Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
990/09.8TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: SIMULAÇÃO
USUCAPIÃO
ALEGAÇÃO
POSSE
ANIMUS
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA - VARA COMP. MISTA E JUÍZOS CRIMINAIS - VARA COMPETÊNCIA MISTA-2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 241 E 1252 CC
Sumário: 1. A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa tem a importância derivada de esta última gerar um problema solucionado pelo artigo 241º, nº 2 do CC.

2. Enquanto o negócio simulado é nulo, e na simulação absoluta se não põe mais nenhum problema, na simulação relativa surge o problema do tratamento a dar ao negócio dissimulado ou real que fica a descoberto com a nulidade do negócio simulado.

3. Apesar de não ser expressamente invocada a usucapião enquanto forma de aquisição originária da propriedade se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente.

4. Muito embora a posse relevante para a usucapião deva conter os dois elementos – corpus e animus – o artigo 1252, nº 2, do C.C., visando facilitar a prova do elemento psicológico, presume a posse em nome próprio naquele que exerce o poder de facto, isto é, naquele que tem o corpus.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

         1. Os AA., E (…) e mulher ML (…), instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra os RR., J (…) e S (…) ( 1ºs RR. ) e MR (…) ( 2º R. ), pedindo que:

         - se declare nulo, por simulação, o negócio de trespasse de 5.9.2000 e, em consequência, sejam os RR. condenados a restituir ao A. o que auferiram desde a data do negócio e for para além do salário de director técnico do R. e, ainda, que seja emitida sentença que produza os efeitos da declaração negocial feita no contrato de promessa de 23.11.98 , com trespasse a favor dos AA.;

         - sejam os AA. declarados donos da farmácia K..., sita na R. (...), Coimbra, com o alvará emitido pelo Infarmed nº 4236, por o haverem adquirido em 5.7.1974 e o gerirem e explorarem desde então como seus donos;

         Caso assim se não entenda,

         - seja considerado nulo o trespasse de 5.9.00 (por violação da Base II, nº2 da L 2125, de 20.3.65, DL 48547, de 27.8.68, e artºs 280º, nº1, e 294º do CC) e seja emitida sentença que produza os efeitos da declaração negocial feita na promessa de trespasse de 23.11.98;

         Subsidiariamente, sejam os RR. condenados a restituir aos AA. a farmácia K..., sita na R. (...), Coimbra, com alvará emitido pelo Infarmed com o nº 4236 (com base no disposto nos artºs 473º, nº1, e 479º do CC).

         Para tanto alegaram os AA. que, em 1974, compraram, pagando o preço, a farmácia K..., então instalada na Sé Velha, nesta cidade, tendo o A., desde então, gerido e explorado a mesma como seu dono, daí retirando os lucros respectivos; todavia, por impedimento legal que perdurou até 2007, os AA., não sendo farmacêuticos, não poderiam ser titulares de tal tipo de estabelecimento, pelo que foi necessário que na escritura de trespasse figurasse então, como comprador do estabelecimento, não os AA., mas um licenciado em farmácias que, na realidade, nada comprou e nada pagou;  foi assim ao longo dos anos, tendo o estabelecimento, por vicissitudes várias (mormente o falecimento de titulares formais, farmacêuticos) sido transmitido a licenciados em Farmácias, mas sempre a na propriedade real dos AA., até que, em 1994, foi transmitido à 2ª Ré, Ré MR (…) de novo proprietária fictícia; tendo o filho dos AA., aqui 1º R., obtido a licenciatura em ciências farmacêuticas em 2000, veio aquela MR (…), por acordo com os AA., num primeiro momento, por contrato de 1998, prometer trespassar a farmácia para aquele ou para quem o A. indicasse; concluída a licenciatura, foi celebrado, em 2000, o trespasse entre a 2ª Ré e o 1º R., mais uma vez sem que tivesse sido pago ou recebido qualquer preço, mantendo-se o estabelecimento na propriedade dos AA., e intervindo o 1º R. como trespassário apenas para que, face ao obstáculo legal, não podendo a farmácia ser titulada pelos AA., o fosse por alguém da sua família, ficando o mesmo R., por ser filho dos AA., a prestar serviço em tal espaço; com a alteração legal de 2007, podendo agora os AA. figurar como titulares formais, como reais que já eram, do estabelecimento em apreço, deparam-se com a oposição dos RR. à formalização da situação.

                2. Regularmente citados os RR. contestaram, separadamente.

         2.1. Na sua contestação a 2ª Ré, MR (…) diz que, na realidade, nunca pagou nem recebeu o que quer que fosse pela farmácia em apreço, porquanto são proprietários da mesma os AA. que, por isso, a contactaram para que, sendo farmacêutica e a fim de contornar a proibição legal outrora existente, apenas formalmente interviesse na escritura de compra do estabelecimento, como “testa de ferro”, nunca tendo, por isso, retirado deste negócio qualquer lucro; do mesmo modo, não sendo proprietária da farmácia, não recebeu do 1º R. qualquer valor a título de preço pelo trespasse de 2000.

         2.2. Por sua vez, os 1ºs RR., defenderam-se na contestação que apresentaram aduzindo que aos AA. não assiste legitimidade quanto à nulidade que invocam e ao enriquecimento sem causa, afirmando que o contrato de promessa de 23.11.1998 teve em vista a transmissão da propriedade da farmácia para a titularidade do R. marido desde que o mesmo concluísse, como concluiu, a licenciatura em Farmácias, objectivo que foi concretizado com o trespasse de 5.9.2000; mais alegam que, por isso, se deu cumprimento ao disposto no artº 877º, nº1, do CC, obtendo-se o consentimento da A. e filhos para outorgar na promessa para vender ao R. marido; assim, após tal negócio de 2000, o R. passou a considerar-se dono da farmácia, apesar de nos primeiros anos ter contado com a ajuda no pai na gestão da farmácia, tendo passado a geri-la, contratando com fornecedores, trabalhadores e clientes e recebendo os lucros da mesma.

        3. Replicaram os AA. pugnando em tal articulado pela falta de razão dos 1ºs RR. quanto às nulidades invocadas e, ainda, pela condenação destes como litigantes de má fé em multa não inferior a € 10.000, 00, e indemnização a favor dos AA. de valor não inferior a € 15.000, 00.

         4. Foi ainda apresentado articulado de tréplica pelos 1ºs RR. no qual os mesmos pugnam pela ilegitimidade da 2ª R. e, se assim se não entender, pela improcedência da contestação por esta apresentada.

         5. Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador no qual foram apreciadas, no sentido da respectiva improcedência, a ilegitimidade invocada pelos 1ºs RR., e selecionada a matéria assente e controvertida, a qual de fixou após reclamação apresentada pelos 1ºs RR. que veio a ser desatendida.

         6. Procedeu-se ao julgamento, o qual decorreu com observância do legal formalismo, não tendo a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto sofrido reclamação das partes.

         7. Proferida sentença, veio nela a decidir-se na parcial procedência da acção, e, em consequência, a

         - declarar-se nulo, por simulação, o negócio de trespasse celebrado por escritura pública de 5.9.2000 e supra referido em 6 dos factos assentes;

         - declararem-se os AA. proprietários da farmácia K..., sita na R. (...), Coimbra, com o Alvará emitido pelo Infarmed com o nº 4236.

         - no mais se absolvendo os RR..

         8. Inconformados com tal decisão dela vieram os 1ºs RR. interpor recurso, cujas alegações rematam com as  seguintes conclusões:

      (…).

         8. Contra-alegaram os AA., formulando nas contra-alegações as seguintes conclusões:

         (…).

