Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
165/10.3GASEL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIA DE GRAVAÇÃO
LEGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 05/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 9º DO DEC. LEI 39/95; 363º CPP; 32º CP
Sumário: 1.- A documentação é deficiente quando tiver sido omitida qualquer parte da prova ou esta se encontrar imperceptível, não permitindo ou impossibilitando a captação do sentido das palavras dos declarantes.

2.- A repetição da gravação da prova na parte não devidamente documentada só deve ocorrer quando a deficiência for influente no exame da causa, ou seja, essencial ao apuramento da verdade, inviabilizando o recurso efectivo da matéria de facto.

3.- Os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legítima defesa, são os seguintes:

“a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;

b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P.

c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente. “

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra .

      Relatório

            Pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo abreviado, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

MS..., divorciado, desempregado, residente no …, ...,

imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria praticado, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal.

O ofendido FM... deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, peticionando uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais , no valor de € 1.290,20.

Realizada audiência de julgamento - durante a qual foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial nos termos do art.358.º do C.P.P. -, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 2 de Novembro de 2010, decidiu:

- Absolver o arguido MS... da prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.143.º, n.º 1 do Código Penal pelo qual vinha acusado; e

- Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante FM..., por não provado e, em consequência, absolver o arguido do pedido.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o assistente FM..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1- A gravação que contém o registo da prova oral produzida em julgamento, a qual foi gravada através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no Tribunal Judicial de Seia, contém registos (e por largos períodos de tempo) de sons indecifráveis e imperceptíveis, tomando impossível a audição/percepção das perguntas formuladas e das respectivas respostas e declarações.

2- Tal acontece com as declarações prestadas pelo arguido logo no inicio e no fim do julgamento, com a instância efectuada ao arguido pelo Ex.mo Senhor Procurador (registos efectuados em 19/10/2010, das 14:52:07 às 15:13:20 e no dia 26/10/2010, das 16:10:39 às 16:18:31) e com os depoimentos de todos os restantes sujeitos processuais (assistente e testemunhas) na parte da instância do Ex.mo Sr. Procurador-Adjunto.

3- Esta circunstância, além de impedir o recorrente de ouvir sem restrições todo o teor dos actos praticados em julgamento e de assim poder efectivar em pleno o seu direito de recurso, impossibilitará e impedirá o Venerando Tribunal da Relação de conhecer a matéria de facto.

4- A plena perceptibilidade do conteúdo da gravação é essencial para o apuramento da verdade, uma vez que a apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso com vista à eventual modificação da decisão proferida está dependente da sua integral audição.

5- O diploma que regula a gravação e o registo da prova e a Lei 39/95, de 15 de Fevereiro, o qual não contempla qualquer normativo destinado a, no final da gravação, as partes e o tribunal poderem aferir da efectiva gravação e da sua qualidade, limitando-se a regular o modo como a gravação deve ser efectuada.

6- Do mencionado artigo colhe-se que o “remédio” para falhas graves (omissão ou imperceptibilidade da gravação) é a repetição da produção de prova, sempre que for essencial ao apuramento da verdade.

7- Assim, a omissão ou imperceptibilidade do registo da gravação dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento consubstancia omissão de acto que a lei prescreve e que tem influência no exame e na decisão da causa, uma vez que impede ou dificulta o cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P, traduzindo-se numa nulidade nos termos dos artigos 118.º e 120.º e seguintes do C.P.P. e 201.º e 205.º do Código de Processo Civil, aplicado ex-vi artigo 4.º do C.P.P.

8- Nulidade esta que só agora pode ser arguida, uma vez que a mandatária do Recorrente só no decurso do prazo para oferecer as alegações é que tomou conhecimento das apontadas deficiências técnicas, razão pela qual vem agora arguir a respectiva nulidade.

9- Assim, em consequência da nulidade arguida consubstanciada na omissão de gravação, quanto ás declarações prestadas pelo arguido logo no inicio, na fase da instância do Ex.mo Senhor Procurador (registos efectuados em 19/10/2010, das 14:52:07 às 15:13:20), e nas declarações finais prestadas no dia 26/10/2010, das 16:10:39 às 16:18:31, e quanto aos depoimentos de todos os restantes sujeitos processuais na parte da instância do Ex.mo Sr. Procurador-Adjunto, deverão ser anulados os depoimentos prestados e, em consequência, a decisão sobre a matéria de facto e a sentença, sendo assim repetido o julgamento.

10- Sem prescindir, e salvo o devido respeito, a Meritíssima Juiz “a quo” devia ter julgado não provados os factos dados como provados na decisão com os n.ºs 4, 15 e 16 e devia ter julgado provados os factos correspondentes às alíneas c) e d) dos factos que considerou não provados.

11- Devia ainda ter julgado provados os factos que a seguir se indicam e completado o ponto 14 dos factos provados, uma vez que são relevantes para a decisão e os mesmos imporiam, sem qualquer margem para dúvida, a prolação de uma decisão condenatória.

12- Na verdade, face à prova produzida em julgamento, nomeadamente às declarações do arguido, do assistente e das testemunhas, supra transcritos, aos documentos juntos aos autos, nomeadamente as peças processuais dos autos de processo especial de suprimento de consentimento n.º 456/09.6TBSEI, do 2o Juízo, que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Seia, e da fotografia de fls 135, a Meritíssima Juiz “a quo” devia ter dado também como provados os seguintes factos com relevância para a decisão:

- No dia 26 de Abril de 2010, o arguido encontrava-se muito exaltado e chamou muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.

- O arguido sempre se opôs à colocação de andaimes, tendo no dia 26 de Abril chamado a GNR pelo facto do assistente e dos seus trabalhadores terem retirado o portão que dava acesso ao terreno onde seriam montados os andaimes e não por causa das figueiras.

- As proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras tinham notificado os proprietários das figueiras, por carta registada com aviso de recepção, para estes procederem ao corte das mesmas, porque os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa, documentos estes que foram exibidos pelo assistente à GNR no dia dos factos.

- devia ainda ter sido aditado ao ponto 14 dos factos provados constante da decisão que: o assistente também estava munido da notificação e respectivo aviso de recepção da carta enviada à companheira do assistente para o corte das figueiras.

- A companheira do arguido, proprietária da casa e das figueiras, encontrava-se junto ao arguido no momento em que este agrediu o assistente.

- O empurrão provado em 1. foi forte.

- O arguido queria causar mau estar e molestar a saúde e o corpo do ofendido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

13- Assim, ao não decidir desta forma, a sentença recorrida violou o disposto, nomeadamente, nos artigos 124.º, n.º1 , 127.º e 374.º do Código Penal, pelo que deverá o Venerando Tribunal da Relação proceder à alteração da matéria de facto da decisão proferida pelo Tribunal " a quo" nos moldes agora requeridos.

14- O ora recorrente também não se conforma com absolvição do arguido da prática do crime de que vinha acusado, por verificação dos pressupostos da legítima defesa, e consequente absolvição do pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente.

15- O ora recorrente entende que, salvo o devido respeito, não se encontram preenchidos no presente processo os cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo necessários para a exclusão da ilicitude da conduta do arguido.

16- Na verdade, e desde logo, no processo em análise o arguido não confessou nem admitiu, em momento algum, que tenha agredido o assistente, tal como consta da motivação da decisão proferida pela Meritíssima Juiz "a quo";

l7- Ora, inexiste o elemento subjectivo da causa de exclusão da ilicitude, quando não se admite a agressão.

18- Assim, não se encontrando verificado este elemento subjectivo, não poderia ter havido a exclusão da ilicitude da conduta do arguido.

19- Acresce ainda referir que, mesmo mantendo os factos dados como provados e não provados da decisão proferida (com os quais o ora recorrente não concorda, como supra já expôs), não se encontram preenchidos também, salvo o devido respeito, todos os requisitos objectivos supra enunciados.

20- Com efeito, e desde 1ogo, a actuação do assistente não era ilícita (ao contrário do sustentado na decisão).

21- Na verdade, tendo em conta o teor da decisão judicial de suprimento do consentimento (a qual, refira-se, foi proferida após os requeridos terem vindo fazer referência, na sua contestação, à existência das figueiras), o facto objectivo dado como provado nos presentes autos de que a localização das figueiras impedia a colocação dos andaimes (ponto 17 dos factos provados), o disposto no n.º 3 do artigo 1.349.º e no n.º 1 do artigo 1.366.º do Código Civil e, ainda, a presença da GNR no local, não se poderá concluir que a actuação do assistente era ilícita.

