Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2087/22.6T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NULIDADE DE TODO O PROCESSO
CONDOMÍNIO
PARTES COMUNS
LOGRADOURO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA COVILHÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 186.º, N.ºS 2 E 3, 193.º, N.º 3, E 552.º, N.º 1, A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Numa ação em que o condomínio pretende o reconhecimento de um logradouro como integrante das partes comuns do prédio e a sua desocupação para fruição pela generalidade dos condóminos, a petição inicial é inepta quando o A., para além de admitir que na escritura de constituição da propriedade horizontal esse logradouro não consta especificamente que seja comum, não alega quaisquer factos que permitam ao tribunal consubstanciar o direito de propriedade em qualquer das formas a que a lei atribui virtualidade aquisitiva.
II – A omissão em causa – ausência total de alegação dos factos necessários à verificação do direito – impede o tribunal de dirimir do litígio e, consequentemente arreda qualquer virtualidade de sanação do vício no âmbito do disposto no art. 186.º, n.º 3 do CPC, sendo indiferente que os RR. tenham ou não interpretado corretamente a petição inicial.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam (por maioria) os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

O Condomínio do prédio sito na Quinta ..., ..., contribuinte fiscal n.º ...10

intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra

A..., S.A., NIPC ...98, com sede na ..., lote ...7, ..., Letra ..., ..., ...,

e

B..., LDA., pessoa coletiva n.º ...92,

pedindo

a) Serem a Primeira e Segundas Rés condenadas a reconhecer que o logradouro, adjacente à fração identificada pela letra B, destinada a comércio e serviços do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Quinta ..., com acesso pela Alameda ..., correspondente ao r/ch, loja ...2, urbano inscrito na matriz ...16 da União de Freguesias ... e ..., e descrito na ...34 é parte comum do mesmo, nos termos e para os efeitos do art.º 1421º do CC;

b) Ser a segunda Ré condenada a desocupar o logradouro comum, retirando a esplanada composta por mesas, cadeiras e guarda-sóis, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença.

c) Ser a segunda Ré condenada, solidariamente, numa sanção pecuniária compulsória no valor de 25.00€, por cada dia de incumprimento”.

Para o efeito alegou, em síntese, que a Ré B..., Lda., com autorização da Ré A..., Lda. (dona da fração onde a primeira tem instalado um estabelecimento comercial), ocupa de forma abusiva um espaço comum da A., impedindo o seu gozo pelos restantes condóminos.


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Ambas as RR. contestaram, ao demais negando que o espaço em causa, ocupado pela B..., Lda. integre as partes comuns ou das frações do prédio (Quinta ...).

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Por despacho de 14.05.2023 (ref. 35835318) a Sra. Juíza, considerando que “Os pedidos formulados pelo Autor prendem-se com o reconhecimento de que o logradouro que identifica é parte comum do prédio que refere, bem como que seja a Ré condenada a desocupar o mesmo, limitando-se, contudo, a invocar que o referido “logradouro” é parte comum, sem que sejam alegados factos dos quais resulte a propriedade da parcela de terreno em dissídio”, convidou as partes para, “querendo, exercerem o contraditório relativamente à eventual verificação de nulidade do processado por ineptidão da petição inicial”.

*

O A. e a Ré A... S.A. responderam ao convite sustentando, com os fundamentos que então avançaram, a primeira que a petição inicial não era inepta (ref. 3268139), e a segunda defendendo que a alegação constante da p.i. se apresenta como insuficiente para a demonstração que o espaço em causa seja parte integrante do prédio (ref. 3271693).

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No seguimento, a Sra. Juíza, a 16.06.2023 (ref. 35992716), proferiu despacho contendo o seguinte dispositivo “julga-se procedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolve-se as Rés da instância”.

                                                                       *

O A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”

I - O presente recurso tem por objeto o despacho saneador/sentença que julgou procedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolveu as Rés da instância.

II - Fundamenta a Exma. Sra. Juiz a quo a sua decisão no facto de o Autor limitar-se a invocar que o referido “logradouro” é parte comum, sem que sejam alegados factos dos quais resulte a propriedade da parcela de terreno em dissídio.

III - A causa de pedir que serve de fundamento à ação é a propriedade horizontal onde se insere a fração pertencente à 1ª Ré, dada de arrendamento à 2ª Ré.