         - Colhidos os vistos legais cumpre apreciar a decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 684º, nº 3, 685º-A e 660º, nº 2, do CPC na redacção anterior à Lei 41/2013, de 26.06, por ser esta versão a aplicável ao presente recurso), são as seguintes as questões a decidir:

        I- saber se se verifica a nulidade decorrente da deficiente gravação de parte da prova produzida na audiência de julgamento;

         II- saber se padece de nulidade o depoimento de parte da 2ª R.;

         III- saber se a resposta ao quesito 43º se apresenta indevidamente fundamentada e contraditória com as respostas dadas aos quesitos 5º, 6º, 13º, 18º, 26º, 27º, 28º, 29º, 31º, 32º, 33º, 34º, 37º e 49º e se, por força disso, deve ser anulada a decisão sobre a matéria de facto que integra os referidos quesitos;

         IV- saber se foi mal valorada a factualidade vertida nos quesitos 5º, 6º, 13º, 18º, 26º, 27º, 28º, 29º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 40º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º e 49º  da BI;

          V- saber se com a alteração da matéria de facto no sentido pretendido pelos apelantes a acção improcede pelo facto de dever considerar-se que por detrás do trespasse simulado e nulo existe um  negócio dissimulado, ou seja, uma doação;

         VI- saber se, mesmo que assim se não entenda, deve a acção improceder pelo facto dos AA. não terem alegado, e, consequentemente, não terem provado, o elemento intencional ou psicológico da posse, o animus, nem terem alegado, para provar, qualquer dos requisitos ou caracteres da posse, especialmente a posse pública (e não a oculta) e pacífica (sem violência).

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) De Facto

         Na decisão recorrida foi considerada assente a seguinte a factualidade, a qual agora se elenca provisoriamente, visto que parte dela foi alvo de impugnação no presente recurso.

         1 - Por escritura pública de 5 de Julho de 1974, cuja cópia certificada figura a fls. 37 a 40 e que aqui se dá por reproduzida, M (…) declarou trespassar a L (…)(a qual declarou aceitar o trespasse) a farmácia denominada <<FARMÁCIA K...>>, instalada no rés-do-chão, números 13 e 14 do prédio sito no Largo da Sé Velha, em Coimbra, pelo preço de 80.000$00 (al. a).

         2 - Por escritura pública de 21 de Junho de 1985, cuja cópia certificada figura a fls. 44 a 48 e que aqui se dá por reproduzida, (…) arrogando-se de donos e “legítimos possuidores” da <<FARMÁCIA K...>> ( “farmácia essa que pertencia ao património do casal constituído pelo outorgante Dr. (…) e sua falecida esposa (…), falecida sem testamento (…)”., instalada no rés-do-chão, números 13 e 14 do prédio sito no Largo da Sé Velha, em Coimbra, declararam trespassar esse estabelecimento a (…)(a qual declarou aceitar o trespasse), pelo preço de 120.000$00 (al. b).

         3 - Por escritura pública de 23 de Maio de 1990, cuja cópia certificada figura a fls. 54 a 57 e que aqui se dá por reproduzida, (…)representados no acto pelo ora A. E (…), declararam trespassar a M (…) (a qual declarou aceitar o trespasse) a farmácia denominada <<FARMÁCIA K...>>, instalada no rés-do-chão, números 13 e 14 do prédio sito no Largo da Sé Velha, em Coimbra, pelo preço de 250.000$00 (al. c).

         4 - No dia 23 de Maio de 1990 M (…) declarou perante o Notário do Cartório Notarial da Lousã – (…) – constituir seu bastante procurador o ora A. E (…), conferindo-lhe todos os poderes para gerir e administrar o seu estabelecimento comercial, do ramo de farmácia, denominado farmácia K..., sito em Coimbra, no Largo da Sé Velha, e, por consequência, praticar todos os actos comerciais inerentes, assinar e expedir correspondência, aceitar, sacar, endossar e reformar letras livranças, cheques, extractos de facturas, depositar e levantar capitais em bancos, casas bancárias e outros estabelecimentos de crédito e os demais actos constantes desse acto notarial cuja cópia figura a fls. 58 e que aqui se dá por reproduzida (al. d).

            5 - Por escritura pública de 4 de Fevereiro de 1994, cuja cópia certificada figura a fls. 62 a 64 e que aqui se dá por reproduzida, M (…) declarou trespassar à aqui Ré MR (…) (a qual declarou aceitar o trespasse) a farmácia denominada <<FARMÁCIA K...>>, instalada no rés-do-chão, números 13 e 14 do prédio sito no Largo da Sé Velha, em Coimbra, pelo preço de 500.000$00 (al. e).

         6 - Por escritura pública de 5 de Setembro de 2000, cuja cópia certificada figura a fls. 74 a 77 e que aqui se dá por reproduzida, a Ré MR (…) declarou trespassar ao ora R. J (…) (o qual declarou aceitar o trespasse) a farmácia denominada <<FARMÁCIA K...>>, instalada na fracção A (rés-do-chão esquerdo) do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Coimbra na Rua (...), n.º 400 (al. f).

            7 - Em 14 de Novembro de 1985, em escrito particular cuja cópia figura a fls. 50 e 51, designado de “contrato-promessa de trespasse” (…) e marido (…) e o ora A. E (…) emitiram as declarações que nele constam e que aqui se dão por reproduzidas ( Onde se lê, entre o mais que (…)” a outorgante (…) é dona e legítima proprietária da Farmácia K... (…); que, pelo presente, prometem trespassar ao segundo outorgante [aqui A.] a referida Farmácia pelo preço de 5.000.000$00 (…); que do referido preço já receberam do segundo outorgante, a título de antecipação de pagamento, a importância total do trespasse, Esc. 5.000.000$00 (…)”.  (al. g).

            8 - O A. E (…) tem a carteira profissional de técnico de farmácia (al. h).

                9 - Em 23 de Novembro de 1998, em escrito particular cuja cópia figura a fls. 66 a 71, designado de “contrato-promessa de compra e venda” os AA., os RR. J (…) e MR (…)e (…) emitiram as declarações que nele constam e que aqui se dão por reproduzidas ( Intitulado Contrato Promessa de Compra e Venda, no qual intervieram o aqui A. como 1º outorgante, o aqui R. como 2º outorgante, a aqui Ré MR (…), como terceira outorgante, e a aqui A., juntamente com (…), como quartos outorgantes.

                Lê-se ali, entre o mais:

                CLÁUSULA PRIMEIRA: A terceira outorgante é proprietária e Directora Técnica de Farmácia K...         (…);

                CLÁUSULA SEGUNDA: O segundo outorgante, presentemente estudante, do curso de Farmácia, assume a obrigação neste contrato de concluir com existo o curso de Farmácia (…)

                CLÁUSULA TERCEIRA: O primeiro outorgante (…), ao intervir neste contrato fá-lo tendo em vista a concretização do mesmo a favor do terceiro seu filho e aqui segundo outorgante, na condição referida na cláusula segunda, ou de outra pessoa que entender desde que esse outro terceiro tenha as condições legais para adquirir a Farmácia.

                (…)

                CLÁUSULA QUINTA: A terceira outorgante promete vender aos primeiro e segundo outorgantes, ou a quem o primeiro outorgante designar, a Farmácia supra-citada, pelo preço global de 30.000.000$00 (…).

                (…)

                CLÁUSULA DÉCIMA: A terceira outorgante manterá a Direcção Técnica da Farmácia até à realização da escritura de compra e venda em termos oficiais sendo que fica expressamente acordado, de facto, que apenas ali se deslocará para assinar o expediente e quando solicitada em razão de qualquer urgência na sua presença.

                CLÁUSULA DECIMA PRIMEIRA: Enquanto mantiver a Direcção Técnica da Farmácia, ou seja, até à data da escritura prometida, o primeiro outorgante obriga-se a pagar mensalmente à terceira outorgante a quantia de cento e cinquenta mil escudos,

                (…)

                CLÁUSULA DÉCIMA QUINTA: Na data da escritura de compra e venda deverá ser transferida a titularidade da operação de empréstimo ao abrigo do Procom pendente na Caixa Geral de Depósitos de Coimbra para a pessoa adquirente da Farmácia (…).

