Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
628/16.7T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: ERRO NOTÓRIO
PERÍODO LEGAL DE CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
PAUSA OBRIGATÓRIA
Data do Acordão: 03/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 410º, Nº 2, ALS. B) E C) DO CPP; 7º DO REGULAMENTO (CE) Nº 561/2006 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 15 DE MARÇO DE 2006.
Sumário: I – Erro notório é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente.

II – Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou quando notoriamente violadora das regras de experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.

III – Face ao disposto no artº 7º do Regulamento (CE) nº 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006, dúvidas não existem de que após um período de condução de quatro horas e meia, o condutor tem de gozar uma pausa ininterrupta de pelo menos 45 minutos, a não ser que goze um período de repouso, sendo que a pausa de 45 m pode ser substituída por uma de pelo menos 15 m seguida de uma pausa de pelo menos 30 m repartidos pelo período de modo a dar cumprimento àquela imposição, condução ininterrupta que constitui contraordenação prevista no artº 19º da Lei nº 27/2010, de 30/08.

Decisão Texto Integral:





Acordam[1] na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

 I – Relatório

A arguida  A..., Ldª, com sede em x (...) , veio impugnar a decisão administrativa que lhe aplicou a coima única de € 5.100,00 pela prática de treze contraordenações, uma leve, sete muito graves e cinco graves p. e p. pelos artigos 216.º, n.º 5 e 554.º, n.º 2, b), ambos do CT; artigos 7.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento e do Conselho, de 15/03, 19.º, n.º 2, c) e 14.º, n.º 4, ambos da Lei n.º 27/2010, de 30/08 e 561.º, n.º 2, do CT e artigos 8.º, n.º 2 e 16.º, ambos do DL n.º 237/2007 e 554.º, n.º 3, e) do CT, respetivamente.                                                                                                                   *

Recebido o recurso, procedeu-se a audiência de julgamento.

                                                             *

De seguida, foi proferida a sentença de fls. 1198 e segs. e cujo dispositivo é o seguinte:

Atento o exposto, julgo o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

A) Absolvo a arguida “ A..., Lda.” da contraordenação de 13.05.2014, a que se refere o P.  0 (...)  (alegada falta de preenchimento dos relatórios semanais do Livrete Individual de Controlo);

B) Absolvo a arguida “ A..., Lda.” das cinco contraordenações reportadas ao dia 09.09.2014 (P.  1 (...) , factos 28 e 29), ao dia 28.10.2014 (P.  2 (...) , factos 30 e 31), ao dia 30.10.2014 (P.  3 (...) , factos 32 e 33), ao dia 07.11.2014 (P.  4 (...) , factos 34 e 35) e ao dia 09.05.2014 (P.  5 (...) , factos 36 e 37), todas por alegada prestação de mais de seis horas de trabalho consecutivo;

C) Absolvo a arguida “ A..., Lda.” da contraordenação reportada ao dia 07.11.2014 (P.  13 (...), factos 9 a 11), por alegada condução por mais de quatro horas e meia;

D) Condeno a arguida “ A..., Lda.” pela prática de seis contraordenações, p. e p. pelo art. 7.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006, de 15 de Março de 2006, e arts. 19.º, n.º 2, als. b) e c), 13.º, n.º 1 e 14.º, n.º 3, al. a) e 4, al. a), todos da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, nas seguintes coimas:

- factos do dia 09.09.2014 (P.  6 (...) ; factos 2 a 5), coima de €3.000,00;

- factos do dia 30.10.2014 (P.  7 (...) ; factos 6 a 8), coima de €2.700,00;

- factos do dia 23.04.2014 (P.  8 (...) ; factos 12 a 15), coima de €1.000,00;

- factos do dia 02.05.2014 (P.  9 (...) ; factos 16 a 19), coima de €900,00;

- factos do dia 09.05.2014 (P.  10 (...) ; factos 20 a 23), coima de €2.900,00;

- factos do dia 28.05.2014 (P.  11 (...) ; factos 24 a 27), coima de €2.800,00.

