Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1485/14.3TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: POSSE
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 473, 1252, 1264, 1268, 1311 CC
Sumário: I – O art.1264º do C.Civil ao dispor que «se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa» consagra legalmente a figura do constituto possessório que, como é sabido, é uma forma de aquisição solo consensu de posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.

II – Se o proprietário, que habitava uma fracção habitacional, por contrato de compra e venda titulado por escritura pública, tiver vendido a mesma, mas continuado a residir nela com consentimento e autorização dos adquirentes, o que resulta é que aquele perdeu a posse, por ausência do elemento intencional (solo animo), pois que, de sujeito da posse, se converteu em detentor.

III – Na verdade, verificou-se aqui a figura dogmática do referido constituto possessório, na medida em que a entrega da coisa objeto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre só pela tradição material ou simbólica da mesma, pois que esta investidura pode fazer-se também através do constituto possessório.

IV – A falta originária ou subsequente da causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito, pelo que, a simples prova da obtenção de uma vantagem patrimonial não pode servir de fundamento para pedir a sua restituição, cabendo antes ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento, mesmo em caso de dúvida, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor.

V – Assim, quando a ação de enriquecimento sem causa se funda na circunstância de ter ocorrido uma poupança de despesas pelos demandados, o demandante (empobrecido) precisava de demonstrar que não existia qualquer causa para tanto.

VI – As regras e/ou os princípios do nosso sistema jurídico associam a fruição/ocupação de uma habitação ou ao pagamento monetário correspetivo por quem beneficia de tal situação (geralmente uma renda mensal), ou a quaisquer contrapartidas ao proprietário, por essa ocupação/fruição, por parte de quem ocupa/frui.

VII – Existindo na circunstância uma natural ou presumida causa para a deslocação patrimonial ocorrida (pagamento dos encargos do imóvel, mais concretamente do imposto municipal, do condomínio e dos seguros pelo R.), qual seja, “compensar” os aqui AA. pela ocupação/fruição da fracção que teve lugar, divisa-se uma justificação para a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, está legitimado o enriquecimento, improcedendo a pretensão restitutória com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral:        






     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

A (…) e M (…) casados entre si, residentes na Rua (...) , vieram propor ação declarativa com processo comum contra J (…), divorciado, residente na Rua (...) .

Alegaram os AA., em síntese útil, que:

- adquiriram ao Réu, em 09.03.2005, a fração autónoma designada pela letra “H”, destinada a habitação, correspondente ao 3º andar esquerdo, com uma arrecadação no sótão e dois estacionamentos na cave, com a mesma letra da fração, do prédio urbano sito na (...) , ou (...) , Quinta da (...) , lote nº (...) , freguesia de (...) , inscrito na matriz sob o artigo yyy (...) , descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº xxx (...) da referida freguesia:

- nessa data, o Réu encontrava-se em grandes dificuldades económicas, tendo os AA consentido que ele lá habitasse sem qualquer contrapartida;

- entretanto, e porque a sua situação económica alterou, os AA através de notificação judicial avulsa, notificaram o Réu com data de 06.02.2014, instando-o a entregar-lhes a referida fração até ao final do mês de fevereiro de 2014, não tendo o Réu entregue a dita fração, a qual tem um valor de arrendamento de € 300,00.

Pediram os AA. que se condene o Réu:

a) a entregar-lhes a referida fração, “livre e desembargada”;

b) a pagar-lhes a sanção pecuniária compulsória de € 10,00 ao dia por cada dia posterior a 28.02.2014.

                                                           *

Citado, o Réu contestou, alegando que, por receio de perder a sua casa de família por causa de dívidas, acordou com os AA., sua irmã e cunhado, em proceder, de forma fictícia, à sua venda, sendo o Réu quem pagou, até finais de 2012, os empréstimos contraídos aquando da celebração da escritura, o que fez porque, sempre concertado com os AA., controlava a conta que aqueles criaram junto da C.... e detinha os cartões de débito e cadernetas. Ainda hoje é o Réu quem vem pagando as despesas de seguros do imóvel, IMI e condomínio. Assim, suportou ele Réu pagamentos que ascendem a € 58.224,55.

Concluiu, na contestação, pela improcedência do pedido e pela procedência da «exceção invocada (…), declarando-se:

a) a nulidade da escritura de compra e venda celebrada entre AA. e R.,

b) o R. como o legitimo proprietário da fração,

c) e ainda o cancelamento de todos os registos feitos sobre a descrição xxx (...) -H da freguesia de (...) a favor dos AA,

d) mais se requerendo a compensação dos valores já pagos pelo R. de no valor do preço a devolver aos AA..

Caso assim se não considere, e em alternativa, sejam os AA. condenados no pagamento ao R. da quantia de que este já liquidou por conta da fração H, a título de enriquecimento sem causa».