                CLÁUSULA DECIMA SEXTA: O primeiro outorgante recebeu o consentimento da sua esposa (…) e dos seus outros filhos (…), quartos outorgantes, que o prestam mediante a assinatura que apõem no fim deste contrato. (al. i).

            10 - O filho mais velho dos AA, ora R J (…) cursou ciências farmacêuticas no ensino privado no Porto (al. j).

            11 - O R. marido – J (…) - veio a concluir a sua licenciatura em ciências farmacêuticas no ano de 2000 (al. k).

         12 - A facturação anual da farmácia K... no ano de 2000 foi de 66.640.000$96 (sessenta e seis milhões seiscentos e quarenta mil escudos e noventa e seis cêntimos) – al. l.

            13 - A farmácia K... encontra-se actualmente instalada na Rua (...), n.º 400, em Coimbra (al. m).

         14 - O A., E (…), começou a trabalhar como ajudante de farmácia, numa Farmácia em Cantanhede, nos anos 60, tendo posteriormente, adquirido a categoria de ajudante técnico de farmácia (resposta aos 1º e 2º da BI).

         15 - Na prossecução da sua actividade profissional de ajudante técnico de farmácia, e no contacto que mantinha com outros profissionais de farmácia, ajudantes técnicos e farmacêuticos, o A. marido teve em Julho de 1974 a possibilidade de adquirir a farmácia K..., nessa altura instalada no Largo da Sé Velha, n.°s 13 e 14 (resposta ao 3º da BI).

            16 - Apesar do constante da escritura referida em 1, foram os A.A. quem, a 5 de Julho de 1974, compraram a M (…) a farmácia K..., pagando os AA. o preço acordado (resposta ao 4º da BI).

         17 - A partir dessa data e até meados do ano de 2003, até aqui em exclusivo, o A. Edgar Costa Reis geriu e administrou essa farmácia como único e verdadeiro dono (resposta ao 5º da BI).

         18 - (…) comprando e vendendo mercadoria, contratando pessoal, fazendo a gestão da farmácia, pagando a fornecedores, gerindo as contas bancárias, e tirando em exclusivo para os AA. os lucros dessa mesma farmácia (resposta ao 6º da BI).

            19 - Atendendo à legislação ao tempo vigente os AA., de forma a contornarem a proibição legal de não poderem ser proprietários de uma farmácia por não possuírem a licenciatura em farmácia, encontraram farmacêuticos que "emprestaram" o título académico de licenciados em farmácia e figuraram como proprietários fictícios da referida farmácia (resposta ao 7º da BI).

         20 - (…) o que ocorreu com (…) (resposta ao 8º da BI).

         21 - Apesar do declarado nas escrituras referidas em a), b) c) e e) (…)nada compraram nem nada pagaram pelo trespasse da farmácia (resposta ao 9º da BI).

         22 - (…) "emprestando" aos AA. as suas habilitações académicas de licenciados para figurarem no Alvará como proprietárias (resposta ao 10º da BI).

         23 - (…) assumindo apenas as funções de Directoras Técnica pelas quais ganhavam o seu ordenado (resposta ao 11º da BI).

            24 - (…) nenhum outro proveito esses farmacêuticos retiravam da farmácia K... (resposta ao 12º da BI).

         25 - Desde o ano de 1974 que os A.A. sempre foram reconhecidos por clientes, fornecedores, amigos do casal, no meio farmacêutico em geral, e na cidade de Coimbra, como os únicos donos da farmácia (resposta ao 13º da BI).

         26 - O documento referido em g) servia apenas para o A. E (…) fazer valer os seus direitos e desincentivar a que (…) pudesse no futuro a vir a reivindicar a propriedade da farmácia K... (resposta ao 14º da BI).

            27 - Como eram os A.A. quem tiravam todos os rendimentos e proveitos da farmácia K..., o A. marido emitiu em 10 de Novembro de 1993 a declaração junta a fls. 59 (“Eu abaixo assinado E (…) (…), declaro para todos os efeitos que assumo, perante a senhora Drª (…), a obrigação de lhe pagar todos os encargos que esta tiver que suportar em relação ao anos de 1993 e à Farmácia Citália (…)”. (resposta ao 15º da BI).

            28 - Em 7 de Fevereiro de 1995, quando pensaram mudar de localização a farmácia K..., até então sita no Largo da Sé Velha, em Coimbra, para uma rua de maior movimento em Coimbra, a Rua (...), n°. 400, os AA. celebraram o acordo constante de fls. 79 a 84, pagando 37.000.000$00 (resposta ao 16º da BI).

            29 - Através do documento referido em g) os AA. procuraram deixar a salvo que as pessoas se arrogassem de proprietárias da farmácia (resposta ao 17º da BI).

            30 - O acordo referido em i) foi celebrado apenas para ser dada cobertura legal à propriedade da farmácia K... no seio familiar (resposta ao 18º da BI).

         31 - Aquando desse acordo os AA. pretendiam que o seu filho J (…) terminasse a licenciatura em ciências farmacêuticas para desse modo assegurar na família, e num filho, a propriedade da farmácia K..., uma vez que continuavam a não poder constar como proprietários da farmácia (resposta ao 19º da BI).

         32 - Apesar do que consta da escritura pública referida em f) o R. J (…) nada pagou nem MR (…) nada recebeu pelo trespasse (resposta ao 20º da BI).

         33 – Em 2000, a farmácia K... tinha um valor não concretamente apurado (resposta aos 21º e 22º da BI)

         43 - Em Setembro de 2000 o R. J (…) era um recém licenciado que nunca tinha trabalhado (resposta ao 23º da BI).

         44 - (…) não tinha dinheiro para suportar o preço referido em 33 nem o declarado de 27.000.000$00 (resposta ao 24º da BI).

         45 - O R. J (…) não contraiu também qualquer empréstimo para pagar o preço declarado na escritura pública (resposta ao 25º da BI).

         46 - Apesar do declarado na escritura referida em f), a mesma apenas serviu para permitir que o R. J (…) pudesse passar a constar como o proprietário fictício da farmácia K... (resposta ao 26º da BI).

         47 - (…) passando a estar formalmente já não nas mãos de estranhos, mas sim do filho dos AA. (resposta ao 27º da BI).

         48 - Apesar do declarado na escritura referida em f) a Ré MR (…) não pretendeu trespassar ao R. J (…) a farmácia K... (resposta ao 28º da BI).

         49 - (…) tendo sido celebrada com a intenção de os AA. continuarem a contornar a proibição ao tempo existente de poderem figurar como proprietários (resposta ao 29º da BI).

         50 - Após a escritura referida em f) o R. João Edgar passou a assumir a direcção técnica da farmácia (resposta ao 30º da BI).

         51 - Nos dois/três primeiros anos seguintes o A. marido continuou à frente da exploração da farmácia K..., coadjuvado agora pelo R. J (…) (resposta ao 31º da BI).

         52 - (…) cientes os RR. J (…) e S (…)  de que os donos da farmácia eram os AA. (resposta ao 32º da BI).

         53 - (…) retirando o R. marido o seu salário enquanto director técnico da farmácia K... (resposta ao 33º da BI).

         54 - A partir de meados de 2003 o A. marido começou a depositar confiança no R. J (…) libertando também o A. marido desse trabalho (resposta ao 35º da BI).

         56 -(…) até porque os AA. tinham outra farmácia no concelho de Coimbra, nas mesmas condições da Farmácia K..., que ficaria ainda ser gerida ainda pelo A. E (…) (resposta ao 36º da BI).

