Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALCINA DA COSTA RIBEIRO | ||
Descritores: | DECISÃO ADMINISTRATIVA OMISSÃO DE FACTOS ATINENTES AO ELEMENTO SUBJECTIVO DA CONTRAORDENAÇÃO NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA REMESSA DA DECISÃO À AUTORIDADE ADMINISTRATIVA PARA CORRECÇÃO DO VÍCIO | ||
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Data do Acordão: | 07/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1 | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 374.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 1.º, N.º 1, 8.º, N.º 1, E 58.º, N.º 1, DO DECRETO LEI N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/RGCO | ||
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Sumário: | I - O artigo 1.º, n.º 1, do RGCO consagra quer o princípio da legalidade, na vertente da tipicidade (nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege), quer o princípio da culpa (nullum crimen sine culpa), o que vale dizer que a sanção pressupõe a culpa do agente pela sua acção ou omissão mas, e ainda, que a medida da sanção é determinada pela medida da culpa.
II - São os elementos subjectivos da contraordenação, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. III - A decisão administrativa que aplique uma coima, ou outra sanção prevista para uma contraordenação, que não contenha os factos integradores da tipicidade subjectiva da contraordenação é nula, por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P. IV - A nulidade da decisão administrativa derivada da omissão é sanável e susceptível de ser suprida pela entidade que a cometeu. V - Se a nulidade da decisão administrativa por falta dos elementos subjectivos é constatada aquando do conhecimento do recurso judicial da decisão de aplicação de coima a arguida não deve ser absolvida da instância, pois o tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, declarando a nulidade da decisão administrativa recorrida, ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício. VI - Sendo a nulidade da decisão administrativa conhecida no recurso da decisão jurisdicional o tribunal de recurso deve declarar a nulidade da decisão administrativa e determinar a remessa dos autos à entidade administrativa para que supra a referida nulidade. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO 1. A sentença proferida em 4 de julho de 2025 manteve a decisão proferida IMT (Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.), no âmbito do processo de contraordenação n.º ...70, em que lhe foi aplicada à sociedade …, uma coima no montante de 1.700,00 € (mil e setecentos euros), pela prática de contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 2, do Decreto lei n.º 257/2007, de 16 de Julho. 2. Inconformada com esta condenação, impugna-a a Arguida, com as conclusões que se transcrevem: I. … II-Não se verifica na sentença recorrida uma suficiente, correcta, necessária e fundamentada imputação do elemento subjectivo do tipo contraordenacional à recorrente, o que acarreta a inerente absolvição desta. III - Salvo o devido respeito, a sentença recorrida manteve o recurso a formulações vagas e genéricas, limitando-se a basear-se na decisão impugnada quanto ao elemento subjetivo do tipo imputado à recorrente, pois não o concretiza de forma suficiente e necessária, o que é deveras relevante, IV. Salvo opinião em contrário, a sentença recorrida não relata, como seria suposto, qualquer intenção de facto, vontade, propósito, da recorrente em agir do modo relatado nos autos, limitando-se a verter lugares-comuns e conclusões jurídicas, como se de factos se tratassem, como igualmente já fazia a decisão administrativa recorrida e, por isso, foi arguida a nulidade da mesma em sede de impugnação judicial. V- Por outro lado, caso assim não se entenda, mais se diga que a sentença recorrida padece de nulidade por violação do direito de defesa da recorrente, o que acarreta a inerente absolvição desta. VI - Com efeito, salvo melhor opinião, transcrever para uma decisão administrativa aquilo que se acha plasmado na Lei não equivale a nele fazer mencionar os factos que constituem a infracção e as circunstâncias em que foi cometida. Assim, sendo manifesto que a decisão impugnada foi emitida em grosseira violação do disposto no artigo 58º do R.G.C.O., é a mesma, salvo o devido respeito, nula, por preterição de formalidade essencial, o que resulta na violação do direito de defesa da recorrente, pois que à mesma não foram dados a conhecer quais os concretos factos e circunstâncias que preencham o tipo legal contraordenacional que lhe é