E) Efetuando o cúmulo jurídico das coimas referidas em D), condeno a arguida “ A..., Lda.” na coima única de €4.000,00 (quatro mil euros);

F) Absolvo o arguido  B... da condenação solidária no pagamento da coima única;

G) Mantenho a condenação dos gerentes  C... e  D... no pagamento, de forma solidária com a arguida “ A..., Lda.”, da coima única, mas agora no valor de €4.000,00.

Custas do recurso pela arguida “ A..., Lda.”, fixando-se a taxa de justiça em três Unidades de Conta (art. 59.º do RPCLSS, art. 94.º, n.º 3 do RGCC e art. 8.º, n.º 7 e tabela III do RCP).

Notifique e comunique à autoridade administrativa.”

                                                             *

A arguida, notificada desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

[…]

                                               *

O Ministério Público apresentou as suas contra-alegações nos seguintes termos:

[…]

                                                           *

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 1237, no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.                                                                                                              *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Saneamento

A instância mantém inteira regularidade por nada ter entretanto sobrevindo que a invalidasse.

                                                             *

                                                             *

III – Fundamentação

a)- Matéria de facto provada constante da sentença recorrida:

Dos factos constantes da decisão administrativa (na parte designada “Factos Provados”, mencionados a fls. 996 a 1004)

[…]

------------------------

Da Impugnação Judicial

41. A arguida é uma pessoa coletiva constituída sob a forma de sociedade por quotas, que se dedica à exploração da indústria de transportes em veículos automóveis de carga – cf. cópia da certidão permanente a fls. 746 a 749.

42. Em todo o ano 2014, a gerência da arguida foi apenas constituída por  C... e por  D... – cf. cópia da certidão permanente a fls. 746 a 749.

43. O motorista  E... é motorista de pesados, estando adstrito unicamente a uma viatura obrigada ao uso de tacógrafo.

44. Em nenhum dos casos referidos nos factos 2 a 27, o motorista  E... efetuou condução ininterrupta do veículo automóvel por quatro horas e meia ou mais (“cf. documentos “Média Diária de Atividade” referidos nos factos 2 a 27; com referência aos arts. 61.º a 98.º da impugnação).  

45. Os motoristas  G... e  E... receberam da arguida, sua entidade patronal, formação inicial e subsequente específica quanto aos tempos máximos de condução e mínimos de pausas e repouso legalmente previstos, bem como ao correto preenchimento de livrete no caso dos motoristas afetos a viaturas ligeiras, como é o caso do motorista  G... (cf. documentos “ação de formação - lista de presenças” de fls. 70, 343 e 344).

46. A impugnante verifica, com periodicidade mensal, todos os discos/impressões dos tacógrafos e registos efetuados pelos seus motoristas, após mês e meio a dois meses do seu encerramento.

47. A arguida abriu procedimento disciplinar contra o trabalhador  E... na sequência das infrações praticadas.

*

Factos não provados:

Da Impugnação

[…]

*

3. Motivação da decisão da matéria de facto:

[…]

                                                               *

                                    *

b) - Discussão

A arguida suscita as seguintes questões:

1ª – Erro notório na apreciação da prova; contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada.

2ª – Errada apreciação e subsunção dos factos ao direito.

3ª – A responsabilidade da empresa encontra-se excluída; não se extrai da matéria de facto provada o elemento subjetivo do tipo de ilícito.

4ª – A coima aplicada é “inconstitucional” por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da CRP.

                                                             *

1ª questão

Erro notório na apreciação da prova; contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada.

Antes de mais cumpre dizer o seguinte:

A arguida recorrente alega que determinados factos não provados que identifica poderiam e deveriam ter sido dados como provados; que o tribunal a quo, na análise da prova documental, ignorou por completo vários tempos de pausa do motorista que, por lapso seu, não fez a comutação, dando como provados factos que deviam constar do elenco dos factos não provados e, ainda, que factos dados como não provados deveriam ter sido dados como provados quer em face do teor do depoimento da testemunha  F... quer dos factos dados como provados na decisão administrativa sindicada.