IV - O pedido formulado pela A. enquanto administradora do condomínio do edifício constituído em propriedade horizontal é que as Rés reconheçam que o espaço ocupado pela esplanada é uma parte comum do prédio e, sendo comum, a colocação da esplanada estaria dependente da autorização do condomínio.

V - O facto de aquele espaço ser parte comum fundamenta-se na constituição da propriedade horizontal e na presunção legal da alínea a) do n.º 2 do art.º 1421º, pelo que os factos essenciais se encontram alegados, cabendo às Rés ilidir a referida presunção.

VI - Ainda que se entendesse padecer a petição inicial de ineptidão, sempre se aplicaria o n.º 3 do art.º 193 CPC.

VII – Na contestação, as rés não alegam a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, apresentando uma defesa direta, impugnando a factualidade descrita pela autora e relatando a sua própria versão dos mesmos factos – de um modo que revela inequivocamente ter compreendido o que contra elas era dito.

VIII - Não existe ineptidão da petição inicial, que a ter existido ela teria sido sanada nos termos do n.º 3 do art. 193º do CPC.

IX- E que a subsistir deficiência ou obscuridade na concretização factual da causa de pedir deveria o tribunal fazer uso da faculdade instituída no n.º 3 do art. 508º do CPC, dirigindo à aqui Recorrente convite ao aperfeiçoamento”.

                                                                  *

Não foi oferecida resposta.
*

Dispensados os vistos, veio a constatar-se na conferência ser minoritária a posição do Exmo. Juiz Desembargador a quem o processo havia sido distribuído nesta instância (Dr. José Avelino Gonçalves), tendo, na sequência, transitado para o ora 1.º subscritor para efeitos de relato (art.  663.º, n.º 3 do CPC).
*

II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, face às conclusões avançadas, as questões a apreciar e decidir são as de saber:
a) se a petição inicial é inepta
e se, ainda que o seja,
b) tal nulidade deve ser considerada suprida nos termos previstos no art. 186.º, n.º 3 do CPC.
                                                            *

III-Fundamentação

De acordo com o disposto no art. 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC, no que ao caso dos autos interessa, a petição é inepta, “Quando falte ou seja ininteligível a indicação (…) da causa de pedir”.

Conforme decorre do art. 552.º, n.º 1, a), do CPC, na petição inicial deve o A. expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

A narração deve conter os factos sobre que assenta o pedido, o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão do autor - a causa de pedir.

Como refere Alberto dos Reis "a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto de que emerge o direito de que o autor se propõe declarar (...) o que tem valor e eficácia jurídica, o que tem vida, é o facto individual e concreto " (Comentário ao C.P.C., vol. II, pág. 375) ou, na expressão de Ulpiano "a causa de pedir é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis".

Nas palavras de Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, V. II, Almedina, 1982, pág. 219-220) “com a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar correctamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência de pedido ou de causa de pedir, ou de pedido ou causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis (…). Propõe-se ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o pedido contra ele formulado e o respectivo fundamento”.

No caso dos autos a causa de pedir, legitimadora da procedência das pretensões da A. (reconhecimento desse direito e obtenção da desocupação), assenta na invocação de a área ocupada (logradouro) ser parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Quinta ..., melhor identificado nos autos.

Analisando a petição inicial constata-se que o A., deixando confessado que o mesmo não emerge especificadamente do título constitutivo da propriedade horizontal (arts. 6º e 7.º da p.i.), fundamenta exclusivamente o direito invocado na “informação obtida na Câmara Municipal ...” (art. 4.º da p.i.[2]).

Como bem se refere na decisão recorrida, “para aquilatar se o logradouro em dissídio é parte comum e determinar a sua desocupação, terá primacialmente de se aferir se esse logradouro é propriedade do prédio em questão, para depois se analisar se será parte comum ou adstrita exclusivamente a uma das frações”.

Em qualquer ação de reivindicação (e esta é, seguramente, uma ação de reivindicação, embora com a especificidade lógica de não se pretender a restituição do terreno ocupado, mas a sua desocupação para fruição pelo conjunto dos condóminos), apresentam-se como factos estruturantes da causa de pedir a aquisição originária do direito real invocado ou, alternativamente, a presunção de posse ou do registo da aquisição, mesmo que derivada, da coisa, incidindo sobre o autor o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa de que se arroga titular.

