Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
397/11.7T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
FUNÇÃO ADMINISTRATIVA
SOLICITADOR DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 04/16/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA, ANADIA, JGIC JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 212 CRP, LEI Nº 13/2002 DE 19/2, DL Nº 38/2003 DE 8/3, LEI Nº 67/2007 DE 31/12
Sumário: 1.- Por não haver qualquer vínculo relevante entre o Estado e o solicitador de execução que projecte sobre o primeiro as consequências danosas dos actos deste último, o Estado não pode ser responsabilizado por actos danosos cometidos pelo solicitador de execução no exercício das suas funções (conclusão que se harmoniza com o disposto no n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro).

2.- Para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado(Lei nº 67/2007 de 31/12), os actos praticados pelo solicitador de execução não são qualificáveis como efectuados no âmbito da função administrativa do Estado, ficando, por isso, a sua apreciação excluída da jurisdição administrativa prevista no nº1 do art.1º do ETAF ( aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19/2 ).

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) O presente recurso vem interposto do despacho saneador-sentença que (1) julgou o tribunal da causa incompetente em razão da matéria, no que respeita ao pedido dirigido contra o Estado, por se entender que a competência reside na jurisdição administrativa, e (2) absolveu da instância o outro réu, o Banco (…), S.A., por se ter considerado que ocorria em relação a ele falta de interesse em agir.

Em breves palavras, segundo o alegado pelos autores, a acção fica a dever-se ao facto dos autores (…) serem credores pelo montante de €56 860,00 euros da empresa C (…), Lda., já declarada insolvente, em 6 de Novembro de 2011, e de terem obtido o arresto de um imóvel da devedora, arresto esse registado como provisório no registo predial, em 6 de Julho de 2006, e mais tarde convertido em registo definitivo pela apresentação «Ap. 14/241006».

Por sua vez, o autor JM (…) instaurou execução contra a mencionada devedora no tribunal judicial da comarca de Santo Tirso, à qual coube o n.º 43/06.0TBSTS, e penhorou aí o mesmo prédio, tendo esta penhora sido registada provisoriamente no registo predial em 28 de Fevereiro de 2007 e em termos definitivos em 13 de Agosto de 2007 (cfr. F-7 Ap. 24/130807).

Os autores vieram a saber que o prédio em causa, arrestado e penhorado, tinha sido vendido na execução n.º 1201/03.5TBAND-A, que (…) instaurado, em 6 de Março de 2006 (cfr. fls. 166), contra a mesma devedora e na qual interveio o ora Réu Banco (…), S. A., como credor reclamante, tendo o exequente (…) feito registar a sua penhora em 29 de Junho de 2006.

Acrescentam, ainda, que o registo da penhora e o auto de penhora obtidos nesta execução n.º 1201/03.5TBAND-A são falsos, dado que a penhora aparece registada em 29 de Junho de 2006 e a data do respectivo auto é de 19 de Janeiro de 2007.

Sucede que os ora autores não foram citados no âmbito da execução n.º 1201/03.5TBAND-A para reclamarem aí o seu crédito e, na sequência da venda aqui realizada, a penhora e o arresto foram cancelados.

Não foram citados, dizem, porque a certidão junta aos autos pelo solicitador de execução, em 23 de Abril de 2007 (fls. 181), não continha o registo dos outros factos registados após essa penhora do exequente, isto é, nem o arresto dos autores ME (...)e esposa de 6 de Julho de 2006, nem a penhora do autor JM (...) de 28 de Fevereiro de 2007, situação que os autores atribuem a dolo do solicitador com vista a obter a não citação dos demais credores constantes do registo ([1]).

Mais tarde, foi declarada extinta a instância na execução n.º 43/06.0TBSTS, por despacho e 23 de Janeiro de 2009, devido ao facto da executada ter sido declarada insolvente.