22- Assim, a ausência de actuação ilícita exclui, desde logo, qualquer tipo de justificação ou exclusão de ilicitude.

23- Acresce ainda referir que o meio usado pelo arguido não foi idóneo a deter a agressão nem foi o menos gravoso.

24 - Na verdade, a agressão infligida pelo arguido naquele momento na pessoa do arguido não era de molde a evitar, tal como não evitou, o corte posterior de todos os ramos da figueira que impediam a colocação dos andaimes.

25- Acresce que a lei civil dispõe de mecanismos próprios para os lesados serem ressarcidos dos danos causados pela passagem forçada momentânea, os quais deveriam efectivamente ter sido accionados pela companheira do arguido, proprietária das figueiras, caso entendesse que havia lugar a tal.

26- Pelo exposto, a actuação do arguido sempre configuraria um abuso de defesa e não uma legítima defesa.

27- Refira-se também que mesmo admitindo, por hipótese, estarem preenchidos todos os requisitos da legítima defesa, no caso vertente sempre seria de considerar que houve excesso dos meios empregues, tendo em conta a relação entre os bens jurídicos protegidos (de um lado uma árvore, do outro uma pessoa!).

28- Pelo exposto, deve o arguido ser condenado pela prática do crime de que vinha acusado, na pena e medida a determinar por Vªs Exªs e, consequentemente, deverá ainda o arguido ser condenado no valor global de 1.290,00 € peticionado no pedido de indemnização civil, tendo em conta os factos do mesmo dados como provados na decisão.

29- Assim, ao absolver o arguido por considerar verificados os pressupostos da legitima defesa, violou a decisão recorrida o disposto, nomeadamente, nos artigos 31.º,n.ºs 1 e 2, 32.º, 33.º e 143.º , todos do Código Penal, pelo que deverá a mesma ser revogada.

30- Caso o Venerando Tribunal da Relação venha a alterar a matéria de facto constante da decisão, nos termos supra referidos, não restarão quaisquer dúvidas de que, neste caso, não se encontram de forma alguma preenchidos os requisitos da legítima defesa.

31- Com efeito, os factos que o assistente considera deverem ser julgados provados afastam liminarmente todos os requisitos necessários para a verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente da legítima defesa.

32- Assim, também neste caso deverá o arguido ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física previsto e punido no artigo 143.º do C.P.P., na pena e medida a determinar por Vªas Exªs e, consequentemente deverá ainda o arguido ser condenado no valor global de 1.290,00 € peticionado no pedido de indemnização civil, tendo em conta os factos do mesmo julgados provados na decisão.

33- Deste modo, deve a decisão proferida pelo Tribunal "a quo" ser revogada e o arguido condenado nos termos supra expostos.

            O Ministério Público respondeu ao recurso concluindo que não deve ser dado provimento ao recurso, com a consequente manutenção integral da decisão recorrida.

           

O arguido respondeu também ao recurso interposto pelo arguido pugnando pela improcedência de todas as conclusões do recurso e manutenção da decisão recorrida.

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser declarada a nulidade invocada pelo assistente, com a consequente remessa dos autos à 1.ª instância para repetição da prova deficientemente gravada e inaudível e, no caso de assim não se entenda, pugna pela improcedência do recurso.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

 

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      Fundamentação

           

Factos Provados:

Da acusação pública:

1. No dia …de 2010, cerca das …, no …, área desta comarca, o arguido MS... abeirou-se de FM... e deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado no chão.

2. Com a actuação descrita o arguido provocou em FM... dores e as seguintes lesões: "face: escoriação com 2 mm de diâmetro no sobrolho esquerdo; membro superior direito: escoriação com 2 cm x 2 cm no cotovelo direito; membro superior esquerdo: mão esquerda, 2 escoriações região hipotenar com 2 mm de diâmetro cada e escoriação do halo de equimose arroxeada com 1,5 cm por 0,5 cm no 1e espaço interdigital da mão esquerda", tendo tais lesões causado 7 dias de doença sem incapacidade para o trabalho.

3. O arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente, querendo e conseguindo atingir o ofendido.

4. O arguido ao actuar da forma provada 1. admitiu que poderia causar mau estar e molestar a saúde e o corpo do ofendido, conformando-se com tal resultado.

Do pedido de indemnização civil:

5. Em consequência das lesões provadas em 2. o assistente teve dores.

6. Esta agressão infligida pelo arguido foi bastante comentada pelos habitantes da população do lugar e freguesia de  …(local onde reside o arguido, onde foram infligidas as agressões ao assistente e onde passa habitualmente as suas férias, fins-de-semana e outros períodos de lazer), nomeadamente pelo facto de o ora assistente ter sido agredido na presença da G.N.R..

7. Como consequência desta situação, o assistente sentiu-se e ainda se sente angustiado, acabrunhado e entristecido.

8. As filhas do assistente, proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras, apenas deram início às mesmas depois do trânsito em julgado da sentença que decretou o suprimento do consentimento dos proprietários do prédio confinante, proferida no processo n.º 456/09.6 TBSEI, que correu termos no 2.º juízo deste Tribunal.

9. Em consequência da conduta do arguido, o assistente teve que se deslocar uma vez, em viatura própria, ao I.N.M.L. - Delegação da ....

Mais se provou que:

10. No âmbito dos autos de processo especial de suprimento de consentimento identificados em 8., as requerentes deduziram a seguinte pretensão: suprimento do consentimento dos requeridos “para que as requerentes possam levantar andaimes, fazer passar materiais e pessoal, por um período não superior a 30 dias, no prédio daqueles, identificado no artigo segundo, de forma que aquelas possam concluir as obras de beneficiação e restauro de que o seu prédio identificado no artigo primeiro está a ser objecto”.

11. A segunda requerida é companheira do arguido.

12. Os requeridos, citados para contestar, vieram dizer não se opor ao pedido, chamando, contudo, a atenção que a autorização que as requerentes pediam e de que necessitavam era apenas para reboco e pintura pelo que deveriam exercer apenas o seu direito para estes fins; no local onde as Autoras pretendiam colocar os andaimes existe uma figueira dos Réus, com mais de 20 anos, que deveriam preservar tal como se encontra.

13. No dia 04.11.2009 foi proferida sentença com o seguinte teor: “Atento os fundamentos de facto e de direito invocados pelas requerentes HP... e MM..., bem como a posição assumida pelos requeridos FC… e LS... a fls. 32 e ss., e tendo presente que não se vislumbra a necessidade de coligir quaisquer outras informações tendentes ao fim pretendido, determino o suprimento do consentimento em conformidade com os termos requeridos – 1425.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (C.P.C.).”

14. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., os militares da G.N.R. que se encontravam no local referiram ao arguido que teria que deixar cortar as figueiras existentes no local uma vez que o assistente estava munido de uma autorização judicial para o efeito.

15. O arguido praticou os factos descritos em 1. como forma de impedir que o assistente cortasse a segunda figueira, uma vez que não obstante a sua veemente oposição ao seu corte, a primeira árvore tinha sido já integralmente cortada e aquele se preparava para cortar a segunda.

16. O arguido nunca se opôs à colocação de andaimes mas apenas ao corte das árvores.

17. A localização das figueiras impedia a normal colocação dos andaimes.

18. O arguido vive com a sua companheira, em casa desta, equacionando, neste momento, a possibilidade de se separar e voltar para a sua terra, para casa de um irmão, que já lhe ofereceu ajuda.

19. O arguido encontra-se desempregado, auferindo o R.S.I. no valor de € 380,00, ao que acresce auxílio financeiro para aquisição de medicamentos que o arguido toma com regularidade.

20. A companheira do arguido recebe, também, o R.S.I. no valor de € 250,00, aproximadamente.

21. A companheira do arguido é proprietário de alguns prédios, entre os quais o prédio onde ocorreram os factos descritos em 1..

22. O arguido cultivou durante alguns anos o citado prédio, tratou as figueiras, tendo, juntamente com a sua companheira, uma grande estima pelas mesmas.

