamente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.

65.ª - Por outro lado, o recurso às regras da experiência comum, de que se pode lançar mão para justificar o vício invocado tem de ser feito cum grano salis, pois tal prescrição não se adequa a todos os vícios referenciados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

66.ª - Tendo presentes os elementos de integração do conceito de “erro notório” na apreciação da prova, enunciados pela doutrina e jurisprudência maioritárias, há que apreciar nesta perspectiva a decisão de que se recorre.

Da prova gravada vs a matéria de facto dada como provada:

67.ª - O tribunal dá como provado o facto n.º 1, onde refere que “No dia 26 de Fevereiro de 2011, cerca das 21 horas e 10 minutos, os arguidos actuando em comunhão de esforços e execução de prévio acordo, dirigiram-se às instalações do estaleiro da firma W... - Lda. sito nas traseiras do restaurante “ … ”, no  … com o propósito de se apoderarem de gasóleo existente em máquinas ali estacionadas”.

68.ª - O tribunal dá como provado o facto n.º 2, onde refere que “Uma vez ali, em execução de tal desígnio e fazendo uso de duas vasilhas plásticas, uma de cor branca e outra azul com a capacidade de 20 litros cada, e duas mangueiras de cor amarela, uma com cerca de 90 cm e outra com 4 metros, retiraram cerca de 40 litros de gasóleo no valor de €54,00 dos depósitos de uma escavadora de marca JCB de modelo 3 CX e de duas máquinas de cilindros de marca humer de cor laranja e outra tipo giratória amarela, que ali se encontravam estacionadas, provocando com tal conduta estragos ao estroncarem os respectivos tampões”.

69.ª - O tribunal dá como provado o facto n.º 3, onde refere que “Actuaram os arguidos com o propósito de se apoderar do referido gasóleo, com perfeito conhecimento que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade do respectivo dono”.

70.ª - O tribunal dá como provado o facto n.º 5, onde refere que “Foram apreendidas as referidas duas vasilhas, cheias de gasóleo, e mangueiras aos arguidos”.

71.ª - Porém, resulta claramente das declarações das testemunhas de acusação (ambos agentes da PSP) que:

72.ª - Das declarações do Agente … , gravadas no CD de audiência de julgamento do dia 28-02-2011 - 15:17:15,

73.ª - Na passagem 01:45:

Juiz (J): “Onde é que foi que os viram?”

Testemunha (T): “No parque de estacionamento por trás do restaurante Amazonas (...) e fomos ao local, estávamos perto (…) chegámos lá vimos os indivíduos fora da vedação, não dentro do estaleiro mas no exterior com duas vasilhas de combustível, ainda lhes perguntei se era das máquinas (...) e eles confirmaram e confessaram tudo (…) que realmente eram daquelas máquinas que tinham subtraído o gasóleo (…) duas máquinas tinham o tampão ao lado (...) não era da escavadora”.

Ministério Público (MP): “Só os cilindros tinham a tampa aberta?”

T: “Eram duas que tinham a tampa aberta (…)”.

MP: “Qual foi a reacção deles?”

T:   “Simplesmente não reagiram, confessaram que tinham sido eles (…)”.

74.ª - Na passagem 05:10:

Advogado de Defesa (Ad):   “(...) quando lá chegou os indivíduos estavam no exterior? Mais ou menos a quantos metros é que eles estariam daquela vedação? Da vedação de acesso daquela obra que se fala?”

T:  “(...) estariam para aí a 2 ou 3 metros (...) estavam aí a 3 metros não mais (...) só os vimos mesmo no exterior (...).

Ad: “Estavam parados e as bilhas estavam junto deles?”

T: “Mais ao lado”.

Ad: “Então não estavam com elas nas mãos é isso?”

T: “Não não estavam (...)”.

Ad: “(...) então o Sr. Joaquim vê dois indivíduos a andar e ao lado estavam duas vasilhas é isso?”

T: “Exactamente”.

Ad: “Então não os viu com as vasilhas na mão?”

T: “Não não isso não”

Ad: “(...) Nunca os viu a tirar o gasóleo lá de dentro?”

T: “Não não”.

75.ª - Na passasem 09:10:

Ad: “(...) Abstendo-se um pouco daquilo que eles lhe disseram na altura, que vale o que vale, se eles não lhe têm dito o que disseram, como é que o Sr. pode afirmar aqui ao tribunal que foram eles que furtaram aquele gasóleo? Diga-me uma coisa, a polícia verificou se aquele gasóleo que estava dentro dos bidões era o mesmo, comparou, se mandou para análise, para laboratório, se era o mesmo tipo de gasóleo que estava naqueles bidões e que estava nos tais cilindros dentro da obra?”

T: “Oh? Dr., uma vez que eles confessaram o furto”.

Ad: “Esqueça a confissão (...) o que interessa agora é aquilo que o Sr. Joaquim viu e presenciou, é isso que interessa (...) uma vez que confessaram não fizeram mais diligências é isso?”.

T: “Não não, exactamente (...)”.

76.ª - Na passagem 14:03:

J: “(...) Foi apurado a forma como eles entraram no estaleiro?”

T: “Não não ...”.

77.ª - Das declarações do Agente … ,  gravadas no CD de audiência de julgamento do dia 28-02-2011 - 15:32:47,

78.ª - Na passagem 00:50:

MP: “Que caso é este?”

T: “No sábado à noite por furto de gasóleo (...) fomos lá mandados viu central rádio que andavam ali pessoas suspeitas (...) que poderiam andar a furtar (...) por trás do Amazonas (...) ao chegar ao local vimos ali aqueles dois indivíduos fora de uma vedação onde se encontram lá as máquinas (...) abordámos os indivíduos e eles confirmaram que tinham andado a furtar o gasóleo (...)”.

MP: “Havia ali mais alguém?”

T: “Junto a nós não, provavelmente estava ali pessoas numa garagem próxima, mas junto a nós não (...) estavam dois tampões fora do sítio (...) precisamente foram os meus colegas do trânsito que tiraram as fotografias”.

MP: “Viu tampas abertas que estão ali fotografadas, de que máquinas?”

T: “Talvez máquinas cilíndricas”.

MP: “Fala-se aqui de uma máquina escavadora”

MP: “Como é que se tem acesso ao estaleiro?”

T:  “Pela rede que está rebentada há já algum tempo, o acesso faz-se fácil (...)”.

J: “As mangueiras estavam próximas das vasilhas?”

T: “Sr. Dr. Juiz eu não posso precisar o local exacto”.

79.ª - Na passagem 07:03:

Ad: “Quando chegou ao local viu alguns destes indivíduos dentro do local onde estavam as máquinas dentro do estaleiro?”

T: “Não”.

Ad: “Algum dos indivíduos transportava consigo as vasilhas ou as mangueiras?”

T: “Não”.

