Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
826/23.7T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
USO DA CASA DE HABITAÇÃO
CRITÉRIOS A ATENDER PARA DETERMINAR QUEM A PODERÁ CONTINUAR A USAR
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º E 8.º, 1, B), 2 E 3, DA LEI N.º 7/2001, DE 11/5
ARTIGOS 466.º E 607.º, 5, DO CPC
ARTIGO 1793.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O art. 1793º, nº1 do C.Civil [aplicável aos “unidos de facto”, ex vi do art. 4º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, que aprovou o regime legal de PROTECÇÃO DAS UNIÕES DE FACTO] fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges [ou “unidos de facto”] poderá continuar a habitar a casa, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, sendo eles dois, a saber, (i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e (ii) o interesse dos filhos do casal.
II – Pode recorrer-se a outros critérios, em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles, podendo alinhar-se entre estes critérios suplementares o da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, e bem assim o da maior ligação de cada um dos ex-cônjuges [ou “unidos de facto”] em relação à casa em disputa.
III – Compete ao cônjuge [ou “unido de facto”] que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso.
IV – Na circunstância, está insofismavelmente apurada a “maior ligação” da Requerente enquanto arrendatária da casa ajuizada, face ao Requerido, também por trabalhar em sítio próximo daquela casa, deslocando-se para o local de trabalho a pé, e sendo sempre ela ao longo do tempo naquela casa [desde Março de 2019] a pagar a renda no valor de € 408,00, e as despesas da casa [designadamente, água, luz, gás canalizado, cujos contratos estão em seu nome], acrescendo que desde Novembro de 2022 que o Requerido deixou de assumir encargos com a aquisição de bens alimentares e de utilidade doméstica para uso comum do casal, o que tudo serve para dizer que a globalidade do factualismo apurado permite reconhecer maior prevalência à necessidade da Requerente quanto à casa ajuizada, que foi a casa de morada de família.
Decisão Texto Integral: *

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                                *

1 – RELATÓRIO

AA, melhor identificada nos autos, instaurou Ação Especial de Atribuição da Casa de Morada de Família, contra BB, peticionando a adjudicação à Requerente da casa de morada de família, sita na Rua ..., em ..., condenando o Requerido a sair daquela casa entregando-a à Requerente para que esta a possa habitar, deixando na casa todos os utensílios domésticos e móveis pertença da Requerente.

Alegou para o efeito e em síntese que, desde novembro de 2022 que não existe qualquer comunhão de vida entre a Requerente e o Requerido, que não mantêm relações sexuais, deixando de fazer vida em comum, desde finais de 2020; que a Requerente em 12 de dezembro de 2022 apresentou participação criminal por crime de violência doméstica, perpetrada pelo Requerido, a que deu origem ao processo nº192/22.... que corre os seus termos pelo DIAP ..., designadamente por agressão física e ameaças de mal futuro, caso não abandonasse a casa de morada de família, que a Requerente solicitou ao Requerido para sair da casa de morada de família, pois o arrendamento encontra-se titulado a favor da Requerente, assim como os respetivos contratos de água, luz e gás, pagos pela Requerente; que o Requerido recusa-se a sair da casa; que a Requerente não consegue viver com o Requerido na mesma habitação, após os fatos ocorridos em 12 de dezembro de 2022, encontrando-se debilitada, desgastada psicologicamente e receosa, mais invocando premente necessidade da casa de morada de família muito superior à do Requerido agravada pela conflitualidade que deu origem à participação por violência doméstica perpetrada pelo Requerido.

                                                           *

Designada data para a realização da tentativa de conciliação a que alude o artigo 990º, nº2 do Código de Processo Civil, verificou-se impossibilidade de consensualização, pelo que se determinou a notificação do requerido para apresentar articulado de resposta ao requerimento inicial, oferecendo a respetiva prova e no prazo de 10 dias.