         57 - Foi o A. E (…) quem até ao ano 2000 em exclusivo, e de 2000 a 2003 coadjuvado pelo R. J (…), quem geriu e explorou a farmácia K... e actuou sempre como único dono (resposta ao 37º da BI).

         58 - Os A.A. são titulares no Banco Santander Totta da conta com o NIB K... relativa à farmácia K... (resposta ao 38º da BI).

         59 - Essa conta bancária já existia e era movimentada pelos AA. muitos anos antes da escritura referida em f)  (resposta ao 39º da BI).

         60 - Após a escritura referida em f) essa conta continuou a ser movimentada relativamente às transacções da farmácia (resposta ao 40º da BI).

         61 - A transferência da farmácia K... para a Rua (...) ocorreu ainda antes da escritura referida em f) e antes de o R. J (…) ali trabalhar (resposta ao 41º da BI).

         62 – A farmácia K... tem hoje um valor não concretamente apurado (resposta ao 42º da BI).

         63 – Por força da escritura de trespasse de 2000, a farmácia passou a integrar o património do R. J (…) (resposta ao 43º da BI).

         64 - À data em que apresentaram a contestação os RR. J (…) e S (…) tinham conhecimento e sabiam ser verdadeiros os factos referidos em 1 a 33 (resposta ao 49º da BI).

            B) De Direito

         I- Iniciam os apelantes o seu discurso recursivo com a invocação da nulidade decorrente da deficiente gravação dos depoimentos de parte prestados pelos AA. e pelos RR. J (…) e MR (…), registados, respectivamente, nos ficheiros nºs 20121108095004, 20121108101644, 20121108110753 e 20121108112543, bem como dos depoimentos prestados pelas testemunhas (…), registados, respectivamente, nos ficheiros nºs 20121108113343, 20121108140251 e 20121108144819, depoimentos de parte e testemunhais esses que os apelantes entendem não serem inteligíveis e serem inconclusivos quanto às respostas decorrentes ou consequentes ao interrogatório do mandatário dos RR. J (…) e esposa, em virtude das perguntas deste mandatário serem imperceptíveis no registo digital da audiência.

         Não apresenta controvérsia a conclusão de que a deficiência da gravação, a existir, constitui uma nulidade secundária, das previstas no Art. 201º n.º 1, do C.P.C., uma vez que tal deficiência integra uma omissão de um acto prescrito na lei ( Art. 7.°, n.º 2, do Dec. - Lei 39/95, de 15/2), que pode nitidamente influir na decisão da causa por obstar, quer à fundada impugnação da matéria de por esta ser detectável quando cometida, ou por o dever ser quando a parte, posteriormente a tal cometimento, intervenha em algum acto praticado no processo ou seja notificada para qualquer termo dele. – veja-se, em abono de tal entendimento o Ac. do STJ, de 13.01.2009, disponível in www.dgsi.pt.

         Da análise dos autos constata-se que a produção da prova produzida na audiência de julgamento decorreu, a requerimento de todas as partes intervenientes na acção, com gravação que veio a ser feita através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal recorrido, e ao longo de quatro sessões de audiência de julgamento, a primeira das quais em 08.11.2012 e a última em 4.01.2013 ( na demais duas sessões que a audiência comportou destinaram-se uma delas apenas à produção de alegações orais e a outra à resposta à matéria de facto ).

         Foi na primeira de tais sessões de audiência de julgamento, ocorrida em 08.11.2012, que tiveram lugar os depoimentos de partes prestados em julgamento pelos AA. (…)  e pelos RR. (…)assim como, os depoimentos prestados pelas testemunhas (…).

         Da análise da gravação de tais depoimentos, de parte e testemunhais, detecta-se, na verdade, que o registo do som apresenta variações ao longo da produção dessa prova, sendo claramente perceptível a existência de um significativo abaixamento do mesmo apenas e só quando usa da palavra o ilustre mandatário dos ora recorrentes para colocar questões aos mencionados depoentes AA. e RR. e às identificadas testemunhas, o que já não se verifica quando usam da palavra a Mma. Juiz e os demais ilustres mandatários das partes para colocarem questões aos referidos sujeitos e intervenientes processuais assim como aquando das respostas por estes adiantadas.

         Há, ainda, que assinalar que essas variações deixam de existir a partir do depoimento da última das mencionadas testemunhas, pois que, na mesma sessão de audiência de julgamento ( do dia 8.11.2012 ) outras testemunhas nela foram inquiridas sendo perfeitamente perceptíveis as questões que a estas foram colocadas pelo ilustre mandatário dos ora recorrentes.

         Apesar disso, há que dizer que, com a devida atenção e com algum esforço ( mormente isolando todos os ruídos externos ), se consegue perceber da gravação que chegou a este tribunal de recurso o teor das questões colocadas às mencionadas partes e testemunhas pelo ilustre mandatário dos ora recorrentes e, sem qualquer dificuldade, por serem perfeitamente audíveis, as respostas por estes adiantadas a tais questões, assim como a todas as que lhe foram colocadas por banda da Mma. Juiz e pelo ilustre mandatário dos AA., respostas essas que, sem sombra de dúvida, se apresentam com perfeita audibilidade.

         Por assim ser foi possível fazer a transcrição do depoimento de parte do co-réu, (…) que foi prestado nessa sessão de julgamento que foi ordenada pela Mma. Juiz no final da prestação do mesmo, a qual, embora não constando do processo físico, consta do processo electrónico após a prolação da decisão da matéria de facto e antes da prolação da sentença, transcrição essa que, como dela se vê, ressalvada uma outra menção nela feita a imperceptibilidades detectadas aquando do uso da palavra por parte do ilustre mandatário dos ora recorrentes, tudo o mais é perfeitamente perceptível.

         Há, por fim, que dizer que também essa menor qualidade da gravação na parte apontada não inviabilizou os ora recorrentes de sustentar o erro de valoração da prova que sustentam no seu discurso recursivo pela forma que se espelha na impugnação da decisão da matéria de facto que deduzem.

         Assim sendo, por se entender que não estamos em presença de uma situação de imperceptibilidade da gravação de depoimentos de parte e de testemunhas prestados na audiência de julgamento, não se verifica a invocada nulidade.

        

         II- Avançando na apreciação das questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões do recurso, cumpre agora ponderar a nulidade do depoimento de parte prestado na audiência de julgamento pela co-ré MR (…).

         Pretendem os apelantes que a admissão de tal depoimento de parte foi por eles impugnada através de requerimento aparentemente omisso nos autos, requerimento esse que mereceu por parte do Mmo. Juiz titular do processo decisão de indeferimento por se entender que a admissão anteriormente decidida de tal depoimento de parte não podia ser dada sem efeito por se tratar de uma decisão impugnável apenas em sede de recurso, decisão essa em respeito da qual, segundo referem, vêm agora no presente recurso suscitar a admissibilidade de tal depoimento de parte que acabou por ser prestado no decurso da audiência de julgamento.

         Preliminarmente, cumpre clarificar que o requerimento a que os apelantes se referem no presente recurso como “ aparentemente omisso “ dos autos não consta do processo físico, mas consta do processo electrónico, tendo dado entrada neste, via Citius, no dia 08 de Fevereiro de 2010, com a REFª: 3920037.