imputado, o que tudo afectava e afeta de nulidade o processo contraordenacional em causa. - Constata-se que, salvo o devido respeito, a sentença recorrida, baseando-se na decisão administrativa impugnada, limita-se a concluir, de forma abstrata e genérica, pela verificação da contraordenação, na apreciação da supra invocada nulidade, o que não se pode aceitar, pelo que igualmente a sentença recorrida é nula por violação do direito de defesa da recorrente. VIII - Caso assim não se entenda, mais se diga que existe contradição de fundamentação na sentença recorrida e violação do direito de defesa da recorrente e, bem assim, a prova documental dos autos será inexistente, devendo ser considerado nulo o presente processo, com as legais consequências. IX - Na verdade, o alegado excesso de peso imputado ao veículo dos autos foi verificado através de uma balança, contudo, da decisão administrativa impugnada não constava a concreta forma (condições) como tal balança foi utilizada aquando da fiscalização. A utilização de uma balança pressupõe se verificaram os pressupostos exigidos para a respetiva utilização, os quais são fixados aquando da emissão da respetiva ficha de verificação metrológica e que, aliás, dele constam, o que não foi feito. X - O uso da balança apenas se pode considerar válido – por referência a uma balança verificada – quando o mesmo cumprir com as condições em que a própria verificação teve lugar, condições essas que são conhecidas dos agentes autuantes (que têm consigo a respetiva ficha) e que constituem verdadeiro elemento do tipo, ou pelo menos, condição objetiva de punibilidade, pelo que a omissão da autoridade autuante não permite dar como preenchido o tipo de ilícito imputado à recorrente - a qual, note-se, se presume inocente até prova em contrário, não fazendo fé o auto quando ele próprio não afirma a verificação de um facto de que a lei faz depender a punibilidade – razão pela qual aquela deveria a mesma ter sido absolvida em sede de recurso judicial. XI - Uma coisa é a ficha técnica pré-preenchida determinar que tais equipamentos se encontram certificados para as funções desempenhadas quando utilizadas de acordo com as respetivas instruções e outra, bem diferente, é que tal ficha técnica, que é igual a todas as outras, tenha a virtualidade de atestar que no decurso da concreta pesagem dos autos tais condições foram de facto cumpridas. XII - A descrição da decisão impugnada não refere a existência de qualquer prova específica, tudo levando a crer que a mesma não existe, visto que os registos obtidos através dos aparelhos, como sejam balanças, deverão acompanhar e inserir-se no respetivo auto e decisão. A recorrente desconhece se existe algum meio de prova que possa ser valorado. Inexistindo meios de prova significa que o levantamento do auto aqui em causa e respectiva decisão violam um dos mais elementares direitos e garantias dos cidadãos constitucionalmente protegidos, devendo, por essa razão, o presente procedimento por contraordenação ser considerado nulo com as legais consequências. XIII - Razão pela qual, dúvidas não restam de que a decisão administrativa impugnada incorreu também em vício de contradição insanável da fundamentação a que alude o artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP, vicio esse em e se requer seja declarado, com as legais consequências. XIV - Caso assim não se entenda, mais se diga que, a existir tal concreto meio de prova, a prova documental que terá servido para a imputação à recorrente da infracção em causa padece de nulidade, uma vez que é forçoso concluir que a suposta prova recolhida pela autoridade autuante foi obtida em clara violação da lei e dos princípios da transparência e da segurança jurídica, não podendo, por isso, ser utilizada como meio de prova, nem valorada como tal, devendo a recorrente ser absolvida com as legais consequências. XV - Deve, assim, a sentença recorrida ser revogada, e serem julgadas procedentes as arguidas nulidades, com as legais consequências, julgando-se procedente o recurso de impugnação judicial interposto pela recorrente e absolvendo-se esta da contraordenação em que vem condenada. …»
3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao recurso da arguida, defendendo a manutenção da sentença recorrida: 4. A Digna Procuradora-Geral Adjunta, no parecer fundamentado que doutamente emite, concluiu pela total improcedência do recurso. 5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal e junta a resposta do recorrente, foram colhidos os vistos legais, nada obstando ao conhecimento de mérito do recurso.
