Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1434/21.2T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: NULIDADE DA CITAÇÃO
ARGUIÇÃO PERANTE A 1.ª INSTÂNCIA
SIMULAÇÃO RELATIVA
APROVEITAMENTO DO NEGÓCIO DISSIMULADO
EXIGÊNCIAS FORMAIS
CONTRATO PROMESSA
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 220.º, 241.º, N.º 2, E 410.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O recurso da decisão final não configura o meio processual adequado à arguição da nulidade da citação, devendo tal vício ser invocado, autonomamente, na 1.ª instância, sobretudo quando o seu fundamento radica em factos não comprováveis documentalmente, encontrando-se dependente de prova testemunhal a produzir.

II – Declarando as partes pretenderem celebrar um contrato de arrendamento para fins não habitacionais (cedendo o respetivo uso pelo período de um ano, prorrogável por mais um ano, mediante uma renda mensal de € 14.000,00), quando queriam celebrar um contrato promessa de compra e venda do imóvel pelo preço de € 200.000,00 – a ser pago em prestações mensais de € 1.400,00, durante três anos, as quais passariam a € 3.000,00 durante mais dois anos, com pagamento ainda no termo desse período do capital que se mostrasse devido, formalizando-se o contrato prometido –, ao negócio efetivamente querido não pode aproveitar a forma escrita a que foi submetido o negócio simulado, por o documento escrito e assinado entre as partes não refletir minimamente as declarações de prometer vender e comprometer-se a adquirir o imóvel, por determinado preço.

III – Assim, resta um contrato de arrendamento para fins não habitacionais reduzido a escrito, que é nulo por simulado, e um negócio dissimulado de promessa de compra e venda inteiramente verbal e, como tal, também nulo, por vício de forma.

Decisão Texto Integral: Processo nº 1434/21.2T8GRD.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Melo

2º Adjunto: José Avelino Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

P..., Lda., intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra V..., Lda.,

Alegando em síntese:

tendo a Ré, em outubro de 2019 e com o acordo da aqui autora, adquirido à Banco 1 o imóvel onde a autora exercia e exerce a sua atividade, entre autora e Ré foi decidido que a Ré se comprometia a vender o imóvel à autora e esta a comprar-lho, pelo preço de 200.000,00 €, o qual seria pago em prestações mensais de 1.400 € por mês, com início em janeiro de 2020, prestações que passariam a 3.000 € mês volvidos 2 anos, pagando a autora integralmente o capital ainda em dívida no termo desse período, formalizando-se o contrato prometido;

dando-se conta de que, havendo contrato promessa formal, teria a autora de pagar, de imediato, o IMT e correlativo imposto de selo, o que importaria no desembolso de cerca de 14.600,00 €, quantia que na altura a autora não dispunha, resolveram ficcionar um contrato de arrendamento;

tendo a autora três prestações em atraso, bem como os pagamentos do IMI e do prémio do seguro, veio a autora a receber uma notificação judicial avulsa na qual a ré, invocando o contrato cuja simulação não ignorava, lhe pretendia pôr termo, atuação que culminou com o pedido de despejo.

Em consequência, pede que se:

a) Declare nulo, por simulação, o contrato de arrendamento celebrado em 2 de Janeiro de 2020, entre a autora e ré;

b) Considere válido o negócio subjacente, contrato promessa de compra e venda.

Tendo-se procedido à citação da Ré, e na ausência de apresentação de contestação, foi proferido Despacho a considerar confessados os factos articulados pela autora.

Notificadas as partes nos termos do artigo 567º, nº2, CPC, apenas a autora apresentou alegações, após o que foi proferida Sentença a julgar a ação procedente:

I. Declarando nulo, por simulação, o contrato de arrendamento celebrado em 2 de janeiro de 2020, entre a autora e ré;

II. Considerando válido o negócio subjacente, contra promessa de compra e venda, descrito nos artigos 13º a 21º da petição inicial, tendo por objeto o prédio descrito sob o nº ...92 na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...15 da União de Freguesias ... (... e ...) e ....


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Inconformada com tal decisão, a Ré interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

 5.1)- encontram-se a correr termos em simultâneo, mas instâncias distintas, dois processos relacionados com as mesmas partes, a saber – Proc. nº 1172/21.... (Ação Especial de Despejo) – a correr termos no Balcão Nacional do Arrendamento e a no Juízo de Competência Genérica ..., e a ação de Processo Comum – Proc. nº 1434/21.... – a correr termos no Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juiz ..., não tendo até ao momento nenhum deles transitado em julgado;

5.2.)- há simulação sempre que concorram, cumulativamente três requisitos: a) divergência intencional entre a vontade e a declaração das partes; b) combinação ou conluio que determine a falsidade dessa declaração (acordo simulatório); e c) intenção, intuito ou prepósito de enganar ou prejudicar terceiros. Mais, quando não tenha havido intenção fraudulenta, isto é, de prejudicar terceiros (animus nocendi) – caso mais frequente – haverá simulação se existir o intuito ou propósito de enganar terceiros (animus decipiendi);