         Através de tal requerimento pretenderam os ora apelantes que fosse dado sem efeito o despacho que anteriormente tinha admitido tal depoimento de parte, alegando que a matéria a que a mencionada co-ré MR (…) tinha sido indicada pelos AA. e à qual veio a ser admitida a depor se trata de matéria que não integra factos pessoais de que a mesma deva ter conhecimento ( a constante dos quesitos nºs 7, 9, 10, 11, 12, 16, 20 e 28 ) e que também se trata de matéria que é comum e no mesmo sentido da que foi alegada por essa co-é na sua contestação  nos artºs 2º (corresponde ao facto ou quesito 9), 4º, 5º, 6º e 7º (correspondem aos factos ou quesitos 7 e 10), 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º (parte final) e 14º (correspondem aos factos ou quesitos 9, 11, 12, 20, e 28), pelo que o depoimento de parte da co-ré MR (…) quanto aos referidos factos, simultaneamente alegados por ambos, devia ter sido indeferido, por legalmente inadmissível, ou quando muito, apenas devia ter sido deferido o depoimento de parte da Ré aos quesitos 18, 26, 27, 29 e 41

            Tal requerimento mereceu por banda do Mmo. Juiz titular do processo o despacho que consta do processo electrónico e físico, neste a fls. 212-213, proferido em 03.03.2010 com o seguinte teor:

            “ As decisões judiciais são impugnáveis quer por via de recurso, quer, nos casos tipificados na lei, por via de reclamação.

         Os RR. J (…) e esposa foram notificados dos requerimentos probatórios apresentados nos autos, não se tendo pronunciado quanto aos mesmos.

         O tribunal, depois de os apreciar, admitiu, de entre o demais, o depoimento de parte da Ré MR (…).

         Vêm agora os RR., a propósito dessa decisão, colocar em causa o acerto da mesma, pedindo que se dê o despacho sem efeito, ou, pelo menos, seja apenas deferido o depoimento de parte a apenas alguns factos.

         Trata-se, no entanto de um requerimento que não é admissível, porquanto está em causa uma decisão já proferida e apenas impugnável em sede de recurso, não podendo este tribunal modificá-la a não ser na decorrência de uma decisão de um tribunal superior.

         Em conformidade, indefere-se o requerido.”

         Pretendem agora os apelantes no recurso que interpuseram da sentença proferida a final nos autos impugnar o despacho que admitiu o referido depoimento de parte, em respeito, como dizem, pelo decidido no mesmo, pretendendo que se decida no sentido de que o despacho que admitiu o depoimento de parte da mencionada co-ré é ilegal, devendo ser considerado nulo e de nenhum efeito, e que se considere inválido e de nenhum efeito o depoimento de parte admitido, nos termos do Artº 201º, nº 1 do CPC, por violação do disposto no Artº 352ºdo C. Civil, nomeadamente.

         Resulta da resenha processual que se deixa feita que os ora apelantes apenas se insurgem no presente recurso que interpuseram da sentença proferida a final nos autos contra a decisão proferida pelo Mmo. juiz titular do processo que decidiu admitir o depoimento de parte da co-ré MR (…) e que veio a ser produzido no decurso da audiência de julgamento.

         Mas será que tal dissenso assim manifestado pelos co-réus J (…) e esposa por via do presente recurso se apresenta tempestivo?

         Vejamos.

         Como é consabido, do regime recursório introduzido pelo Dec. Lei 303/2007, de 24.08, previsto no CPC, mormente o vertido no respectivo Art. 691º na redacção emergente do  referido diploma em vigor desde 1 de Janeiro de 2008, resultaram importantes alterações nas modalidades de impugnação das decisões judiciais proferidas pela 1.ª instância perante o tribunal superior.

         Conforme salienta Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista a Actualizada, Almedina 2010, págs. 194 e 195, em primeiro lugar, traduz a absorção do anterior recurso de agravo pela apelação. Independentemente de a decisão incidir sobre o mérito ou sobre questões formais, a sua impugnação segue as regras unitárias previstas para a apelação, ainda que com sujeição de determinadas situações a regimes especiais.

         Em segundo lugar, foi estabelecido um elenco taxativo de decisões intercalares que admitem recurso imediato, relegando-se para momento ulterior a impugnação das demais.

            No direito anterior a impugnação das decisões interlocutórias era instrumentalizada pelo recurso de agravo. Em face da supressão deste recurso ordinário poderia supor-se uma restrição da recorribilidade das decisões com tal natureza. Nada de menos exacto. A lei nova manteve a regra da recorribilidade das decisões interlocutórias, limitando-se a estabelecer, para obviar às desvantagens dessa recorribilidade, a regra da sua irrecorribilidade autónoma imediata, apenas admitindo a sua impugnação diferida e concentrada com o recurso interposto na decisão final (Art. 691 nºs 1, 3 e 4 do CPC).

            A irrecorribilidade autónoma imediata das decisões meramente interlocutórias dá decerto satisfação ao princípio da celeridade - dado que impede que o movimento do processo seja, a todo o momento, interrompido e prejudicado pela interposição de recursos - e da concentração de meios, uma vez que possibilita a apreciação simultânea pelo tribunal ad quem, num só recurso, de todas as decisões interlocutórias desfavoráveis para o recorrente.

         Mas é claro que uma tal opção não é isenta de inconvenientes.

         Desde logo provoca uma permanente insegurança sobre e eficácia das múltiplas decisões interlocutórias, dado que obsta à formação de caso julgado e à produção do efeito preclusivo correspondente. O vencido pela decisão final, no recurso que dela interpuser, tenderá a impugnar toda e qualquer decisão interlocutória anterior que julgue relevante para a procedência do recurso.

         A recorribilidade diferida favorece decerto, a celeridade processual, mas pode provocar, no caso de procedência do recurso no tocante a uma decisão interlocutória, a inutilização dos actos processuais praticados depois da prolação da decisão revogada.

            Na verdade, se o tribunal ad quem decidir que o recorrente tem razão relativamente a qualquer decisão interlocutória, a procedência do recurso terá, em regra, como consequência a inutilização de tudo o que se processou posteriormente ao despacho não autonomamente recorrível, incluindo, naturalmente, a decisão final que, assim, constituirá pura perda. A procedência da apelação sem a prolação de uma decisão sobre o mérito será, por isso, uma ocorrência vulgar.

            A concentração da impugnação inerente à irrecorribilidade autónoma imediata das decisões interlocutórias diminui formalmente o número de recursos – mas aumenta materialmente, por impedir que sobre elas se forme caso julgado, o número de questões susceptíveis de constituir objecto dele e a probabilidade de prolação, pelo tribunal ad quem, decisões de forma inutilizadoras de decisões finais de mérito. 

         Dai que para obviar a este último inconveniente, a lei exceptue da regra da impugnação diferida e concentrada algumas decisões.

         No caso em análise os ora apelantes ao tomarem conhecimento da admissão do depoimento de parte da co-ré MR (…) que foi requerido nos autos pelos AA. vieram manifestar-se através do requerimento que deu entrada nos autos, via Citius, em no dia 08 de Fevereiro de 2010, com a REFª: 3920037, que atrás se deixou escalpelizado, pretendendo que o despacho em que se materializou a admissão desse depoimento de parte fosse dado sem efeito, por ser por legalmente inadmissível esse depoimento de parte ou quando muito, por apenas poder ser deferido em relação a parte da matéria a que foi requerido.

         Ao serem notificados do despacho que tomou posição sobre tal requerimento – no sentido de não ser admissível dar-se sem efeito o mesmo por estar em causa uma decisão já proferida que apenas é impugnável em sede de recursonão reagiram os recorrentes por qualquer forma.

         Afigura-se-nos, pois, que o despacho que admitiu o referido depoimento de parte da co-ré MR (…) e que o manteve depois de indeferido o requerimento apresentando pelos ora recorrentes no sentido de ser aquele dado sem efeito, porque se trata de uma decisão de admissão de meios de prova, é precisamente uma das decisões interlocutórias exceptuadas da regra da impugnação diferida e concentrada que, por isso, deve ser alvo de recurso interposto no prazo de 15 dias, contado da sua notificação (artºs 685 nº 1 e 691 nº 2 i) e 5 do CPC), pois, conforme defende Abrantes Geraldes in ob. cit., pág. 177, “a razão pela qual uma tal decisão é recorrível imediata e autonomamente prende-se, precisamente, com a minimização do risco de inutilização do processo – quer por força da necessidade de produzir o meio de prova rejeitado ou da exigência de reconformar a decisão da matéria de facto assente em meios de prova admitidos em violação da lei – vide, neste sentido.