II - A SENTENÇA RECORRIDA A decisão de facto a ter em consideração é a seguinte: 1. No dia 19-04-2021, pelas 09:57 horas, a arguida efetuava um transporte rodoviário de mercadorias (tout venant 0/32), através do veículo pesado de mercadorias com a matrícula … conduzido por …, ao serviço da arguida e na prossecução do seu interesse, circulando na EX-IP5, km 91, .... 2. O veículo em causa (matrícula …) tem um peso bruto de 32.000 Kg. 3. Submetido a pesagem, o aludido veículo, circulava com um peso total de 45.880 Kg, correspondente ao peso registado de 46.120 Kg, deduzido o valor do erro máximo admissível, circulando assim com um excesso de carga de 13.880 Kg, correspondente a 43,38% relativamente ao peso máximo permitido 32.000Kg. 4. A balança utilizada pela entidade fiscalizadora para efetuar a pesagem referida é de marca CAPTELS, ORA 10, n.º série 1045, composta pelas plataformas n.ºs 11084134 e 11084135, aprovada pela ANSR através do Despacho 13179/08, de 12-05-2008 e com certificado de aprovação de modelo CE n.º T6377, efetuada pelo NMI GERTIN B.V. (HOLANDA) e com certificado de verificação periódica n.º 201.24/20.05868 de 31.03.2020, efetuado pela TAP Manutenção e Engenharia, Laboratório de Calibrações. 5. Tal balança encontrava-se devidamente aprovada, certificada e aferida para as funções desempenhadas. 6. Foi deduzido o erro máximo admissível por eixo, com base no ponto 4.2 anexo 1 do DL 43/2017. 7. O veículo foi submetido à pesagem nas mesmas condições em que se encontrava a circular, cumprindo-se rigorosamente as instruções de utilização para este tipo de balanças. 8. A pesagem foi efetuada por operador com formação e credenciado para o manuseamento do equipamento. 9. A arguida dedica-se, entre outras, à atividade de "transportes rodoviários nacional e internacional de mercadorias, construção civil e obras públicas". 10. A arguida conhece a capacidade de carga dos veículos que utiliza no desenvolvimento da sua atividade diária, sendo conhecedora da capacidade de carga do veículo que utilizou no transporte descrito nos autos. 11. Era exigível à arguida que evitasse o transporte de mercadoria em excesso, considerando aquela capacidade de carga do veículo utilizado. 12. A arguida conhece as obrigações legais decorrentes da sua atividade, sendo-lhe exigível que atue de acordo com as mesmas, o que não fez, representando como consequência possível da sua conduta, a violação de um comando legal e não se abstendo de atuar desse modo. 13. A arguida/recorrente não tem antecedentes criminais. 14. A arguida/recorrente em os seguintes antecedentes contraordenacionais: 14.1. Uma contraordenação p. e p. pelo artigo 31.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho, por factos de 10-09-2007, a qual efetuou o pagamento voluntário da coima e não houve lugar à aplicação de qualquer sanção acessória; 14.2. Uma contraordenação p. e p. pelo artigo 31.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho, por factos de 21-01-2010, a qual efetuou o pagamento voluntário da coima e não houve lugar à aplicação de qualquer sanção acessória; 14.3 Uma contraordenação p. e p. pelo artigo 31.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho, por factos de 02-10-2018, na qual efetuou o pagamento da coima; 14.5. Uma contraordenação p. e p. pelo artigo 31.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho, por factos de 04-06-2019, na qual efetuou o pagamento da coima. 15. A arguida emprega mais de 200 trabalhadores. 16. A arguida tem mais de 40 camiões a circular diariamente. 17. A arguida no ano de 2023 teve rendimentos de 31.775.594,83 € (trinta e um milhões setecentos e setenta e cinco mil quinhentos e noventa e quatro euros e oitenta e três cêntimos), e lucro tributável de 5.300.135,88 € (cinco milhões trezentos mil e cento e trinta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos). Factos não provados: Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, nomeadamente não se provou: a) Que os funcionários da recorrente (motorista e operador de carga do veículo) tenham atuado por iniciativa própria ou contra ordens da recorrente. * Motivação: A convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto acima descrita resultou da análise crítica e conjugada, à luz das regras de experiência e critérios de normalidade (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal ex vi do n.º 1 do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações), da prova produzida em audiência, mormente do depoimento das testemunhas AA, militar da Guarda Nacional Republicana, que lavrou o auto de notícia, BB que procedeu à pesagem do veículo da Arguida e ainda CC, Engenheiro na recorrente e DD, encarregado também na recorrente. Foi ainda considerado o teor dos documentos juntos aos autos, em especial o auto de notícia de fls. 6, o talão de pesagem de fls. 8, o aditamento ao auto de contraordenação de fls. 9, a certidão permanente da Arguida de fls. 40 a 44., o seu certificado de registo criminal e registo de contraordenações. … A ausência de antecedentes criminais da arguida resultou do seu certificado de registo criminal junto a fls. 45. Quanto aos antecedentes contraordenacionais, os mesmos resultam do registo de infrações de fls. 71/75 remetido aos autos pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes e que havia sido solicitado ao abrigo do disposto no artigo 37.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 257/2007 de 16 de julho. …