Ad: “Chegaram a recolher alguma impressão digital quer nos bidões, quer nas mangueiras, quer recolher algum vestígio de gasóleo nos indivíduos?”

T: “Os únicos vestígios que foram recolhidos foram as fotografias que foram recolhidas pelos  meus  colegas  do  trânsito  relativamente  àquilo que  os indivíduos disseram que tinham feito (...) eu não acompanhei essa parte”.

Ad: “Daquele tal buraco de acesso ao estaleiro até ao local onde os indivíduos estavam quantos metros de distância são?”

T: “Aquilo  é  um  ringue (...) eles foram apanhados no passeio (...) sensivelmente 2 metros (...)”.

Ad: “O que é que o leva a concluir que foram  eles que furtaram  o gasóleo?”

T: “O Dr. está-se a referir ao flagrante delito, mas isso não é uma situação, se fomos lá mandados, se alguém viu, se havia suspeita, se confirmaram acho que não há mais (…)”.

Ad: “Quem foi esse alguém que viu, consegue indicar ao tribunal?”

T: “Já disse que fomos mandados pela central rádio”.

Ad: “Mas na central rádio ninguém viu nada?”

T: “A central rádio recebeu a chamada e nós fomos mandados via rádio”.

80.ª - Na passagem 13:50:

J: “Os dois cidadão iam a andar ou estavam parados?”

T: “Iam a andar (…)”.

J: “Vinha a andar de onde para onde?”

T: “Provavelmente de lá da vedação”.

J: “Mas não viu?”

T: “Não não vi”.

J: “O outro rapaz não o viu?”

T: “Provavelmente estaria tapado com os carros, eu não vi”.

J: “Quem estivesse naquele local onde eles estavam era visíveis os jaricans do combustível, eram?”

T: “Eram, não estavam escondidos”.

J: “Viram ali mais alguém que pudesse ser o dono do combustível, quando lá chegaram?”

T: “(...) Quando chegámos ao local eu apercebi-me que havia uma pessoa lá numa garagem”.

81.ª - Na passagem 14:10:

Ad: “Falou agora aqui que estava uma pessoa na garagem, chegaram a contactar essa pessoa para ver se ela viu alguma coisa?”

T: “A pessoa assim que nos viu, provavelmente, pronto, estava na vida dele, talvez nem quisesse a nossa presença junto dele, não é, penso eu”.

Ad: “Então mas essa pessoa depois fugiu é?”

T: “Não não fugiu nada, ele estava na vida dele, aquilo é ali uma praceta, há várias garagens, há casas janelas abertas e não sei quê, eu não posso precisar agora e ditar a adivinhar quem é que foi que ligou para a polícia”.

Ad: “Estou a perguntar é se a pessoa que lá estava para além de poder ser uma testemunha importante também poderia ter sido ela que furtou o gasóleo, por isso é que eu lhe estou a perguntar se vocês fizeram alguma diligência nesse sentido, de saber se ela foi testemunha se por acaso entretanto desapareceu dali porque tinha alguma coisa a ver com as bilhas que ali estavam?”

T: “é assim, se nós estamos ao pé de duas pessoas que confessam que foram, eu vou a abordar outras pessoas mesmo que houvesse mais gente? num caso destes penso que não há suspeitas”.

J: “Consegue identificar a garagem onde estava o homem?”

T: “Oh Sr. Dr. Juiz, era à noite, sabe que há sempre aquela dúvida (...)”.

82.ª - Com o devido respeito, dúvidas não restam que o tribunal a quo, se limitou a valorar o que lhe interessava valorar, colocando de parte o que não lhe interessava, pois no que diz respeito às referidas testemunhas de acusação, ambas foram peremptórias em afirmar que não viram os arguidos a furtar o gasóleo; que não os viram sequer dentro do referido estaleiro; que não os viram na posse dos artigos apreendidos e que estes estariam a cerca de 3 metros de distância do local onde estes se encontravam; que ainda visualizaram um terceiro indivíduo junto de uma garagem porém não lograram proceder à sua identificação, assentando as suas declarações em depoimento indirecto sobre declarações prestadas pelos arguidos que se remeteram ao silêncio, violando claramente o preceituado nos arts 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do CPP.

83.ª - Face ao exposto e na senda do entendimento dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.2004, Proc. 30P3213 e de 24.03.2004, Proc. 30P4043, disponíveis em www.dgsi.pt, a compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para a verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c)[8], conforme se verifica na apreciação em causa.

84.ª - Ora, entendendo correntemente a jurisprudência que o erro notório na apreciação da prova consiste em se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, sendo o erro detectável por qualquer pessoa minimamente atenta, tal vício claramente se verifica quando o tribunal a quo dá como provado os factos 1; 2; 3 e 5, baseando-se somente no depoimento indirecto prestado pelos Srs. Agentes da PSP.

85.ª - Os arguidos/recorrentes, colocam, assim, em causa o princípio da livre apreciação da prova, patente, como acima se referiu, no art. 127.º do Código de Processo Penal.

86.ª - No nosso entender, na fundamentação da sua convicção, o Tribunal a quo não foi lógico e congruente, consistente e suficiente, não explicando, a partir da prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia dado como provado.

Da contradição entre a fundamentação e a decisão

87.ª - Referem a este propósito Leal Henriques e Simas Santos que a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste “na incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

88.ª - Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”, in Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, p. 71 e 72.

89.ª - Tratando-se de um vício ínsito no art. 410.º, n.º 2 [mormente na alínea b)] do Código de Processo Penal, tem o mesmo de resultar, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena).

90.ª - É patente que o erro na apreciação na prova atrás aludido, com os fundamentos apresentados, nos fazem constatar por este vício.

Da nulidade da sentença

91.ª - O dever de fundamentar as decisões judiciais decorre directamente da Constituição: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prescrita na lei” - artigo 205.º, n.º l da Constituição da República portuguesa.

92.ª - O art. 374.º do Código de Processo Penal ao estabelecer os requisitos da sentença penal precisa ainda mais o conteúdo do dever de fundamentação. No n.º 2 estipula o referido preceito legal que, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível e concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. Não basta, assim, que o tribunal forme uma convicção sobre os factos, impondo a lei que essa convicção seja exteriorizada e explicitada através de um exame crítico das provas.

93.ª - Devem, assim, quer os destinatários da decisão, maxime, os sujeitos processuais, quer o tribunal de recurso, ficar a conhecer o percurso “lógico ou racional que lhe subjaz”, (Marques Ferreira, Meios de prova, Jornadas de Direito processual Penal, p. 228) ou seja, ficar a saber quais os motivos e porque razões é que aqueles concretos meios de prova convenceram o julgador quanto aos factos dados como provados. É que, como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional 234/93, DR II Série, de 2-6-93, no rigor dos princípios “é tão importante reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto, como da solução que haja sido dada à questão de direito” - citado por Germano Marques da Silva, Curso de processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 295. “Com efeito, ao lado do preceito jurídico que exige a punição do criminoso, levanta-se um outro preceito não menos importante, de só dever ser condenado o criminoso cujo crime foi provado” - Radbruch, Filosofia do Direito, Coimbra, 1974, p. 344. A motivação da prova é, assim, a demonstração feita ao arguido, mas também à comunidade jurídica, em termos racionalmente comunicáveis, de que o crime efectivamente se provou.