         No caso em vertente os recorrentes não interpuseram na devida oportunidade o competente recurso da decisão que ponderou a admissão do referido depoimento de parte, pelo que, qualquer ilegalidade adveniente da sua admissão e da sua produção na audiência de julgamento se mostra sanada, constituindo, por força disso, objecto não admissível no presente recurso.

         III- Na continuação da análise das questões suscitadas em sede recursiva, vejamos então aquela que os recorrentes suscitam a propósito da contradição existente entre a resposta dada ao quesito 43º e as respostas dadas aos quesitos 5º, 6º, 13º, 18º, 26º, 27º, 28º, 29º, 31º, 32º, 33º, 34º, 37º e 49º e, ainda, a propósito da indevida fundamentação dada ao mesmo quesito 43º, vícios esses que, na opinião dos recorrentes, impõem a anulação da decisão sobre a matéria de facto que integra os referidos quesitos.

         A fim de equacionarmos correctamente tal questão, importa antes de mais chamar à colação o teor do referido quesito 43º da base instrutória, cuja redacção é a seguinte:

         “ ( ... ) valor com que os AA. se encontram empobrecidos e no património do R. João Edgar ? “

         Tal matéria recebeu por banda do tribunal recorrido a seguinte resposta: “ Provado que, por força da escritura de trespasse de 2000, a farmácia passou a integrar o património do R. J (…) “. 

         Na fundamentação que o tribunal recorrido esgrimiu a respeito da decisão da matéria de facto, e em concreto sobre a decisão dada ao aludido quesito 43º da base instrutória, colhe-se dessa mesma fundamentação o seguinte: “ No que respeita ao ponto 43º, é inequívoco que, com a escritura de trespasse, a farmácia entrou no património do R., sendo o empobrecimento dos AA., acaso se considere este negócio válido, o correlativo lógico, mas sem que se possa afirmar tal situação sem discorrer sobre a solução de direito da causa, o que não pode ser efectuado na resposta ao ponto de facto. “

          A fim de melhor apreender o verdadeiro alcance da factualidade que foi vertida no quesito 43º, impõe-se esclarecer que a respectiva formulação se ancora na alegação feita pelos AA. na petição inicial, concretamente nos pontos 155º a 168º de tal articulado, a propósito do instituto do enriquecimento sem causa com base no qual, a título subsidiário, os mesmos deduzem a pretensão de condenação dos RR. a restituir-lhes a farmácia K..., sita na R. (...), Coimbra, com alvará emitido pelo Infarmed com o nº 4236 (com base no disposto nos artºs 473º, nº1, e 479º do CC).

         Cotejando tais pontos da petição inicial constata-se que de nenhum deles em particular se extrai a factualidade que foi incluída no referido ponto 43º da base instrutória, antes se intuindo que o Mmo. juiz que elaborou o despacho saneador seleccionou a mesma da globalidade de tais pontos da base instrutória e resumiu o que dela extraiu na asserção que decidiu incluir no referido ponto 43º da base instrutória.

         Dito isto, há que dizer que, para além da desconexão que a redacção de tal quesito 43º evidencia - o que torna difícil apreender o sentido da factualidade que nele se mostra vertida – também se nos afigura que essa factualidade assume, manifestamente, natureza conclusiva, como igualmente se apresenta conclusiva a resposta que lhe foi dada pelo tribunal recorrido, resposta essa que, para além disso, também se apresenta excessiva.

            Centrando-nos na natureza conclusiva quer dos factos vertidos no quesito 43º da base instrutória, quer dos factos que constituem a resposta dada a tal quesito, diremos que, as situações em que estão em causa factos conclusivos reconduzem-se à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum – neste sentido, vide, entre outros, o Ac. do STJ, de 23.09.2009, disponível in www.dgsi.pt            No caso concreto, o que se contém no ponto 43º da base instrutória e na resposta dada a este deve ser perspectivado como matéria integrada no thema decidendum da presente acção por ali estar contida a resposta a dar ao invocado enriquecimento sem causa dos 1ºs RR. por nada terem pago pelo trespasse da farmácia ao abrigo do qual o 1º R. a explora.

         Assim sendo, não pode ter-se se não por conclusiva a resposta dada ao quesito 43º da base instrutória ( como igualmente se deve entender em relação à matéria vertida em tal quesito que, por essa razão, não deveria ter sido respondida ).

         Embora o Art. 646.º, n.º 4, do CPC ( em vigor à data da elaboração da sentença ) não contemplasse, expressamente, a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, tem sido sustentada pela jurisprudência a sua aplicação a situações em que esteja em causa um facto de tal natureza, por encerrar a formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.

            E, apesar de tal preceito ter sido eliminado com o novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei 41/2013, sufragamos o entendimento traçado no Ac. da Relação de Porto, de 07-10-2013, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual  « mesmo aplicando imediatamente o novo diploma, como entendemos ser o caso, o princípio subjacente ao preceito não desapareceu e, de certo modo, continua a vincar-se que, na fundamentação (de facto) da sentença, só mesmo os factos interessam.

         Neste sentido, o artigo 607, n.º 4 do NCPC diz-nos que "Na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou pelas regras de experiência.

         No domínio do CPC, na elaboração do acórdão seguia-se o preceituado, na parte aplicável, nos artigos 659 a 665 (artigo 713, n.º 2 do CPC) e, por isso, tinha de tomar-se em conta, na fundamentação do acórdão, "os factos admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal coletivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer" (659, n.º 3 do CPC). Agora, com o NCPC, na elaboração do acórdão, observar-se-á, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607 a 612 (artigo 663, n.º 2 do NCPC) e, por isso, o já antes citado artigo 607, n.º 4. “

         O que pretendemos dizer – e concluir – é que a questão suscitada pela recorrente resolve-se nos mesmos termos no domínio da lei processual que vigorou até 31.08.2013 ou aplicando o novo diploma adjetivo: antes como agora, a fundamentação (de facto) da decisão (sentença ou acórdão) só pode ser integrada por factos “.

         Assim sendo, entendemos que a matéria vertida na resposta ao referido quesito 43º da base instrutória e retratada no ponto 63. do elenco fáctico da sentença se deve ter por não escrita e, por isso, deve ser eliminada desta, o que se determina ao abrigo do disposto 712º Nº4 do CPC na redacção anterior aplicável ao presente recurso, resultando, em face disso, prejudicada a apreciação das questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões de recurso relacionadas quer com a falta de fundamentação da mesma quer com a contradição entre aquela e outros factos considerados provados na sentença.

            IV- Por via do presente recurso os apelantes também impugnam a decisão da matéria de facto, insurgindo-se a esse respeito contra as respostas dadas pelo tribunal recorrido aos quesitos 5º, 6º, 13º, 18º, 26º, 27º, 28º, 29º, 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º, 37º, 40º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º e 49º  da base instrutória,, os quais, no seu entender deveriam ter merecido diferente resposta e nos termos que indicam.

         No que tange à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância rege o Art. 712.º do CPC na redacção anterior à Lei 41/2013, de 26.06, por ser esta versão a aplicável ao presente recurso.

         Segundo F. Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 127, resulta de tal preceito que «...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação...», ainda que não em toda a sua pureza, pois, segundo o mesmo autor comporta as excepções que refere em tal obra.

         Já sobre os recursos de reponderação, ensina o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudo Sobre o Novo Processo Civil, pág. 374, que os mesmos «...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão».