Acontece que, conforme resulta do artigo 51.º do RPCLSS (Lei n.º 107/2009 de 14/09), <<se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito (…)>> podendo, no entanto, o recurso ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, os previstos nos n.ºs 2 e 3, do artigo 410.º, do C.P.P., ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Assim sendo, o tribunal não conhecerá das alegações da arguida recorrente quando pretende por em causa a convicção do tribunal recorrido.

Quanto ao mais:

Como já referimos, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto, pelo que, cumpre apenas verificar se estamos perante a existência de um erro notório na apreciação da prova e se existe contradição entre a matéria dada como provada e não provada (n.º 2, b) e c), do artigo 410.º, do C.P.P.).

Impõe-se, por isso, definir o que é um erro notório.

Erro notório <<é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente.

Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de uma facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida>>[2].

Ora, basta ler a alegação da recorrente e a decisão recorrida para se concluir de imediato que não existe qualquer erro notório na apreciação da prova.

A recorrente discorda da apreciação da prova o que poderia fundamentar uma reapreciação da matéria de facto, como já vimos, inadmissível, mas já não um erro notório na apreciação da prova.

Aliás, a recorrente nem concretiza este erro, limita-se a alegar que há manifesto erro na apreciação da prova documental e testemunhal.

No mais, também não vislumbramos qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada e também “no confronto com a própria matéria dada como provada na decisão administrativa”.

A recorrente alega que a decisão administrativa dá como provado que a arguida agiu disciplinarmente contra o motorista e, assim, o tribunal a quo não podia dar como não provado “que sendo detetadas infrações na análise mensal nos discos/impressões dos tacógrafos e registos efetuados pelos seus motoristas, a impugnante repreende o motorista e adota outras formas de sanção disciplinar mais graves”, quando resulta exatamente o contrário da decisão administrativa, no entanto, não lhe assiste qualquer razão.

Na verdade, por um lado, à semelhança do que consta da decisão administrativa[3], também na sentença recorrida se deu como provado que a arguida abriu procedimento disciplinar contra o trabalhador  E... na sequência das infrações praticadas (ponto 47) e, por outro, não existe qualquer contradição entre esta matéria e aquela supra enunciada considerada não provada, além de que, o tribunal não está vinculado aos factos dados como provados na decisão administrativa. O objecto do recurso de impugnação judicial da decisão administrativa é definido pela acusação e pelas questões colocadas pelo arguido, quer de facto quer de direito, inexistindo “matéria de facto assente”, vigorando, apenas, o princípio da reformatio in pejus, ou seja, a proibição de a sanção aplicada ser modificada em prejuízo do arguido (artigo 72.º-A do RGCC).

O facto de se ter dado como provado que a arguida abriu procedimento disciplinar contra o trabalhador motorista não significa, sem mais, que a impugnante repreende o motorista e adota outras formas de sanção disciplinar mais graves. Uma coisa é a abertura do processo disciplinar, outra bem diferente é a sanção aplicada no âmbito do mesmo.

Em suma, da matéria de facto apurada não ressalta qualquer conclusão inaceitável, ilógica, contraditória ou notoriamente errada nem vislumbramos qualquer facto provado que seja contraditório com outro.

Desta forma, improcedem estas conclusões da recorrente.

2ª questão

Errada apreciação e subsunção dos factos ao direito.

Alega a recorrente que apenas a condução ininterrupta que exceda 4 h e 30 m, sem observância das pausas legalmente previstas, constitui a contraordenação pela qual foi condenada, e basta confrontar as impressões dos tacógrafos que sustentam os autos de notícia, para se constatar que em momento algum o motorista em causa conduziu ininterruptamente por um período igual ou superior a 4 h e 30 m.

Pois bem, ao contrário do alegado pela recorrente, resulta da matéria de facto provada (factos supra n.ºs 1 a 8 e 12 a 27) que o motorista da arguida, nos dias aí mencionados, conduziu mais de 4 h e 30 m sem ter observado uma pausa de pelo menos 45 m ou duas, a primeira de pelo menos 15 m e a segunda de pelo menos 30 m.