94.ª - O art. 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, ao considerar vício da decisão a “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, indica-nos uma das características básicas da fundamentação: a coerência.

95.ª - Desta forma, “A apreciação crítica das provas consiste na exposição do processo racional e lógico pelo qual o tribunal considerou os factos provados ou não provados, com base na prova produzida, de modo a permitir compreender o motivo pelo qual o tribunal julgou suficientes ou prevalecentes os meios de prova que suportam a decisão negativa ou positiva da matéria de facto em causa.

96.ª - Necessário é que a apreciação crítica das provas expresse uma decisão ponderada, não arbitrária, compreensível para a generalidade dos cidadãos (...) face às provas concretamente produzidas (que bem podem ser contraditórias entre si) e às regras da ciência, da lógica e da experiência, que enformam e limitam o princípio da livre apreciação da prova consagrado positivamente no art. 127.º do CPP.

97.ª - A motivação da decisão não pode confundir-se com a exposição de todo e qualquer detalhe, levando amiúde as motivações redundantes e substancialmente inúteis”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16-10-2007, Processo n.º 1238/07-1, disponível em www.dgsi.pt.

98.ª - Desta forma, verifica-se ainda que a sentença de que agora se interpõe recurso, padece de nulidade, por violação do disposto no art. 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, em virtude de não proceder ao exame crítico das provas, limitando-se o Tribunal a quo a efectuar meros juízos conclusivos, valorando inclusivamente o que não devia ser valorado, por estar ferido de nulidade, pois na sua motivação, mais nenhuma prova resulta senão a obtida através do depoimento indirecto prestado pelos Srs. Agentes da PSP.

99.ª - Não poderão os ora recorrentes ser condenados por ilícitos cometidos por terceiros, podendo com isso estarem a ser gravemente descriminados e violado claramente o principio da igualdade e da imparcialidade.

DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO

100.ª -   Ora, não é claro e inequívoco que os ora recorrentes agiram, nem com negligência nem tão pouco com dolo, tal como a douta decisão veio a fixar.

Do crime de furto simples (art. 203.º, n.º l, do Código Penal):

101.ª -   Só por mera cautela de patrocínio trará a defesa a V. Excelências esta questão, ou seja, se esta fronteira em algum momento se atingiu pois, a nossa tese, tal como se demonstrou, assenta sim no erro na apreciação da prova e na consequente absolvição dos arguidos ora recorrentes.

102.ª - Na verdade, julgou erradamente a prova que se produziu em audiência e, bem assim os resultados que dessa prova retirou não são de molde a decidir da forma como o Douto Tribunal o fez, salvo o devido respeito, que se reitera.

103.ª -   Os arguidos ora recorrentes, durante toda a fase processual, relegaram-se ao silêncio.

104.ª - As próprias testemunhas de acusação, ambos Agentes da PSP, nada viram, baseando-se as suas declarações num depoimento indirecto.

105.ª - Não se percebendo desta forma, como pode o tribunal a quo, concluir que os arguidos agiram em co-autoria, pois não resulta de nenhum facto que estes tenham praticado o furto quanto mais tenham planeado conjuntamente perpetuar o mesmo.

106.ª - Assim como não se encontra provado quer o elemento subjectivo do crime quer o objectivo.

Do pedido de indemnização civil:

107.ª -   Dispõe o art. 129.º do Código Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime, é regulada pela lei civil.

108.ª - A suposta prática dos supra referidos factos ilícitos por parte dos arguidos/demandados conferem ao demandante o direito a ser indemnizado (cfr. art. 483.º do C.C.).

109.ª -   O montante da indemnização será fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º.

110.ª -   Dispõe o art. 483.º, n.º l do CC que, “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legalmente destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado de todos os danos resultantes da violação”.

111.ª -   Deste modo, exige a lei, para que nasça a obrigação de indemnizar, que se verifiquem os seguintes pressupostos:

• facto voluntário e ilícito do agente;

• nexo de imputação do facto ao agente;

• danos;

• nexo de causalidade entre o facto e o dano.

112.ª - Acto voluntário é aquele que é objectivamente controlado ou dominável pela vontade, sendo que, no caso vertente, tal acto se inscreve na forma voluntária e livremente determinada com que os arguidos/demandados praticaram os factos.

113.ª - A ilicitude reconduz-se ao facto do agente e pode traduzir-se na violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios, respeitando, nomeadamente, à violação de normas que tendem à protecção e preservação da segurança da comunidade e na violação de um direito de outrem, referente aos direitos subjectivos, entre os quais se insere o direito à liberdade de autodeterminação, de decisão e de acção do ofendido.

114.ª -   No que respeita à obrigação de indemnizar, estabelece o art. 562.º do CC, o princípio da reconstituição natural, segundo o qual, aquele sobre quem recai a obrigação de reparar um dano deve repor a situação no estado em que estaria se não tivesse havido lesão.

115.ª -   A medida da indemnização é o dano imputado (art. 563.º do CC) e integra não só os danos causados, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.

116.ª -   Aquele princípio sofre uma excepção, a constante do art. 566.º do CC, aí se prescrevendo que, a indemnização será arbitrada em dinheiro nas seguintes situações:

• quando a reconstituição natural não é possível;

• quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos;

• quando a reconstituição natural se revele excessivamente onerosa para o devedor.

117.ª -   Dispõe o art. 564.º do CC, que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado (dano emergente), como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes).

118.ª - Face a todo o exposto, deverá o pedido de indemnização civil ser declarado improcedente por não provado, uma vez que não existe nexo de imputação dos factos aos agentes.

119.ª -   Pelo que, deverá a decisão recorrida ser apreciada atentos os fundamentos invocados e ser substituída por outra, devendo ser reapreciada toda a prova produzida em audiência que se requer a transcrição a efectuar pelo Tribunal, apreciando-se a prova nos termos constantes no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Assim,

120.ª - A prova que deve ser renovada consiste na leitura atenta das declarações das testemunhas de acusação, as quais permitem concluir claramente pelo facto de que nenhuma delas presenciou nenhum dos factos dados como provados e que as suas declarações são claramente baseadas no depoimento indirecto, que lhes está vedado pelo disposto nos arts. 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do CPP.