III - APRECIAÇÃO DO RECURSO A primeira questão a decidir consiste em saber se a decisão administrativa é nula por omissão de factos atinentes ao elemento subjectivo da contraordenação em que foi condenada. Vejamos. Antes de mais importa reter que, ao caso se aplica, o Regime Geral das Contraordenações regulado no Decreto Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO). Conforme dispõe o artigo 1.º: Artigo 1.º, constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima. Nesta previsão legal consagra-se, quer o princípio da legalidade, na vertente da tipicidade (nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege), quer o princípio da culpa (nullum crimen sine culpa), o que vale dizer que a sanção (coima e sanção acessória) pressupõe a culpa do agente pela sua acção ou omissão. Mas não só. A medida da culpa é igualmente o limite máximo da medida da coima ou da sanção acessória. Não há sanção sem culpa e a medida da sanção é determinada pela medida da culpa. Por sue turno, preceitua o artigo 8º, nº 1, do RGCOC que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. O principio da culpa constitui-se, assim, como um dos princípios basilares da punibilidade das contraordenações em geral. O mesmo é dizer que, ainda que se verifique, uma acção típica e ilícita contraordenacional, esta não será sancionável, se não houver culpa. O Direito das contraordenações, sendo um direito sancionatório, não prescinde da culpa, inexistindo, por isso, responsabilidade objectiva. Podendo a culpa revestir as modalidades e dolo ou negligência, pode concluir-se, como concluiu, o Acórdão do Tribunal desta Relação de Coimbra de 11 de Março de 2009[1], que «para que exista culpabilidade do agente no cometimento do facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência». Não esqueçamos que são precisamente os elementos subjectivos da contraordenação, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Como refere Figueiredo Dias[2] «(…) também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.»: Assim, os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade. Para afirmar a sua existência não é necessária uma consciência reflexiva, bastando uma consciência marginal e liminar, isto é uma consciência ou saber de situação.[3] Ensina o Prof. Figueiredo Dias, que o dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito. Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa. O dolo é, assim, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa. A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual - a representação, previsão ou conhecimento dos elementos do tipo de crime -; um elemento volitivo - vontade de realização daqueles elementos do tipo objectivo, nas modalidades nas 3 modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal - actuação com intenção de realizar o facto típico (dolo directo); aceitação da realização dos elementos do tipo objectivo como consequência necessária da conduta (dolo necessário); e conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível (dolo eventual) e um elemento emocional – dado, em princípio, pela consciência da ilicitude[4]. Numa contraordenação dolosa – só essa está aqui em causa – tem, pois, de constar da decisão administrativa, necessariamente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto ilícito) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo). Quanto ao elemento volitivo, exige-se a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente. Ora lida a decisão administrativa, nela não consta nenhum destes elementos. Afirmar-se, como se afirma na sentença recorrida, que a menção ao conhecimento das obrigações legais decorrentes da sua atividade, sendo-lhe exigível que atue de acordo com as mesmas, o que não fez, representando como consequência possível da sua conduta, a violação de um comando legal e não se abstendo de atuar desse modo, nada adianta quanto à caracterização do elemento intelectual e volitivo do dolo nos termos sobreditos. Neste contexto, assiste razão ao recorrente, ao afirmar que a decisão administrativa e, posteriormente a sentença recorrida, não descrevem o elemento subjectivo da contraordenação. Neste contexto, bem andou o tribunal recorrido em declarar a nulidade da decisão administrativa por omissão de factos tocantes ao elemento subjectivo das contraordenações imputadas à arguida. * Aqui chegados aqui, resta-nos apreciar os efeitos jurídico-penais de uma decisão administrativa que omita os factos integradores da tipicidade (objectiva e subjectiva) da contraordenação. Também aqui não existe consenso quer na doutrina ou jurisprudência. Para uns, a inobservância dos requisitos formais a que alude o artigo 58º, n.