            Tendo ocorrido no caso em análise a gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, nos termos do disposto no citado Art.º 712.º n.º 1 al. a) e n.º 2 do C.P.C na referida redacção, pode este tribunal da Relação alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos ( incluindo, obviamente, a gravação ), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.

         Do preâmbulo do Dec. Lei 329/95, de 15.12, que instituiu no nosso processo civil a possibilidade de documentação da prova, decorre que esta se destina à correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, ou seja, “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.

         Desse mesmo preâmbulo consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

         Do que se mostra expendido, é, pois, manifesto que actualmente se mostra legalmente consagrada a possibilidade deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas recorrentes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, podendo, ainda, por força do disposto no Art. 712º nº 2 do C.P.C. na referida redacção, “oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”, formará a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa (não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “ segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica ” – vide, neste sentido, Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1.ª secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.

         Com efeito, não poderá olvidar-se que na reponderação da decisão da matéria de facto, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, «...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...».

            Sem esquecer, ainda, que quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal, de acordo com o disposto no Art. 655º nº 1 do C.P.C. na referida redacção, “O tribunal colectivo (ou o juiz singular) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no Art. 396º do C.C.

            Cumpre, ainda, referir que constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, os previstos no Artº 685º-B, nºs 1 e 2 do C.P.C. na referida redacção, de onde decorre que ao apelante não basta atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que cumpra os ónus de especificação aí impostos, isto é:

         a) – Tem de especificar quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

         b) – Tem de indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto, tratando-se de prova gravada, deverá identificar precisa e separadamente, com referência ao que consta da acta, os depoimentos em que se funda, indicando ainda com exactidão as passagens dessa gravação em que se funda;

         c) – E deve desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma a demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável.

         Vide a este propósito os Acs. do STJ de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt.

         No caso em vertente, somos de entender que os apelantes deram cumprimento aos referidos ónus.

         Vejamos, então, a redacção dos pontos da base instrutória postos em crise no presente recurso, a resposta que obtiveram por banda do tribunal recorrido e a resposta que no entendimento dos recorrentes deveriam ter merecido.

         (…) passando a resposta ao mesmo a ser: “ Provado que, após a escritura referida em F), essa conta continuou a ser movimentada relativamente a transacções da farmácia “, alterando-se, em consonância com o decidido, a redacção do ponto  60. do elenco fáctico da sentença, cuja redacção passa a ser a seguinte:

         “ 60- Após a escritura referida em F) essa conta continuou a ser movimentada relativamente a transacções da farmácia. “

         (…)

          V- Passando, agora, à apreciação das demais questões suscitadas no acervo conclusivo, respeitantes estas ao mérito da causa, cumpre, desde logo, adiantar que a sentença recorrida considerou que o negócio de trespasse em discussão nos autos se trata de um negócio simulado e nulo, decisão essa com a qual, nessa parte, os recorrentes se conformam, como resulta do que expressamente a esse propósito os mesmos adiantam no discurso recursivo quando referem que  “ não podem estar mais de acordo com a decisão recorrida quando nela se decidiu que o negócio de trespasse é simulado, e nulo.”, pelo que se nos afigura desnecessário tecer quaisquer outras considerações para além das adiantadas na sentença recorrida no que concerne á apreciação de tal aspecto jurídico da causa, dando aqui por reproduzida, nessa parte, a mesma.

         Questão diferente e que importa apreciar é a que se prende com a possibilidade aventada pelos apelantes da existência de um negócio dissimulado ( doação ) válido por detrás do trespasse nulo e simulado.

         A tal propósito, há desde logo que adiantar que não resulta da matéria de facto provada ( nem mesmo depois da apreciação da impugnação que foi deduzida pelos apelantes à decisão da 1ª instância quanto à mesma ) que a negociação subjacente à escritura de trespasse nela aludida traduza qualquer doação feita pelos AA. ao R. João Edgar da farmácia K..., o que, aliás, se afigura de recorte impossível, visto que se trata de uma versão ( a da doação ) que nunca foi invocada nos articulados da acção, designadamente pelos réus a quem poderia aproveitar.

          Mas, mesmo que tal tivesse resultado provado, igualmente não poderia proceder a pretensão dos apelantes, pela seguinte ordem de razões:

            Nos termos do disposto no Artº 241º do C. Civil, «quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem simulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado» (nº 1); «se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei» (nº 2).

         Contempla-se em tal normativo legal a nele epigrafada simulação relativa.

         Na simulação relativa, como ensina o Prof. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pag. 473/474. “as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio jurídico de conteúdo diverso. Por detrás do negócio simulado ou aparente ou fictício ou ostensivo há um negócio dissimulado ou real ou latente ou oculto («colorem habet, substantiam vero alterum»).

         A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa tem a importância derivada de esta última gerar um problema solucionado pelo artigo 241º, nº 2. Enquanto o negócio simulado é nulo, e na simulação absoluta se não põe mais nenhum problema, na simulação relativa surge o problema do tratamento a dar ao negócio dissimulado ou real que fica a descoberto com a nulidade do negócio simulado”.

         Como se deixou salientado na sentença recorrida “ do exposto neste normativo resulta que, cumpridos, no negócio simulado, os requisitos de forma do negócio dissimulado, este poderá ser válido, posto que observadas as condições substanciais de validade do negócio dissimulado, pois este artigo dispõe que o negócio real ou dissimulado será objecto do tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação.

         A questão da validade do acto dissimulado coloca-se para a generalidade dos casos de simulação objectiva mas já não para todos os casos de simulação subjectiva.

          “ ( ... ) No caso de simulação por interposta pessoa, o acto dissimulado não é válido enquanto se não celebrar o segundo negócio, dada a falta de intervenção da pessoa a quem a coisa deveria, por hipótese, ser definitivamente transmitida”.

         Quer isto dizer que, independentemente da natureza do negócio dissimulado (o realmente querido ou oculto) o que se verificou aqui foi que o R. J (…) actuou como intermediário (tal como o havia feito a trespassante), emprestando a sua posição académica para ocultar uma situação jurídica que se criou em 1974.

         Porém, a verdade é que, mesmo a considerar os AA. como donos (o que os RR. não concedem e, por isso, seria logo aí improcedente a sua alegação quanto à defesa da propriedade da farmácia), estes (demandantes) não intervieram em qualquer negócio de trespasse, pelo que não há da sua parte qualquer expressão de vontade que possa aproveitar-se, ainda que em sentido divergente do declarado de molde a considerar-se válido ou existente um negócio dissimulado de transmissão entre AA. e R.

         Daí que se tenha considerado na sentença, ainda que não focada propriamente na doação como sendo no caso em vertente o negócio dissimulado, que nunca poderia considerar-se válido qualquer negócio – nem o negócio simulado, corporizado na escritura de trespasse porque ferido de nulidade por simulação, nem o pretenso negócio querido pelas partes porque este nunca chegou a realizar-se e nem sequer poderá aproveitar-se qualquer um dos realizados para fazer intervir nele os ocultos outorgantes – os ora AA.

         Tais considerandos, merecem a nosso integral acolhimento, pelo que mesmo que tivesse resultado provado – e não resultou – que a dita escritura de trespasse ocultou uma doação da farmácia dos AA. aos 1ºs RR., porque os AA. não tiveram qualquer intervenção na referida escritura publica de trespasse nunca poderia ter-se por válida essa doação.

         Resta, por fim, apreciar a questão também suscitada nas conclusões recursivas pelos apelantes que se prende com o facto de, segundo os mesmos, os AA. não terem alegado, e, consequentemente, não terem provado, o elemento intencional ou psicológico da posse, o animus, nem terem alegado, para provar, qualquer dos requisitos ou caracteres da posse, especialmente a posse pública (e não a oculta) e pacífica (sem violência ).