121.ª - Com estes pressupostos, deveriam os arguidos B... e A..., considerando o que se provou, com base no depoimento das testemunhas de acusação, em nossa opinião e salvo o muito e devido respeito pelo MM Juiz que integra o Tribunal que proferiu a decisão ora sindicada neste recurso, terem sido absolvidos pela prática do crime de furto simples de que vinham acusados, na medida em que não se encontra provado que estes tenham procedido ao furto do gasóleo.

Nestes termos e demais de Direito que V.a Exa. doutamente suprirá, requer-se que seja admitido o presente recurso e que sufragados que sejam os vícios apontados, requer-se que seja proferida decisão consentânea com o alegado pelos ora recorrentes, devendo os mesmos ser absolvidos do crime pelo qual foram condenados, uma vez que a sua condenação se baseou apenas em prova nula, nos termos dos arts. 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do CPP e, consequentemente, absolvidos do pedido de indemnização civil.

Termos em que:

Com enorme sapiência e melhor experiência, V.as Exas. decidirão por forma a fazer-se a costumada justiça.


*

7. Apenas o Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo.

*

8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procurador-Geral Adjunta, em parecer a fls. 335/339, manifestou-se no mesmo sentido.

*

9. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, os recorrentes não exerceram o seu direito de resposta.

*

10. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

*

II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme entendimento uniforme dos nossos tribunais superiores, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Assim, no caso sub judice, o recurso dos arguidos está circunscrito às seguintes questões:

A) Se a sentença sob recurso padece da nulidade prevista nas disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, por ausência de análise crítica, na motivação da decisão de facto, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento;

B) Se existe erro de julgamento quanto à matéria de facto provada, nomeadamente por ter sido fundamentada em depoimento indirecto dos Agentes da PSP que detiveram os recorrentes;

C) Se a decisão recorrida está eivada dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

D) Se alterada a matéria de facto, de acordo com os desígnios dos recorrentes, estes devem ser absolvidos quer do crime de furto (simples) que lhes está imputado, quer do pedido de indemnização civil contra eles deduzido;

E) Medida da Pena.  


*

2. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1 - No dia 26 de Fevereiro de 2011, cerca das 21horas e 10 minutos, os arguidos actuando em comunhão de esforços e execução de prévio acordo, dirigiram-se à instalações do estaleiro da firma W...-Construção Civil e Obras Públicas Lda. sito nas traseiras do restaurante “Amazonas”, no Largo Doutor José Lopes Dias com o propósito de se apoderarem de gasóleo existentes em máquinas ali estacionadas.

2 - Uma vez ali, em execução de tal desígnio e fazendo uso de duas vasilhas plásticas, uma de cor branca e outra azul com a capacidade de 20 litros cada, e duas mangueiras de cor amarela, uma com cerca de 90 cm e outra com 4 metros, retiraram cerca de 40 litros de gasóleo no valor de €54,00 dos depósitos de uma escavadora de marca JCB de modelo 3 CX e de duas máquinas de cilindros de marca humer de cor laranja e outra tipo giratória amarela, que ali se encontravam estacionadas, provocando com tal conduta estragos ao estroncarem os respectivos tampões.

3 - Actuaram os arguidos com o propósito de se apoderar do referido gasóleo, com perfeito conhecimento que o mesmo não lhe pertencia e que agiam contra a vontade do respectivo dono.

4 - Actuaram sempre de modo livre e voluntário, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

5 - Foram apreendidas as referidas duas vasilhas, cheias de gasóleo, e mangueiras aos arguidos.

5 - Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais averbados no seu CRC.

6 - Os arguidos avocaram ainda um prejuízo de € 250,00 referente aos tampões dos depósitos dos veículos.

7 - Porque tem receio de utilizar o combustível existente no interior dos depósitos cujos tampões foram estroncados, por poder conter resíduos ou substâncias que para ali possam ter caído ou possam ter sido para ali deitadas pelos arguidos e que possam vir a afectar o funcionamento dos respectivos motores, a demandante terá ainda que proceder à transfega do gasóleo e à limpeza do depósito e do circuito de gasóleo das três máquinas industriais o que lhe custará a quantia não concretamente apurada.

8 - Os depósitos das máquinas industriais encontravam-se cheios de combustível.

9 - A queixosa tem receio de utilizar o combustível existente no interior dos tanques das máquinas cujos tampões foram arrombados, e bem assim aquele alojado nas vasilhas apreendidas nos autos, pela possibilidade de esse combustível poder estar contaminado com resíduos ou substâncias resultantes do arrombamento, do processo de extracção ou pelo acondicionamento nas vasilhas usadas para o transportar, e por isso não o irá usar.


*

3. Por sua vez, quanto aos factos não provados, consta na sentença:

Em face da prova produzida e analisada em julgamento, consideramos não ter ficado provado qualquer outro facto, designadamente que :

a) na transfega do gasóleo e à limpeza do depósito e circuito de gasóleo das três máquinas industriais a demandante gastará a quantia de € 3.567,00.

b) a demandante ainda que alugar três máquinas de iguais características para poder trabalhar durante o período da reparação das máquinas às quais foi furtado gasóleo.

c) período este, que poderá ser inferior a 5 dias.

d) nesse sentido a ofendida a este título terá que suportar a quantia de € 1.230,00 no que respeita à máquina escavadora JCB 200, €1.230,00 no que respeita ao cilindro de grande porte e € 738,00 no que respeita ao cilindro pequeno.

e) os depósitos das máquinas industriais cheios de combustível têm as seguintes capacidades: escavadora JCB 200 leva cerca de 250 litros, o cilindro grande 100 litros e o cilindro pequeno 50 litros.

f) tendo em conta o preço do litro de gasóleo de cerca de € 1.35 terá ainda um prejuízo aproximado de €540,00.


*

4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

O Tribunal formou a sua convicção acerca da matéria de facto provada com base no teor do auto de notícia de fls. 1 e do apreensão de fls. 3, que foi confirmado em audiência pelos seu autor, e bem assim, com base nos depoimentos das testemunhas arroladas na acusação e no pedido cível.

Questão controversa é a de saber qual o valor a atribuir aos depoimentos dos dois agentes da PSP …. .

No caso em apreço, os arguidos remeteram-se ao silêncio, não admitindo em julgamento a prática dos factos.

Porém, segundo o depoimento dos referidos agentes da PSP, no dia, hora e local dos factos, em giro de patrulha, quando avistaram os arguidos (ainda antes de terem assumido essa condição e apenas enquanto meros cidadãos que ali se encontravam) verificaram que aqueles tinham junto deles as duas vasilhas com o combustível e as mangueiras apreendidas nos autos, perguntaram-lhes, na sequência da denúncia que haviam recebido de que alguém andaria a furtar combustível naquele local, se tinham sido eles os autores dos factos.

Ao que os arguidos (ainda antes de o serem no processo e apenas como meros suspeitos) responderam que sim ....