Sendo em geral esta a fundamentação da acção, os autores formularam o seguinte pedido:

«…deve a presente acção ser julgada provada e procedente e os Réus condenados:

a) - A ser declarada a NULIDADE de todos os actos do processo executivo, desde a apresentação da petição inicial respectiva, até ao auto de abertura de propostas em carta fechada, bem como o acto de transmissão e título respectivo,

b) - mais se declarando o cancelamento de todos os actos de registo predial decorrentes de tais actos,

c) - e, por isso, ordenando-se a repetição/renovação de todo o processo executivo ora mencionado;

d) - como tais actos se traduziram em prejuízos para os Autores, deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Réus a indemnização que se liquidar em execução de sentença,

e)- sempre em quantia não inferior a 5.000 euros a cada um dos Autores.

f)- SE SE ENTENDER não declarar a solicitada nulidade do mesmo processo executivo, então deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Autores as indemnizações que se liquidarem em execução de sentença,

g)- sendo que tais indemnizações deverá ascender, no mínimo a 65.000 euros para os dois primeiros Autores e 30.000 euros para o terceiro autor,

h)- e, ainda, em custas, selos procuradoria e o mais da lei».

Temos, pois, (1) um primeiro pedido de declaração de nulidade dos actos executivos praticados no processo execução n.º 1201/03.5TBAND-A, acrescido de pedido de indemnização por danos originados pela nulidade de tais actos e (2) um segundo pedido, subsidiário, para o caso do tribunal entender não declarar a nulidade e que consiste em indemnização a cargo do Estado quanto aos prejuízos sofridos pelos autores com a omissão da citação dos autores para o concurso de credores no indicado processo n.º 1201/03.5TBAND-A.  

b) No despacho saneador, como começou por se dizer, foi decidido que o tribunal era incompetente em razão da matéria no que respeitava ao pedido dirigido contra o Estado, por se entender que a competência residia na jurisdição administrativa.

Por tal razão, o Estado foi absolvido da instância.

Quanto ao réu sobrante, o Banco (…), S.A., o mesmo foi absolvido da instância, por se ter considerado que ocorria falta de interesse em agir.

Sustentou-se, no despacho sob recurso, que relativamente aos pedidos «…formulados em a) a c) do petitório, a saber: declarar a nulidade de todos os actos do processo executivo, desde o requerimento executivo até ao auto de abertura de propostas em carta fechada; o cancelamento de todos os registos prediais decorrentes de tais actos e repetição/renovação de todo o processo executivo, ora, mencionado, constata-se que os Autores formulam os ditos pedidos, no essencial, unicamente contra o credor reclamante no dito processo de execução (aqui Réu Banco (…), S. A.)» e que «…o efeito útil normal pretendido pelos Autores não será susceptível de ser alcançado com o recurso à presente acção de processo declarativo, pois o mecanismo processual adequado a lograr esse desiderato era (é), o recurso extraordinário de revisão previsto no art. 771º, do C.P.C., caso se verifiquem concretamente preenchidos os pressupostos aí enunciados.

Vale isto por dizer, em nosso entender, que os Autores carecem do pressuposto processual de interesse de agir (ou seja, verifica-se a excepção dilatória inominada de falta de interesse processual), pois a presente acção de processo declarativo é processualmente inadequada a alcançar-se o efeito útil pretendido pelos Autores (ou seja, só será viável processualmente aos Autores colocarem, em crise, a sentença de reconhecimento e graduação de créditos já transitada em julgado, e bem assim, os actos processuais subsequentes à dita decisão - com fundamento na falta de citação dos Autores para reclamarem os seus créditos, em sede do dito processo executivo - através do mecanismo processual apontado atrás de recurso de revisão)».

c) Os autores recorrem desta decisão por entenderem, em síntese, que não foram propositadamente citados no âmbito da acção 1201/03STBAND, devido ao facto do solicitador da execução (entretanto falecido em 22-11-2007) ter então omitido informação sobre a existência dos recorrentes como credores, e que os autos de penhora e respectivo registo efectuados nesta execução padecem de falsidade.

Tal falta de citação, como credores, para efeitos de reclamação de créditos, implicou que o prédio penhorado a favor do autor JM(...)e também arrestado a favor dos autores (…) tivesse sido adjudicado nessa execução a favor do banco BCP, sem que os ora recorrentes pudessem ter influenciado a sua avaliação, tendo sido avaliado por um valor inferior ao real.

Resultando do exposto a nulidade do processo executivo em causa e a responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos recorrentes, cabendo a jurisdição, quanto a esta matéria, aos tribunais comuns e não aos tribunais administrativos, por não se tratar de matéria de natureza administrativa, assistindo-lhe interesse em agir na medida em que têm direito a ser indemnizados.