                                                           *

Na réplica, os AA. requereram a intervenção da C.... para assegurar a legitimidade do peticionado pelo Réu, mas não tendo pago a taxa de justiça, foi tal incidente indeferido.

                                                           *

O Réu esclareceu pretender deduzir reconvenção.

                                                           *

Foi proferido despacho, em que se entendeu não haver qualquer necessidade de intervenção da referida entidade bancária, fixou-se o objeto do litígio e elaboraram-se os temas da prova, sem reclamações.

                                                           *

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo, conforme da respectiva ata consta.

                                                           *

Na sentença, considerou-se, em suma, que face à factualidade apurada, importava concluir no sentido de que procediam os pedidos formulados na acção pelos AA. de reconhecimento da propriedade da fracção e da sua restituição, o que já não sucedia no tocante à condenação em sanção pecuniária compulsória, sendo que, no tocante aos pedidos deduzidos em via reconvencional pelo R., os mesmos improcediam na sua plenitude, inclusive no que à condenação dos AA. a título de enriquecimento sem causa dizia respeito.

Nesta linha de entendimento concluiu-se através do seguinte concreto “dispositivo”:

«IV-DECISÃO

Em face de todo o exposto, o Tribunal decide:

1. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação e, consequentemente:

1.1 Condena-se o Réu a entregar aos AA, livre de pessoas e bens, a fração autónoma designada pela letra “H”, destinada a habitação, correspondente ao 3º andar esquerdo, com uma arrecadação no sótão e dois estacionamentos na cave, com a mesma letra da fração, do prédio urbano sito na (...) , ou (...) , Quinta da (...) , lote nº (...) , freguesia de (...) , inscrito na matriz sob o artigo yyy (...) , descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº xxx (...) da referida freguesia;

1.2. No mais, absolve-se o Réu do que contra si foi peticionado;

1.3. Condenam-se Autores e Réu nas custas processuais, na proporção do decaimento, fixando-se a responsabilidade daqueles em 1/3 e a deste em 2/3, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Réu.

2. Julgar totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção ação e, consequentemente:

2.1. Absolvem-se os AA / Reconvindos do que contra si foi peticionado;

2.2. Condena-se o Réu / Reconvinte nas custas da reconvenção, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Registe e notifique.»

                                                           *

               Inconformado com essa sentença, apresentou o R. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            Cumprida a formalidade dos “vistos” e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

            - impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos “6.”, “7.” e “10.” (relativamente aos quais pugna por uma diferente redação) e quanto ao facto “não provado” alinhado em último lugar (relativamente ao qual pugna por que seja considerado “provado”, com a especificação de que tal sucedeu “até 2012”)?;

- incorreto julgamento de direito, por se encontrarem provados os factos comprovativos da exceção à presunção da propriedade dos AA., tendo sido violados os arts. 1311º e 240º do C.Civil e, em todo o caso, o art. 473º, nos 1 e 2 do mesmo C.Civil (enriquecimento sem causa) e o art. 609º, nº2 do C.P.Civil.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«A - Factos Provados:

1. No dia 09.03.2005, no 1º Cartório de Competência Especializada de (...) , o Réu declarou vender aos AA, que declararam comprar-lhe pelo preço de € 100.000,00 que aquele declarou ter já recebido, a fração autónoma designada pela letra “H”, destinada a habitação, correspondente ao 3º andar esquerdo, com uma arrecadação no sótão e dois estacionamentos na cave, com a mesma letra da fração, do prédio urbano sito na (...) , ou (...) , Quinta da (...) , lote nº (...) , freguesia de (...) , inscrito na matriz sob o artigo yyy (...) , descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº xxx (...) da referida freguesia.

2. Nessa data, o Réu encontrava-se em grandes dificuldades económicas.

3. O Réu reside na referida fração.

4. Os AA, através de notificação judicial avulsa, notificaram o Réu com data de 06.02.2014, instando-o a entregar-lhes a referida fração até ao final do mês de fevereiro de 2014.

5. O Réu não entregou aos AA a fração.

6. Aquando da celebração da escritura de 09.03.2005, os AA consentiram e autorizaram que o Réu ficasse a habitar a identificada fração “H”.

7. Aquando da celebração da escritura de compra e venda, foram constituídos dois empréstimos: um de € 100.000,00 e outro de € 50.000,00, destinando-se o primeiro a pagar o preço da compra e venda e o segundo a obter dinheiro que o Réu usaria, obrigando-se este a restituir tal (a segunda mencionada) quantia.

8. O valor dos empréstimos (€ 99.254,82 e € 49.602,42) foram depositados numa conta da C.... aberta pelos AA em 20.12.2004, com o número 0658002552600.

9. O Réu acedia a tal conta, sendo detentor de cartão de débito e tendo acesso às cadernetas bancárias.

10. Desde a data de tal escritura e até data(s) não exatamente determinada(s), o Réu pagou seguros do imóvel a que alude a escritura referida em 1., bem como o IMI e suportou as despesas de condomínio, em montantes não exatamente apurados.»