Ora, mostrando-se uma informação prestada pela Câmara Municipal inidónea para conferir o direito em causa, e não tendo o A. alegado quaisquer factos que permitam ao tribunal consubstanciá-lo em qualquer das formas a que a lei atribui virtualidade aquisitiva, estamos inequivocamente perante uma petição inicial inepta por falta de causa de pedir (falta de objeto do processo)[3].

Acresce que, como a doutrina e a jurisprudência tem vindo a assumir em total sintonia, ocorrendo ineptidão por falta de indicação da causa de pedir (por não terem sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa), não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590.º, n.º 4 do CPC, encontrando-se este reservado para os casos em que se imponha “completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) (…); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos” (cfr. por todos, o Ac. deste Tribunal da Relação de 13.06.2023, proferido no processo 869/22.8TBCBR.C1).

                                                                  *

Ainda assim, defendeu o recorrente, tal nulidade deve considerar-se suprida por resultar das contestações apresentadas que os RR. interpretaram convenientemente a petição inicial.

Com efeito, de acordo com o art. 186.º, n.º 3 do CPC, se o vício de ineptidão da petição inicial consistir na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e o réu contestar a ação, apesar de arguir a ineptidão com base naqueles fundamentos, a nulidade considerar-se-á suprida quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

Todavia, como lucidamente se refere na decisão sumária da RC de 18.10.2016 (processo 203848/14.2YIPRT.C1 – Manuel Capelo), a previsão em causa pretende significar, tão só que, “ainda que o Réu tenha arguido essa nulidade, se o que o Autor alegou puder permitir um julgamento de mérito, ainda que mais dificultado pela falta de clareza ou completude do que alegou, tal não obsta ao prosseguimento do processo quando se revele que interpretou bem, e/ou até esclareceu com a contestação, essa falta de clareza ou incompletude.

A questão é sempre a de saber se objectivamente existe causa de pedir, ainda que deficiente ou com pouca inteligibilidade, que permita um julgamento do mérito do pedido, ou não”.

No caso dos autos, resultando inequívoco que os RR. compreenderam a pretensão da A.,  é também inequívoco que negaram em absoluto o direito em causa, precisamente por, tal como admitido pelo A., não resultar do título constitutivo da propriedade horizontal que o espaço em causa seja parte comum.

De sorte que o que está em causa não é uma mera questão de compreensão da p.i. pelos RR., antes a ausência dos pressupostos que viabilizem ao tribunal a discussão sobre o direito invocado, sendo para o efeito indiferente aquela compreensão.

Ou seja, a omissão em causa – ausência total de alegação dos factos necessários à verificação do direito – impede o tribunal de dirimir do litígio e, consequentemente arreda qualquer virtualidade de sanação do vício no âmbito do disposto no art. 186.º, n.º 3 do CPC.

Improcede, como tal, a apelação.


Sumário[4]:
(…)

                                                                    *

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

                                                                      *

Custas pelo recorrente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 13 de dezembro de 2023


______________________

(Paulo Correia)

______________________

(Catarina Gonçalves)


          

Voto de vencido:

Com a Reforma do processo de 2013 passou a entender-se que a falta de pressupostos processuais é sanável, com base no poder-dever de prolação de decisão de aperfeiçoamento do Juiz que decorre das exigências constitucionais de um processo justo e equitativo  - artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa - e do dever de gestão processual consagrado no art.º 6º do Código do Processo Civil, que será o diploma a citar sem menção de origem - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo -, pelo que fica claro que o Juiz está vinculado a gerir bem o processo, concretizado, por exemplo no artigo 590º, devendo providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados e inclusive determinar a junção de documentos para conhecimento de excepções ou do seu mérito - preocupação em fazer prevalecer a providência de mérito em preterição de uma decisão proferida em aplicação de normas adjectivas.

Tal princípio surge claramente evidenciado no reforço do princípio do inquisitório, dos poderes de direcção do processo pelo juiz e consagração lata do princípio da cooperação, com atenuação clara do princípio da preclusão, neste âmbito se inscrevendo claramente a prolação do despacho de aperfeiçoamento.

Deve ser privilegiada pelo tribunal, aquando daquele esforço interpretativo, a opção de decidir materialmente, evitando soluções de natureza formal que apenas adiam a resolução do conflito - é a velha máxima romana “Odiosa restringenda, favorabilia amplianda” (“restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável)”.