Formularam estas conclusões:

«A – O douto julgador a quo praticou diversas NULIDADES,

B – desde a falta de FUNDAMENTAÇÃO, na questão de facto e de direito, com omissão total da matéria de facto invocada pelos Autores.

C – A situação de facto e de direito dos Autores, devido à lesão dos seus direitos e interesses por parte dos agentes/órgãos do Estado (agentes de execução, magistrados) implica que, naturalmente, eles possam utilizar o presente meio processual,

D – não sendo necessário intentar uma prévia acção judicial (recurso extraordinário de “revisão”), com consequente declaração de todos os anteriores actos, E – nomeadamente repetindo a fase falimentar da SOCIEDADE devedora. DE FACTO,

F – o ESTADO, que é o único responsável, em primeira mão, por tal situação, iria BENEFICIAR de tais “malfeitorias” processuais,

G – na medida em que responsável pela prática de ACTOS e OMISSÕES de extrema gravidade (falsificações, burlas, etc.), passíveis de sanções criminais, 

H – quando é certo que, se o ESTADO (em tal sede), se estivesse de boa-fé, teria tomado a iniciativa de reparar tais “malfeitorias”.

I – De resto, o pressuposto do interesse em agir existe, neste caso, suficientemente fundamentado e explicitado,

J – parecendo evidente que o Douto Julgador a quo NÃO ENTENDEU o que seja tal pressuposto,

K – Deveria, pois, o Estado ter actuado OFICIOSAMENTE no sentido de REPARAR os Autores por causa de tais ilícitos, repondo a legalidade.

L – Na situação actual (nº 153 destas alegações), se se fosse a seguir a “sugestão” do Douto Julgador a quo, seria endossar os Autores para uma “solução” daqui a 12/15 anos!

M – Um pressuposto processual não é, nem legitimidade, nem uma questão de mera forma do processo.

N – Se os restantes credores se demonstraram desinteressados do recebimento dos seus créditos (obtiveram uma qualquer forma de compensação ou de pagamento?), ao cabo de mais de seis (6) anos,

O – nada tendo feito,

P – foram os Autores quem demonstrou terem interesse em agir.

Q – No caso dos autos (entre os Autores e o Estado) NÃO HÁ uma qualquer relação jurídica administrativa,

R – pelo que a acção judicial não teria que ser intentada perante a jurisdição administrativa,

S – pois os actos praticados pelos AGENTES DE EXECUÇÃO (por acção e omissão) estão relacionados e são necessários à actividade judicial (de julgar), 

T – sendo certo que se relacionam com uma actividade eminentemente judicial, da EXECUÇÃO DE UMA SENTENÇA, que não é um acto de GESTÃO PÚBLICA (que respeita à “Administração Pública”).

U – O poder judicial é soberanamente independente.

V – A douta Sentença em apreço traduzir-se-ia numa forma de “PRÉMIO” ilícito do BANCO, que foi “conveniente” e “beneficiário” com o comportamento dos “agentes de execução”, não podendo desconhecer que havia outros credores na posição dos Autores.

X – De resto, por omissão, os Doutos Julgadores que intervieram nos processos anteriores, NÃO CUMPRIRAM as suas obrigações de fiscalização do comportamento dos mesmos agentes de execução.

Y – Os Autores, ao cabo de mais de seis (6) anos estão sem ser pagos dos seus PREJUÍZOS bastante avultados (montante a determinar), sendo que vivem do seu trabalho.

Z – Foram violadas as disposições constantes dos arts. 3.º, 201.º e segs. 265.º, 837.º, 875.º, 886.º, 894.º, 920.º, 907.º, 809.º, 824.º, 893.º, 905.º, 908.º, 158.º, 653.º, 668, 20.º da Constituição, princípio da tutela jurisdicional efectiva, princípio equitativo, princípio da justiça em tempo útil, princípio da igualdade de armas e mais disposições legais aplicáveis.

TERMOS EM QUE o presente recurso deve ser julgado provado e procedente e, em consequência, revogada a douta Sentença em apreço, com as legais consequências constantes das conclusões, como é de JUSTIÇA»

b) O Ministério Público, em representação do Estado, contra-alegou sustentando que ocorre efectivamente uma situação de incompetência absoluta do tribunal para conhecer do pedido de indemnização formulado pelos Autores, sendo competentes os tribunais administrativos nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF.

c) O recorrido Banco Comercial Português contra-alegou pugnado pela manutenção da sentença, sustentando a incompetência absoluta do tribunal comum para conhecer do pedido de indemnização uma vez que a mesma é exigida ao Estado.