                                                                       ¨¨¨

            «B - Factos Não Provados:

De entre os factos que permaneciam controvertidos, não se provou que:

- os AA tenham permitido ao Réu residir no imóvel, como se provou em 6., sem qualquer pagamento ou contrapartida e sem a fixação de qualquer prazo;

- aquando da celebração da escritura, o Réu receava perder a sua casa de morada de família para os seus credores e simulou com os AA em vender-lhes a sua casa, não tendo as partes a intenção de transmitir o bem, sabendo que as suas declarações não correspondiam à verdade e visando impedir a penhora e venda da casa pelos credores daquele;

- o Réu pagou as prestações (entendidas como mensalidades de capital e juros) inerentes aos empréstimos bancários.»

                                                                       *

3.2 – O R./recorrente deduz impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos “6.”, “7.” e “10.” (relativamente aos quais pugna por uma diferente redação) e quanto ao facto “não provado” alinhado em último lugar (relativamente ao qual pugna por que seja considerado “provado”, com a especificação de que tal sucedeu “até 2012”):

(…)

Começando pelos dois primeiros pontos de facto, relativamente aos quais é utilizada uma argumentação do mesmo sentido – basicamente assente na inviabilidade de ser usado o que resultou do depoimento de parte do A. marido (sendo certo que é neste que se encontra fundamentada a decisão de 1ª instância).

Que dizer?

Quanto a nós, não existe no nosso atual sistema jurídico-legal uma qualquer impossibilidade de ser utilizada para formar a convicção probatória sobre pontos de facto que se possam considerar “favoráveis” à parte, o que tenha resultado das “declarações de parte” da mesma.

Isto sempre no quadro da livre convicção probatória – que é o paradigma do nosso sistema (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, expressamente mencionado no nº 3 do art. 466º do mesmo normativo).

Na verdade, é disso que se trata, quando está em causa valorar o que se adquiriu nesse contexto, por via do que foi reportado pela parte, extravasando o que fora definido como indo ser objecto do seu “depoimento de parte”, isto é, que não se traduziu em “confissão” (por definição reportada a factos “desfavoráveis”[2]).

Mas vejamos antes de mais o enquadramento geral que pode e deve ser feito nesta temática, o que vamos fazer com apoio no constante de douto estudo sobre a mesma[3], a saber:

«Constitui doutrina e jurisprudência dominantes que o depoimento de parte constitui um meio processual através do qual se pode obter e provocar a confissão judicial, sendo esta uma declaração de ciência que emana da parte e em que se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante (contra se pronuntiatio) e favorável à parte contrária a quem competiria prová-lo (Art. 352 do Código Civil).

Nessa medida, o depoimento de parte só pode incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente. Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 504/2004, Artur Maurício, DR, II Série de 2.11.2004, p. 16.093, foi perentório no sentido de que “A confissão (...) não constitui meio de prova de quem emite a declaração, mas a favor da parte com interesses contrários, ninguém podendo, por mero ato seu, formar provas a seu favor. / Não se vê que fique vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte de forma a impedir o exercício do direito de o prestar quando o respetivo objeto seja irrelevante enquanto confissão, ou seja, quando se anteveja uma disfunção entre o meio processual e o fim tido em vista pela sua previsão.”

Todavia, ainda na vigência do Código de Processo Civil revogado, foi crescendo uma corrente jurisprudencial pugnando no sentido de que o depoimento de parte - no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte - constitui meio de prova de livre apreciação pelo tribunal – Artigo 361 do Código Civil.(1) Ou seja, embora configurado processualmente no sentido da obtenção da confissão, foram reconhecidas ao depoimento de parte virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova em que a par de prova tarifada existem meios de prova sujeitos a livre apreciação. 

A parte podia ser ouvida pelo juiz sob as vestes preconizadas no Art. 266.2. do CPC e como depoente de parte, estando-lhe vedado ser testemunha em causa própria (“nemo debet esse testis in propria causa”). As razões determinantes desta inadmissibilidade são essencialmente três: «receio de perjúrio; as partes têm um interesse no resultado da ação e podem ser tentadas a dar um testemunho desonesto e finalmente mesmo que as mesmas não sejam desonestas, estudos psicológicos demonstram que as pessoas têm uma maior tendência a recordar factos favoráveis do que factos desfavoráveis pelo que o depoimento delas como testemunhas nos processos em que são partes não é, por essa razão de índole psicológica, fidedigno.»(2)

Todavia, constituía dado da experiência comum que a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia – com frequência – a assimetrias no exercício do direito à prova(3) dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. Constitui exemplo paradigmático o julgamento de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Por outro lado, existem factos integrantes do thema probandum que são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta»(4), factos respeitantes a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes».(5) No que tange a este tipo de factos demonstráveis por prova tendencialmente única, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar «uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas subjetivas.»(6)

Se outras razões não ocorressem, tanto bastava para evidenciar a pertinência da consagração das declarações de parte como um novo meio de prova no atual Código de Processo Civil. Na Exposição de Motivos, de forma bastante sucinta, anuncia-se o novo meio de prova assim: «Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.»