23. O arguido não é proprietário de qualquer viatura automóvel.

24. O arguido completou o 4.º ano de escolaridade.

25. O arguido não tem registo de antecedentes criminais.

Factos não provados:

a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. o arguido, de forma súbita e inesperada, desferiu uma pancada no ofendido com um sacho de que se encontrava munido, atingindo-o no braço esquerdo.

b) Alguns momentos depois, o arguido desferiu nova pancada no ofendido com o supra referido sacho, atingindo-o no peito.

c) O empurrão provado em 1. foi forte.

d) O arguido queria causar mau estar e molestar a saúde e o corpo do ofendido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

e) As dores provadas em 5. foram intensas e prolongaram-se por um período de aproximadamente 10 dias, provocando ao ofendido grande mau estar e incomodidade.

f) Desde a agressão, e por o arguido viver na casa que confina com a das suas filhas, que o demandante se sente bastante inseguro quando se encontra em …  

Motivação da decisão da matéria de facto:

Nos termos e para os efeitos dos artigos 97.º e 374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, para formar a sua convicção o Tribunal procedeu ao exame do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, maxime a valoração/apreciação crítica do documento junto aos autos a fls. 49 (factura do I.N.M.L.); peças processuais dos autos de processo especial de suprimento de consentimento n.º 456/09.6 TBSEI, do 2.º juízo deste Tribunal; fotografia de fls. 135, também, junta àqueles autos; exames periciais de fls. 35 a 37; C.R.C. do arguido, de fls. 97; declarações do arguido, do assistente/demandante cível e depoimento das testemunhas, tudo conjugado com regras da experiência comum e do normal acontecer.

Importa em primeiro lugar referir que a factualidade objecto dos presentes autos foi consentânea e unanimemente circunstanciada ao nível espacio-temporal por todas as testemunhas presenciais e, ainda, pelo próprio arguido e assistente.

A partir daqui começaram, então, as contradições ao nível da prova, relativamente à concreta dinâmica dos acontecimentos - agressões perpetradas pelo arguido ao assistente - uma vez que foram transmitidas ao Tribunal versões totalmente distintas dos factos.

Assim, começou o arguido por circunstanciar, por reporte a outros acontecimentos anteriores, a sua oposição ao corte das árvores. Apesar de ter introduzido uma motivação acrescida à agressão ao ofendido, a qual não resultou, também, demonstrada, o arguido transmitiu ao Tribunal uma enorme e sincera revolta relativamente à atitude daquele que, desculpando-se com a colocação de andaimes, acabou por lhe cortar totalmente uma das árvores pela qual tinha tanta estima e parcialmente outra.

Assim, e no que concerne aos factos que lhe vêm imputados o arguido, negou, a versão constante do libelo acusatório, referindo que no momento que viu o assistente a cortar a segunda árvore e lhe dirigiu algumas palavras aquele se virou para si com a serra na mão e lhe disse “até te corto a ti”, instante em que, para se defender, lhe bateu com o sacho, que tinha na mão, na serra e ele caiu para o chão.

Por ter sido, de imediato, detido, o arguido referiu não ter presenciado mais nada do que aconteceu no local.

Esta versão dos factos relatada pelo arguido não foi confirmada por nenhuma das testemunhas que aí se encontravam presentes e que, por terem merecido o convencimento do Tribunal, nos termos que infra explicitaremos, fizeram com que o Tribunal não atribuísse qualquer relevância probatória, nesta parte, ao referido pelo arguido.

O assistente, FM..., prestou declarações de forma bastante exaltada, emotiva e notoriamente exagerada, o que foi possível atestar pelo confronto do seu relato dos acontecimentos com todos os demais produzidos em audiência de discussão e julgamento, e, ainda, contraditória com o referido pelas demais testemunhas presentes no local, motivo pelo qual o Tribunal não lhe atribuiu qualquer credibilidade.

Assim, depois de relatar toda uma série de episódios de conflito de vizinhança, o assistente referiu que antes de chegar a G.N.R. ao local, o arguido lhe bateu com um sacho e só não lhe bateu mais porque uma testemunha o impediu.

Posteriormente referiu que já na presença da G.N.R. no local o arguido lhe deu um soco e ao mesmo tempo com o sacho, momento em que caiu.

O assistente admitiu que nesse momento já tinha cortado por completo o tronco da primeira figueira e que a electrosserra estava desligada.

Por não lhe ter atribuído nenhuma credibilidade, com base no que supra referimos e infra analisaremos, o Tribunal ficou, igualmente, convencido que o referido pelo assistente relativamente às consequências das lesões decorrentes da queda enfermaram do mesmo exagero que caracterizou as suas declarações.

AR..., militar da G.N.R. em exercício de funções no Posto Territorial de ..., relatou ao Tribunal a forma como foram chamados ao local pelo assistente e o que verificaram quando aí chegaram.

Depois de ter dito que o assistente tinha autorização do Tribunal para cortar as figueiras e colocar andaimes no prédio do arguido, disse, então, que, sempre na sua presença, o assistente procedeu ao corte completo da primeira figueira e quando se preparava para cortar a segunda foi empurrado pelo arguido.

Referiu que o assistente tinha a electrosserra ligada, que o empurrão foi só um, de frente, e sem auxílio de nenhum outro instrumento.

Mais confirmou que a motivação do arguido para o empurrão foi a sua oposição ao corte das árvores e que se exponenciou no momento em que percebeu que o assistente se preparava para cortar a segunda.

Porque revestido de enorme distanciamento e muito circunstanciado, o Tribunal atribuiu total credibilidade a esta testemunha, em detrimento das demais que depuseram de forma contraditória.

Já HH…, construtor civil que prestava serviços para o assistente relatou os factos de forma diversa.

Disse, tal como o assistente, que a agressão perante os militares da G.N.R. consistiu numa agressão com um sacho e com as mãos, em simultâneo, sendo que já anteriormente o arguido tinha agredido o assistente com o mesmo sacho.

Em total contradição com tudo o referido pelas demais pessoas presentes no local, esta testemunha referiu que todas as agressões perpetradas pelo arguido o foram já com a presença dos militares da G.N.R. no local, sendo que ambos os militares inquiridos garantiram que estiveram sempre na companhia do assistente, que os aguardava na estrada e que para além do empurrão não houve qualquer outra lesão.

Também em total contradição com tudo o demais referido, esta testemunha disse que aquando da segunda agressão o assistente se encontrava aninhado junto da figueira, tendo ficado, depois, sentado e batido com a cabeça numa parede aí existente.

Por não se ter atribuído qualquer credibilidade a esta testemunha não relevou o Tribunal o por si referido no que concerne às consequências da agressão no assistente e que disse, de forma manifestamente exagerada ter percepcionado, nos dias seguintes.

Também FG... referiu ao Tribunal andar a trabalhar na obra do assistente e ter assistido aos factos objecto do processo.

Esta testemunha apresentou um depoimento muito mais sério, isento, imparcial e, por isso credível.

Depois de ter referido que o arguido não chegou a, num primeiro momento, bater no assistente, porque impedido a tal, a testemunha confirmou a dinâmica dos factos nos exactos termos que nos foram transmitidos pelos militares da G.N.R..

Disse, então, que nos dias seguintes o assistente apresentava lesões e queixava-se com algumas dores, descrevendo a perturbação que tal situação lhe provocou.

Já a terceira pessoa que trabalhava na obra e que se encontrava no local, ZF…, não tendo presenciado a dinâmica dos acontecimentos, apenas relatou a forma como viu o assistente nos dias seguintes.

HP..., filha do assistente, não tendo presenciado os factos objecto do processo apenas atestou o estado de exaltação em que o pai ficou na sequência deste episodio.

Por ter denotado uma enorme animosidade relativamente ao arguido e transmitido os factos de forma um pouco exacerbada, o seu depoimento foi considerado pelo Tribunal com alguma moderação, não permitindo ir mais além do que a prova dos factos constantes do pedido de indemnização cível nos exactos termos que supra resultaram assentes.

A testemunha BD..., militar da G.N.R. também presente no local, descreveu os factos nos exactos termos transmitidos pela sua colega, garantindo que o arguido apenas desferiu um empurrão no assistente que o fez desequilibrar e cair par ao chão.

Mais assegurou que a "luta" do arguido radicava, unicamente, na oposição ao corte das árvores.

Quanto às circunstâncias pessoais do arguido provadas (situação económica, familiar e profissional), foram consideradas as declarações por este prestadas, que nos mereceram credibilidade.

No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, relevou o C.R.C. do mesmo, junto aos autos a fls. 97.

A factualidade referida em a); b); c) e d) e, ainda, em e) e f) resultou não provada, a primeira em face da ausência de prova concludente nesse sentido, e a segunda em face do que supra se referiu relativamente ao exagero das declarações prestadas pela filha do assistente que nesta parte não nos mereceram credibilidade.

Para prova da factualidade assente em 3. e 4. recorreu o Tribunal às regras de presunção natural, uma vez que os factos objectivos dados como provados permitem concluir pela sua efectiva verificação.

Em todos estes elementos assentou a convicção deste Tribunal.