Alega que qualquer irregularidade que tivesse existido teria de ser arguida no próprio processo executivo e não em acção declarativa autónoma, sendo o caminho a seguir o do recurso extraordinário de revisão previsto no artigo 771.º do Código de Processo Civil e daí a falta de interesse em agir assinalada na decisão sob recurso.

II. Objecto do recurso.

A primeira questão que se coloca respeita à falta de fundamentação da sentença sob recurso.

Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se a competência para conhecer da acção pertence aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos.

Por fim, se não tiver ficado já prejudicada cumpre verificar a questão da falta de interesse em agir relativamente ao Banco Comercial Português.

III. Fundamentação.

A) Nulidade da decisão por falta de fundamentação.

Não se verifica esta nulidade.

Nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 668.º do Código de Processo Civil, a sentença é nula «Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».

Ora, como referiram Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio Nora, «Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» ([2]).

Ora, no caso, a decisão contém o mínimo de factos, que são de natureza processual e não padece de falta de fundamentação de direito.

Improcede, pois a nulidade.

B) Matéria de facto (processual) a considerar.

1 - Os autores MP (…) e ME (…) eram credores pelo montante de €56 860,00 euros da empresa C (…), Lda., e obtiveram arresto sobre um imóvel desta empresa, arresto esse registado como provisório no registo predial, em 6 de Julho de 2006, e mais tarde convertido em registo definitivo pela apresentação «Ap. 14/241006».

2 - O autor JM (…) instaurou execução contra a mencionada devedora no tribunal judicial da comarca de Santo Tirso, à qual coube o n.º 43/06.0TBSTS, e penhorou aí o mesmo prédio, tendo esta penhora sido registada provisoriamente no registo predial em 28 de Fevereiro de 2007 e em termos definitivos em 13 de Agosto de 2007 (F-7 Ap. 24/130807).

3 - O prédio em causa, arrestado e penhorado, foi vendido na execução n.º 1201/03.5TBAND-A que (…) havia instaurado, em 6 de Março de 2006 contra a mesma empresa devedora e na qual interveio o ora Réu Banco (…) S. A., como credor reclamante, tendo o exequente (…) feito registar a sua penhora em 29 de Junho de 2006.

4 - Os autores (…) não foram citados no âmbito da execução n.º 1201/03.5TBAND-A para reclamarem aí o seu crédito e na sequência da venda a penhora que tinham obtido foi cancelada, tal como o arresto.

5 - Os autores formulam estes pedidos na presente acção contra os réus Estado e Banco (…), S. A:

«NESTES TERMOS e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e os Réus condenados:

a)- A ser declarada a NULIDADE de todos os actos do processo executivo, desde a apresentação da petição inicial respectiva, até ao auto de abertura de propostas em carta fechada, bem como o acto de transmissão e título respectivo,

b)- mais se declarando o cancelamento de todos os actos de registo predial decorrentes de tais actos,

c)- e, por isso, ordenando-se a repetição/renovação de todo o processo executivo ora mencionado;

d)- como tais actos se traduziram em prejuízos para os Autores, deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Réus a indemnização o que se liquidar em  execução de sentença,

e)- sempre em quantia não inferior a 5.000 euros a cada um dos Autores.

f)- SE SE ENTENDER não declarar a solicitada nulidade do mesmo processo executivo, então deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Autores as indemnizações que se liquidarem em execução de sentença,

g)- sendo que tais indemnizações deverá ascender, no mínimo a 65.000 euros para os dois primeiros Autores e 30.000 euros para o terceiro autor,

h)- e, ainda, em custas, selos procuradoria e o mais da lei».

C) Apreciação das restantes questões objecto do recurso.

1 – Competência material dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos.

Esta questão coloca-se quanto ao pedido de indemnização baseado quer em actos do juiz, quer em actos do solicitador de execução.

a) Começando pela competência dos tribunais administrativos.

Nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Nas palavras de Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» ([3]).