                                                           *

Regularmente notificado, o Requerido veio apresentar oposição – cfr. requerimento de 24-04-2023 [9687171], impugnando, de forma motivada, a factualidade alegada pela Requerente, quanto ao processo de escolha e arrendamento da casa morada de família; quanto aos factos denunciados; quanto à situação laboral do Requerido; quanto à saúde mental da Requerente, e quanto à necessidade da casa.

*

Procedeu-se à realização de julgamento, com inteira observância do formalismo legal, como consta da respetiva ata.

                                                           *

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e os “não provados”, seguidos da correspondente “Motivação”, após o que se concluiu pela atribuição do uso e habitação da casa morada de família à Requerente, o que se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«6. DISPOSITIVO.

Em face do exposto, e no âmbito do enquadramento jurídico citado, decido:

i) RECONHECER a união de facto entre a Requerente AA e o Requerido BB desde janeiro de 2009 até novembro de 2022;

ii) DECLARAR dissolvida a união de facto entre a Requerente e o Requerido, com efeitos retroativos a novembro de 2022;

iii) ATRIBUIR à Requerente a casa de morada de família, sita na Rua ..., em ..., condenando o Requerido a sair daquela casa entregando-a à Requerente para que esta a possa habitar, deixando na casa todos os utensílios domésticos e móveis pertença da Requerente, dispondo o Requerido do prazo de 10 dias para abandonar tal morada, contados do trânsito em julgado desta decisão, sob expressa advertência de que, não o fazendo, incorre em sanção pecuniária compulsória de 25,00€ por cada dia de atraso no cumprimento da injunção.

* *

Custas pelo Requerido, nos termos do art.º 527.º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil) e art.º 6.º, nº 4 e TABELA I do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei nº 34/2008 de 26 de fevereiro.

Registe e notifique.»

                                                           *

É com esta decisão que o Requerido não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, pedindo a revogação da mesma, apresentando as seguintes conclusões:

«1. A douta sentença entendeu considerar provados os facto 9: “(...). Em 20 de março de 2019, após procura de casa em conjunto, a Requerente, na qualidade de arrendatária, com o conhecimento do Requerido, subscreveu um contrato de arrendamento de uma casa de habitação correspondente à fração ...-“águas furtadas” sita na Rua ..., em ..., onde veio a constituir a casa de morada de família com o Requerido.(...)” sublinhado nosso, quando a realidade demonstrada em audiência é completamente diversa.

2. Foi o requerido quem contratou com o senhorio, foi o requerido quem, negociou o contrato, foi o requerido quem custeou as obras para poderem habitar a casa conforme acordou com o senhorio, factos que requerente desconhece em absoluto, apenas assinou o contrato, conforme se retira da audição dos depoimentos indicados.

3. Deve por isso ser alterado o facto 9 para não provado.

4. A douta sentença considerou como provado o facto 22. O Requerido presta serviços ocasionais, indiferenciados e remunerados por CC numa garagem.

5. O que resulta porém dos depoimentos não contraditados é que, o Requerente não tem nenhuma relação contratual com o CC, não é remunerado por este, conforme supra se retira da transcrição dos depoimentos e da falta de qualquer outro facto ou documento que o provasse, que não consta dos autos.

6. Deve por isso ser alterado o facto 22, para não provado.

7. A douta sentença considera não provado, o ponto 38: O Requerido não tem família alguma a quem possa recorrer, as duas filhas do seu anterior casamento, residem longe e, após o divórcio da sua mãe com o Requerido cortaram relações com ele, não podendo este contar com elas nem com mais ninguém para o acolher

8. Ora, não foi contraditada de forma alguma esta alegação nem a afirmação do Requerido e, pelo contrário, o que provam as suas declarações claras e objetivas é que o requerido não tem nenhuma família próxima que possa auxiliá-lo, nem que lhe possa dar guarida.

9. Deve, consequentemente, ser alterado o ponto 38 e considerado provado

75. A Lei portuguesa no que à atribuição da casa de família respeita dispõe: o objectivo da lei é proteger o cônjuge que maior sacrifício fará dela não beneficiando.