(1) Neste sentido, cf. os Acórdãos do STJ de 2.10.2003, Ferreira Girão, 03B1909, de 9.5.2006, João Camilo, 06A989, de 16.3.2011, Távora Víctor, 237/04 (“(…) o depoimento tem um alcance muito mais vasto, podendo o tribunal ouvir qualquer uma das partes quando tal se revele necessário ao esclarecimento da verdade material. E se é certo que “a confissão” só pode versar sobre factos desfavoráveis à parte, não é menos verdade que o Juiz no depoimento em termos gerais não está espartilhado pela confissão, podendo colher elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”), de 4.6.2015, João Bernardo, 3852/09. No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.11.2011, Araújo de Barros, 2700/03, também se discorreu que: «Por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, embora o depoimento de parte seja o meio próprio para colher a confissão judicial das partes, nada impede que dele se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis

(2) ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 27.

(3) ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 22, apela aqui à ideia de «um preocupante deficit de processo equitativo.»

(4) ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 37.

(5) REMÉDIO MARQUES, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, p. 168.

(6) REMÉDIO MARQUES, Op. Cit., p. 168.» 

Assente assim a admissibilidade, em geral, deste meio de prova, vejamos agora do acerto da decisão recorrida na sua valoração.

Nesse particular temos para nós que as “declarações da parte” podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.

Isto é, «a valoração das declarações de uma parte, que forem favoráveis a essa parte, fora do esquema típico do depoimento de parte poderá ser livremente valorada pelo julgador, ainda que com o apoio em outras presunções judiciais, ou valerá como indício ou princípio de prova, conquanto apoiado noutras provas ou em presunções naturais (presunções simples ou hominis) extraídas das regras da experiência.[4]»  

Não há, assim, como denegar ou contrariar a potencialidade e centralidade das “declarações de parte” na formação da convicção do juiz.

Donde o nosso acolhimento, de pleno, à feliz síntese constante do estudo pré-citado e supra transcrito, mais concretamente no seguinte segmento:

«Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.

Sintetizando, diremos que: (i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.

Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.»[5]

(…)

Assim sendo, revalorando a prova produzida neste particular e porque efetivamente ela concede e até “impõe” (cf. art. 662º, nº1 do n.C.P.Civil) uma convicção diversa nesta parte, designadamente face à admissão parcial da factualidade em causa que se extrai do “depoimento de parte” do A. marido, determina-se que passa a figurar no elenco dos factos “provados”, sob “11.”, o facto com a seguinte redacção:

«11. O Réu pagou prestações (entendidas como mensalidades de capital e juros) inerentes ao empréstimo bancário de € 50.000,00 referido no facto provado sob “7.”, pelo menos até data não apurada do ano de 2007 ».

Consequente e correspondentemente, reformula-se a redação do facto que figurava alinhado em último lugar entre os “não provados”, o qual passa a ser do seguinte teor:

«- o Réu pagou as prestações (entendidas como mensalidades de capital e juros) inerentes ao empréstimo bancário de € 100.000,00 referido no facto provado sob “7.”».

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Erro de decisão/incorreto julgamento de direito, por se encontrarem provados os factos comprovativos da exceção à presunção da propriedade dos AA., tendo sido violados os arts. 1311º e 240º do C.Civil e, em todo o caso, o art. 473º, nos 1 e 2 do mesmo C.Civil (enriquecimento sem causa) e o art. 609º, nº2 do C.P.Civil:

Será assim?

Se bem captamos o sentido do alegado pelo R./recorrente, este seu fundamento tinha como pressuposto resultar provada a factualidade pertinente visada na sua impugnação à decisão sobre a matéria de facto, ou, em todo o caso, que estavam adquiridos positivamente nos autos um conjunto de pressupostos de facto que lhe permitia ganho de causa.

Só que, s.m.j., a pretensão do R./recorrente soçobra completamente.

Em termos do que resultou da impugnação à decisão sobre a matéria de facto, porque a mesma foi quase totalmente desatendida, acrescendo que a parte que foi objeto de um acolhimento parcial (o facto que figurava nos factos “não provados” transitou parcialmente para o elenco dos “provados”) apenas poderia relevar no tocante ao deduzido em via “subsidiária”, isto é, a título do enriquecimento sem causa.

Concretizemos então.

Desde logo, ao não ter sido dado qualquer acolhimento à impugnação deduzida relativamente aos factos “provados”, temos que a factualidade apurada é definitivamente insuficiente ou inidónea para produzir o efeito jurídico visado por esse Réu com a contestação.