5.3)- ora, de um ponto de vista, puro e duro do direito civil, em verdade o negócio celebrado não está ferido de nulidade por simulação, porquanto não se mostra preenchido um dos requisitos imperativos da definição de simulação, concretamente a intenção, intuito ou prepósito de enganar ou prejudicar terceiros;

5.4)- não estamos nos presentes autos perante uma simulação absoluta do contrato de arrendamento;

5.5)- para o contrato de arrendamento e quanto à sua forma, bastará o mesmo ser celebrado por escrito e assinado por todas as partes envolvidas, na qualidade que aí outorgam. O que não acontece com o contrato de promessa de compra e venda com eficácia real e tradição da coisa, cuja forma obriga não só à forma escrita, como à liquidação e pagamento das obrigações fiscais inerentes à tradição da coisa, ao registo da eficácia real junto da Conservatória do Registo Predial, bem ainda como, e mais importante, a realização de Termo de Autenticação para conferir validade ao contrato em causa;

5.6)- logo, considerando-se como válido o pretenso contrato de promessa de compra e venda, sempre o mesmo seria nulo por falta de forma legal, nos termos do artigo 220º do Cód. Civil;

5.7)- caso se mantenha como válido o contrato subjacente, então diremos que também este contrato de promessa de compra e venda se encontra definitivamente incumprido, pelo não cumprimento do pagamento das prestações periódicas mensais;

5.8)- a ré/recorrente desconhece em absoluto quem seja a Senhora AA, subscritora do aviso de receção associado à citação;

5.9)- a referida AA não é, nem nunca foi a legal representante da ré/recorrente, nem é funcionária da mesma, nem tem com a ré/recorrente qualquer relação ou vínculo de qualquer natureza nem outro, que a constitua no dever de lhe comunicar a ocorrência de atos praticados por terceiro que a tenham por destinatário ou lhe digam respeito, como o caso dos presentes autos;

5.10)- tem o legal representante da ré/recorrente conhecimento efetivo que quem está incumbido de receber toda a correspondência dirigida à ré/recorrente é uma outra Senhora de nome BB, portadora do Cartão de Cidadão emitido pela República Portuguesa com o nº ...27 5ZX4, com domicilio conhecido na ... ...;

5.11)- mostra-se assim justificadamente ilidida a presunção de que a ré/recorrente não teve conhecimento da sua citação em momento algum, só tendo tido conhecimento que havia sido citada – na pessoa de AA – aquando da consulta dos autos após junção de procuração, a favor da subscritora do presente expediente processual;

5.12)- assim, e em jeito de conclusão e nos termos da al. e) do nº1 o artigo 188º do Cód. Proc. Civil fica demonstrada a falta de citação da ré/recorrente, motivo pelo qual, e a entender-se essa falta de citação, não poderia ter contestado a ação, e consequentemente não poderia os factos pela autora/recorrida alegados na petição inicial ter sido considerados como confessados e ter sido tomada a decisão que ora se põe em causa;

5.13)- em face do alegado, e nos termos do já referido artigo 188º, nº 1 al. e), e ainda nos termos dos artigos 189º e nº2 do artigo 191º, todos do Cód. Proc. Civil desde já se requerer que seja declarada a nulidade da citação da ré/recorrente, e consequentemente, nos termos do disposto no artigo 187º do Cód. Proc. Civil, requer-se a nulidade de todo o processado após a petição inicial;

Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se requer, deve o acórdão revidendo ser substituído por outro que contemple tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo a habitual sã e serena justiça!.

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A autora apresentou contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso, apoiadas nas seguintes conclusões:
A- A citação foi regularmente efetuada;
B- Ainda que o não tivesse sido, (o que se admite apenas só por hipótese de raciocínio) sempre a eventual irregularidade/nulidade que a pudesse afetar se encontra sanada, porquanto não foi suscitada aquando da junção da procuração (em 15/02/2022) no cumprimento do estipulado no artº 189º do CPCivil.
C- Pelo que, tal apreciação teria de ser feita no Tribunal da 1ª Instância e não em sede de recurso.
D- Não tendo sido apresentada contestação, os factos alegados na petição têm-se por legalmente confessados, portanto fixados.
E- Face a tal factualidade, é absolutamente irrepreensível o doutamente decidido na sentença recorrida.
F- A qual é portanto de manter.
G- Quanto à referência feita pela recorrente nas suas alegações à existência de processo a correr termos no Balcão Nacional de Arrendamento, tal não revela aqui, pois que, como foi decidido inexiste (nem nunca existiu) o contrato de arrendamento que a Ré pretende. 
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Dispensados os vistos legais, ao abrigo do disposto no artigo 657º, nº4, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da citação da Ré por efetuada na pessoa de terceiro que não é seu legal representante ou trabalhador
2. Se se verifica a nulidade do contrato de arrendamento por simulação.
3. A verificar-se tal simulação, se o negócio querido pelas partes é nulo por falta de forma.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

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1. Nulidade da citação da Ré por ter sido efetuada na pessoa de terceiro que não é seu legal representante ou trabalhador

No final das suas alegações de recurso, vem a Ré invocar a nulidade da sua citação, pelo que, não deveriam ter sido confessados os factos, pedindo que se declare a nulidade de todo o processado posterior à petição inicial.