76. Na aferição/ponderação dos critérios materiais de decisão para tal atribuição, inexistindo propriamente uma hierarquia dos factores ponderáveis, tal necessidade terá de ter em consideração os concretos rendimentos e encargos de ambos os ex-cônjuges.

77. Sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura)

78. Também a Constituição da República determina no Artigo 65.º (Habitação e urbanismo)

10. 1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar

11. A matéria de facto devidamente considerada, prova que o requerente é quem terá de fazer maior sacrifício, por ter o menor rendimento.

12. A matéria de facto, devidamente considerada prova que o requerido tem mais necessidade da habitação, pela sua impossibilidade de arrendar outra na condição de desempregado, pelos seus menores rendimentos, pela falta de familiares próximos ao contrário da Requerente.

13. A matéria de facto devidamente considerada, prova que a capacidade da Requerente é actualmente maior que a do requerido.

14. A necessidade de habitação do Requerente é actual e concreta.

15. A imposição, com maior sacrifício ao Requerido dotado de menores rendimentos, de sair da casa de morada de família é inconstitucional, por violação do artigo 65º da C.R.P.

16. Factos que determinam dever ser alterada a douta sentença.

17. Devendo, pelas razões de facto e de Direito aduzidas supra, ser a casa de morada de família atribuída ao Requerido.

Com o que se fará

JUSTIÇA»

                                                           *

Por sua vez, apresentou a Requerente as suas contra-alegações a fls. 89-94, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«A)-O Recorrente, BB apoiando-se no depoimento prestado em sede de audiência de discussão e julgamento e em particular nas suas declarações de parte, pretende com o presente recurso que se considere não provados factos que o foram na douta sentença recorrida, considerando que foram incorretamente julgados e pretendendo, ainda, que se considerem provados factos que foram considerados não provados.

B)-Entende o Recorrente que deveria ter sido dado como não provado o facto 9 da matéria dada como provada.

C)-Foi a Recorrida quem subscreveu o contrato de arrendamento, na qualidade de arrendatária e o facto de o Recorrente ter conversado com o senhorio, que conhecia, (minuto 15:25) em nada permite alterar o facto 9 dado como provado e considera-lo contratante.

D)-A Recorrida já detinha a qualidade de arrendatária nos anteriores contratos de arrendamento relativos às anteriores casas de morada de família onde o Recorrente residiu com a mesma.

E)-O Recorrente não demonstrou que o senhorio, pelo fato de estar insolvente não outorgava o contrato de arrendamento em seu nome, nem alterou a titularidade do mesmo, vinculando-se contratualmente.

F)-Cabia ao Recorrente o ónus da prova de que suportou os encargos com a casa de morada de família, por se tratar de matéria alegada em sede de contestação, não o tendo feito.

G)-Em suma, o facto de ter sido o Recorrente a ter “conversado” com o senhorio e de ter, alegadamente, suportado os encargos com a reparação da casa, não permitem, por si só, alterar o facto 9, corretamente julgado.

H)-O Tribunal “a quo” fundamentou a sua convicção – Pontos 35) a 41) dos factos não provados referindo que: “alegações de defesa por impugnação motivada pelo Requerido sobre o processo de negociação do arrendamento da casa, sobre encargos assumidos por si, ou sobre a necessidade de maior habitação, sem qualquer índice de corroboração probatória por outros meios de prova, e uma vez que as alegações/declarações do Requerido se revelaram manifestamente insuficientes, conclusivas e/ou vagas sobre estes pontos, carecendo de melhor prova, nomeadamente testemunhal, e que não foi produzida ou contraditada”.

I)-Deve pois, manter-se como provado o facto 9 da matéria dada como provada e como não provado o facto 36 e 37 dos factos não provados.

J)-A prova do facto 22 da matéria de facto dada como provada, resultou das declarações do próprio Recorrente, prestadas em audiência de discussão e julgamento, que se desloca a um determinado local detido pela testemunha indicada pelo Recorrente CC (não ouvida), com ferramentas e instrumentos de trabalho, onde fica cerca de 4 horas por dia a fazer serviços ou trabalhos, sendo que essa testemunha lhe oferece dinheiro quando precisa.