No caso em análise, os factos/elementos constantes dos autos são suficientes para o prosseguimento da instância?

O artigo 552.º, n.º 1, al. d), determina que na petição inicial, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.

A petição inicial, tem como função pedir ao tribunal o meio de tutela jurisdicional destinado à reparação da violação ou ao afastamento da ameaça e entre as suas indicações mais importantes, destaca-se a narração dos factos que servem de fundamento à acção, sendo que para tal, não basta a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor assenta a sua pretensão, mas sim os factos concretos - factos jurídicos são os acontecimentos ou circunstâncias da realidade, decorrentes tanto da conduta humana, como de ocorrências da natureza ou resultantes de qualquer outra origem , que têm relevância jurídica.

Os factos essenciais, numa acepção estrita, cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor.

Estando esses factos essenciais alegados, a causa de pedir mostra-se identificada, não podendo considerar - se inepta a petição inicial por falta de causa de pedir, embora possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.

A ideia geral e primordial - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma acção viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objecto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário acto de julgamento. Numa perspectiva mais secundária – no relacionamento processual entre as partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório, por isso, e só por isso, o estatuído no n.º 3 do art.º 186º -  Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com o fundamento na alínea a) …não se julgará procedente a arguição, quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.

 Mesmo que o réu, na contestação, invoque a falta ou ininteligibilidade do pedido, tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante as deficiências invocadas, inteligiu o feito que o demandante introduziu em juízo e está cônscio das consequências que dele pretende retirar.

A ideia geral, segundo Castro Mendes  - (Direito Processual Civil, IIº vol, edição AAFDL, 1987, pág. 490 -  “é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um ato (unitário) de julgamento, “judicium”; sendo certo que, da perspetiva das partes, a ideia será ainda de permitir o cabal conhecimento pelo réu dos factos em que se alicerça o pedido que o autor pretende fazer valer de forma a poder exercer cabalmente o contraditório. Neste sentido se compreende o estatuído no referido n.º 3 do artigo 186º que estabelece que a arguição da ineptidão não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. Não sendo possível, nestas circunstâncias, absolver o réu da instância por ineptidão da petição inicial – cfr. Ac. do STJ de 01.10.2003, pesquisado www.dgsi.pt, p.02S3742.

Do que decorre que outro fito – este na óptica dos litigantes e quiçá secundário ou não essencial e como supra aludido -, prosseguido com a figura da ineptidão, é garantir o pleno ou pelo menos adequado exercício do contraditório da outra parte, “possibilitando que se defenda do ataque, por excepção ou por impugnação, reportada aos factos alegados na petição, idóneos para germinarem o direito invocado e pretendido” - Ac. do STJ de 28.05.2002, dgsi.pt, p.02B1457.

“Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga - Alberto dos Reis, Comentário, 2º, págs. 364 e 371.

Como alega a Apelante, “iii- A causa de pedir que serve de fundamento à ação é a propriedade horizontal onde se insere a fração pertencente à 1ª Ré, dada de arrendamento à 2ª Ré.

IV - O pedido formulado pela A. enquanto administradora do condomínio do edifício constituído em propriedade horizontal é que as Rés reconheçam que o espaço ocupado pela esplanada é uma parte comum do prédio e, sendo comum, a colocação da esplanada estaria dependente da autorização do condomínio.

V - O facto de aquele espaço ser parte comum fundamenta-se na constituição da propriedade horizontal e na presunção legal da alínea a) do n.º 2 do art.º 1421º, pelo que os factos essenciais se encontram alegados, cabendo às Rés ilidir a referida presunção.

VI - Ainda que se entendesse padecer a petição inicial de ineptidão, sempre se aplicaria o n.º 3 do art.º 193 CPC.

VII – Na contestação, as rés não alegam a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, apresentando uma defesa direta, impugnando a factualidade descrita pela autora e relatando a sua própria versão dos mesmos factos – de um modo que revela inequivocamente ter compreendido o que contra elas era dito.

VIII - Não existe ineptidão da petição inicial, que a ter existido ela teria sido sanada nos termos do n.º 3 do art. 193º do CPC.