Para tal, alega não ter tido conhecimento da sua citação, que ocorreu na pessoa de AA, que assinou o aviso de receção, pessoa que a Ré desconhece em absoluto e que nunca foi sua legal representante ou funcionária, nem tem com a Ré qualquer vinculo que a constitua no dever de lhe comunicar a ocorrência de atos praticados por terceiro, sendo que, quem está incumbido de receber toda a sua correspondência é uma outra senhora de nome CC.

Há falta de citação, entre outras situações, “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, nomeadamente, por ato que lhe não seja imputável” (artigo 188º, al. e), CPC).

A falta de citação é uma nulidade principal que pode ser conhecida oficiosamente ou por arguição do réu em qualquer ato do processo, enquanto não se puder considerar sanada (arts. 191º, 196º, 197º, 198º, nº2, 200º, CPC).

No caso em apreço, proferida sentença a 01.02.2022, Ré Apelante veio a 14 de fevereiro de 2022 juntar procuração aos autos, vindo a invocar a nulidade da sua citação no recurso de apelação que interpõe da sentença, a 11-03-2022.

Considerando que a ré não invocou a nulidade da sua falta de citação perante a 1ª instância, que sobre ela não se pronunciou, suscitando-a somente nas alegações de recurso de apelação, cumpriria averiguar se a Relação poderia conhecer de tal questão.

Em regra, o recurso da decisão final não configura o meio processual adequado à arguição de nulidades processuais, quando reportadas a momento anterior, devendo ser deduzidas no tribunal onde as mesmas tiveram lugar.

Aceita-se, contudo, que, nas situações em que a nulidade se corporiza na decisão recorrida e só com esta se manifesta (como será o caso e uma decisão proferida em violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº3 do CPC), a arguição de tal nulidade mostra-se incindível desta, a sua arguição nas alegações de recurso tem de ter-se por tempestiva[1].

 No caso em apreço, embora os efeitos da nulidade da citação se repercutam necessariamente a sentença, bem como no demais processado, o vício reporta-se ao ato da citação enquanto tal, perfeitamente autónomo da sentença e independentemente da sua prolação, pelo que deveria tal vício ser invocado, autonomamente, na 1ª instância, sobretudo, quando, como, no caso em apreço, o seu fundamento radica em factos não comprováveis documentalmente nos autos, encontrando-se dependentes de prova testemunhal a produzir.

Por outro lado, levantar-se-ia, ainda, a questão da tempestividade da sua arguição.

Se o réu ou o Ministério Público intervir no processo sem arguir logo a sua falta de citação, considera-se sanada a nulidade (artigo 189º).

O réu ao intervir tem, ou pode ter, pleno conhecimento do processado, pelo que, optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir iuris et iuris que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se[2].

Como já se referiu, vindo a Ré a juntar procuração aos autos a 14 de fevereiro de 2022, só a 11 de março de 2022 vem invocar a nulidade da sua citação.

Ocorrendo a intervenção do réu com a prática de qualquer ato no processo, era comum considerar-se que a junção pelo réu de procuração a advogado seria suficiente para onerar a parte com a com a arguição imediata da falta de citação, uma vez que de tal junção se extrai o conhecimento do processo.

Contudo, resultando da Portaria nº 280/2013, de 26-08, que a junção de procuração é condição de acesso ao processo eletrónico e que só tal acesso permitirá integral conhecimento do estado dos autos e da sua eventual falta de citação, reconhece-se não se mostrar adequada a exigência da invocação em simultâneo da nulidade da citação, como foi defendido pelo Acórdão do STJ de 24-11-2020[3].

De qualquer modo, não tendo tal nulidade sido invocada no prazo geral de 10 dias previsto no artigo 149º, nº1, do CPC, a contar da junção da procuração aos autos, sempre tal nulidade se teria por sanada.

De qualquer modo, e ainda que assim não fosse, não seria de dar razão à Apelante.

A Apelante fundamenta a nulidade da sua citação na seguinte alegação, que aqui se reproduz na íntegra:

A citação da ré/recorrente ocorreu na pessoa de AA, portadora do Cartão de Cidadão emitido pela República Portuguesa com o número ...52, no dia 10/11/2021.

Refira-se em primeiro lugar que a ré/recorrente desconhece em absoluto quem seja a Senhora AA, subscritora do aviso de receção associado à citação.

Mais, A referida AA não é, nem nunca foi a legal representante da ré/recorrente, nem é funcionária da mesma, nem tem com a ré/recorrente qualquer relação ou vínculo de qualquer natureza nem outro, que a constitua no dever de lhe comunicar a ocorrência de atos praticados por terceiro que a tenham por destinatário ou lhe digam respeito, como o caso dos presentes autos.