K)-Pelo que, bem andou o MMº Juiz “a quo” na fundamentação da sua convicção, no que diz respeito à matéria de facto dada como provada (ponto 22), que “perante esta tentativa, gorada, do declarante em esclarecer o Tribunal, afigura-se-nos evidente que essas horas de trabalho não são gratuitas, e independentemente da sua qualificação contratual.

L)-Deve pois, manter-se como provado o facto 22 da matéria de facto dada como provada.

M)-O facto 19 foi corretamente julgado, a Recorrida é proprietária do veículo, o mesmo encontra-se registado em seu nome e é utilizado exclusiva e diariamente pelo Recorrente.

N)-O facto 38 deve manter-se como não provado uma vez que as declarações do Recorrente, prestadas em audiência de discussão e julgamento não foram corroboradas com qualquer outro meio de prova, conforme resulta da fundamentação da matéria de facto.

O)-A alteração da matéria de facto dada como provada no ponto 9, 22, 19 para não provada e a alteração da matéria de facto não provada no ponto 36, 37 e 38 para que passe a constar como matéria provada, não permitem, concluir pela ausência de superioridade residual, marginal e sensível da Requerente sobre o Requerido quanto à casa de morada de família, como pretende fazer crer o Recorrente.

P)-A Recorrida demonstrou a existência de uma necessidade atual, concreta da casa de morada de família traduzida na proximidade do seu local de trabalho, fazendo o percurso a pé (facto 17) sendo o Recorrente utilizador exclusivo e diário do veículo que se encontra registado em nome da Recorrida (facto 19).

Q)- A Recorrida desde finais de 2020, até à presente data, dorme no sofá da sala e o Recorrente no quarto do ex casal (facto 15) e desde a cessação da união de facto que o Recorrente se encontra a usufruir da casa sem qualquer contrapartida monetária, seja a título de renda, luz água, gás, despesas essas inteiramente suportadas pela Recorrida- facto 18.

R)- Além do contrato de arrendamento, os contratos de fornecimento de água, gás, eletricidade, telefone, televisão e internet, são titulados e pagos pela Recorrida- facto provado 14 e 18.

S)-O Recorrente não alegou nem demostrou ter procurado casa e não ter conseguido, nem que em função da idade, estado de saúde e localização da casa relativamente ao local de trabalho, tivesse uma superior necessidade relativamente à Recorrida.

T)-Demostrou sim, apresentar instabilidade profissional apesar da capacidade laboral ativa com demostração de rendimentos ocasionais para além do subsídio de desemprego-facto 21 e 22.

U)- Pelo que é imperioso, que o Recorrente entregue a habitação à Recorrida, atento o fim da vivência conjugal e permita que a mesma resida e usufrua da habitação na sua plenitude.

V)-O Recorrente ao pretender que seja considerado não existir superioridade residual, marginal e sensível da Requerente sobre o Requerido quanto à casa de morada de família, no fundo pretende é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção de que ele próprio entende que deveria ter sido retirada da prova produzida.

W)-O Recorrente limita-se a fazer a sua interpretação e valoração pessoal das declarações e depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros.

X)-O recurso da matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.

Z)-A apreciação da prova feita pelo Recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo MMº Juiz a quo não constitui só por si fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que a prova enriquecida pela oralidade e pela imediação permite ao tribunal aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência.

AA)-No caso sub judice os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência estão em consonância com o material probatório constante dos autos (prova documental) e demais prova produzida, designadamente declarações das partes.

BB)-Assim, porque o juízo recorrido é compatível com os critérios de apreciação devidos, não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada e por conseguinte, a decisão recorrida não merece alteração.

Termos em que deverá manter-se a douta decisão recorrida, fazendo V.ªs Ex.ªs a costumada

JUSTIÇA!»

                                                           *

Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

          2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

           - impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos9.”, e “22.” (relativamente aos quais pugna por que sejam considerados “não provados”) e quanto ao facto “não provado” sob “38.” [relativamente ao qual pugna por que seja considerado “provado”][2];

- incorreto julgamento de direito/erro de decisão, ao atribuir-se o uso e habitação da casa de morada de família à Requerente ora recorrida.