Face ao disposto no artigo do 7º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de março de 2006, dúvidas não existem de que após um período de condução de quatro horas e meia, o condutor tem de gozar uma pausa ininterrupta de pelo menos 45 m, a não ser que goze um período de repouso, sendo que, a pausa de 45 m pode ser substituída por uma de pelo menos 15 m seguida de uma pausa de pelo menos 30 m repartidos pelo período de modo a dar cumprimento àquela imposição, condução ininterrupta que constitui contraordenação prevista no artigo 19.º da Lei n.º 27/2010 de 30/08.

Assim sendo, a conduta da arguida é suscetível de integrar a prática da contraordenação que lhe foi imputada, p. e p. pelos artigos 7.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de março de 2006, 19.º, n.º 2, c) e 14.º, n.º 4, a), ambos da Lei nº 27/2010, de 30/08 e 561.º do CT, tal como consta da sentença recorrida.

3ª questão

A responsabilidade da empresa encontra-se excluída; não se extrai da matéria de facto provada o elemento subjetivo do tipo de ilícito.

Alega a recorrente que os factos, com a abrangência propugnada, deverão ser adequados a concluir que faz e fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar que o motorista fiscalizado adotasse  todos os procedimentos legalmente impostos e, consequentemente, à exclusão da sua responsabilidade.

Vejamos:

Conforme resulta do n.º 1 do artigo 551.º do CT, <<o empregador é o responsável pelas contra-ordenações laborais ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respectivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos>>.

Significa isto que é a própria lei que, no âmbito da relação laboral, imputa a responsabilidade das citadas contraordenações ao empregador, sendo que, não estamos perante uma verdadeira presunção de culpa mas antes perante a consagração da responsabilidade por atuação em nome de outrem assente na culpa in eligendo ou in vigilando[4].

E conforme resulta da Lei n.º 27/2010 de 30/08:

<<

                                                        Artigo 13.º

1 – A empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.

2 –A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE)n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março. (…)>>.

Esta lei estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CR, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de março, alterada pelas Diretivas n.ºs 2009/4/CE, da Comissão, de 23 de janeiro e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de janeiro e veio consagrar <<uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário>>[5] ou, nas palavras de Soares Ribeiro[6], “uma imputabilidade subjetiva presumida, uma presunção iuris tantum de culpa, e de consequente responsabilidade do empregador”.

<<Ou seja, a Lei 27/2010 veio consagrar uma das soluções previstas pelo art. 10º, nº 3, do Regulamento, qual seja uma forma mitigada da responsabilidade objectiva ou presumida, pois que, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais>>[7].

Como se refere no citado acórdão do Tribunal Constitucional 45/2014, <<se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção>>.

Ora, resulta da matéria de facto provada que o motorista  E...recebeu da arguida, sua entidade patronal, formação inicial e subsequente específica quanto aos tempos máximos de condução e mínimos de pausas e repouso legalmente previstos, no entanto, não se provou que:

b) A arguida detém uma orgânica empresarial, com ordens expressas aos colaboradores da necessidade e obrigatoriedade de, no exercício da sua atividade de motoristas, respeitarem os períodos de pausa/repouso.

c) Foi-lhes entregue (ao motoristas  E... e  G...  ) o "Manual do Motorista" onde tais regras se encontram descritas e explicitadas, de forma simples e acessível.

e) Os motoristas  G... e  E... foram expressamente advertidos pela impugnante que não seriam admitidas pela empresa violações de leis de tempos máximos de condução/trabalho e mínimos de repouso, bem como das consequências graves que poderiam daí decorrer.

f) Resulta de ordens escritas e afixadas nas instalações da arguida, nomeadamente, a obrigatoriedade de todos os motoristas e ajudantes respeitarem os períodos mínimos de pausa e de repouso diários.

g) Os motoristas fiscalizados são trabalhadores com experiência no domínio da condução de veículos de mercadorias.

h) O motorista  E... não cumpriu os tempos de pausa ou ultrapassou as 6 horas de trabalho consecutivo, não por razões de serviço, mas por sua autonomia e iniciativa próprias e não por qualquer ordem de serviço.

i) Sendo detetadas infrações na análise mensal nos discos/impressões dos tacógrafos e registos efetuados pelos seus motoristas, a impugnante repreende o motorista e adota outras formas de sanção disciplinar mais graves.

j) As instruções expressas e precisas que o trabalhador tinha da arguida era para fazer a pausa mínima de 45 minutos após 4h30 de condução, ou 15m + 30m intercalados naquele mesmo período, conforme gestão própria.