Por outro lado, tem o legal representante da ré/recorrente conhecimento efectivo que quem está incumbido de receber toda a correspondência dirigida à ré/recorrente é uma outra Senhora de nome BB, portadora do Cartão de Cidadão emitido pela República Portuguesa com o nº ...27 5ZX4, com domicilio conhecido na ... ....

Mostra-se assim justificadamente ilidida a presunção de que a ré/recorrente não teve conhecimento da sua citação em momento algum, só tendo tido conhecimento que havia sido citada – na pessoa de AA – aquando da consulta dos autos após junção de procuração, a favor da subscritora do presente expediente processual.

 Face a tais fundamentos, ainda que se considerasse que a ausência da sua invocação no prazo geral de 10 dias, não tivesse por efeito a sanação de tal nulidade e que se considerasse legítima a sua invocação unicamente em sede do recurso interposto da sentença, a situação relatada pela Apelante não integra qualquer nulidade da citação.

Na citação das pessoas coletivas a carta a que se refere o nº1 do artigo 228º do CPC – carta registada com avido de receção – é enviada para a sede da citanda inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas (artigo 246º, nº1), aplicando-se-lhe o disposto quanto à citação das pessoas singulares, em tudo quanto não se encontre especialmente regulado no art. 246º.

As pessoas coletivas e as sociedades consideram-se ainda pessoalmente citadas ou notificadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração (nº3 do artigo 223º).

A carta pode assim ser entregue, após assinatura do aviso de receção, ao citando (na sua pessoa, na de um seu legal represente ou de qualquer empregado) ou a qualquer pessoa que aí se encontre e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando (nº1 do artigo 228º).

Antes da assinatura do aviso de receção, o distribuidor do serviço postal procede à identificação do citando ou do terceiro a quem a carta seja entregue e, sendo a carta entregue a terceiro, cabe ao distribuidor do serviço postal adverti-lo expressamente do dever de pronta entregue ao citando (ns. 2 a 4, do artigo 228º).

A citação postal efetuada ao abrigo do artigo 238º, considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso tenha sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrario, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário (artigo 230º, nº1).

Da conjugação de tais normas, resulta ser perfeitamente válida a citação de pessoa coletiva por meio de entrega da respetiva carta a qualquer pessoa que se encontre na sede da citanda, independentemente de se tratar do seu legal representante ou trabalhador. A diferença reside em que, no caso de não se tratar do destinatário (seu legal representante ou trabalhador), por se tratar de uma citação quase pessoal, esta terá de ser advertida do dever de a entregar prontamente ao destinatário.

No caso em apreço, tendo a carta por destinatário a sociedade aqui ré, o respetivo aviso de receção encontra-se assinado por “AA”, encontrando-se aí apostos os seus dados de identificação, aí se assinalando que o aviso foi “assinado” “por pessoa a quem foi entregue a carta e que se comprometeu após a devida advertência a entregá-la prontamente ao destinatário”.

Tal carta para citação reúne os requisitos legais, sendo indiferente a alegação da Apelante de que quem estaria incumbido de receber as suas notificações seria uma outra senhora que identifica. Assim como, não se tem por correta a alegação de que a pessoa que assinou o aviso de receção não tivesse a obrigação legal de lhe entregar a carta por não ser seu legal representante ou trabalhador: se tal obrigação não resultasse da sua ligação à citanda, sempre as regras da citação assim o impõem, mostrando-se, no caso, que a tal advertência lhe foi efetivamente feita.

É certo que, apesar de as formalidades previstas nas citadas normas terem sido cumpridas, à citanda não lhe ficava vedada a alegação e prova de que o terceiro que assinou o aviso de receção, por algum motivo específico, não lhe chegou a dar conhecimento atempado do ato de citação.

Mas, antes de mais, era necessário que a Ré tivesse alegado, em algum momento, que a carta para citação entregue à pessoa que assinou o aviso de receção não lhe foi por esta (atempadamente) entregue.

E a Ré Apelante nunca o alega, nem no corpo nem nas conclusões do recurso, ficando-se pela alegação de que desconhece a subscritora do aviso e que a mesma não era sua legal representante nem funcionária, nem com ela tinha qualquer vínculo que a constitua no dever legal lhe comunicar a ocorrência de tal ato. Ora, como já vimos, ainda que fosse um “terceiro” relativamente à Ré, a subscritora do aviso encontra-se sujeita ao dever de pronta entrega da mesma ao citando.

E, não podemos deixar de expor o nosso espanto relativamente à invocação por parte da Ré da nulidade da citação com fundamento em a carta ter sido entregue a AA, pessoa que alegadamente “desconhece em absoluto”, quando:

- no momento seguinte, ao indicá-la como testemunha, faz constar que a mesma “tem domicilio conhecido na Rua ..., ... ...”, que corresponde à sede da Ré (morada esta por si indicada como sendo a sua, quer na procuração que junta aos autos, quer no contrato que aqui se discute, morada para onde foi enviada a sua citação);

- pretendendo demonstrar ter sido notificada da sentença, não no nº 3º dia útil seguinte ao do envio da carta, mas somente no dia 8 de fevereiro, a Apelante faz juntar expediente dos CTT comprovativo de que esta carta foi entregue às 9.25 a “AA”.