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

 «Considerando o objeto da causa, encontram-se provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:

1. A Requerente e o Requerido fizeram vida em comum, partilhando cama, mesa e habitando a mesma casa, como se de marido e mulher se tratassem, entre janeiro de 2009 até novembro de 2022.

2. Desde abril de 2019, logo após a mudança para a habitação onde residem presentemente, que a vida da Requerente e do Requerido começou a deteriorar-se e a partir de finais de 2020.

3. A partir de finais de 2020 deixou de haver relações sexuais entre o casal.

4. Desde novembro de 2022, que não existe qualquer comunhão de vida entre a Requerente e o Requerido, não dormem juntos, não tomam refeições juntos.

5. A Requerente e o Requerido, de janeiro de 2009 até dezembro de 2013, constituíram a casa de morada de família na Av. ..., em ... e de dezembro de 2013 até março de 2019 na Rua ..., em ....

6. A Requerente já residia na casa de morada de família na Av. ... antes de janeiro de 2009.

7. A Requerente e o Requerido, viveram durante esses anos nos locais identificados, e aí dormiam, tomavam refeições, recebiam toda a correspondência, bem como familiares e amigos, mantendo a sua residência permanente habitual.

8. Em março de 2019, a Requerente e o Requerido voltaram a alterar a sua residência.

9. Em 20 de março de 2019, após procura de casa em conjunto, a Requerente, na qualidade de arrendatária, com o conhecimento do Requerido, subscreveu um contrato de arrendamento de uma casa de habitação correspondente à fração ...-“águas furtadas” sita na Rua ..., em ..., onde veio a constituir a casa de morada de família com o Requerido.

10. Após a celebração do contrato de arrendamento, a Requerente e o Requerido fixaram a sua residência permanente e habitual na referida fração, onde, ainda presentemente, dormem, tomam refeições e recebem a respetiva correspondência.

11. A Requerente e o Requerido levaram para a habitação sita na Av. ..., em ... mobiliário e eletrodomésticos próprios, tendo o casal substituído os mesmos, aos poucos, quando alteraram a sua residência para a Rua ..., em ....

12. Quando constituíram a casa de morada de família na atual fração arrendada a Requerente o Requerido, voltaram a substituir as mobílias e os eletrodomésticos por outros mais modernos.

13. A casa de morada de família é composta por dois quartos, sala estar, jantar e cozinha comuns, duas casas de banho, com boas condições de habitabilidade.

14. Encontram-se em nome da Requerente os contratos de fornecimento de água, gás, eletricidade e telefone, televisão e internet.

15. A Requerente, desde finais de 2020, até à presente data, dorme no sofá da sala e o Réu no quarto que pertencia ao ex casal.

16. A Requerente trabalha como assistente médica para a empresa “S..., Lda.”, sita na Av. ..., em ..., onde aufere o vencimento base de 760,00€ mensais, a que acresce subsídio de alimentação/diário no valor de 2,53€, recebendo ainda em duodécimos o subsídio de férias e de Natal, auferindo de vencimento líquido o valor de 844,78€.

17. A Requerente desloca-se para o local de trabalho a pé.

18. A Requerente suporta renda habitacional no valor de 408,00€, e as despesas da casa designadamente, água, luz, gás canalizado.

                                                                       *

19. A Requerente é proprietária de veículo de marca ..., cor branca, matrícula ..-IG-.., registado em seu nome, a ser utilizado exclusiva e diariamente pelo Requerido.

20. A Requerente contraiu um empréstimo junto da “Banco 1...” para poder tratar dos seus dentes, encontrando-se a pagar o montante de 79,89€ de prestação mensal.

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21. O Requerido encontra-se desempregado e a auferir subsídio de desemprego na ordem de 700,00€.