Importa saber se estas declarações recebidas pelos agentes naquelas concretas circunstâncias podem e devem ser valoradas em sede de julgamento.

Aprofundemos:

Em primeiro lugar cumpre desde já pôr em evidência que as declarações prestadas pelos agentes da PSP acerca da responsabilidade assumida pelos arguidos pela prática dos factos não resultou da sua audição no âmbito destes autos, designadamente numa diligência destinada a tomar-lhes depoimento na qualidade de arguidos ou de testemunhas, mas sim, pelas declarações espontâneas que aqueles prestaram no dia, hora e local dos factos, enquanto cidadãos anónimos que ali estavam e que foram questionados pelos agentes acerca do seu envolvimento nos factos de que haviam recebido denúncias.

Por outro lado, o deu depoimento é valorado no quando de outras provas circunstanciais, como seja o facto daqueles terem junto de si os depósitos com o combustível e as mangueiras, sem que aquelas tenha os mesmos apresentado qualquer outra explicação lógica para o facto.

Para além disso, nas proximidades do local onde os arguidos se encontravam existia uma abertura na rede que dava acesso ao estaleiro onde as máquinas se encontravam e junto destas havia vestígios de gasóleo caído no chão juntos dos depósitos arrombados.

Assim, quando muito, diríamos que o depoimento dos agentes da PSP, enquanto testemunhas do processo, é um depoimento indirecto daquilo que ouviram dizer aos suspeitos no local dos factos.

Vejamos então:

Dispõe o art. 129.º do C.P.P., cuja epígrafe é “depoimento indirecto”:

«l - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos».

Dada a evidente subjectividade de um tal depoimento e o perigo que o mesmo comporta, pois pode limitar-se a relatar uma versão do depoente a coberto de estar a relatar declarações de terceiro que não pode ser contraditado, estes depoimentos só podem ser valorados nos estritos limites permitidos na norma.

E quando é que a norma o permite?

O depoimento indirecto só vale relativamente ao que se ouviu dizer a outra potencial testemunha; depois este depoimento só é permitido quando a inquirição de quem disse não for possível por força das circunstâncias referidas na norma. Dito de outro modo, o depoimento indirecto não é admissível, e portanto não pode ser valorado, se o depoimento da testemunha originária, apesar de ser possível, não tiver sido realizado, isto é, quando a testemunha originária não depôs porque não foi chamada a tribunal ou porque se recusou a depor. «Este instrumento contraria o princípio constitucional da imediação da prova ínsito na ideia de um Estado de Direito ... e só se justifica com vista a preservar a prova testemunhal em face da ocorrência de circunstâncias extraordinárias ... Por isso a norma do art. 129.º tem natureza excepcional» [1].

É, portanto, uma norma excepcional, excepcionalidade que deriva, logo, do texto do art. 128.º do C.P.P., que diz, no seu n.º l, que «a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo ...». A regra é, pois, que o limite do depoimento da testemunha é aquilo que ela viu e/ou ouviu.

O que a lei pretende com a proibição do depoimento indirecto é que não acolham como prova depoimentos que se limitam a reproduzir o que se ouvir dizer. Para que um tal depoimento seja valorado é essencial que seja confirmado pela pessoa que disse, confirmação que tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, já que o mérito de uma testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha [2] (excepção feita aos casos de impossibilidade superveniente de inquirição da pessoa indicada).

Nesta matéria bem sabemos que jurisprudência existe que entende que as declarações de uma testemunha relatando conversa mantida com o arguido constituem depoimento indirecto, portanto proibido, a menos que o arguido corrobore tais declarações.

Salvaguardando o devido respeito por tal posição, temos uma opinião diferente: considerando que o depoimento indirecto é uma comunicação, com função informativa, de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro [3], parece-nos razoavelmente claro que não constitui depoimento indirecto - portanto não enquadrável no art. 129.º do C.P.P. e, portanto, não constituindo prova proibida -, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio.

Para além disso, estando o arguido presente na audiência - quando o estiver -, pode sempre contraditar um tal depoimento [4].

Citando o acórdão desta relação proferido em 4-7-2007, no processo n.º 0647256 [5], diremos que «o depoimento de uma testemunha que relata a conversa que manteve com a arguida não deriva de conhecimento indirecto, mas de conhecimento directo, pelo que não pode ser considerado depoimento indirecto. Daí que se considere resultar do art. 129.º, n.º 1, em conjugação com o art. 128.º do Código Processo Penal, que o depoimento de uma testemunha que em audiência relata factos que a arguida lhe confessou, não é um depoimento indirecto, pois versa sobre factos de que directamente teve conhecimento na conversa que estabeleceu com a arguida».

A compatibilidade desta norma com os princípios constitucionais do art. 32.º da Constituição já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu no seu acórdão n.º 440/99, de 8/9, que a disciplina do art. 129.º, n.º l, do C.P.P. não viola nem o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o princípio da imediação, nem a regra do contraditório, pois que garante a imediação e possibilita a “cross-examination”. Se a sua inquirição destas pessoas não for possível é razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto, tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção do art. 127.º.

Porém, no caso os arguidos estavam presentes na audiência, foram confrontados com as declarações dos agentes da PSP e nada quiseram dizer.

Posto isto, parece-nos válida a valoração do referido depoimento e que essa valoração não viola o disposto no artigo 129.º do C.P.P., (cfr. a propósito o Ac. TRP de 05.05.2010, proferido no Processo com o n.º 00043936, tendo como relatora a Sr.ª Juíza Desembargadora Dr. Olga Maurício, acessível em www.dgsi.pt/jtrp).

Assente a admissibilidade de valoração pelo tribunal do depoimento dos dois agentes da PSP ouvidos em julgamento, quer na parte em que aqueles referem que, quando chegaram ao local dos factos, encontraram os arguido no passeio junto a um buraco existente na rede que vedava o acesso ao local onde se encontravam as máquinas de onde foi retirado o combustível, tendo junto de si as vasilhas com o gasóleo e mangueiras; quer na parte em que no seu depoimento afirmam terem ouvido da boca dos arguidos que tinham sido eles a retirar o gasóleo das máquinas; diremos que a convicção do Tribunal acerca da matéria de facto vertida nos pontos l a 5 (de 2.1.1) teve na sua base esses depoimentos dos referidos agentes da PSP, segundo os quais:

- no dia, hora e local dos factos, em giro de patrulha, quando avistaram os arguidos (ainda antes de terem assumido essa condição e apenas enquanto meros cidadãos que ali se encontravam) verificaram que aquelas tinham junto deles as duas vasilhas com o combustível e as mangueiras apreendidas nos autos; e bem assim;

- que tendo perguntado aqueles que ali se encontravam, na sequência da denúncia que haviam recebido de que alguém andaria a furtar combustível naquele local, se tinham sido eles os autores dos factos.