 Concluindo, não só, não seria de conhecer a invocação da nulidade da citação nesta sede, como, a ser objeto de apreciação, seria de julgar improcedente.


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A. Matéria de Facto

Teremos em consideração os seguintes os factos dados, por confessados (sendo que a decisão recorrida não os fixou, limitando-se a remeter para a petição inicial:

(…)

14. Acordaram, pois, em que o Sr. V..., Lda disponibilizaria o capital (200.000,00 €) para a aquisição do imóvel e a A. pagar-lhe-ia juros à taxa de 4% ao ano, podendo amortizar parcialmente o capital mutuado, situação que se manteria por alguns (poucos) anos, até que a A. reunisse o montante para o pagamento integral do que, então, fosse devido.

15º Algumas semanas depois, já no final do Verão de 2019, o Sr. V..., Lda, que entretanto constituíra a sociedade aqui R., propôs que a compra fosse em nome desta, celebrando-se, então, contrato promessa entre as sociedades.

16º Aceitando que a A. mantivesse a posse do imóvel, aí continuando a sua atividade.

17º Tendo a A. concordado com tal situação, a R., em Outubro de 2019, adquiriu à ... o imóvel, pelo referido preço de 200.000,00 €.

18º Volvido cerca de um mês e após conversações entre os responsáveis das sociedades A. e R., foi decidido que a R. se comprometia a vender à A., e esta a comprar-lhe, o imóvel em questão, pelo preço de 200.000,00 €, o qual seria pago em prestações mensais, de capital e juros, de 1.400,00 € por mês, com início em Janeiro de 2020,

19º Prestações que, três anos volvidos, passariam para 3.000,00 €/mês, durante mais 2 anos.

20º E, no termo desse período, o A pagaria à R. integralmente o capital que então fosse ainda devido, formalizando-se o contrato prometido.

21º Entretanto, o A. manteria a posse e fruição do imóvel, como o vinha fazendo desde a sua constituição.

22º Porém, deram-se então conta de que, havendo contrato promessa formal, face a tal posse, teria a A., no cumprimento das regras fiscais aplicáveis, de pagar, de imediato, o IMT e correlativo Imposto de Selo referentes ao negócio, o que importaria no desembolso de cerca de 14.600,00 €,

23º Quantia de que, na altura, não dispunha.

24º Por outro lado, tal posse não poderia ser formalizada por contrato de comodato, pois tal não permitiria justificar, em ambas as sociedades os movimentos contabilísticos resultantes dos aludidos pagamentos mensais da A. à R.

25º Decidiram, pois, ficcionar um contrato de arrendamento, que permitiria justificar tais pagamentos, possibilitando, simultaneamente, que a A. pudesse titular os contratos de fornecimento de água, energia elétrica e gás, necessários à oficina e à habitação nela integrada, bem como manter e renovar os licenciamentos e alvarás indispensáveis à sua laboração;

26º Acordando-se ainda que os impostos (IMI) e seguros relativos ao edifício fossem suportados pela A.

27º Após tal acordo a R. preparou (certamente com o recurso a profissional abalizado) o contrato de arrendamento (Doc. 3) que apresentou à A., e aos seus sócios (estes enquanto fiadores), que o assinaram sem previamente o analisarem e sem qualquer desconfiança, dada o relacionamento quase familiar entre eles.

28º A partir de Abril de 2020, e devido às enormes quebras nas receitas da A. resultantes do confinamento e da situação de pandemia que é consabida, teve aquela alguns atrasos nos pagamentos acordados.

29º Tendo hoje três prestações em atraso, bem como os pagamentos do IMI e do prémio de seguro.


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B. Subsunção dos factos ao direito

O tribunal recorrido veio a julgar a ação procedente – declarando nulo, por simulação, o contrato de arrendamento celebrado a 2 de janeiro de 2020, entre a autora e a Ré, considerando válido o negócio subjacente, contrato promessa de compra e venda, descrito nos arts. 13º a 21º da P.I. – com base na seguinte fundamentação:

“Dos factos provados resulta que o contrato de arrendamento celebrado entre a ré e a autora foi simulado.

Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 240º, do Código Civil, “Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.”.

O contrato que autora e ré pretendiam celebrar era um contrato promessa de compra e venda, mas, porque a autora não tinha possibilidade para pagar imediato de I.M.T. e imposto de Selo e autora e ré não podiam celebrar contrato de comodato, ficcionaram um contrato de arrendamento.

Contrato de arrendamento que é nulo, de acordo com o n.º 2, do artigo 240º, do Código Civil.

E sendo nulo o contrato simulado – de arrendamento - mantem-se válido e eficaz, acordo com o artigo 241º, do Código Civil, o contrato promessa de compra e venda que de facto foi convencionado entre autora e ré, e descrito nos artigos 13º a 21º da petição inicial, tendo por objecto o prédio descrito sob o nº ...92 na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...15 da União de Freguesias ... (... e ...) e ....