Assim, sendo certo que aquela formação, sem mais, não consubstancia qualquer organização do trabalho nos termos previstos no citado artigo 13.º, facilmente se conclui que a arguida não logrou provar (como resulta dos factos não provados supra enunciados), como lhe competia, que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.

Mais alega a recorrente que não é possível extrair da matéria de facto dada como provada qualquer facto concreto apto a integrar o elemento subjetivo do tipo de ilícito e, na falta desse elemento volitivo, forçoso será concluir que não se encontra preenchido o elemento subjetivo da infracção.

Apreciando esta pretensão da recorrente:

Resulta da matéria de facto provada que a arguida não organizou as escalas de serviço de modo a que o seu trabalhador  E... pudesse cumprir os tempos máximos de condução e trabalho e mínimos de repouso, não tendo agido com diligência, quando o podia e devia fazer.

<<Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;

b) Nem chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto.>> - artigo 15.º do CP, aplicável ex vi dos artigos 60.º do RPCLSS e 32.º d RGCC.

A lei distingue a negligência consciente da inconsciente, no entanto, em ambos há uma omissão de um dever de cuidado ou de diligência e é nesta omissão que radica a censurabilidade da conduta do agente.

Conforme resulta da matéria de facto provada, a arguida não agiu com diligência como podia e devia fazer, pelo que, agiu com negligência, tal como consta da sentença recorrida.

Posto isto, uma vez que a arguida, além do mais, agiu com negligência, encontram-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo do tipo e, por isso, todos os pressupostos de que depende a sua responsabilização e,  consequentemente, a arguida encontra-se incursa na prática das contraordenações que lhe foram imputadas e por que foi condenada, tal como consta da sentença recorrida.

Improcedem, assim, mais estas conclusões da arguida recorrente.

4ª questão

A coima aplicada é “inconstitucional” por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da CRP.

Mais alega a recorrente que a coima que lhe foi aplicada no valor de € 4.000,00 é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, por demasiado gravosa e desproporcional à finalidade que pretende acautelar, sobretudo quando comparada com infracções bem mais graves, não se conhecendo na legislação rodoviária sanção que se aproxime do referido limite mínimo.

A arguida, em sede de impugnação judicial, invocou a inconstitucionalidade dos normativos pelos quais foi acusada e punida.

E a este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:

De acordo com o disposto no art. 18.º, n.º 2 da CRP, “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

O princípio da proporcionalidade em sentido amplo desdobra-se nos subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

A violação dos tempos máximos de condução/tempos mínimos de repouso é matéria que contende com a segurança rodoviária e com as condições físicas e psicológicas do condutor. Por isso, a punição da sua violação com coima é necessária e adequada.

Mas será proporcional, isto é, as coimas não exorbitam os montantes pecuniários suficientes para proteger aqueles valores (segurança rodoviária e integridade física e psicológica do trabalhador)?

Já identificamos as molduras legais das coimas.

Nas contraordenações graves a moldura situa-se entre €612,00 e €4.080,00.

Nas contraordenações muito graves a moldura situa-se entre €2.040,00 e €30.600,00.

Tendo presente os valores protegidos pelas contraordenações (segurança rodoviária e integridade física e psicológica do trabalhador), temos por ajustadas aquelas molduras legais, salientando que os limites mínimos não se mostram exagerados e os limites máximos permitem um doseamento equilibrado em função, sobretudo, da gravidade do ilícito, culpa da empregadora e situação económica desta (que poderá ser de grande desafogo financeiro). 

Em suma, as contraordenações em causa não violam, quanto às suas sanções, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, previsto no art. 18.º, n.º 2 da CRP.”

A recorrente vem agora invocar a “inconstitucionalidade da coima” que lhe foi aplicada por violação do mesmo princípio da proporcionalidade, no entanto, fá-lo sem qualquer razão.