O n.º 1, do artigo 1.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro), repete a mesma ideia, isto é, «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

E no artigo 4.º deste Estatuto concretizam-se alguns casos de competência material, desta forma:

«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; ´

c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;

b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;

d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Acerca da noção de relação jurídica de direito administrativo, o Prof. Freitas do Amaral definiu-a como sendo «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» ([4]).

Por sua vez, o Tribunal de Conflitos no seu acórdão de 8 de Dezembro de 2010, referiu-se a esta problemática nos seguintes termos:

«…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor – se o Judicial se o Administrativo – importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito» ([5]).

Sobre o conceito de relação jurídica administrativa o mesmo tribunal, no seu acórdão de 25-11-2010, considerou que, «Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido» ([6]).

Sintetizando o que fica exposto, para podermos reconhecer e afirmar que estamos face a uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: por um lado, um dos sujeitos há-se ser uma entidade pública ou se for privada deve actuar legalmente, no caso, como se fosse pública e, por outro, os direitos e deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo.

Vejamos.

b) Para verificar a competência do tribunal cumpre antes de mais observar o pedido e a causa de pedir: o que se pede, então, na presente acção?

Podemos distinguir analiticamente três pedidos:

Um primeiro pedido, que também é antecedente lógico do segundo, agregando as alíneas a), b) e c), ou seja:

«a)- A ser declarada a NULIDADE de todos os actos do processo executivo, desde a apresentação da petição inicial respectiva, até ao auto de abertura de propostas em carta fechada, bem como o acto de transmissão e título respectivo,

b)- mais se declarando o cancelamento de todos os actos de registo predial decorrentes de tais actos,

c)- e, por isso, ordenando-se a repetição/renovação de todo o processo executivo ora mencionado».

Para conhecer deste pedido, mesmo sem referir a causa de pedir, a competência reside nos tribunais judiciais, pois na al. b), do n.º 2, do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, acima já transcrito, a lei dispõe que: «2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de: … b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal».

E na al. a) do n.º 3 deste mesmo artigo 4.º diz-se que «Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso».

Por conseguinte, mesmo que o presente caso não se inclua no conceito de «decisões jurisdicionais», para o caso de se entender que o conceito de «decisões jurisdicionais» equivale a «sentenças», não abrangendo os «despachos», sempre o caso cairia na segunda hipótese relativa ao «erro judiciário» que é possível ser cometido através de sentenças ou despachos.

Não cumprindo, neste momento, averiguar se é possível ou não satisfazer este pedido dos autores numa acção declarativa ad hoc como a presente, mas apenas determinar a competência material do tribunal, questão prévia portanto, conclui-se, por conseguinte, que quanto a este pedido, pelas razões acabadas de indicar, os tribunais administrativos não são competentes.

Verifica-se, porém, que este pedido é seguido de um outro, que é este:

«d)- como tais actos se traduziram em prejuízos para os Autores, deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Réus a indemnização que se liquidar em  execução de sentença.

e)- sempre em quantia não inferior a 5.000 euros a cada um dos Autores».

Este pedido de indemnização implica a procedência do pedido anterior, mas aquele primeiro pedido vale por si, isto é, o primeiro pedido podia ter sido formulado sem ter sido deduzido este segundo.

Por conseguinte, se se considerar que os tribunais administrativos não são competentes para apreciar o primeiro pedido, que é um antecedente lógico deste segundo, caso se conclua que a competência deste segundo pedido pertence aos tribunais administrativos, então a presente acção deverá seguir quanto ao primeiro pedido nos tribunais judiciais, mas já não relativamente a este segundo pedido, pelo que quanto a este o réu Estado deverá, nesta hipótese, ser absolvido da instância com fundamento em incompetência do tribunal.

Mais à frente, na al. c), será retomada e analisada esta questão.

Por fim, temos um terceiro pedido, de natureza subsidiária, que é este:

«f)- SE SE ENTENDER não declarar a solicitada nulidade do mesmo processo executivo, então deverá o ESTADO ser condenado a pagar aos Autores as indemnizações que se liquidarem em execução de sentença,

g)- sendo que tais indemnizações deverão ascender, no mínimo a 65.000 euros para os dois primeiros Autores e 30.000 euros para o terceiro autor».