Insurge-se a Apelante contra o decidido, alegando que:

- por um lado, o negócio não se encontra ferido por simulação, porquanto não se encontra preenchido um dos requisitos da simulação, a intenção ou intuito ou de enganar terceiros;

- por outro lado, o negócio dissimulado nunca poderia ser válido, porquanto, para o contrato de arrendamento bastará ser celebrado por escrito, enquanto o contrato promessa com eficácia real e tradição da coisa, obriga, não só à forma escrita, como à liquidação e pagamento das obrigações fiscais inerentes à tradição da coisa, ao registo da eficácia real e à realização do Termo de Autenticação para conferir validade ao contrato em causa.

Nas suas contra-alegações, a Apelada nada diz quanto a tais fundamentos do recurso.

1. Se se mostra preenchido o requisito da simulação respeitante à intenção ou intuito de enganar terceiros

Segundo o nº1 do artigo 240º do Código Civil (CC), a simulação pressupõe a verificação dos seguintes elementos: i) uma divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada; ii) um acordo simulatório entre o declarante e o declaratário; iii) a intenção de enganar terceiros.

As regras dos artigos 240º a 243º só são aplicáveis quando se apure que houve intencionalidade na divergência entre a vontade declarada e a vontade real, que houve por parte dos autores do negócio intenção de criar uma aparência jurídica diferente da realidade negocial, com a intenção de enganar terceiros.

Destinando-se esta aparência de negócio a enganar terceiros, para este efeito terceiros são todos os sujeitos que não tiveram intervenção no acordo simulatório.

Constituindo o acordo simulatório matéria de facto a alegar a demonstrar pelo interessado na invocação da simulação, no caso em apreço, ficou demonstrado que a opção por formalizar um arrendamento, quanto, verdadeiramente, queriam celebrar um contrato promessa de compra e venda da fração em causa, ficou a dever-se a que, “a haver contrato promessa formal, teria a autora, no cumprimento das regras fiscais aplicáveis, de pagar de imediato o IMT e correlativo imposto de Selo referentes ao negócio, o que, importaria um desembolso de cerca de 14.600,00 €”.

Ora, é nesta intenção de contornar o pagamento de tributos ao Estado que, no caso em apreço, reside o intuito de enganar terceiros[4], improcedendo o alegado a tal respeito pela Apelante.

2. Se os requisitos de forma exigíveis para o negócio dissimulado impediriam a sua validade

Dispõe o artigo 241º do CC., quanto à simulação relativa:

1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem simulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.

2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.

Na simulação relativa para além do negócio aparente e simulado, que é nulo, existe um negócio real, o oculto e dissimulado, dissimulação que será objetiva quando incida sobre a natureza do negócio ou o respetivo valor.

A primeira regra a retirar do artigo 241º é a de que o negócio dissimulado não é afetado pela simulação e deve ser apreciado em si mesmo, como se não houvesse simulação.

“Assim, ele será válido, anulável ou nulo, eventualmente ineficaz, como qualquer negócio do seu tipo, consoante nele se verifiquem todos os requisitos de validade ou falte algum, que produza um daqueles valores negativos[5]”.

E, embora tal resultasse já do nº1, o legislador fez questão de estabelecer sob o nº2, que, “se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é valido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.

O nº2 do artigo 241º resultou de uma polémica que culminou com o Assento do STJ de 23-07-1952, que decidiu pela invalidade da doação de bens imóveis dissimulada sob uma compra e venda, pela ausência de forma quanto ao animus donandi, e pela crítica que sobre ele incidiu por Manuel de Andrade[6], que entendia que tal doutrina não se deveria aplicar nos casos em que as razões do formalismo do negócio dissimulado já estivessem satisfeitas com a observância das solenidades próprias do negócio simulado.

Fazendo o nº2 do artigo 240º depender a validade do negócio dissimulado de natureza formal, da observância da forma legalmente exigida para o negócio, continuar-se-á a levantar a questão respeitante ao facto de que, ainda que o negócio simulado tenha sido sujeito à forma legalmente exigida para o negócio dissimulado, como é que essa forma pode aproveitar o negócio efetivamente desejado, mas cujas declarações não foram reduzidas a escrito?

Para uma corrente mais restritiva, o negócio dissimulado formal será válido desde que no documento onde se consubstancia o simulado, ou em qualquer outro (que revista as formalidades previstas por lei), constem os elementos para os quais seja determinante a forma legal[7].

No campo oposto, e censurando a circunstância de tal solução implicar que a parte oculta do negócio revista a forma exigida, o que resultaria um contrassenso, surge Pedro Pais Vasconcelos[8] que propõe considerar-se plenamente válido o negócio real (dissimulado), desde que a forma que a lei exige para a sua validade tenha sido observada no negócio aparente (simulado) independentemente da parte do negócio que tenha sido oculta e do regime formal que, em si mesma, justificaria e da razão de ser da razão legal da forma.