IX- E que a subsistir deficiência ou obscuridade na concretização factual da causa de pedir deveria o tribunal fazer uso da faculdade instituída no n.º 3 do art. 508º do CPC, dirigindo à aqui Recorrente convite ao aperfeiçoamento”.

Como é sabido, através da propriedade horizontal ou propriedade por andares - Apesar do nome, pode constituir-se propriedade horizontal através de seccionamentos verticais, sendo esta a única forma possível de divisão quando exista um só piso no prédio. Será, assim, em rigor, uma propriedade vertical. Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III (Artigos 1251.º a 1575.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 393. -  admite-se que as fracções de um mesmo edifício que constituam unidades independentes possam pertencer a proprietários diversos - Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III (Artigos 1251.º a 1575.º), cit., p. 391.

Dizem Pires de Lima e Antunes Varela que “[o] que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é, pois, a fruição de um edifício por parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns” - Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III (Artigos 1251.º a 1575.º), cit., pp. 397. Não obstante ser tributária dos regimes do direito de propriedade e da compropriedade (sendo os sujeitos simultaneamente proprietários no que respeita às fracções autónomas e contitulares no que respeita às partes comuns), a propriedade horizontal não pode ser vista como uma pura cumulação de ambos. Pelo facto de o edifício ter uma estrutura unitária e de existir uma íntima conexão entre o objecto do domínio exclusivo de cada um, os proprietários estão, na propriedade horizontal, sujeitos a restrições que não são habituais aos proprietários comuns. É, portanto, como dizem os autores citados, uma “propriedade especial”.

É fundamental, pois, distinguir entre as coisas sobre as quais recai o direito exclusivo de propriedade - as fracções autónomas - e aquelas que são detidas em comunhão - as partes comuns.

Quanto às primeiras, dispõe o artigo 1415.º do Código Civil – será o diploma a citar sem menção de origem -  que “[s]ó podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública” e o artigo 1418.º, n.º 1, do CC que “[n]o título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas”.

Ora, nos termos da norma do artigo 1420.º n.º 1, do Código Civil, “cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.

Mais, as partes do edifício que não sejam especificadas no título constitutivo da propriedade horizontal como fracções autónomas nem sejam imperativamente comuns no sentido do artigo 1421.º, n.º 1, do mesmo diploma, são, em princípio, presumivelmente comuns, ao abrigo da presunção contida no n.º 2 da norma.

Até porque, nos termos da norma do artigo 1418.º n.º 1, só é obrigatório especificar, no título constitutivo (não o fazendo existe a nulidade de tal título), as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, sendo fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

Porque não existe na lei qualquer definição, terá o julgador que guiar-se pela norma do artigo 1421.º. Nela existem duas enumerações: a primeira, no n.º 1, das partes do prédio que deverão, impreterivelmente, considerar-se comuns e a segunda, no n.º 2, das partes que deverão presumir-se comuns.

Como é impossível ao legislador prefigurar todas os cantos e recantos que podem albergar, em concreto, os prédios, prevê-se na al. e) do n.º 2 aquilo que, à primeira vista, parece ser uma cláusula geral residual. Presumem-se ainda comuns, “[e]m geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos”. E o n.º 3 acrescenta: “[o] título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns”.

Significa isto que, com excepção das partes obrigatória ou necessariamente comuns, a lei permite que o título constitutivo fixe se as partes são comuns ou se se integram nalguma fracção autónoma, funcionando, no silêncio do título, uma presunção – uma presunção ilidível – de comunhão - Cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, Parede, Principia, 2013 (3.ª edição), p. 115. Diz o autor (ob. cit. pp. 115-116) que a presunção pode ser ilidida quando existem elementos no sentido de que a parte é integrante de certa fracção autónoma.

“Quando o nº 2 do art. 1421º do C.Civil prevê as partes que se presumem comuns na propriedade horizontal, estabelecendo a al. e) desse preceito legal deverem presumir-se como tal “em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos”, tem subjacente o entendimento de que tudo aquilo que não for atribuído, no título constitutivo, exclusivamente a algum condómino, não pertence ao construtor, ao vendedor do prédio ou a qualquer terceiro, mas é antes parte comum do prédio, objeto de compropriedade entre os vários condóminos / Acórdão desta Relação de Coimbra de 30.6.2015, pesquisável em www.dgsi.pt.