Quanto a este pedido, caso se conclua que a competência pertence aos tribunais administrativos, então, como se disse já, a presente acção deverá seguir no tribunal judicial apenas quanto ao primeiro pedido e relativamente a este terceiro o réu Estado deverá ser absolvido da instância por incompetência do tribunal judicial.

c) Vejamos então qual a jurisdição competente para conhecer da indemnização subjacente ao segundo e ao terceiro pedidos.

Quanto ao segundo pedido, relativo à indemnização pedida a título principal, tendo em conta as diversas alíneas do n.º 1, do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, apenas se afigura convocável para o caso a al. h), isto é:

«h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos».

Na anterior al. g) prevê-se a competência dos tribunais administrativos relativamente a «Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa», mas, no presente caso, não está em jogo qualquer responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público.

Quanto à alínea h), se a causa de pedir da presente acção se basear nos actos alegadamente ilícitos imputados pelos autores ao juiz do processo (cfr. por exemplo, conclusão da al. X) com este teor «X – De resto, por omissão, os Doutos Julgadores que intervieram nos processos anteriores, NÃO CUMPRIRAM as suas obrigações de fiscalização do comportamento dos mesmos agentes de execução»), a competência é dos tribunais judiciais, pois na al. a) do n.º 3 do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais diz-se que «3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso».

A este respeito, o artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, dispõe que as decisões jurisdicionais incluídas no conceito de erro judiciário são as «…manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto».

No caso dos autos, a responsabilização com base na actuação do juiz só é viável por «erro judiciário», pelo que, estejam ou não preenchidos os respectivos pressupostos, a apreciação está excluída da jurisdição administrativa.


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Vejamos agora o caso do ponto de vista da responsabilidade do Estado por actos praticados pelo solicitador de execução no processo de execução.

A figura do solicitador de execução surge com o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, que implementou a reforma da acção executiva.

Como se pode ler no seu preâmbulo, «Identificadas as causas e os factores de bloqueio do processo executivo português o XIV Governo Constitucional preparou, submeteu a debate público e aperfeiçoou, sem ter chegado a aprová-lo, um projecto de reforma executiva que, sem romper a sua ligação aos tribunais, atribuiu a agentes de execução a iniciativa e a prática dos actos necessários à realização da função executiva, a fim de libertar o juiz das tarefas processuais que não envolvam uma função jurisdicional e os funcionários judiciais de tarefas a praticar fora do tribunal».

No n.º 1 do artigo 808.º do Código de Processo Civil delimita-se genericamente o campo de actuação do solicitador de execução dispondo que «Cabe ao agente de execução, salvo quando a lei determine o contrário, efectuar todas as diligências de execução, incluindo, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, as citações, notificações e publicações», competindo-lhe também, nos termos do n.º 2 deste artigo «…liquidar os créditos dos credores e efectuar imediatamente todos os pagamentos nos termos do Regulamento das Custas Processuais».

Nos termos do artigo 116.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (aprovado pelo 88/2003 de 26 de Abril) «O solicitador de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na dependência funcional do juiz da causa, exerce as competências específicas de agente de execução e as demais funções que lhe forem atribuídas por lei».

Nos termos da lei processual civil, o solicitador intervém no processo executivo sob designação do exequente, sendo escolhido de entre os agentes de execução inscritos ou registados em qualquer comarca constantes de uma lista fornecida para o efeito pela Câmara dos Solicitadores – n.º 3 do artigo 808.º do Código de Processo Civil.

Apesar dos solicitadores de execução não poderem ser equiparados a funcionários judiciais, por não terem qualquer vínculo, salvo funcional, em relação ao tribunal, sendo certo que o não têm também em relação a qualquer outra entidade da administração pública, é um facto que os solicitadores praticam actos que fazem parte de um processo judicial e este reveste natureza pública.

Poderá o Estado, por esta razão, ser responsabilizado pelos actos danosos resultantes da acção do solicitador de execução?

Afigura-se que não, pelas seguintes razões:

É pressuposto da responsabilidade por actos de outrem que o responsabilizado tenha algum vínculo jurídico, contratual ou legal, com o causador dos danos.