         Ao suscitarem tal questão nas alegações de recurso, os apelantes adiantam previamente em tais alegações que os AA. não alegaram por que modo adquiriram originariamente a farmácia em apreço e que a usucapião foi chamada à colação apenas na sentença por iniciativa da Mma. Juíza, sem que tal questão tenha sido levada às conclusões do recurso e sem também que de tal tomada de posição, assim apenas vertida nas alegações, resulte, sequer implicitamente, se os apelantes dissentem ou não da apreciação do direito de propriedade dos AA. sobre a farmácia ajuizada  com base na usucapião feito na sentença.

         Apesar disso, sempre diremos que se revelam assertivos os considerandos a esse propósito adiantados na sentença recorrida, citando A. Varela e P. de Lima, in Cód. Civil Anot., Vol. III, p. 71-72 no sentido de que “se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer com toda a probabilidade (até prova em contrário) aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente”, havendo, por isso, que entender que os AA. invocaram a aquisição originária da propriedade da farmácia em discussão com base nos factos que alegaram conducentes à usucapião pese embora não tenham feito referência expressa a esse instituto da usucapião.

         Dito isto, vejamos então se poderá proceder a pretensão dos recorrentes a respeito do facto de não ter resultado provado o elemento intencional ou psicológico da posse, o animus, nem qualquer dos requisitos ou caracteres da posse, especialmente a posse pública (e não a ocultas) e pacífica (sem violência ) e de também não terem os mesmos sido alegados.

         A apreciação de tal segmento recursivo passa, antes de mais, pela questão de saber se é possível a aquisição do estabelecimento comercial por via da usucapião, tema esse que foi profusa e correctamente abordado na sentença recorrida, na qual se veio a concluir, que o estabelecimento comercial, por ser susceptível de exercício possessório, pode ser adquirido por usucapião, conclusão essa com a qual não poderemos deixar de concordar, a qual, por isso, sufragamos por inteiro, assim como toda a argumentação jurídica que lhe está subjacente, a qual aqui se dá por reproduzida.

         Não se insurgindo contra tal entendimento defendido na sentença, o qual nem sequer questionam, os apelantes apenas dissentem da parte desta que considerou estarem verificados todos os caracteres da posse conducentes à aquisição por usucapião da dita farmácia.

         Nesse particular discorreu-se na sentença que “ ... do descrito acervo factual resulta verificado o elemento corpóreo da posse dos AA. e, bem assim, o seu elemento subjectivo o qual, ademais, se presume (artº 1252º, nº2 CC).

         Com efeito, os AA. têm agido como donos, gerindo a farmácia e dela retirando lucros, com animus possidendi e não apenas como meros detentores ou possuidores por conta de outrem uma vez que, ao longo do tempo, os titulares formais apenas surgiram como testas de ferro, não exercendo poderes de facto inerentes a qualquer propriedade.

         Está, por isso, perfectibilizada uma posse dos AA., correspondente ao exercício de poderes de facto conforme materializado supra, de forma pública, porque exercida de molde a ser conhecida pelos interessados, não avultando aqui o assunto da ocultação da propriedade real perante as autoridades administrativas, tema (propriedade) distinto da posse, e sendo certo que a posse existe mesmo não sendo válido o negócio causal ou subjacente.

            Com efeito, a posse é pública e não oculta, ainda que se tenha ocultado, na documentação, o nome dos AA. enquanto titulares, por força da proibição legal na época vigente. É que uma coisa é a publicidade da titularidade ou da propriedade e outra é a publicidade da posse, nos termos que é definida no artº 1262º CC. Na verdade, definindo-se a publicidade como sendo o exercício da posse de modo a poder ser conhecida pelos interessados, o carácter público da posse é relativo porquanto “a cognoscibilidade é apenas em confronto dos interessados e não das pessoas do círculo social onde a posse se localiza. Não é por isso necessário um consenso público: basta que o interessado venha a saber, por qualquer meio, que o sujeito possui a coisa, para que não logre opor-lhe, a partir de então, o carácter oculto da posse.

         Assim, no caso dos AA., é visível a sua posse desde 1974, mantida pública para os interessados, isto é, para as pessoas relativamente às quais, a cada momento, poderia colocar-se a questão do confronto com a titularidade, isto é, os primitivos proprietários (vendedores de 1974) e os sucessivos directores técnicos, sendo certo, dos factos provados, que tal situação era conhecida daqueles atenta a sucessão de eventos em que assentou a transmissão da propriedade de forma fictícia.

         A posse foi sendo, assim, exercida de forma pública e não oculta porquanto não houve qualquer comportamento dos AA. tendente a esconder a sua situação de poder de facto sobre a farmácia. (veja-se, desde logo, a transferência geográfica do estabelecimento da Sé Velha para a R. (...), da responsabilidade dos AA.).

         Para além disso, a posse é pacífica, porque não adquirida com recurso a violência, sem interrupções, conforme resulta apurado, e por tempo suficiente para levar à aquisição por usucapião ainda que se considere o tempo mais longo que a lei exige para aquisição dos imóveis possuídos de má fé e sem registo, que é de vinte anos (artº 1296º), sendo que, no caso, se nos afigura que, não estando em causa imóveis, se aplicaria o prazo de 10 anos do artº 1298º b) do CC.

         Acrescentamos, a finalizar, que a dominialidade por efeito da usucapião é possível porque, no decurso da posse, a proibição legal que vedava aos não licenciados em farmácias a titularidade de tal tipo de estabelecimentos deixou de existir em 2007 pelo que, apreciando-se hoje a situação, é já possível reconhecer o efeito jurísgeno da posse dos AA. sobre a farmácia “..

         Tal entendimento merece-nos total concordância e espelha em conjugação com a demais argumentação aduzida na sentença, que igualmente se sufraga e para a qual se remete, a verificação de todos os pressupostos conducentes à aquisição por usucapião a partir do acervo fáctico igualmente nela considerado.

         Acrescenta-se, ainda, que apesar da posse relevante para a usucapião ter de conter os dois elementos – corpus e animus – o artigo 1252, nº 2, do C.C., visando facilitar a prova do elemento psicológico, presume a posse em nome próprio naquele que exerce o poder de facto, isto é, naquele que tem o corpus.

         Como refere Orlando de Carvalho, in R.L. J., Ano 122, pág. 68 «não existe corpus sem animus. Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico real. Animus é essa intenção jurídico-real. É inferível, e exprime-se pelo poder de facto. A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou utilização lato sensu».

            Foi esta também a posição assumida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 14 de Maio de 1996: «Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa». DR, II Série, nº 144, de 24 de Junho de 1996.

         Resta, pois, concluir que, ao contrário do que pretendem os recorrentes, a sentença recorrida não merece qualquer censura, sendo por isso de manter na íntegra.

         IV- Sumário ( Art. 713º Nº7 C.P.C. )

         1. A distinção entre simulação absoluta e simulação relativa tem a importância derivada de esta última gerar um problema solucionado pelo artigo 241º, nº 2.

         2. Enquanto o negócio simulado é nulo, e na simulação absoluta se não põe mais nenhum problema, na simulação relativa surge o problema do tratamento a dar ao negócio dissimulado ou real que fica a descoberto com a nulidade do negócio simulado.

         3. Apesar de não ser expressamente invocada a usucapião enquanto forma de aquisição originária da propriedade se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente.

         4. Apesar da posse relevante para a usucapião ter de conter os dois elementos – corpus e animus – o artigo 1252, nº 2, do C.C., visando facilitar a prova do elemento psicológico, presume a posse em nome próprio naquele que exerce o poder de facto, isto é, naquele que tem o corpus


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         V- Decisão

         Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelos apelantes e confirmar a decisão recorrida.

         - Custas pelos apelantes.

                                              

                                               Coimbra, 2013.12.03

                                               Maria José Guerra (Relatora)

                                               Carvalho Martins

                                               Carlos Moreira