De acordo com a solução vigente, para a validade do negócio dissimulado de natureza formal, cabe indagar acerca do possível aproveitamento da forma observada na celebração do negócio simulado. Releva, para este efeito, apelar ao sentido da exigência da forma, isto é esclarecer o que deve estar abrangido pela forma e o que não se justifica que fique a coberto desta[9].

Sendo claro o nº2 do artigo 241º em fazer recair sobre o negócio dissimulado as exigências de forma que o mesmo haveria de cumprir se fosse celebrado sem o encobrimento, na aplicação do direito haverá que ter em consideração a sua ratio, sendo fundamental determinar quais as razões da exigência da forma, caso a caso, para em concreto, podermos ajuizar acerca da observância ou não do requisito por referência ao negócio simulado[10].

Tendo as partes simulado, no caso em apreço, um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, quando pretendiam celebrar um contrato promessa de compra e venda do respetivo imóvel, este será, ou não, válido conforme a declaração negocial simulada reúna ou não os requisitos necessários para a validade do negócio de doação dissimulado.

Concluindo a decisão recorrida pela validade do contrato dissimulado, insurge-se a Apelante contra o decidido, invocando que o negócio dissimulado nunca poderia ser considerado válido, por o contrato que se pretendia celebrar não obedecer aos requisitos de forma legal – o contrato promessa estaria obrigado à forma escrita e à realização de Termo de Autenticação, a pagamento de IMT e a registo da eficácia real.

O contrato promessa de compra e venda sobre imóvel só vale se constar de documento escrito, assinado por ambas as partes que se vinculem e deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza tal reconhecimento, da respetiva licença de utilização ou de construção – artigo 410º, nº3 do CC.

Apesar de tal questão ser suscitada, em primeira mão, em sede de recurso, sendo a nulidade do negócio por falta de forma de conhecimento oficioso (arts. 220º e 286º), sempre este tribunal se encontraria habilitado a conhecer de tal nulidade.

Contudo, e uma vez que só a ausência de redução a documento escrito se encontra ao abrigo do conhecimento oficioso, fazendo o nº3 do artigo 410º depender a apreciação dos demais requisitos da invocação da parte que lhe não tenha dado causa, será esse o único vicio a apreciar em recurso.

No caso em apreço, o que está coberto pela forma escrita a que foram submetidas as declarações negociais respeitante ao negócio simulado, é um típico contrato de arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo – cedência temporária do uso prédio para o exercício da atividade comercial da aqui autora, “podendo nela explorar a atividade de mecânica e venda de peças usadas e serviço de pronto socorro”, por um ano, renovável de forma automática, no seu termo, nas mesmas condições, apenas uma vez só e pelo período de um ano, ou seja, até no máximo até 01.01.2022, mediante uma renda de 1.400,00 € (clausulas 1ª a 4º).

Como tal, todas as declarações emitidas pelas partes e dadas como provadas relativamente à vontade de celebrar um contrato promessa de compra e venda e respetivas condições – pelo preço de 200.000,00 €, o qual seria pago em prestações mensais de 1.400,00 €, durante três anos, prestações que passariam a 3.000,00 € mês durante mais dois anos, pagando o réu no termo desse período o capital que ainda fosse devido, formalizando-se o contrato prometido –, foram meramente verbais.

Se o negócio simulado era um contrato de arrendamento que permitia à autora, temporariamente, ocupar o espaço, para determinado fim, mediante o pagamento de determinadas contrapartidas, o negócio dissimulado e efetivamente querido entre as partes, de contrato promessa de compra e venda do imóvel, tem como elementos essenciais: i) a declaração de vontade por parte da ré, de se obrigar a transmitir a propriedade do imóvel para a autora e a declaração desta de, também ela, se comprometer a adquiri-lo; ii) mediante um preço (determinado ou determinável).

Encontrando-se o contrato promessa de compra e venda de imóvel sujeito à forma escrita, pelo menos, estes dois elementos essenciais, teriam, de algum modo, de se encontrar refletidos no documento escrito, para se considerar cumprida a forma escrita.

Em relação a qualquer um desses elementos essenciais do contrato promessa são de considerar verificadas as razões subjacentes à exigência legal de forma[11]: i) proporcionar às partes uma reflexão e uma ponderação acerca do alcance do negócio jurídico a celebrar; ii) permitir uma prova segura do negócio celebrado; iii) assegurar um controlo da legalidade da transação negocial.

Ora, no caso em apreço, podemos mesmo afirmar que, não só, tais elementos se encontram completamente ausentes do teor das declarações aí reduzidas a escrito, como se mostram até, de certo modo contraditórias – aí se estabelece uma cedência do imóvel por um ano prorrogável unicamente por mais um ano, quando, verbalmente, terão acordado que o preço do imóvel seria pago em prestações mensais de 1.400 €, durante os três primeiros anos, prestações que passariam para 3.000,00 € durante mais dois anos, e que, no termo, a autora pagaria à Ré integralmente o capital que então fosse devido, formalizando-se o contrato prometido (o que pressuporia uma manutenção desta situação  de mera cedência do espaço durante, pelo menos cinco anos – até à alegada data da escritura – e não os dois anos, improrrogáveis, que se fizeram constar do negócio simulado).