A existência desse vínculo pode ser verificada, por exemplo, nos casos em que ele resulta da lei, como nos artigos 491.º (responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem), 500.º (responsabilidade do comitente), 501.º (responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas) e 800.º (actos dos representantes legais e auxiliares), todos do Código Civil.
No n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas) patenteia-se também este vínculo, quando se diz que «O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
Ou seja, para que alguém possa ser responsável pelos actos de um terceiro é necessário que haja uma relação (real, obrigacional, pessoal, laboral, profissional etc.) que funcione como corrente de transmissão dessa responsabilidade, por forma a emergir da actuação de uma pessoa e poder reflectir-se na esfera jurídica de pessoa diversa.
Ora, no caso do solicitador de execução, verifica-se que muito embora ele leve a cabo acções no âmbito de uma actividade que tem natureza pública, o certo é que o mesmo não tem qualquer relação de dependência profissional em relação ao Estado.
Na verdade, não é funcionário do Estado, não recebe ordens ou instruções do Estado, não é remunerado pelo Estado, nem está sujeito ao poder disciplinar do Estado ([7]).
Por outro lado, verifica-se que o Estado nem pode ser responsabilizado por culpa in eligendo, pois o Estado não é responsável pela nomeação do solicitador em cada processo executivo, dado que este é escolhido pelo exequente – al. c). do n.º 1, do artigo 810.º do Código de Processo Civil.
Por conseguinte (aliás, em harmonia com o referido no transcrito n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007), impõem-se concluir que o Estado não pode ser responsabilizado por actos danosos cometidos pelo solicitador de execução no exercício das suas funções, por não haver qualquer vínculo relevante entre o Estado e o solicitador de execução ([8]).
Concluir assim, isto é, que o Estado não pode ser responsabilizado por actos danosos cometidos pelo solicitador de execução no exercício das suas funções, e tendo sido demandado apenas o Estado pelos alegados prejuízos causados pelo solicitador de execução, então a questão da competência dos tribunais administrativos fica automaticamente resolvida no sentido de não haver lugar à intervenção desta jurisdição (questão diversa seria o caso de ter sido demandado o solicitador de execução e não o Estado).

2 – Sendo a jurisdição comum competente para apreciar o pedido de indemnização dirigido contra o Estado, então o tribunal de 1.ª instância deve apreciar a título principal a procedência ou a improcedência do pedido de anulação dos actos praticados no processo executivo n.º 1201/03.5TBAND-A e respectivo pedido de indemnização, bem como do pedido de indemnização deduzido a título subsidiário, ambos contra o Estado, quer com fundamento em actuação do solicitador de execução, quer do juiz.

3 – Quanto ao pressuposto processual interesse em agir.

No despacho sob recurso esta questão é analisada apenas em relação ao pedido formulado contra o Banco Comercial Português, já que o réu Estado havia sido anteriormente absolvido da instância quando este aspecto foi analisado.

Entendeu-se que relativamente aos pedidos «…formulados em a) a c) do petitório, a saber: declarar a nulidade de todos os actos do processo executivo, desde o requerimento executivo até ao auto de abertura de propostas em carta fechada; o cancelamento de todos os registos prediais decorrentes de tais actos e repetição/renovação de todo o processo executivo, ora, mencionado, constata-se que os Autores formulam os ditos pedidos, no essencial, unicamente contra o credor reclamante no dito processo de execução (aqui Réu Banco (…), S. A.)» e que «…o efeito útil normal pretendido pelos Autores não será susceptível de ser alcançado com o recurso à presente acção de processo declarativo, pois o mecanismo processual adequado a lograr esse desiderato era (é), o recurso extraordinário de revisão previsto no art. 771º, do C.P.C., caso se verifiquem concretamente preenchidos os pressupostos aí enunciados.

Vale isto por dizer, em nosso entender, que os Autores carecem do pressuposto processual de interesse de agir (ou seja, verifica-se a excepção dilatória inominada de falta de interesse processual), pois a presente acção de processo declarativo é processualmente inadequada a alcançar-se o efeito útil pretendido pelos Autores (ou seja, só será viável processualmente aos Autores colocarem, em crise, a sentença de reconhecimento e graduação de créditos já transitada em julgado, e bem assim, os actos processuais subsequentes à dita decisão - com fundamento na falta de citação dos Autores para reclamarem os seus créditos, em sede do dito processo executivo - através do mecanismo processual apontado atrás de recurso de revisão)».

Vejamos.