º 1 do RGCO, integra o vicio da nulidade, insanável ou sanável, ou até mesmo de mera irregularidade. «A inobservância de alguns dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do citado artigo 58º consubstancia uma irregularidade, e será segundo as regras deste instituto (art. 123º do CPP) que se apurará da possibilidade de aproveitamento (ou não) do processado desde a decisão administrativa (inclusive). E acrescenta que, não se afigura correcto aplicar, subsidiariamente (ex vi art. 41º), o disposto no artigo 379º do CPP (nulidades da sentença), uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória/administrativa, esta, nos termos do n.º 1, do artigo 62º do RGCO, converte-se em acusação. Mais acrescentando que não se afigura como correcto aplicar, subsidiariamente, o disposto no n.º 3 do artigo 283º do CPP (nulidades da acusação) uma vez que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não se converte em acusação.[5]». Para outros, «a consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contraordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias. (…) Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.[6]». No mesmo sentido, decidiu o Acórdão desta Relação de 11 de Novembro de 2020[7]: «Se quisermos estabelecer o paralelo com o que sucede ao nível do processo criminal, equivalendo a decisão administrativa, quando judicialmente impugnada, à acusação, então temos de reconhecer que uma acusação manifestamente infundada, por omissa quanto à narração (completa) dos factos e que, não obstante ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP, mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição». Esta é a posição defendida pela Recorrente. Numa outra perspectiva, encontram-se, Oliveira Mendes e Santos Cabral[8]. Apesar de entenderem que a decisão administrativa proferida em processo contraordenacional segue a estrutura da sentença em processo penal – cf. artigo 374º do CPP – cuja inobservância é cominada com a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, salientam que «nos encontramos no domínio de uma fase administrativa, sujeita às características da celeridade e simplicidade processual, pelo que o dever de fundamentação deverá assumir uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal. O que de qualquer forma deverá ser patente para o arguido são as razões de facto e direito que levaram à sua condenação, possibilitando ao arguido um juízo de oportunidade sobre a conveniência da impugnação judicial e, simultaneamente, e já em sede de impugnação judicial permitir ao tribunal conhecer o processo lógico de formação da decisão administrativa. Tal percepção poderá resultar do teor da própria decisão ou da remissão por esta elaborada». No sentido de que a falta de observância dos requisitos constantes do n.º 1 do artigo 58º do RGCO constitui uma nulidade da decisão de harmonia com o preceituado nos artigos 374º, n.ºs 2 e 3 e 379º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do artigo 41º RGCO[9], pronunciam-se, também, Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa. Todavia tal nulidade tem por efeito a absolvição do arguido. E isto, «porque o processo não é necessariamente distinto, devendo ser praticados os actos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afetava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do acto nulo e dos atos que dele dependam com repetição do ato anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201.º, n.º 2, e 208.º do C.P. Civil, e artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. Penal. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contraordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida (d) a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação[10].». No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque[11]: «O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício.». Comungamos desta orientação. A nulidades de sentença é sanável, nos termos do n.º 2 do artigo 379º, do Código de Processo Penal, devendo ser suprida entidade administrativa que inicialmente tramitou o processo, «aliás de harmonia, com o princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em homenagem ao princípio da economia processual, dando-se oportunidade (…) de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto. Tal decorre da circunstância de o processo (…) ser uma sequência de actos, os quais nem sempre estarão entre si numa relação causal ou de dependência.[12]» Termos em que se conclui que a nulidade da decisão administrativa sanável e susceptível de ser suprida pela entidade que a cometeu, improcedendo, nesta parte, o recurso.
2. Esta decisão prejudica as demais questões suscitadas no recurso.
IV. DECISÃO Em conformidade com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida, A..., Lda, em consequência, declara-se a nulidade da decisão administrativa, devendo os autos ser remetidos à entidade administrativa para aí ser suprida a referida nulidade nos termos supra apontados. Coimbra, 14 de Julho de 2025
Alcina da Costa Ribeiro Paulo Guerra Sandra Ferreira
[5]António Beça Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado, p. 109 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Março de 2006, Processo 0443636 e do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Junho de 2004. [11] Comentário do Regime Geral das Contraordenações, p. 263. [12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2006, Processo n.º 06P3201. |