No que concerne à demais matéria constante do articulado do pedido de indemnização cível, por se tratar de matéria conclusiva, de direito e juízos de valor não pôde sobre a mesma recair qualquer juízo probatório.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do assistente FM..., as  questões a decidir são as seguintes :

- se a deficiente gravação das declarações prestadas pelo arguido e depoimentos prestados pelos restantes sujeitos processuais, configura uma nulidade, nos termos dos artigos 118.º e 120.º e seguintes do C.P.P. e artigos 201.º e 205.º do Código de Processo Civil, aplicados ex-vi artigo 4.º do C.P.P. e, consequentemente, devem ser anuladas as citadas declarações e depoimentos e repetido o julgamento;

- se da prova produzida em julgamento e transcrita na motivação, resulta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto , violando o disposto nos artigos 124.º, n.º1, 127.º e 374.º do C.P.P., pois deveria ter dado como não provados os pontos n.ºs 4, 15 e 16 dos factos que deu como provados; devia ter dado como provados os factos correspondentes às alíneas c) e d) dos factos dados como não provados na sentença recorrida; devia ter dado como provado que “No dia 26 de Abril de 2010, o arguido encontrava-se muito exaltado e chamou muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.”, “O arguido sempre se opôs à colocação de andaimes, tendo no dia 26 de Abril chamado a GNR pelo facto do assistente e dos seus trabalhadores terem retirado o portão que dava acesso ao terreno onde seriam montados os andaimes e não por causa das figueiras.”, “As proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras tinham notificado os proprietários das figueiras, por carta registada com aviso de recepção, para estes procederem ao corte das mesmas, porque os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa, documentos estes que foram exibidos pelo assistente à GNR no dia dos factos.” e, devia ainda ter sido aditado ao ponto 14 dos factos provados constante da decisão que “o assistente também estava munido da notificação e respectivo aviso de recepção da carta enviada à companheira do assistente para o corte das figueiras.”, “a companheira do arguido, proprietária da casa e das figueiras, encontrava-se junto ao arguido no momento em que este agrediu o assistente.”, o empurrão provado em 1. foi forte e “O arguido queria causar mau estar e molestar a saúde e o corpo do ofendido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”;

- se não se verificam os pressupostos da legitima defesa, pelo que o arguido deve ser condenado pelo crime de que vinha acusado e no valor da indemnização peticionado.

            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

            O art.363.º do Código de Processo Penal, na redacção originária, estabelecia que as declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal poder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.  

Durante a vigência deste preceito, cuja primeira parte era tida como norma programática, virada para o futuro, o STJ fixou jurisprudência, no sentido de que “ a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.” .[4]      

Esta decisão do STJ referenciava as consequências da omissão de documentação das  declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento; não se pronunciava sobre as consequências resultantes de documentação deficiente da prova produzida oralmente, designadamente por gravação deficiente. 

Com as alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o art.363.º, passou a estabelecer que «as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.». 

A nova redacção dada ao art.363.º do Código de Processo Penal, determinou a caducidade da 

Jurisprudência n.º 5/2002, pois dela resulta que a omissão de documentação das  declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, determina a existência de nulidade.

Cremos que as mesmas consequências terão lugar perante a situação de deficiente documentação da prova produzida oralmente, pois em qualquer dos casos.

Não estando a nulidade, a que alude o art. art.363.º do Código de Processo Penal incluída na enumeração taxativa do art.119.º, ou de outra disposição legal, a nulidade em causa será uma nulidade dependente de arguição, sujeita ao regime do art.120.º do mesmo Código.

Previamente à decisão de saber até quando pode ser colocada a questão da deficiente documentação, perante quem, se o tribunal de recurso pode mesmo conhecer dela oficiosamente, e o que deverá determinar o tribunal de recurso perante o reconhecimento da nulidade, importa esclarecer se basta uma qualquer deficiência de gravação da prova para a declaração dessa nulidade e se, no caso presente, se verifica uma deficiência de gravação da prova que determine a declaração dessa nulidade.

A documentação da prova produzida oralmente em audiência tem, actualmente, em vista permitir um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de prova, permitindo ao tribunal de recurso ouvir as passagens que os recorrentes indicarem, nos termos do art.412.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal.

O art.9.º do DL. n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, estatui, por sua vez, que « se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.».

A documentação é deficiente quando foi omitida qualquer parte da prova ou esta se encontra imperceptível, não permitindo ou impossibilitando a captação do sentido das palavras dos declarantes.

Quando a deficiência for influente no exame da causa, ou seja, essencial ao apuramento da verdade, inviabilizando o recurso efectivo da matéria de facto, impõe-se a repetição da gravação da prova na parte não devidamente documentada, por parte do tribunal a quo.

A decisão da presente questão impõe que o Tribunal da Relação apure, ouvindo as respectivas gravações de prova, se existem ou não deficiências no registo das declarações tidas como relevantes pelo recorrente; de seguida, e em caso afirmativo, se essas deficiências inutilizam no todo ou em parte a documentação efectuada; e, por fim, se as deficiências são irrelevantes ou, pelo contrário, incidem em aspectos essenciais ao apuramento da verdade.

O recorrente FM... alega que a gravação da prova produzida oralmente contém registos de sons indecifráveis e imperceptíveis, tornando impossível a audição/percepção das perguntas formuladas e das respectivas respostas, o que acontece com as declarações prestadas pelo arguido logo no inicio, na fase da instância do Ex.mo Senhor Procurador em 19/10/2010  (das 14:52:07 às 15:13:20), e nas declarações finais prestadas no dia 26/10/2010 ( das 16:10:39 às 16:18:31), com as declarações dos restantes sujeitos processuais, na parte da instância do Ex.mo Sr. Procurador-Adjunto.

Esta circunstância, além de impedir o recorrente de ouvir sem restrições todo o teor dos actos praticados em julgamento e de assim poder efectivar em pleno o seu direito de recurso, impossibilitará e impedirá o Tribunal da Relação de conhecer a matéria de facto.

Na sequência da informação da secretaria judicial, de folhas 233, a Ex.ma Juíza do Tribunal a quo esclareceu, em despacho de 28 de Janeiro de 2011, que parte das gravações são imperceptíveis.

O Ministério Público, na Comarca de Seia, sustenta, por sua vez, que a prova gravada em audiência de julgamento se mostra perceptível, não obstante certos ruídos que por vezes, são escutados, não se verificando qualquer deficiência que comprometa a compreensão da prova e que afecte a impugnação da matéria de facto fixada.   

Vejamos.

O recorrente FM...especifica como relevantes para impugnação da matéria de facto as declarações do arguido, as suas próprias declarações, e os depoimentos das testemunhas AR…, ZF... e HP…, os quais, ainda assim, não deixa de transcrever longamente na motivação do recurso.

Em termos gerais, é essencialmente aquando da intervenção do Ex.mo Magistrado do Ministério Público, que as declarações exigem particular atenção na audição, por serem, por vezes, proferidas em tom baixo. 

A respeito das declarações prestadas pelo arguido, logo no inicio, na fase da instância do Ministério Público em 19/10/2010, diremos, tal como se refere na resposta ao recurso do Ministério Público, que escutadas com a devida atenção e com o volume elevado são entendíveis.

As declarações prestadas pelo arguido, a instâncias do Ministério Público, que vão do minuto 6:30 ao minuto 8:28 são completamente perceptíveis.    

Nas declarações finais prestadas pelo arguido, no dia 26/10/2010, durante cerca de 1 minuto, uma ou outra palavra é imperceptível. Nessa parte, em que existem ruídos de fundo , percebe-se que o arguido insurge-se, designadamente, contra o depoimento de um guarda, que alega ter mentido na audiência.

Com referência a essa parte final e reproduzindo boa parte das declarações do arguido na motivação, o recorrente escreve que em dado momento o arguido respondeu: “ Quero sim, Sr.ª Drª ( não se percebe) mentiu …”.

Da audição da gravação desta parte final resulta claro para o Tribunal da Relação, que o arguido respondeu: “ Quero sim, Sr.ª Drª, o guarda mentiu …”

Salvo ainda o devido respeito, embora com ruído de fundo, são perfeitamente perceptíveis os últimos minutos das declarações do arguido, que prestou a propósito da sua situação social e económica.

As declarações do assistente FM..., prestadas no dia 19-10-2010, a instâncias do Ministério Público, e constantes do minuto 10:36 a 14:19, surgem claras na gravação, e quanto às perguntas do Ministério Público, embora surjam em tom baixo, são perceptíveis. 