A Autora leva à sua petição:

“A segunda Requerida, autorizada pelo primeiro requerido, instalou no dia 16 de julho de 2021, no logradouro adjacente ao estabelecimento comercial, que vimos de aludir, uma esplanada composta por mesas, cadeiras e guarda-sóis.

O espaço, ora ocupado pela referida esplanada, é uma zona comum da Requerente, conforme resulta da informação obtida junto da Câmara Municipal ..., cfr. doc. 3 que se junta e se dá por reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais.

Embora na escritura de propriedade horizontal não conste especificamente que o logradouro adjacente ao edifício seja comum, a verdade é que tal área de logradouro não foi afeta em exclusivo a nenhuma das frações, cfr. doc. 4”.

Ora, salvo o devido respeito, os pontos 4.º e 5.º da petição - ancorados na informação prestada pelo município que, desde logo, afasta a dominialidade pública sobre o dito espaço -, são suficientes para a alegação/concretização da causa de pedir por parte da Autora.

É certo que a matéria de facto apenas pode integrar acontecimentos ou factos concretos, mas não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, mas, o termo logradouro é perfeitamente entendível por qualquer pessoa, encontra-se enraizado no vocabulário do cidadão anónimo - que tem a possibilidade de ser logrado, de ser utilizado.

Um logradouro privado pode ser, por exemplo, um condomínio - uma área comum privada - ou uma rua privada. Logradouro - também logradoiro - é um termo que designa um terreno ou um espaço anexo a uma habitação, a um condomínio, usado para serventia da casa, do espaço comum - no Tratado do domínio público, de 1884, há a seguinte descrição: “Logradouro é o ‘pascigo público de alguma vila ou lugar’ e 'logradouro de qualquer particular é o chão que tem diante as casas, para esterqueira e outros usos’ (...)”

Como se escreve no Acórdão do STJ de 13.11.2007- processo n.º 07A3060, “Torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo “[de juízos como não escritos.

Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05, subscrito pelos mesmos juízes deste), não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”.

Sendo que o afirmado neste acórdão ainda faz mais sentido face ao actual Código do Processo Civil. Salienta Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Acórdão do STJ de 28/9/2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1, in  Blog IPPC, Jurisprudência 784 que, “Lembre-se, a este propósito, que, enquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…)

A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão”.

Ou seja, basta a alegação da presunção -  que são comuns/fazem parte do logradouro do condomínio -, cabendo aos réus/demandados a prova de que determinadas partes, presumivelmente comuns do edifício, foram por ele, ou por terceiros, adquiridas pela prática de actos possessórios.

Nas palavras do Acórdão do STJ de 19.5.2009, retirado do site www.dgsi.pt ,” I- A presunção a que alude o artigo 1421.º/2 do Código Civil é uma presunção juris tantum; por isso, pode o condómino interessado demonstrar - e dele é o ónus da prova (artigo 342.º/1 do Código Civil)- que um determinado espaço está afectado ao uso exclusivo da sua fracção (artigo 1421.º/2, alínea e) do Código Civil).

II- A afectação que se tem aqui em vista é uma afectação material - uma destinação objectiva - existente à data da constituição do condomínio.

III- O reconhecimento dessa afectação material, que leva ao afastamento da aludida presunção, pode verificar-se ainda que o espaço em litígio não se encontre identificado no título constitutivo da propriedade horizontal, na escritura de aquisição da fracção nem registado na competente conservatória”.

Assim, com o devido respeito pela decisão proferida na 1.ª instância, na procedência do recurso, revogaria a decisão proferida pelo Juízo Local da Covilhã – J..., determinando o prosseguimento dos autos nos termos legais.

 (José Avelino Gonçalves)


[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Catarina Gonçalves e José Avelino Gonçalves

[2] - Esse artigo da p.i. tem o seguinte teor “O espaço, ora ocupado pela referida esplanada, é uma zona comum da Requerente, conforme resulta da informação obtida junto da Câmara Municipal ..., cfr. doc. 3 que se junta e se dá por reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais”.

[3] - Acentua-se que, a considerar-se a petição como meramente deficiente quando à fundamentação do direito de propriedade invocado, e a não ser completada nos termos hodiernamente admitidos, as consequências seriam bem mais drásticas para o A.. É que, como salienta Alberto dos Reis, “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente... . Quando a petição, sendo suficiente quanto ... à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga” (Comentário, 2º, pág. 372).

[4] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).