Ao que os arguidos (ainda antes de o serem no processo e apenas como meros suspeitos) responderam que sim!

Assim, da conjugação destes depoimentos com o facto de os arguidos terem sido encontrados na sua posse com as vasilhas com o combustível, junto a uma abertura na rede que dá entrada ao local onde estava parqueada a maquinaria, e bem assim com mangueiras, tudo isto conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer - a explicação encontrada pelo Tribunal para aquela sucessão de factos é a mais lógica e não se descortina outra consentânea com o facto de os arguidos no local terem admitido serem eles que andavam a furtar gasóleo e trem junto de si, nas imediações do acesso às máquinas, os objectos aptos à sua extracção e transporte - leva-nos a concluir, na falta de melhor explicação, que foram eles os autores do furto.

Em relação à matéria de facto vertida em 6), 7) e 8), o Tribunal teve em conta os depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento, incluindo aquela arrolada pela queixosa, e bem assim, o teor dos documentos juntos a fls. 46 a 48, na rubrica referente aos tampões, sendo certo que quanto ao mais, sem se saber combustível que as máquinas tinham no interior dos seus depósitos não é possível fazer um cálculo ao custo da transfega do combustível, desvalorizando-se, por isso, esse documento nessa parte.

Diga-se ainda que, não obstante a tentativa da defesa para demonstrar que, não seria pelo facto de as máquinas terem sido “arrombadas” que a queixosa iria deixar de as utilizar, mês o sem efectuar a transfega do combustível e a limpeza dos tranques, ficou claro que assim não é, e que esse não é o procedimento da queixosa em tal caso. E se, efectivamente, existiu um caso de uma máquina que, efectivamente depois de arrombada e lhe ter sido retirado combustível, mesmo assim foi utilizada, isso ficou a dever-se ao facto de, sem saberem que também dela tinha sido retirado combustível, o funcionário da demandante/queixosa, ter iniciado a laboração com a mesma e só se apercebeu do furto quando o motor parou por falta de combustível.

Ou seja, essa utilização em momento posterior ao furto do combustível só ocorreu por desconhecimento do próprio furto e não por vontade da demandante ou por ser esse o seu procedimento em tais casos.

A matéria de facto não provada foi assim valorada em consequência da total falta de prova a seu respeito.


*

5. Mérito do recurso:

5.1. Da nulidade da sentença:

A) Dispõe o artigo 389.º-A, do Código de Processo Penal, aditado pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, reportado ao processo sumário:

«1 - A sentença é logo proferida oralmente e contém:

a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas;

b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão;

c) Em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada;

d) O dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º.

2 - O dispositivo é sempre ditado para a acta.

3 - (…);

4 - (…);

5 - Se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura».

Em paralelismo com o quadro genérico traçado no artigo 374.º, n.º 2, do referido diploma legal, e em consonância com o imperativo constitucional do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, segundo a qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, impõe o legislador ordinário a fundamentação, nas vertentes de facto e de direito, da sentença em processo sumário, mesmo quando proferida oralmente. O tribunal tem o dever de expor, embora de forma sucinta e concisa, os motivos de facto e de direito que impelem à decisão proferida e, em caso de condenação, há-de fundamentar, fora do caso previsto no n.º 5 do citado artigo, embora por via oral, os critérios de escolha da medida da pena fixada, tendo por arquétipos orientadores as normas dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal.
Na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP comina-se de nula a sentença «Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alínea a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».
A citada norma do artigo 389.º-A, e bem assim a do 374.º, n.º 2, do mesmo compêndio legislativo, está ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».[9] 
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.[10]

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador.[11]

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão do julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido»[12].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

A análise crítica da prova não terá, no entanto, de ser exaustiva, mas apenas, no âmbito do processo sumário, sucinta, ou seja, a indispensável para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade.

Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, uma assentada do depoimento das testemunhas, ou seja, que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética.

Como não impõe uma fundamentação formalmente distinta para cada um dos arguidos ou uma fundamentação autónoma para cada um dos factos.

Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que a exigência normativa do exame crítico das provas torna insuficiente a referência àquilo em que o tribunal se baseou, tornando-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.

Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, o tribunal a quo motivou, suficientemente, as razões que determinaram a formação da sua convicção. Fê-lo a fls. 222/227, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual decorre perfeitamente reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.

Assim, no que agora importa considerar, o tribunal pronunciou-se, num primeira fase, sobre a validade dos depoimentos prestadas, em audiência de julgamento, pelos Agentes de Polícia  … e, num momento posterior, sobre a relevância probatória desses mesmos depoimentos, quando conjugados com as regras da experiência comum de vida, ou, dando a palavra ao juiz do tribunal de 1.ª instância, «com o facto de os arguidos terem sido encontrados na sua posse com as vasilhas com o combustível, junto a uma abertura na rede que dá entrada ao local onde estava parqueada a maquinaria, e bem assim com mangueiras».

Poder-se-á discutir, neste contexto, se o juízo de avaliação está sedimentado em prova proibida, como invocam os recorrentes, e em adequados procedimentos lógicos e intelectuais, de forma a permitir fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que os factos em causa resultam, com elevada probabilidade, daqueles outros também provados. Porém, estas questões que, estando correlacionadas com a sindicância da validade da prova e com a reapreciação, por este tribunal ad quem, da matéria de facto impugnada, serão apreciadas de imediato.

Neste momento, para a problemática em causa, temos como certo que a fundamentação contida na sentença de 1.ª instância é suficiente e bastante para cumprir os objectivos da lei, supra referidos.


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5.2. Sobre a pretendida alteração da matéria de facto provada:

Em consonância com a estrutura global do recurso, na exegese dos recorrentes, o tribunal de 1.ª instância, ao dar como provados os pontos 1. a 5., incorreu em erro de julgamento, evidenciado pelos depoimentos prestados pelas testemunhas … , os quais não se mostram dignos de inteira credibilidade.

Mas, sobretudo, segundo invocam, o juízo de convicção e valoração do julgador de 1.ª instância, no sentido de dar como provados os referidos pontos de facto, assenta em “conversas informais” tidas pelas referidas testemunhas com os arguidos, reveladas pelas primeiras em audiência de julgamento. Pelo que, as declarações das testemunhas, nas vertentes concretizadas pelos recorrentes, não podem constituir meio de prova válido, nos termos dos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Explicitada a base impugnatória dos recorrentes e respectivos fundamentos, cumpre analisar, antes de mais, a prova produzida oralmente em audiência de discussão e julgamento, circunscrita aos depoimentos das testemunhas acima identificadas.