            Senão vejamos e relevando-se a linearidade da exposição.

            Sendo como era a presente ação uma ação de “reivindicação”, tal significa que a mesma é um meio de defesa da propriedade, através do qual o proprietário pode e vem exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (art. 1311º, nº 1 do C.Civil).

            Neste tipo de acções, deve figurar como sujeito activo aquele que se arroga a propriedade (ou compropriedade) da coisa reivindicada, e como sujeito passivo o possuidor ou detentor da coisa.

            A causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade (cf. nº4 do art. 581º do n.C.P.Civil), sendo certo que não é o próprio direito de propriedade, mas sim o modo como o mesmo foi adquirido, havendo – face à teoria da substanciação – que articular os factos que o integram.

            Naturalmente que, não existindo registo do direito de propriedade a favor do Autor (cf. art. 7º do C.R.Predial), poderá ser insuficiente a invocação de uma forma de aquisição derivada, dotada apenas de eficácia translativa, e não demonstrativa de que o direito existia na esfera jurídica do transmitente, donde, a necessidade de, em tais casos, ser também invocada a usucapião como forma de aquisição originária.

            Ora, no caso vertente existia esse registo do direito de propriedade a favor dos aqui AA., pelo que os mesmos – e com toda a legitimidade! – se bastaram com a alegação e prova da aquisição derivada do direito de propriedade em causa, através do contrato de compra-e-venda celebrado oportunamente com o R..

            De referir, a este propósito, que a defesa do R. assentava basicamente na invocação da nulidade desse contrato de compra-e-venda, decorrente de o mesmo ter sido alegadamente simulado.

            Sucede que essa linha de argumentação soçobrou totalmente, nada tendo resultado provado em abono dessa invocada simulação do contrato de compra-e-venda, como flui insofismavelmente do facto alinhado em 2º lugar no elenco dos “não provados”, decisão de facto essa que o R./recorrente nem sequer questionou em sede recursiva.

            Neste conspecto, qual é a tese sustentada neste particular em sede recursiva?

            O que se constata é que o R./recorrente intenta alcançar o ganho de causa, com a afirmação de que “encontram-se provados os factos comprovativos da excepção”, mais concretamente invocando que tinha a posse e a conservou (cf. “o imóvel era do Réu antes da escritura e o Réu continuou a viver no apartamento após a escritura, mantendo sempre a posse sobre o bem”), e bem assim sustentando que “os autores nunca pagaram os encargos decorrentes da propriedade do bem: não pagaram IMI, não pagaram o condomínio sobre o imóvel, não pagaram os seguros do imóvel, não pagaram as prestações dos empréstimos que haviam ‘pedido’ sobre o imóvel”, o que tudo teria sido feito por si, donde “verificando-se provados os factos comprovativos da excepção, encontram-se provados os factos que obstam à entrega do bem imóvel”.

            Dito de outra forma: tanto quanto nos é dado perceber, a exceção em que assentava a sua contestação, deixou de ser a simulação para passar a ser a posse...  

Consabidamente e em tese é possível numa acção de reivindicação ter lugar o reconhecimento do direito (“pronuntiatio”) sem que se opere a restituição correspondente (“condemnatio”).

É o que ocorre, designadamente, nos casos em que se reconheça um título legítimo de detenção pelo demandado, designadamente um contrato de arrendamento do prédio reivindicado (cf. art. 1311º, nº2 do C.Civil).

Ora o que o R./recorrente intenta afirmar é mais concretamente que tinha e conservou a posse, afirmando – infundadamente, já se verá! – que logrou “a prova de factos que obstassem a essa presunção de propriedade” (dos AA.)…

Com isto estava seguramente o R./recorrente a reportar-se à corrente afirmação de que “a posse vale título”.

A presunção em causa, que é a constante do art. 1268º do C.Civil[6], na verdade opera da seguinte forma: através dela é “protegido” o titular do direito real que esteja na posse da coisa, pois que o mesmo apenas tem que fazer a prova da posse, cabendo aos terceiros o ónus de impugnar a presunção legal – «por isso se diz que a situação do possuidor é, para certos efeitos, mais vantajosa do que a do próprio titular do direito (“melior est condictio possidentis”)».[7]    

            Sucede que, atento o factualismo dado como “provado”, o R./recorrente nem sequer logrou provar que mantinha a posse da fração ajuizada – estando aqui em causa o período temporal subsequente à escritura de contrato de compra e venda celebrada com os AA., título por via do qual estes lhe adquiriram a fração!

Com efeito, da devida conjugação de todo o factualismo operado, mormente do constante do facto “provado” sob “6.” (cf. «6. Aquando da celebração da escritura de 09.03.2005, os AA consentiram e autorizaram que o Réu ficasse a habitar a identificada fração “H” », com sublinhado nosso), o que resulta é que o R./recorrente perdeu a posse, por ausência do elemento intencional (solo animo), pois que, de sujeito da posse[8], se converteu em detentor.