O depoimento da testemunha AR...não apresenta qualquer deficiência a nível de gravação, designadamente nos minutos 14:10 a 17:30, em que responde ao Ministério Público.

Não tem assim razão de ser a transcrição constante de folhas 13 da motivação do recurso quando a propósito de várias respostas dadas pela testemunha AR…, se menciona “Sr. Procurador: Portanto ( não se percebe)”, pois da gravação resulta que foi perguntado: “Portanto, já tinha havido problemas?”; nem quando se menciona “Sr. Procurador: ( não se percebe)”, pois da gravação consta que foi perguntado:  “Sr. Procurador: Ele deixou entrar, não deixou entrar?”.  

As respostas dadas a instâncias do Ministério Público, pela testemunha HH… ( durante quase 7 minutos), testemunha FG...( durante cerca de 7 minutos), e  testemunha ZF... ( cerca de 3 minutos), são perfeitamente perceptíveis e as perguntas respectivas, embora em tom baixo, ouvem-se razoavelmente bem.   

A testemunha HP…, prestou um depoimento perfeitamente perceptível, sendo que não vislumbrámos da gravação que tenha respondido a qualquer pergunta do Ministério Público.

Até o depoimento da testemunha BD…, tido como relevante na fundamentação da sentença, embora com ruídos de fundo, é perceptível, sem dificuldades de entendimento.

Em suma, tendo-se constatado a existência de deficiências no registo de algumas declarações, nos termos citados, elas permitem, ainda assim, a captação do sentido das palavras dos declarantes prestadas em audiência, permitindo o recurso de impugnação da matéria de facto.

A própria transcrição da matéria de facto que serve de base à impugnação da sentença recorrida aponta nesse sentido.

Não configurando as deficiências de gravação das declarações prestadas pelo arguido e depoimentos prestados pelos restantes sujeitos processuais, uma nulidade, improcede a primeira questão objecto de recurso.

Passemos ao conhecimento da segunda questão.

O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º do C.P.P.).

Porém, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as seguintes condições, enunciadas no art.431.º do mesmo Código:
  « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
     b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
     c) Se tiver havido renovação de prova.”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento. 
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P..
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
     c) As provas que devam ser renovadas

E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal:
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação
Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, quando o recorrente tenha procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões.[5] 

Cremos que actualmente, face à redacção que foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, ao art.417.º, n.º 3 do C.P.P., é inequívoco que as especificações do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do mesmo Código, devem constar das conclusões, uma vez que « Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.».  
Deste preceito resulta ainda que se a falta das indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, atinge quer as conclusões, quer a motivação, não há lugar ao convite de aperfeiçoamento das conclusões.

No presente caso, o recorrente FM... especifica, nas conclusões da motivação, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, mas não faz menção às passagens da prova produzida oralmente em que se fundamenta a impugnação, por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, do C.P.P..

Embora nas conclusões da motivação não faça esta menção, o recorrente localiza na motivação do recurso, as sessões e o local das gravações, com transcrição das passagens concretas das declarações e depoimentos em que funda a impugnação, pelo que consideramos  que o recorrente FM...deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P.. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, o Tribunal da Relação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.
Antes de passar ao conhecimento directo da questão, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.
É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[6].

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”[7].

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação  diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) . Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”.[8]

Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções, segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.

Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.[9]

Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Os artigos 124.º, n.º 1 e 374.º do Código de Processo Penal, que a este propósito o recorrente alega terem sido violados pelo Tribunal a quo, dispõem, respectivamente, sobre o objecto da prova e sobre os requisitos da sentença.

De acordo com o disposto no art.124.º, n.º1, do Código de Processo Penal, o tema da prova pode ser « todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.» 

O art.374.º do C.P.P., estabelece , por sua vez, os requisitos gerais da sentença, que divide em três partes: relatório, fundamentação e dispositivo.  

O cerne da sentença é a fundamentação, que consta da « enumeração dos factos provados e não provados (de acordo com o estabelecido nos artigos 368.º, n.º 2 e 369.º do C.P.P.), bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.».   

Nas conclusões da motivação do recurso, o assistente FM... sustenta que foram incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto que especifica, remetendo para as declarações do arguido, do assistente e das testemunhas AR…, ZF... e HP…, transcritas na motivação, e ainda para as peças processuais dos autos de processo especial de suprimento de consentimento n.º 456/09.6TBSEI, do 2.º Juízo, que correu os seus termos no Tribunal Judicial de Seia, e para a fotografia de fls 135.

Em sede de motivação do recurso, após transcrever as partes das suas próprias declarações e do arguido MS..., e os depoimentos das testemunhas AR… e HP…, referiu apenas e em concreto, o seguinte:

    “ Assim, compulsadas as declarações do arguido, verifica-se que este confessa e reconhece que a sua companheira já tinha recebido uma intimação das filhas do assistente para cortar a figueira, facto este que foi confirmado espontaneamente pelo assistente e pela testemunha HP…, os quais referem que tinham notificado a companheira do assistente para cortar as figueiras em virtude das raízes das mesmas estarem introduzidas por baixo da casa de habitação e dos troncos e ramos das mesmas também já invadirem/propenderem sobre a casa.

Por sua vez a testemunha AR… referiu também que o assistente lhe mostrou cartas e avisos de recepção desta notificação e a sentença do Tribunal que permitia a colocação dos andaimes.

    O arguido refere ainda nas suas declarações, no início e no fim do julgamento, que chamou a GNR por causa do portão que ao assistente e os seus trabalhadores tinham arrancado para colocar os andaimes e não por causa das figueiras.

     O assistente e as testemunhas AR…, ZF... e HP...referem ainda que o arguido sempre se opôs à colocação de andaimes, o que fez nomeadamente no dia referido na acusação e antes do corte de qualquer figueira.

     O arguido também confessa e reconhece nas suas declarações que a sua companheira, proprietária da casa e das figueiras, se encontrava junto a si no momento em que agrediu no assistente.

    As testemunhas  também referiram que no dia dos factos o arguido se encontrava muito exaltado e que tinha chamado muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.

     A testemunha FG..., cujo depoimento foi considerado como isento e totalmente credível por parte da Meritíssima Juiz “a quo”, o qual se encontrava próximo do arguido e do assistente no momento da agressão, referiu de forma clara e por diversas vezes que o empurrão que o arguido desferiu no assistente foi forte , violento, com intensidade e destinava-se a agredi-lo e não a impedir o corte da figueira.”. 

Daqui resulta, no entender do recorrente, o seguinte:

- que o Tribunal a quo deveria ter dado como não provados os pontos n.ºs 4, 15 e 16 dos factos que deu como provados;

- que devia ter dado como provados os factos correspondentes às alíneas c) e d) dos factos dados como não provados na sentença recorrida;

- que devia ter dado como provado que “No dia 26 de Abril de 2010, o arguido encontrava-se muito exaltado e chamou muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.”, “O arguido sempre se opôs à colocação de andaimes, tendo no dia 26 de Abril chamado a GNR pelo facto do assistente e dos seus trabalhadores terem retirado o portão que dava acesso ao terreno onde seriam montados os andaimes e não por causa das figueiras.”, “As proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras tinham notificado os proprietários das figueiras, por carta registada com aviso de recepção, para estes procederem ao corte das mesmas, porque os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa, documentos estes que foram exibidos pelo assistente à GNR no dia dos factos.”;

- devia ter sido aditado ao ponto 14 dos factos provados constante da decisão que “o assistente também estava munido da notificação e respectivo aviso de recepção da carta enviada à companheira do assistente para o corte das figueiras.”,

- devia ter sido dado como provado que “a companheira do arguido, proprietária da casa e das figueiras, encontrava-se junto ao arguido no momento em que este agrediu o assistente.”;

- que devia ter sido dado como provado que o empurrão provado em 1. “foi forte”; e

- que “O arguido queria causar mau estar e molestar a saúde e o corpo do ofendido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”.

Posto isto, diremos que o Tribunal da Relação ouviu integralmente as declarações do arguido e do assistente, bem como os depoimentos das testemunhas e pode afirmar que, no geral, os segmentos transcritos correspondem ao que consta das gravações, anotando-se que várias vezes omitem-se parágrafos quando são desfavoráveis às pretensões do recorrente.  

Começa o recorrente por alegar que o arguido MS... confessa e reconhece que a sua companheira já tinha recebido uma intimação das filhas do assistente para cortar a figueira e que este facto foi confirmado pelo assistente e pela testemunha HP…, que acrescentaram ter essa notificação sido feita em virtude das raízes estarem introduzidas por baixo da casa de habitação e dos troncos e ramos das mesmas também já invadirem/propenderem sobre a casa.