A testemunha Joaquim Nunes deu a conhecer, no fundamental, de forma objectiva, isenta e credível (não descortinamos alguma relação ou interesse especial que levasse a dita testemunha à prestação de depoimento não coincidente com a realidade ocorrida, em flagrante violação dos seus deveres profissionais):

- O circunstancialismo envolvente da sua comparência no local descrito nos factos provados, por virtude da ocorrência de um furto de gasóleo;

- Que os arguidos foram detectados no exterior do estaleiro onde estavam parqueadas as máquinas das quais havia sido extraído gasóleo, no passeio, a cerca de 2 metros da entrada daquele. Junto dos arguidos, no chão, a cerca de um metro deles, encontravam-se duas vasilhas cheias do referido combustível;

- Que, quando chegou próximo dos arguidos, um deles começou a andar. Chamou-o e falou com ele. Perguntou aos dois arguidos “o que andavam ali a fazer”, tendo obtido como resposta de ambos que tinham sido os mesmos a subtrair o gasóleo;

- Que a constituição de arguidos apenas teve lugar, posteriormente, na esquadra.

Por sua vez, a outra testemunha,  … , acompanhante do Agente … , confirmou a intervenção realizada, nos termos acima relatados, os locais onde viu os arguidos (versão, no essencial, coincidente com a descrição da testemunha … ) e a dita confissão, por parte dos mesmos, no que concerne ao acto de subtracção, por ambos, do combustível.

O acto de constituição de arguidos apenas teve lugar na Esquadra de Polícia.

A questão que inicialmente se coloca consiste em saber se as declarações prestadas pelas ditas testemunhas, numa altura em que o processo sumário ainda não estava iniciado e, assim, os ora arguidos ainda não tinham essa qualidade, constituem depoimento indirecto que impeça a sua valoração.

A lei adjectiva penal, tendo em vista as garantias de defesa do arguido, com destaque para o direito ao contraditório, proíbe a valoração das provas não produzidas ou examinadas na audiência - artigo 355.º, n.º 1, do CPP -, excepcionando as provas contidas em actos processuais, cuja leitura seja permitida por lei.

Por outro lado e tendo em vista o direito ao silêncio do arguido, proíbe o depoimento de órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações do arguido cuja leitura não seja permitida, bem como o depoimento de quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na recolha das declarações, sendo que a proibição se restringe, obviamente, ao conteúdo das declarações prestadas (artigo 356.º, n.º 7).

Finalmente, a lei adjectiva penal proíbe a valoração de depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada - depoimento indirecto -, a menos que essa pessoa seja chamada a depor, ou não seja possível a sua inquirição por morte,  anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.

Efectivamente, dispõe o artigo 129.º do CPP, cuja epígrafe é “depoimento indirecto”:

«1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.

3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos».

A primeira observação a fazer é a de que no caso concreto do autos não estamos perante provas não produzidas ou examinadas em audiência.

Como efeito, situamo-nos perante depoimentos prestados na audiência, produzidos de acordo com todas as regras processuais, ou seja, sobre os quais os arguidos puderam exercer, sem qualquer restrição, o contraditório, a significar que a vertente situação nada tem a ver com a previsão do artigo 355.º, n.º 1, do CPP.

A segunda observação a fazer é a seguinte: mesmo que os depoimentos em causa possam ser considerados de ouvir dizer ou indirectos, a verdade é que sobre os mesmos não recai a proibição de valoração prevista no artigo 129.º, n.º 1. É que as pessoas a quem os Agentes de Polícia ouviram dizer, ou seja, os arguidos, estavam presentes na audiência, com plena possibilidade de contraditar as testemunhas.

Neste preciso sentido se tem pronunciado a jurisprudência, que julgamos largamente maioritária, dos nossos tribunais superiores, ao considerar que a prova por ouvir dizer, quando reportada a informações produzidas extraprocessualmente pelo arguido, é passível de livre apreciação por parte do tribunal, designadamente quando o arguido se encontra na audiência e, por isso, com plena possibilidade de a contraditar, isto é, de se defender.

Como está escrito no Ac. do STJ de 15-02-2007 (proc. n.º 06P4593)[13], «podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantidas que a lei processual impõe.

Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249.º, do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249.º, n.º 1).

Nesta fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura escolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são  necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda o processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).

Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio» em audiência de julgamento «por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito».

O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo249.º, do CPP»[14].

Em face do exposto, no caso dos autos, tendo os arguidos relatado espontaneamente aos Agentes de Polícia … , antes da existência de processo e, consequentemente, antes da constituição daqueles na dita qualidade, o acto subtractivo versado nos autos, a valoração dos depoimentos das duas referidas testemunhas, ao narrarem em audiência o que ouviram dizer aos arguidos, não viola as normas em que se baseia a tese argumentativa dos recorrentes, ou qualquer outra de índole processual penal.


*
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Num segundo nível intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que as inferências hão-se basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimento científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador.

Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.

O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do mesmo diploma).

É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal).

No plano de análise em que nos movemos importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)»[15].

As presunções naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.

As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto[16].

Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004[17], «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

(…).

A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».

Em suma, nos parâmetros expostos, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.


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Volvendo ao caso dos autos, a análise da decisão recorrida permite ver claramente o processo lógico e intelectual seguida na motivação da decisão de facto expressa na decisão recorrida; ou seja, quais os factos em que a mesma se baseia e as inferências que permitem a respectiva conclusão.
E com ela não poderíamos estar, genericamente, mais de acordo.
Afigura-se-nos incontestável, dada a ampla margem de credibilidade a conceder aos depoimentos das testemunhas … , que os arguidos afirmaram, perante aqueles, nas específicas condições acima concretizadas, terem sido eles os autores da subtracção de gasóleo.
Coadjuvando esses depoimentos com as declarações do representante legal da demandante civil,  … , narrando, com elevado grau de verosimilhança, a falta de gasóleo nas máquinas referidas no acervo factológico dado como provado, e com determinados elementos circunstanciados, embora fora de qualquer prova directa, quais sejam, a localização dos arguidos, dos vasilhames, contendo gasóleo, e das mangueiras, a densificarem, com recurso às regras da experiência comum - sendo estas orientadas no domínio do ensinamento empírico que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante a generalização no sentido de que diversos casos concretos semelhantes tendem a repetir-se - ainda mais o elevado grau de credibilidade dos depoimentos/declarações - resulta de tudo um elevado grau de probabilidade, superando toda e qualquer dúvida razoável, de que foram os arguidos os autores do acto de apropriação ilícita em causa.

O processo psíquico em que assenta a verificação do dolo, porque nasce e se desenvolve no pensamento íntimo mais profundo do ser humano, exceptuando uma manifestação espontânea do agente, também só se revela através de um acertado juízo de inferência por parte do juiz, a partir dos elementos objectivos decorrentes da prova produzida em audiência de julgamento.
Assim, o acervo factológico de carácter objectivo dado como provado na sentença sob recurso é fortemente persuasivo dos elementos relativos à verificação do dolo.