Na verdade, verificou-se aqui a figura dogmática do constituto possessório (cf. art. 1264º do C.Civil), na medida em que a entrega da coisa objeto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre só pela tradição material ou simbólica da mesma, pois que esta investidura pode fazer-se também através do constituto possessório.[9]  

   Efetivamente, a lei dispõe, no art.1264º do C.Civil, que «se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa» (sublinhado nosso) – trata-se da consagração legal da figura do constituto possessório que, como é sabido, é uma forma de aquisição solo consensu de posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.[10]    

É certo que considerando a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio,

se encontra consagrada uma presunção de posse “animo domini”, por parte daquele que exerce o poder  de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa - “corpus”- razão pela qual, quando seja necessário o “corpus” e o “animus”, em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto no artigo 1252º, nº2, do C.Civil.[11]

            No entanto, no caso vertente, os AA. afastaram claramente essa presunção ao lograrem provar que o R./recorrente havia perdido a posse no contexto da figura dogmática do constituto possessório!

            Assente isto, vejamos agora dos demais argumentos recursivos.

Na verdade, o R./recorrente sustentou a sua tese recursiva (para além da posse) igualmente por referência e suporte nos seguintes pressupostos:  

- O pagamento dos encargos decorrentes da propriedade do imóvel: imposto municipal sobre o imóvel, condomínio, seguros, empréstimo bancário;

- O pagamento da hipoteca que incidia sobre o bem;

- O não pagamento do preço pelos Autores

            Também nesta parte, salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão ao R./recorrente, mormente porque inverificados, na sua maioria, os dados de facto em causa: quanto ao pagamento do empréstimo bancário, por si, porque tal ficou por provar[12]; quanto ao pagamento da hipoteca, por si, que incidia sobre o bem, porque é igualmente aspeto que não encontra qualquer suporte na factualidade apurada; e quanto ao não pagamento do preço pelos Autores, porque não estando tal apurado a se, o que importa concluir é precisamente o oposto, na medida em que a afirmação, em escritura pública de compra e venda, de que o vendedor disse, naquele ato, já haver recebido o preço vale como declaração confessória, feita à parte contrária, donde que nem pode fazer-se uso da prova testemunhal para demonstrar que, afinal, tal preço não havia sido pago, por força do estatuído no art. 393º, nº2, do C.Civil, sendo que, em todo o caso, a declaração do vendedor relativa ao recebimento anterior do preço, constante da escritura pública, deve, em regra, constituir confissão extrajudicial, dotada de força probatória plena, face ao que não pode sequer o confitente provar a inveracidade da declaração mediante prova exclusivamente testemunhal, nos termos previstos no art. 358º, nº2, do mesmo C.Civil.[13]

            Resta então, neste particular, o pagamento dos encargos do imóvel, mais concretamente do imposto municipal, do condomínio e dos seguros, por si: se é certo que esta factualidade resultou apurada em parte (cf. facto “provado” sob “10.”), não se pode olvidar que nos termos singelos em que ela resulta é perfeitamente inconcludente, pois que faltou provar que o fazia como proprietário e/ou possuidor!

            Acresce ainda que subsiste plenamente a presunção de propriedade de que os AA. gozavam decorrente do registo do prédio a seu favor (cf. art. 7º do C.Reg. Predial)…

Concluindo-se, assim, pela improcedência de toda a linha argumentativa do R./recorrente até agora analisada, falta apenas apreciar o invocado em linha “subsidiária” em sede reconvencional, mais precisamente com base no instituto do enriquecimento sem causa.

De referir que está aqui em causa o dito pagamento dos encargos do imóvel, mais concretamente do imposto municipal, do condomínio e dos seguros pelo R./recorrente.

Ora, a boa decisão desta questão passa por se poder concluir positivamente sobre a inexistência de causa justificativa para o enriquecimento dos AA..

Salvo o devido respeito mais uma vez, a argumentação do R./recorrente desconsidera ostensivamente o que decorre das normas sobre o ónus da prova neste particular.

Senão vejamos.

O art. 473º do C.Civil consagra o princípio geral deste instituto dispondo:

«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»

Neste último número estão indicados exemplificativamente três tipos de situações de casos especiais de enriquecimento sem causa, que são:

- o recebimento indevido;

- o recebimento por uma causa que deixou de existir; e

- o recebimento em vista de um efeito que não se verificou.

Qualquer uma destas situações pressupõe uma prestação, pois ninguém pode receber se outrem não pagar.

Porque no caso ajuizado não está em causa qualquer pagamento efectuado pelo R. aos AA., é manifesto que a situação por aquele invocada em sede reconvencional não se enquadra em nenhuma das situações previstas no aludido nº 2, não sendo, por isso, esse o normativo aplicável ao caso destes autos.