Mais menciona, o recorrente, que a testemunha AR… declarou também que o assistente lhe mostrou cartas e avisos de recepção desta notificação e a sentença do Tribunal que permitia a colocação dos andaimes.

Sobre esta questão, o arguido afirmou que já havia “problemas” com as filhas do assistente antes da acção se suprimento de consentimento, sendo que antes de terem proposto aquela acção as filhas do assistente lhe enviaram uma carta a “ intimar-nos para cortamos as figueiras, intimarem-nos , ham, senão que as cortavam eles.”.

Sobre a dita carta, referiu o assistente FC..., nomeadamente, o seguinte:

Assistente: Foi-me autorizado pelo Tribunal a montagem do andaime.

Juíza: Do andaime. Não tinha nada a ver com a figueira?

Assistente: A figueira, mandou-se uma carta a dizer que tinha que cortar a figueira.

Juíza: Aquilo que eu lhe estou a perguntar é, a autorização que o senhor conseguiu do Tribunal só autorizava a colocação de andaimes? 

Assistente: Penso que sim , que foi só os andaimes, não sei.

O assistente menciona ainda que tinha alertado para a situação de terem plantado indevidamente uma figueira junto à sua casa, cujas raízes entram dentro de casa.

Do depoimento da testemunha HP…, filha do assistente, não resulta que tenha enviado uma carta ao arguido ou à companheira, mas sim que tomou todas as providências para executar as obras fazendo um processo próprio no tribunal porque eles disseram que não deixavam colocar os andaimes porque o terreno era deles. Tinha noção que existia uma figueira no terreno onde pretendiam colocar os andaimes porque ela entrava-lhe pelas janelas e “as raízes davam cabo da casa”. 

A testemunha AR… declarou, a este propósito, que foram ao local porque o assistente tinha uma autorização judicial para colocar lá uns andaimes e a GNR foi lá porque ele precisava de cortar também uma figueira e aparar outra e o arguido não deixava, dizendo que “ a carta que lhe tinha feito com aviso de recepção para aparar a árvore que aquilo não tinha validade nenhuma”. O assistente “ já havia notificado a proprietária que teria de aparar as árvores para, porque estavam contra a parede da casa dele, e ele tinha o direito. E ele mostrou-nos esse pedido, mostrou-nos o aviso de recepção.”.

Cremos que com esta prova quer o recorrente que se dê como provado, o seguinte facto, que atrás alega: “As proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras tinham notificado os proprietários das figueiras, por carta registada com aviso de recepção, para estes procederem ao corte das mesmas, porque os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa, documentos estes que foram exibidos pelo assistente à GNR no dia dos factos”.

Servirá ainda a mesma prova, certamente, para o aditamento pretendido ao ponto n.º 14 dos factos dados como provados, isto é, que o assistente estava ainda munido da notificação e respectivo a/r da carta enviada à companheira do assistente para o corte das figueiras.

Vejamos.

O recorrente FM...considera uma confissão, a declaração do arguido MS... de que este e a companheira receberam uma carta das filhas do assistente a intimá-los para cortarem as figueiras, senão que as cortavam elas.

Acontece que a confissão é o reconhecimento de um facto que desfavorece o seu ponto de vista e favorece o da parte contrária e o Tribunal da Relação não vislumbra a razão pela qual o facto desfavorece o arguido e favorece o assistente.

O envio de uma carta particular, com a/r, aos proprietários da(s) figueira(s), não determina nestes qualquer estado de sujeição, designadamente a sujeição à destruição de bens próprios, tanto mais que não vemos em lado algum o reconhecimento pelo arguido de que as raízes da figueira(s) se introduziram por baixo da casa das filhas do assistente, danificando-a.  

Embora os factos essenciais para a decisão da causa sejam saber se o arguido agiu com o fim que se deu como provado no ponto n.º 15 ou, antes, com o fim que se deu como não provado na al. d) dos factos dados como não provados na sentença, os factos agora em causa têm alguma relevância para a solução justa da causa, considerando que o arguido sustenta que o assistente quis, através do pedido de colocação dos andaimes no quintal, ainda um outro objectivo, que foi o corte da figueira, a que sabia que os donos dela se opunham, como resulta dos pontos n.ºs 10 a 12 dos factos dados como provados.

 Assim, nos termos do art.431.º, n.º1, al. b), do C.P.P., acrescenta-se à matéria de facto provada um novo ponto, com o n.º 26 , com a seguinte redacção:

As proprietárias do imóvel onde eram realizadas as obras tinham enviado aos proprietários das figueiras, uma carta registada com aviso de recepção, intimando-os a procederem ao corte das mesmas, porque alegadamente os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa, documentos estes que foram exibidos pelo assistente à GNR no dia dos factos”.

O que o recorrente pretendia com o aditamento ao ponto n.º 14 dos factos dados como provados, fica assegurado neste novo ponto.

O recorrente FM...alega, seguidamente, que o arguido declarou que chamou a GNR por causa do portão que o assistente e os trabalhadores tinham arrancado para colocar os andaimes e não por causa das figueiras.

Da audição das declarações do arguido MS... resulta que este declarou, designadamente, que o assistente chegou ao local, mais uns homens, a querer arrombar a porta do quintal, tendo pedido um arranca pregos aos homens. O arguido disse-lhe “ eu já abro a porta”. Tendo o assistente respondido “ o senhor aqui não manda nada”, foi chamar a GNR, sendo que quando esta chegou a porta já estava arrancada.  

Cremos que com aquela declaração do arguido pretenderá o recorrente que o Tribunal da Relação acrescente aos factos provados que o arguido chamou, no dia 26 de Abril,  “… a GNR pelo facto do assistente e dos seus trabalhadores terem retirado o portão que dava acesso ao terreno onde seriam montados os andaimes e não por causa das figueiras.”.

Vejamos.

A situação descrita, tal como o arguido a descreve, configura, prima facie, um dano voluntário por parte do assistente que, sem necessidade para tal, arrancou o portão do quintal da companheira do arguido.

Nessa altura, é razoável que o pedido de comparência da GNR fosse efectuado por esse motivo.

Quando foi perguntado ao arguido se sabia que as pessoas estavam ali com autorização do Tribunal, respondeu “ Sim senhor, sabia sim senhor”, logo acrescentado “ Sabia que iam colocar andaimes, não para cortar figueiras.”.  

Se não sabia que o assistente ia para cortar figueiras, tendo começado, sim, por arrancar o portão do quintal, é racional que o arguido não tivesse pedido a comparência da GNR por causa das figueiras e do seu corte.

De todo o modo não vislumbramos no facto qualquer interesse para a decisão da causa.

Ainda no âmbito da primeira parte deste facto, o arguido pretende que se dê como provado que “ o arguido sempre se opôs à colocação de andaimes”, facto que é também objecto de impugnação no ponto n.º 16 dos factos dados como provados, enquanto se considera que o arguido nunca se opôs à colocação de andaimes, mas apenas ao corte das árvores. 

Para este efeito invoca o recorrente as suas próprias declarações e os depoimentos das testemunhas AR…, ZF... e HP… .

Sobre esta questão o assistente FM...declarou, designadamente, que antes dos factos em causa, enviou uma carta com A/R à senhora que vive com o arguido porque precisava de montar o andaime nas traseiras, mas que eles lhe disseram que não autorizavam, só com pedido do Tribunal e “ Ora bem, eu fiz este processo, entretanto como eu tinha alertado para a situação de uma figueira que eles plantaram indevidamente junto à minha casa, a cerca de 40 cm e cujas raízes entram dentro de casa e segundo a lei não é permitido, isso tem feito coisas do arco da velha nesse sentido, de forma que eu pedi autorização pelo tribunal a montagem do andaime.”.   

Quando foi para montar o andaime não lhe permitiram, pelo que chamou a GNR.

A testemunha AR...declarou sobre esta matéria, nomeadamente, que o arguido deixou o assistente no quintal e que não o queria deixar cortar as árvores, tendo a testemunha dito ao assistente que cortasse o que achasse necessário para colocar os andaimes, não se tendo o arguido visto cortar a primeira figueira.

A testemunha HH… declarou, designadamente, que quando chegaram ao local, com o assistente, o arguido “ não deixava montar lá uns andaimes e cortar lá uma figueira que lá existia”, pelo que o assistente chamou a GNR, porque tinha autorização do Tribunal para realizar as obras e cortar a figueira.