Por todo o exposto, não procede o desígnio dos recorrentes no sentido da alteração da matéria de facto constante da sentença recorrida.


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5.3. Na conclusão 38, aduzem os recorrentes, reportando-se à posição sustentada na decisão recorrida, acolhida, nas suas consequências jurídico-processuais, no presente acórdão: «É que se se admitisse que toda e qualquer pessoa pudesse vir a julgamento transmitir uma alegada “confissão” por si recebida do arguido no circunstancialismo já referido, em total desrespeito pelas regras que seguem a recolha da prova, violaria manifesta e claramente as garantias de defesa do arguido consagradas no art. 32.º CRP».

Pela falta de clareza, fica a dúvida sobre se está efectivamente invocada a violação normativa daquela artigo 32.º da Constituição.
Se essa é a pretensão dos recorrentes, cabe lembrar, como vem repetidamente acentuando o Tribunal Constitucional, que a suscitação da questão de inconstitucionalidade tem de traduzir-se numa alegação na qual se indique a norma ou dimensão normativa que se tem por inconstitucional e se problematize a questão da validade constitucional da norma (dimensão normativa) através da invocação de um juízo de antítese entre a norma/dimensão normativa e o(s) parâmetro(s) constitucional(ais), indicando-se, pelo menos, as normas ou princípios constitucionais que a norma sindicanda viola ou afronta[18].
Ora, no caso dos autos, o arguido não cumpriu cabalmente esse ónus, limitando-se a referir a violação do artigo 32.º da CRP.

*
5.4. Dos vícios:

Invocam os recorrentes a verificação dos vícios previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.

Há que apreciar se efectivamente assim é.

Dispõe aquele normativo:

«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova».

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[19].

Ou seja, qualquer um dos vícios elencados na norma citada tem de existir internamente, dentro da própria sentença ou acórdão.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão (de facto).

Por seu turno, o erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, devendo também considerar-se verificado o referido vício caso ocorra violação do princípio in dubio pro reo, se for de concluir que o tribunal, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, decidiu em desfavor do arguido.

Lidas e relidas as conclusões 60.ª a 90.º, facilmente se recolhe que os recorrentes mais não manifestam do que uma acentuada discordância perante a fudamentação da sentença e a valoração da prova, no fundo, sobre o acervo factológico dado como provado pelo tribunal a quo. Ou seja, o que verdadeiramente está posto em causa é apenas o juízo valorativo a que procedeu o tribunal de 1.ª instância quanto aos pontos de facto provados relativos à subtracção do gasóleo, que aqueles entendem estarem indevidamente julgados.

Dito ainda por outras palavras, mediante a inadequada invocação dos vícios em questão, o verdadeiro desiderato dos recorrentes é o de fazer prevalecer a sua tese sobre a legalidade da prova e invocar, perante a prova produzida em audiência, a sua perspectiva pessoal em detrimento da base de convicção assumida pelo julgador.

De todo o modo, tendo em conta a essência dos vícios em causa, é apodíctico que os mesmos não ocorrem, pois os factos dados como provados e não provados são claros, precisos e encontram-se em consonância com a pormenorizada e lógica motivação da decisão de facto.


*

5.5. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão dos recorrentes, de serem absolvidos, quer do crime de furto que lhes está imputado, quer da totalidade do pedido de indemnização civil, assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada.
Pelo que, mantendo-se os pressupostos de facto que determinaram a condenação dos arguidos, é chegado o momento de nos pronunciarmos sobre a questão da medida da pena.
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5.6. Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, afim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídica-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena[20].
Assim, ao elemento culpa, enquanto tradutor da vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonómica volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura demasiado expansivas, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.
Neste sentido, a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primacial da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Quer dizer, as exigências de prevenção fixam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função delimitadora do máximo da pena. Entre tais limites actuam, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade[21].

*
No quadro da pequena/média gravidade própria do crime perpetrado pelos arguidos, o grau de ilicitude tem pouca expressividade, considerado, sobretudo, o valor do bem subtraído.
Mas são manifestamente relevantes as consequências danosas da conduta perpetrada pelos mesmos.
O dolo revela-se na sua modalidade mais vincada, ou seja, directo.
Ao nível do comportamento anterior dos arguidos, ele é pautado pela ausência de qualquer condenação criminal.

À luz dos critérios legais conformadores supra expostos, e tendo ainda em conta o disposto no artigo 47.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, sendo o crime cometido pelos arguidos punido, no que ora importa considerar, com pena de multa de 10 a 360 dias, temos como justa, suficiente e adequada ao caso a pena concreta de 90 dias, à razão diária de € 5,00, tal como ficou decidido na sentença sob recurso.

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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo-se, na íntegra, a sentença recorrida.

Taxa de justiça a cargo de cada um dos recorrentes, cujo quantitativo se fixa em 4 UC [artigos 513.º, n.º 1 do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].

*

Alberto Mira (Relator)

Elisa Sales


[1] SILVA, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo 2, Editora Verbo, 2009, p. 121.

[2] RODRIGUEZ FERNANDES, Ricardo, Derechos Fundamentales y Garantias Individuales em El Processo Penal, Nociones Básicas Jurisprudência Essencial, Colección Processo penal prático 4, Editoria GOMARES, Granada 2000:1-576), p. 56 e ss.

[3] SILVA, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo 2, Editora Verbo.2009, p. 126.
[4] Disponível em
http://vvwvv.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ealc61802568d9005cd5bb/0e078a45acf447d9802570d5005a2c64?Open Document&HighIight=0,depoimento, indirecto
[5] Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ealc61802568d9005cd5bb/2890719b01f4ed4d80257314002de3dt?Open
Document
[6] Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ealc61802568d9005cd5bb/2890719b01f4ed4d80257314002de3dt?Open
Document
[7] Teresa Pizarro Beleza, “Tão amigos que nós éramos: o valor probatório do depoimento de co-arguido no processo penal português”, Revista do Ministério Público, n.º 74, 1998, pág. 40.
[8] Cfr. Acs. do STJ. de 07.01.2004, proc. 03P3213, e de 24.03.2004, proc. 03P4043, disponíveis m www.dgsi.pt.
[9] Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211.
[10] Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.
[11] Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302.
[12] Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. 
[13] Publicado, em texto integral, in www.dgsi.pt.
[14] No mesmo sentido, cfr., v. g., Ac. do STJ de 03-03-2010, proferido no proc. n.º 886/07.8PSLSB.L!.S1, publicado em www.dgsi.pt
[15] Cfr., v.g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ, n.º 112, pág. 190.
[16] Cfr. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss.
[17] In www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213).
[18] Ac. do Tribunal Constitucional n.º 146/2010, de 14/04/2010.
[19] Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, Vol. III, pág. 338/339.
[20] Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, pág. 184.
[21] Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 231.