Vejamos então se o é o nº1.

Procedendo a uma análise mais cuidada do referido nº 1, constatamos que dele resulta que, para que haja uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, é necessária a verificação cumulativa de três requisitos, a saber:

- a existência de um enriquecimento;

- que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem;

- e que careça de causa justificativa.

Relativamente a esta situação já foi doutamente ensinado que: «A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:

a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento. […]

b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido. […]

c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição».[14]

De referir que estes três requisitos aludidos são elementos constitutivos do direito de que o empobrecido se arroga, pelo que, sobre ele recai o ónus da competente prova, nos termos do art. 342º, nº 1, do mesmo C. Civil.

Concretizando: a falta originária ou subsequente da causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito, pelo que, a simples prova da obtenção de uma vantagem patrimonial não pode servir de fundamento para pedir a sua restituição, cabendo antes ao autor (leia-se, o aqui R./recorrente) do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento, mesmo em caso de dúvida, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor.

Assim, quando a ação de enriquecimento sem causa (leia-se, a reconvenção do aqui R./recorrente) se funda na circunstância de ter ocorrido uma poupança de despesas pelos demandados, o demandante (empobrecido) precisava de demonstrar que não existia qualquer causa para tanto.

Sucede que, no caso vertente, as regras e/ou os princípios do nosso sistema jurídico associam a fruição/ocupação de uma habitação ou ao pagamento monetário correspetivo por quem beneficia de tal situação (geralmente uma renda mensal), ou a quaisquer contrapartidas ao proprietário, por essa ocupação/fruição, por parte de quem ocupa/frui.

Ora, o que temos é que R./recorrente não logrou provar o que quer que fosse de relevante para este efeito, para além do pagamento objetivo dos itens em causa (dito pagamento dos encargos do imóvel, mais concretamente do imposto municipal, do condomínio e dos seguros)!

Nesta linha o constante do seguinte douto aresto:

«III - O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.

IV – Enriquecimento (injusto) esse que igualmente tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.

V – O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento.»[15]

Donde, revertendo estes ensinamentos ao caso vertente, temos que existia na circunstância uma natural ou presumida causa para a deslocação patrimonial ocorrida (os ditos pagamentos de despesas pelo R.), qual seja, “compensar” os aqui AA. pela ocupação/fruição da fracção que teve lugar.

Acresce que constitui doutrina e jurisprudência absolutamente pacífica, a afirmação de que na ação fundada em enriquecimento sem causa, é ao demandante que pede a restituição que incumbe o ónus da alegação e prova da falta de causa para a prestação efectuada, não bastando para esse efeito que não se prove a existência da causa de atribuição alegada pelo demandado. É o demandante que tem de convencer o tribunal da falta de causa, devendo “in dubio” considerar-se que a deslocação patrimonial teve justa causa.[16]

O que tudo serve para dizer que é perfeitamente inócuo os AA. não terem logrado provar o que haviam sustentado na p.i. no sentido da ocupação pelo R. ter sido sem qualquer pagamento ou contrapartida por parte do mesmo, pois que se divisa uma justificação para a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitima o enriquecimento.

Improcede assim, sem necessidade de maiores considerações, este argumento recursivo.

Sendo certo que ficou definitivamente prejudicada a aplicação do previsto no art. 609º, nº2 do C.P.Civil (que face à não prova de concretos montantes por si despendidos, devia ter lugar uma condenação no que viesse a ser liquidado ulteriormente).

Assim, sem necessidade de maiores considerações e brevitatis causa, improcede o suscitado em qualquer via de enquadramento pelo R./recorrente.

                                                                       *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O art.1264º do C.Civil ao dispor que «se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa» (sublinhado nosso) consagra legalmente a figura do constituto possessório que, como é sabido, é uma forma de aquisição solo consensu de posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.

II – Se o proprietário, que habitava uma fracção habitacional, por contrato de compra e venda titulado por escritura pública, tiver vendido a mesma, mas continuado a residir nela com consentimento e autorização dos adquirentes, o que resulta é que aquele perdeu a posse, por ausência do elemento intencional (solo animo), pois que, de sujeito da posse, se converteu em detentor.

III – Na verdade, verificou-se aqui a figura dogmática do referido constituto possessório, na medida em que a entrega da coisa objeto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre só pela tradição material ou simbólica da mesma, pois que esta investidura pode fazer-se também através do constituto possessório.

IV – A falta originária ou subsequente da causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito, pelo que, a simples prova da obtenção de uma vantagem patrimonial não pode servir de fundamento para pedir a sua restituição, cabendo antes ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento, mesmo em caso de dúvida, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor.

V – Assim, quando a ação de enriquecimento sem causa se funda na circunstância de ter ocorrido uma poupança de despesas pelos demandados, o demandante (empobrecido) precisava de demonstrar que não existia qualquer causa para tanto.