A testemunha FG... declarou, por sua vez, que foi para fazer a montagem dos andaimes e que para isso era preciso cotar uma figueira que estava muito junta à casa e cortar algumas pernadas da outra e que “ O sr. chegou e tentou impedir que isso fosse feito, portanto o corte das figueiras.”.

O ZF... limitou-se a declarar que quando chegaram para montar os andaimes, o  

Arguido insultou o assistente e disse que o devia matar e só já o viu, mais tarde, a ser levado pela GNR.

A testemunha HP...declarou, por sua vez, que já tinham tentado fazer as obras anteriormente mas não tinham conseguido e que fizeram um processo próprio para suprirem o consentimento onde o arguido e a companheira disseram “ Que não podiam porque o terreno era dele, penso que foi isso e que não queriam deixar colocar os andaimes.”  

Vejamos.

O assistente não esconde, nas suas declarações, a ligação entre os problemas que a existência das figueiras dariam ao prédio das suas filhas e a resolução através da acção do suprimento de consentimento, para a colocação de andaimes, onde ainda assim omite a existência das figueiras, seja como causa de danos na casa, seja como obstáculo à colocação dos andaimes.   

Do depoimento das testemunhas AR...e FG... resulta que o arguido era contra o corte das figueiras e não contra a colocação dos andaimes.

A testemunha HH... não mereceu qualquer credibilidade por parte do Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, pelas razões que constam da fundamentação da matéria de facto, e o Tribunal da Relação sufraga as mesmas.  

É evidente ainda, salvo o devido respeito,  que nunca se poderia dar como provado que  o arguido MS... sempre se opôs à colocação de andaimes no quintal, pois a posição dos requeridos no processo de suprimento de consentimento diz o contrário: que não se opõem à colocação dos andaimes.

A este propósito, é errada a convicção da testemunha HP….

Não vislumbrando o Tribunal da Relação motivo para julgar provado que o arguido MS... sempre se opôs à colocação de andaimes no quintal, não se considera tal facto como provado. De igual modo, não vendo razão para concluirmos que o Tribunal a quo errou ao dar como provado o facto que consta do ponto n.º 16 da sentença recorrida, mantém-se essa matéria de facto.

Seguidamente, refere o recorrente FM...que o arguido MS... confessa que a sua companheira, proprietária da casa e das figueiras, se encontrava junto a si no momento em que agrediu o assistente.

Efectivamente, das declarações do arguido resulta que a sua companheira estava ao pé de si no quintal, aquando dos factos. Mais concretamente, referiu: “ a minha companheira apareceu, ham, quando ele já estava na segunda figueira, na primeira ela não estava.”

Mas já não confessa que agrediu o assistente, mas sim “ Eu defendi-me”, quando, na sua versão – não provada –, o assistente se teria virado para si com a electroserra na mão dizendo “ até te corto a ti”.

O recorrente não menciona qual a relevância daquele facto, nem o Tribunal da Relação a vislumbra, tanto mais que a companheira do arguido já tinha manifestado na acção especial de suprimento a sua oposição ao corte da figueira e não consta que ao chegar ao local tenha dito ao assistente que podia cortar as figueiras existentes no seu quintal.

Assim, não se acrescenta aquele facto à matéria provada.

O recorrente FM...alega ainda que as testemunhas Hélio, FG... e ZF... referiram que no dia dos factos o arguido se encontrava muito exaltado e que tinha chamado muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.

Assim, entende que deve ser acrescentada à matéria de facto dada como provada que “ No dia 26 de Abril de 2010, o arguido encontrava-se muito exaltado e chamou muitos nomes injuriosos ao assistente, o que fez antes e depois da chegada da GNR.”.

A testemunha HH... declarou, a este propósito, que antes da GNR chegar não aconteceu nada “… só um, palavras insultuosas para o Sr. FC...”, que só lhe disse para “…estar calado, que tinha ordens do Tribunal, tinha que deixar fazer as coisas…” .

A testemunha FG... declarou que, antes de chamarem a GNR o arguido quis impedir o assistente de cortar as figueiras, tentando agredir o assistente com um sacho e já estando presente a GNR , após o assistente ter cortado a figueira maior deu-lhe um empurrão, caindo este sobre o tronco da figueira cortada.

A testemunha ZF... disse que ao chegarem ao local o arguido chamou ao assistente “filho da puta, cabrão, bandido”.

As testemunhas AR... e BD…, militares da GNR, não confirmam a existência de injúrias do arguido ao assistente, na presença deles. 

Vejamos.

Apenas se provou, da audiência de julgamento e sem impugnação, que o arguido deu um empurrão ao assistente.

Não resulta da acusação e da prova produzida que nos momentos que antecederam o empurrão, estando presente a GNR, o arguido insultou o assistente, nem vislumbramos qual o interesse do facto para a existência ou não dos elementos constitutivos do crime de integridade física do assistente ou para a existência ou não de legitima defesa.

Não seria a existência de insultos ou a exaltação do arguido que determinariam a impossibilidade de se verificar aquela causa de exclusão da ilicitude.

Assim, não se acrescenta o pretendido facto à factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo.  

Por fim, alega o recorrente, que a testemunha FG..., cujo depoimento foi considerado como isento e totalmente credível por parte da Meritíssima Juiz “a quo”, e se encontrava próximo do arguido e do assistente no momento da agressão, referiu de forma clara e por diversas vezes que o empurrão que o arguido desferiu no assistente foi forte, violento, com intensidade e destinava-se a agredi-lo e não a impedir o corte da figueira. 

Cremos que pretende o recorrente FC..., com aquela prova, que se dêem como provadas as alíneas c) e d) dos factos dados como não provados, na sentença recorrida e se dêem como não provados os pontos n.ºs 4 e 15 dos factos dados como não provados.

Da audição das gravações resulta que a testemunha FG... declarou em audiência de julgamento, designadamente, que o empurrão que arguido deu ao assistente “ foi brusco, o homem desequilibrou-se e caiu mesmo. Se fosse amorosamente, como se costuma dizer, o homem não chegava…” a cair, como chegou a cair. 

Tendo sido perguntado à mesma testemunha se o empurrão foi para fazer mal ao assistente ou foi para dizer “ sai daí não cortes a, não cortes a figueira?” , começou por declarar que “só ele é que pode responder a intenção com que o fez”, acrescentando mais à frente que “ a ideia com que eu fiquei é que ele tenta mesmo agredi-lo.”

Perante idêntica pergunta à testemunha BD..., militar da GNR, este respondeu que não sabe dizer qual era a intenção do arguido, mas na altura “ o Sr. FM...ia para a árvore para a cortar”. O arguido “empurrou-o” e “ o Sr. FM...desequilibrou-se e caiu para trás, uma vez que o chão não era regular”.

A testemunha AR…, militar da GNR, declarou , por sua vez, que o empurrão tem lugar quando depois do corte da primeira figueira o arguido disse para o arguido “ aqui não cortas” e o assistente “Virou-se para a figueira”. A intenção do arguido “ provavelmente era impedir que cortasse a segunda figueira, porque foi quando o Sr. FM...começou a cortar a árvore, que o empurrou.”

A posição da testemunha FG... não é, pois, pacifica.

A intenção de agredir, como a de defesa, correspondendo a um estado de espírito , inapreensivel sensorialmente, há-de resultar de factos objectivos que a indiciem.
O Tribunal recorrido consignou na fundamentação da matéria de facto que atribuiu à testemunha AR...uma credibilidade sobre as demais testemunhas e consignou ainda que a testemunha BD... descreveu os factos nos mesmos termos da sua colega.

A convicção a que o Tribunal recorrido chegou para dar como provada a matéria que consta dos pontos n.ºs 4 e 15 dos factos dados como provados, bem como para dar como não provada a factualidade que consta das alíneas c) e d), a que chegou no âmbito da imediação e  oralidade, mostra-se objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Pelo exposto e com excepção da alteração da matéria de facto atrás introduzida nos factos provados,  improcede a impugnação da matéria de facto nos termos requeridos pelo recorrente FC....

            Passemos agora ao conhecimento da terceira questão.

            A legítima defesa vem prevista no art.º 32.º do Código Penal e consiste no facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.

Seguindo aqui o Cons. Maia Gonçalves[10], os requisitos para que se verifique a exclusão da ilicitude, por legitima defesa, são os seguintes:

« a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;

b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se de um afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontre em posição de o fazer, sendo à força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela C.R.P.     

c) Animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.»