Quanto ao pedido de anulação do dos actos executivos praticados no processo n.º 1201/03.5TBAND-A, que é, volta a dizer-se, um pedido autónomo em relação ao pedido de indemnização principal dirigido contra ao Estado, é manifesto o interesse em agir dos autores contra o Banco e o correspectivo interesse em contestar do Banco, já que o Banco é interessado na manutenção desses actos processuais, dos quais beneficiou, mas deixaria de beneficiar se fossem anulados.

Por conseguinte, a decisão que absolveu o réu Banco por falta de interesse em agir não pode manter-se.

Fica, por isso, prejudicada a análise da argumentação tecida em 1.ª instância quanto à falta de interesse em agir dos autores em relação ao Banco.

4. Resumo.

O tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer não só do pedido de anulação dos actos praticados no processo executivo n.º 1201/03.5TBAND-A, julgando-o procedente ou improcedente, como também para julgar os pedidos de indemnização, principal e subsidiário, dirigidos contra o Estado português.

Carecendo o tribunal de analisar, em relação ao Estado, o pedido de anulação dos actos praticados no processo executivo n.º 1201/03.5TBAND-A, tal pedido tem de ser também analisado no confronto com o Banco, e daí o interesse em agir dos autores contra o Banco, o qual também é parte interessada na manutenção de tais actos por ter beneficiado deles, tendo interesse em contradizer.


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Antes de terminar, chama-se a atenção para o seguinte:

Como referem J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Os tribunais não constituem, em conjunto, um órgão de soberania; cada tribunal é um órgão de soberania de per si» ([9]).

Sendo assim, é questionável que seja legalmente possível um tribunal, salvo na hipótese de recurso, intervir num processo de outro tribunal, decretando a anulação de actos processuais levados a cabo nesse outro tribunal, esteja o processo ainda pendente ou já findo.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida.

Declara-se o tribunal recorrido materialmente competente para conhecer dos pedidos formulados contra o Estado.

Custa pelo Banco recorrido, estando o Estado isento.


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Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura


[1] Verifica-se pelo documento de fls.176 que a citação dos credores na execução 1201/03.5TBAND-A, para efeitos do artigo 864.º do Código de Processo Civil, em 23 de Fevereiro e 2007, já se encontravam efectuadas desde o dia 7 e 8 desse mês, pelo que ainda não constava do registo predial a penhora do autor JM (…)
[2] Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra Editora, 1985, pág. 687. No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 (Araújo Barros), in www.dgsi.pt, com referência ao n.º 05B2711, «Para que uma decisão careça de fundamentação (incorrendo na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do C.Proc.Civil) não basta que a sua justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente: é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» (sumário).

[3] Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 815, 3.ª edição.

[4] Direito Administrativo, Vol. III, (Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89), Lisboa/1989, pág. 439/440.
[5] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 020/10.

[6] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 021/10.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2011 (Fonseca Ramos) no processo n.º 85/08.1TJLSB, in www.dgsi.pt, que «A partir dos elementos essenciais de caracterização orgânica e funcional da figura do solicitador de execução, no contexto da Reforma da acção executiva de 2003, mormente o dever ser exercida por solicitadores profissionais liberais supervisionados pela Câmara de Solicitadores perante quem respondem disciplinarmente por actos cometidos no processo, e não perante o Juiz, o não serem, senão excepcionalmente, designados pelo Tribunal, o facto de apesar de intervirem em processos executivos agindo com latos poderes, na perspectiva da desjudicialização do processo, e actuarem em nome próprio, ainda que possam ser destituídos pelo Juiz mas só com justa causa, faz com que a componente, diríamos, privada da sua nomeação e o modo e responsabilidade da sua actuação, sobreleve a vertente da actuação paradministrativa, não devendo considerar-se que a sua actuação é a de um funcionário judicial, auxiliar ou comitido do Tribunal» (sumário)

[8] Em sentido contrário, porém, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-10-2012 (Amílcar Andrade) no processo 294/10.3TBVCT.G1: «1. O Solicitador de Execução é um auxiliar da justiça. 2. Os actos ilícitos cometidos na respectiva actuação implicam a responsabilidade civil do Estado», bem como o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-10-2010 (Soares de Oliveira) no processo 2798/07.6TBSTS: «O Solicitador de Execução é um auxiliar da justiça, pelo que os actos ilícitos cometidos na respectiva actuação implicam a responsabilidade civil do Estado».
[9] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pág. 792.