VI – As regras e/ou os princípios do nosso sistema jurídico associam a fruição/ocupação de uma habitação ou ao pagamento monetário correspetivo por quem beneficia de tal situação (geralmente uma renda mensal), ou a quaisquer contrapartidas ao proprietário, por essa ocupação/fruição, por parte de quem ocupa/frui.

VII – Existindo na circunstância uma natural ou presumida causa para a deslocação patrimonial ocorrida (pagamento dos encargos do imóvel, mais concretamente do imposto municipal, do condomínio e dos seguros pelo R.), qual seja, “compensar” os aqui AA. pela ocupação/fruição da fracção que teve lugar, divisa-se uma justificação para a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, está legitimado o enriquecimento, improcedendo a pretensão restitutória com base no instituto do enriquecimento sem causa.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, pela total improcedência da apelação, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.  

            Custas do recurso pelo R./recorrente.

Coimbra, 9 de Janeiro de 2018

                                              

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
 
[2] Preceitua o art. 352º do Civil que “Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
[3] Trata-se do que foi sustentado pelo Des. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, in “AS DECLARAÇÕES DE PARTE. UMA SÍNTESE.”, estudo disponível no blogo do ippc.

[4] Citámos agora REMÉDIO MARQUES, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, a págs. 162-163.
[5] Trata-se do estudo melhor identificado na nota (4) supra, ora a págs. 38 do mesmo.
[6] No qual sob a epígrafe de “Presunção da titularidade do direito” se preceitua literalmente o seguinte:
«1. O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
 2. Havendo concorrência de presunções legais fundadas em registo, será a prioridade entre elas fixada na legislação respectiva.»

[7] Citámos HENRIQUE MESQUITA, in “Direitos Reais”, 1967, a págs. 111.
[8] A posse, como é sabido, desdobra-se em dois elementos essenciais: “o corpus” (elemento objetivo) que se analisa no conjunto de actos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa e o “animus” (elemento subjetivo) que corresponde à actuação do possuidor com a convicção de que está a exercer um direito próprio – arts.1263º, al.a) e 1251º do C.Civil.
[9] Cf., inter alia, o acórdão do STJ de 19.01.2017, no proc. nº 5470/09.9TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.  
[10] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado” Vol. III, 2ª edição, a págs. 29.
[11] Neste sentido vide PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado” Vol. III, 2ª edição, a págs. 8; MOTA PINTO, in “Direitos Reais”, 1970-1971, a págs.191; HENRIQUE MESQUITA, in “Direitos Reais”, 1967, a págs.72.
[12] Tenha-se em conta que do facto “provado” sob “11.” (supra aditado), apenas resulta restritivamente apurado o pagamento respeitante a um empréstimo que não o respeitante à habitação propriamente dita!
[13] Cf. sobre a questão o acórdão do S.T.J. de 15.05.2013, no proc. nº 279/10.0TBMIR.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.

[14] Citámos PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., a págs. 427-429.
[15] Citámos agora alguns pontos do sumário do acórdão do T. Rel. de Coimbra de 02.11.2010, no proc. nº 1867/08.0TBVIS.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[16] Cfr., na doutrina, ANTUNES VARELA, in” Das Obrigações em Geral”, vol. I, a págs. 467, e MENEZES LEITÃO, in “Direito das Obrigações”, vol. I, a págs. 381 e seguintes; e na jurisprudência, inter alia, os Acs. STJ de 04-07-2002, Revista n.º 1924/02 – 7.ª Secção; de08-10-2002, Revista n.º 2376/02 – 1.ª Secção; de 09-10-2003, Revista n.º 2535/03 – 7.ª Secção; de 22-01-2004, Revista n.º 1815/03 – 2.ª Secção; de 17-10-2006, Revista n.º 2741/06 – 6.ª secção; de 05-02-2006, Revista n.º 3902/06 – 6.ª secção; de 18-01-2007, Revista n.º 4633/06 – 7.ª secção; de 29-05-2007, Revista n.º 1302/07 – 6.ª secção; de 16-09-2008, Revista n.º 1644/08 – 2.ª secção; de 16-10-2008, Revista n.º 2709/08 – 1.ª Secção; de 18-06-2009, Revista n.º 1120/03.5TBALQ – 2.ª secção; de 14-10-2010, Revista n.º 5938/04.3TCLRS.L1.S1 – 7.ª Secção; de 08-02-2011, Revista n.º 1272/09.0TVLSB.S1 – 6.ª Secção; de 14-04-2011, Revista n.º 3840/06.3TBVCD.P1.S1 – 2.ª Secção; de 28-06-2011, Revista n.º 3189/08.7TVLSB.L1.S1 – 1.ª secção; de 23-11-2011, Revista n.º 750/08.3TBALM.L1.S1 – 1.ª Secção, todos disponíveis em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.