Cremos que a necessidade objectiva de defesa constitui o cerne da tutela privada de bens jurídicos que a figura acolhe em seguimento do disposto no art.21.º da Constituição da República.
Já quanto à necessidade subjectivamente conduzida pela vontade de se defender, a intenção de defesa, o chamado
animus deffendendi, a larga maioria do entendimento a nível de jurisprudência, continua a exigir que o agente actue com este animus e que a sua actuação seja adequada a evitar a lesão iminente, para que possa ter-se por verificada a legítima defesa.

Neste sentido, diz-se no acórdão do STJ, de 14 de Maio de 2009, que « Essencial, pressuposto estrutural à legítima defesa, é , mesmo , o “ animus defendendi”, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima;…».[11]

Negando a necessidade do chamado “animus defendendi” para a verificação da legítima defesa, pronunciam-se os Prof.s Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, II, pág. 97) , Figueiredo Dias (Direito Penal I, pág. 408) e Taipa de Carvalho ( Direito Penal, Parte Geral, II, 219), e o acórdão do STJ de 19.1.99 ( BMJ 483, pág. 57). De qualquer modo, como afirma o Prof. Taipa de Carvalho, no local citado, é sempre necessário que se tenha conhecimento de todos os elementos ou pressupostos objectivos da justificação por legítima defesa.

Neste capítulo, são ainda necessárias ponderações normativas e ético-sociais para determinar se uma acção é imposta ou não através da legítima defesa. Assim, a pré-ordenação intencional de agressão para poder lesar outrem sob o manto protector da legítima defesa ou uma crassa desproporção para com o dano iminente podem afastar aquela causa de exclusão da ilicitude.

Se houver excesso dos meios empregados em legitima defesa o facto é ilícito ( art.33.º do Código Penal.

Traçados, assim, esquematicamente, os contornos da figura, anotemos agora os motivos pelos quais o recorrente FM...entende que o Tribunal a quo andou mal ao dar como verificados os pressupostos da legitima defesa.

O recorrente sustenta, para este efeito, que inexiste o elemento subjectivo desta causa de exclusão da ilicitude, porque o arguido não confessou ter agredido o assistente.

Por outro lado, a actuação do assistente era lícita, tendo em conta o teor da decisão judicial de suprimento do consentimento e que a localização das figueiras impedia a colocação dos andaimes.

O meio usado pelo arguido não foi idóneo a deter a agressão nem foi o menos gravoso, pois não evitou o corte posterior de todos os ramos da figueira que impediam a colocação dos andaimes.

A lei civil dispõe de mecanismos próprios para os lesados serem ressarcidos dos danos causados pela passagem momentânea, pelo que a actuação do arguido sempre configuraria um abuso de defesa.

Por fim, mesmo admitindo a hipótese de estarem preenchidos todos os requisitos da legitima defesa sempre haveria excesso dos meios empregues, tendo em conta os bens jurídicos protegidos.

Vejamos.

A consciência dirigida à defesa de um bem jurídico ou se dá como provada ou não.

Não existe qualquer preceito legal que considere a consciência dirigida à defesa só pode dar-se como provada através da confissão da agressão por parte do arguido.

O intuito de defesa por parte do arguido pode ser dado como provado, em face dos elementos objectivos trazidos à audiência, designadamente por prova testemunhal.

A ausência do arguido em julgamento ou uma versão dos factos dada pelo arguido não condizente integralmente com a factualidade dada como provada, não impede que se dê como provada a consciência dirigida à defesa como móbil da acção do arguido.

No presente caso, em face de elementos objectivos relatados por várias testemunhas, o Tribunal a quo deu como provado no ponto n.º 15 da sentença que  “O arguido praticou os factos descritos em 1. como forma de impedir que o assistente cortasse a segunda figueira, uma vez que não obstante a sua veemente oposição ao seu corte, a primeira árvore tinha sido já integralmente cortada e aquele se preparava para cortar a segunda.”.

Considerando esta factualidade dada como provada o Tribunal da Relação tem como verificada consciência dirigida à defesa como móbil da acção do arguido MS... e, assim, o elemento subjectivo da legitima defesa.

O assistente defende ainda que a sua actuação era lícita, tendo em conta o teor da decisão judicial de suprimento do consentimento e que a localização das figueiras impedia a colocação dos andaimes.

Vejamos.

O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas ( art.1305.º do C.C).

Uma dessas restrições, é o direito de passagem forçada momentânea, a que alude o art.1349.º do CC, designadamente para levantar andaime tendo em vista a reparação de construções.

A ilicitude existirá sempre que é violado um direito de outrem, designadamente um direito real, como o de propriedade e o agente não tenha o direito de a fazer.

As filhas do assistente - cujos interesses o assistente claramente assumia na data em causa -, pretendiam o corte das figueiras existente no prédio da companheira da arguida, porque alegadamente os troncos das mesmas propendiam sobre a casa daquelas e as raízes também se introduziam por debaixo da casa (ponto n.º 26 dos factos dados como provados).

O arguido tratou durante alguns anos as figueiras existentes no prédio pertencente à sua companheira  tendo ele, como a companheira, grande estima pelas figueiras ( ponto n.º 22 dos factos provados).

O arguido não se opunha à colocação de andaimes, para a realização das obras no prédio das filhas do assistente, mas ao corte das árvores ( ponto n.º 16 dos factos provados), 

Na acção especial de suprimento do consentimento, intentada contra o ora arguido e companheira,  “para que as requerentes possam levantar andaimes, fazer passar materiais e pessoal, por um período não superior a 30 dias, no prédio daqueles, identificado no artigo segundo, de forma que aquelas possam concluir as obras de beneficiação e restauro de que o seu prédio identificado no artigo primeiro está a ser objecto”, os requeridos não deduziram oposição, mas nela deixaram expresso que no local onde as requerentes pretendiam colocar os andaimes existe uma figueira dos requeridos, com mais de 20 anos, que deveriam preservar tal como se encontra.

Perante esta posição expressa dos requeridos e não tendo ficado provado que a localização das figueiras impossibilitava a colocação dos andaimes, mas apenas que  impedia a normal colocação dos andaimes, o corte da figueira pelo tronco, apenas seria licito se as donas do prédio, filhas do assistente, tivessem intentado acção  judicial e obtivessem vencimento no pedido de condenação dos requeridos a porem fim aos danos referidos na carta registada com a/r, designadamente através  do corte da(s) figueira(s).

Mesmo que a primeira figueira estivesse a 40 cm da parede do prédio das filhas do assistente, se o assistente quisesse ponderar devidamente os interesses alheios, cortaria os ramos existentes junto à parede a rebocar, até haver espaço para a colocação dos andaimes. Não vemos como, tecnicamente, essa solução fosse impossível. Este não foi o caminho seguido pelo assistente que, pura e simplesmente, cortou o tronco à primeira árvore e só não cortou de imediato a segunda, por ter sido impedido pela intervenção do arguido.

É certo que a lei civil dispõe de mecanismos próprios para os lesados serem ressarcidos dos danos causados pela passagem momentânea, mas no caso em apreciação o assistente aproveitou-se do direito de passagem momentânea para conseguir fazer o radical corte das figueiras anunciado na carta registada com a/r. Neste sentido, a actuação do assistente foi contrária ao direito.

A agressão à propriedade da sua companheira, que o arguido MS... presenciou, traduzida no corte do tronco da primeira figueira e preparação de corta da segunda árvore, foi uma agressão actual.

Para obstar à ilicitude da conduta do assistente o arguido não podia socorrer-se da autoridade ,  pois ela estava presente e não obstou ao corte, nem ia obstar ao corte da segunda figueira. Nesta circunstância, o empurrão do arguido ao assistente, com vista a impedir o corte da segunda figueira, fazendo-o cair ao chão, foi idóneo e não se mostra em crassa desproporção para com o dano iminente.

Não se vislumbra excesso dos meios empregues, tendo em conta os bens jurídicos protegidos, pois não vemos que outros menos vigorosos pudessem ter sido empregues.

Deste modo, improcede esta questão e mantém-se a sentença absolutória do arguido.

                         Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente FM... e manter a douta sentença recorrida.

             Custas pelo recorrente, fixando em 4 Ucs a taxa de justiça,

                                                                         *

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Jurisprudência n.º 5/2002, DR, Série –A, de 17 de Junho de 2002.

[5] cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.

[6] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[7]  cfr.“Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[8] Obra citada, páginas 233 a 234
[9]  in C.J. , ano XXVII , 2º , página 44.
[10] Código Penal anotado, Almedina, 8.ª edição, pág. 277.

[11] proc. n.º 389/06.8GAACN.C1.S1 , in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Évora, de 18/03/2010, proc. n.º 341/08.9GCSLV.E1,  in www.dgsi.pt.