Na verdade, como se refere na sentença recorrida, tendo em conta os valores protegidos pelos tipos legais em apreciação, as respectivas molduras abstratas  afiguram-se-nos ajustadas, sendo que “os limites mínimos não se mostram exagerados e os limites máximos permitem um doseamento equilibrado em função, sobretudo, da gravidade do ilícito, culpa da empregadora e situação económica desta (que poderá ser de grande desafogo financeiro)”.

No que respeita à coima de € 4.000,00 aplicada à arguida, importa dizer que se trata de uma coima única cuja moldura do concurso tem como limite mínimo a coima concreta mais elevada e como limite máximo a soma das coimas concretamente aplicadas, ou seja, € 3.000,00 a € 13.300,00, pelo que, aquela foi fixada num ponto próximo do limite mínimo. A coima única aplicada a seis contraordenações praticadas pela arguida foi fixada num ponto próximo do valor correspondente à coima aplicada a uma daquelas infrações.

Acresce que, tal coima única não se nos afigura demasiado gravosa nem desproporcional à finalidade que pretende acautelar, pelos motivos já supra enunciados, além de que, para aferir da sua proporcionalidade não se pode, sem mais, proceder à comparação em termos abstratos efetuada pela recorrente, ou seja, com a alegação de “quando comparada com infracções bem mais graves”, sendo que, não vislumbramos infrações mais graves no âmbito da legislação rodoviária comunitária ou nacional, punidas com molduras abstratas de montante inferior.

 Tendo em conta o que ficou dito, entendemos que a coima única aplicada à arguida é necessária, adequada e racional, posto que, além do mais, o citado Regulamento (CE) n.º 561/2006, “pretende melhorar as condições sociais dos empregados abrangidos pelo mesmo, bem como a segurança rodoviária em geral”- ponto 17 do seu preâmbulo. 

Na verdade, como refere no acórdão desta Relação de 17/01/2013, disponível em www.dgsi.pt:

“II – O princípio da proporcionalidade está consagrado no artº 18º/2 da Constituição, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito).

IV – O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas é de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artº 18º/2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso.”

Resta dizer que o acórdão deste tribunal citado pela recorrente não tem qualquer aplicação ao caso em apreciação.

Naquele acórdão está em causa uma coima mínima no montante de € 15.000,00 prevista, ao tempo, no DL nº 156/05 de 15/9 que estabelecia a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações.

E, na verdade, pode ler-se no mesmo acórdão:

Não conhecemos na legislação rodoviária , cuja violação dá origem a centenas de morte anualmente, sanção que se aproxime do referido limite mínimo.

Não conhecemos na pequena e média criminalidade em que são postas em causa a integridade física, a honra, a propriedade etc. decisões condenatórias que se aproximem do referido limite mínimo.”

Assim sendo, ponderando tudo o que ficou exposto, entendemos que não foi violado o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP.

Improcede, por isso, mais esta conclusão da recorrente.

                                                                       *

                                                             *

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, na total improcedência do recurso, em manter a decisão recorrida.

                                                             *

                                                             *

Custas a cargo da arguida recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC`s.

                                                             *

                                                             *                                                                                                                                                        Coimbra, 2018/03/09

         ______________________

                                                                                              (Paula Maria Roberto)

                                                                                                          ____________________ 

      (Felizardo Paiva)

                

                                                                                                                                                                                            

                                        

 


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjunto  – Felizardo Paiva
[2] L.-Henriques e Simas Santos, CPP anotado, II volume, 2.ª edição, 2000, Rei dos Livros,  pág. 740.
[3] Na decisão administrativa deu-se como provado que a arguida agiu disciplinarmente contra o trabalhador  E...na sequência das infracções praticadas.
[4] A este propósito, cfr. o acórdão do TC 359/01, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão do TC 45/2014, de 11/02/2014, disponível em www.dgsi,pt.
[6] Revista do Ministério Público, n.º 124, pág. 163.
[7] Acórdão da Relação do Porto de 05/12/2011, disponível em www.dgsi.pt.