Segundo Menezes Cordeiro, o nº2 do artigo 240º deve ser interpretado levando em conta, por um lado, que, nem todo o negócio dissimulado pode constar do texto simulado, mas, por outro lado, por analogia com o artigo 238º, “terá de haver um mínimo de correspondência no texto, salvo se as razões determinantes de forma assim o opuserem[12]”.

A resposta a dar à questão da validade do negócio dissimulado terá de encontrar-se no regime da interpretação da declaração negocial, delineando-se duas soluções: uma que aponta o caminho interpretativo definido pelo artigo 217º, nº2 do CC, quanto às declarações tácitas[13] – segundo o qual “o carater formal da declaração não impede que ela seja emitida tacitamente, desde que tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz –; e uma outra[14], aplicando analogicamente o artigo 238ºdo CC,  – segundo o qual “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência”.

A jurisprudência e a doutrina maioritárias[15] vão, assim, no sentido de, declarado simulado o negocio de compra e venda de um imóvel, considerar válido o negócio dissimulado de doação que lhe subjaz, por considerar que a exigência especial da forma especial para a doação de bens imóveis não é motivada por qualquer animus mas pela natureza do objeto transmitido (bem imóvel), sendo de aproveitar a declaração.

Contudo, o mesmo não podemos afirmar quando ao negócio dissimulado em apreço: das declarações formalmente prestadas pelas partes, não se pode inferir, nem sequer tacitamente, que esta cedência temporária de uso, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal, pudesse ter na sua origem um modo de permitir o uso do imóvel por parte da ré durante os tais cinco anos necessários a que a Ré reunisse as condições necessárias a proceder ao pagamento da totalidade do preço acordado e respetivos impostos.

As declarações da Ré pelas quais promete vender à autora e as da ré, a comprometer-se a adquirir o imóvel, por determinado preço, não se encontram qualquer reflexo no documento escrito e assinado entre as partes, não se podendo deduzir das declarações aí apostas, nem sequer, tacitamente.

Ou seja, o que temos é um contrato de arrendamento para fins não habitacionais reduzido a escrito, nulo por simulado, e a par do mesmo, um negócio dissimulado de promessa de compra e venda de tal imóvel, inteiramente verbal e, como tal, também ele nulo.

Concluindo, declarado nulo o negócio simulado de arrendamento, também o negócio dissimulado – contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa –, não pode ser tido por válido por desrespeito total pela forma legal.

A apelação é de proceder parcialmente.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em, julgando parcialmente procedente a Apelação, revogar parcialmente a decisão recorrida, pelo que, mantendo-se a declaração de nulidade, por simulação, do contrato de arrendamento celebrado a 2 de janeiro de 2020, entre a autora e a Ré, julga-se improcedente o pedido de validade do negócio subjacente de contrato promessa de compra e venda.

Custas a suportar por Apelante e Apelada, na ação e no recurso, na proporção de ¼ para a Apelante e de ¾ para a Apelada.

                                                                   Coimbra, 28 de junho de 2022                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…)




[1] Cfr., entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 13-10-2020, relatado por António Magalhães, do TRE de 10-05-2016, relatado por Bernardes Domingos, e de 14-‘7-2021, relatado por Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite, e, quanto à distinção entre nulidades processuais e nulidades da sentença, cfr., Miguel Teixeira de Sousa, https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html, e Rui Pinto in Manual do Recurso Civil – Vol. I, AADFL Editora, pp. 90-91.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 3ª ed., p. 369.
[3] Acórdão relatado por Raimundo Queirós, disponível in www.dgsi.pt.
[4] No sentido de que a hipótese de se pretender enganar terceiros também se verifica nos casos em que o objetivo da simulação reside na redução ou eliminação dos impostos que seriam devidos em virtude do negócio dissimulado – Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, p. 355.
[5] Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, II – Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica”, 5ª ed., Universidade Católica Portuguesa, 320.
[6] “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Almedina, pp.192-193.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral (…)”, p.324.
[8] “Teoria Geral do Direito Civil”, 2010 Almedina, 2ª ed., pp.690-691.
[9] Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, p. 559.
[10] Mafalda Miranda Barbosa, “Lições de Teoria Geral do Direito Civil”, GESLEGAL, pp. 679-680.
[11] Ana Filipa Morais Antunes, “Comentário ao Código Civil”, Parte Geral, p. 559.
[12] “Tratado de Direito Civil”, Vol. I, T1, p.846.
[13] Caminho seguido por Pedro Pais Vasconcelos, obra e local citados.
[14] Acórdão do STJ de 17-12-2019, relatado por Graça Amaral, www.dgsi.pt.
[15] Menezes Cordeiro, obra citada, p. 907, Mafalda Miranda Barbosa, obra citada, p. 680, e Acórdão do STJ de 17-06-2003, relatado por Ribeiro de Almeida, disponível in www.dgsi.pt.