22. O Requerido presta serviços ocasionais, indiferenciados e remunerados por CC numa garagem.

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23. A Requerente em 12 de dezembro de 2022 apresentou participação criminal por crime de violência doméstica, contra o Requerido, a que deu origem ao inquérito nº 192/22.... que correu os seus termos no DIAP ..., designadamente por agressão física e ameaças de mal futuro, caso não abandonasse a casa de morada de família.

24. A Requerente solicitou ao Requerido que saísse de casa.

25. Por despacho de 08-05-2023, no âmbito do inquérito nº 192/22.... foi proferido despacho de arquivamento.

*

26. O Requerido é fiador do contrato de arrendamento da casa morada de família.

27. O Requerido apresentou queixa-crime por denuncia caluniosa e difamação contra a Requerente.

28. A Requerente mantém relações familiares com o seu filho.

29. O filho da Requerente reside na zona da ..., em casa própria da sua companheira.

30. Até novembro de 2022, o Requerido assumia encargos com a aquisição de bens alimentares e de utilidade doméstica para uso comum do casal.

* *

Considerando o objeto da causa, não se encontram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:

31. Os partes alteraram a sua residência permanente e habitual, porque o Requerido pretendia residir numa habitação mais moderna e confortável.

32. O outro quarto da habitação casa morada de família apresenta problemas de infiltrações e humidade, que agravam o problema de alergias da Requerente.

33. A Requerente contraiu um empréstimo no valor de 5.000,00€ (cinco mil euros) junto da “Banco 2...” para pagar dívidas e despesas da responsabilidade do Requerido, cuja prestação mensal ascende a 71,61€, tendo assumido o efetuar o pagamento da referida prestação mensal, desde meados de 2020.

34. O Requerido é Técnico de Eletromecânica, exercendo a sua atividade numa garagem sita em ... em ..., procedendo a reparação e restauro de veículos automóveis novos e antigos.

*

35. A Requerente sabe perfeitamente que tiveram de sair da casa arrendada onde moravam na Rua ..., porque o apartamento onde residiam, foi adquirido por um Fundo imobiliário ao seu então senhorio.

36. A Requerente nunca participou em negociação alguma do contrato, tendo-o inclusive assinado em sua casa e foi o Requerido quem o entregou ao Senhorio.

37. O Requerido suportou encargos de reparação da casa morada de família.

38. O Requerido não tem família alguma a quem possa recorrer, as duas filhas do seu anterior casamento, residem longe e, após o divórcio da sua mãe com o Requerido cortaram relações com ele, não podendo este contar com elas nem com mais ninguém para o acolher.

39. As rendas de casa em ..., ou nas proximidades e/ou um quarto em novo contrato de arrendamento que teria de celebrar, excedem as suas possibilidades atuais.

40. A nora da Requerente possui várias habitações no concelho, para além de residirem numa casa de tamanho considerável com capacidade para acolher a Requerente sem perturbar a vida do casal.

41. O filho da Requerente e a sua companheira, sempre afirmaram ao requerido que, caso a Requerente necessitasse de casa para viver, estariam disponíveis para a ajudarem, fosse acolhendo-a na sua própria casa, fosse disponibilizando-lhe uma do seu património familiar ou de outra forma.

42. A Requerida tem problemas ao nível psicológico, isolando-se, ficando deprimida tendo um comportamento compulsivo/obsessivo

43. O Requerido contactou o filho da Requerente, para a tentar ajudar, procurando apoio para conseguir ajuda médica para a Requerente.»

                                                                       *

            3.2 – O Requerido/recorrente deduz impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos “provados” sob os nos9.”, e “22.” (relativamente aos quais pugna por que sejam considerados “não provados”) e quanto ao facto “não provado” sob “38.” [relativamente ao qual pugna por que seja considerado “provado”]:

Começando pelos pontos “provados” sob os nos9.”, e “22.”, rememoremos a redação conferida a cada um deles e o que respetivamente é suscitado pelo Requerido/recorrente.

Vejamos então

«9. Em 20 de março de 2019, após procura de casa em conjunto, a Requerente, na qualidade de arrendatária, com o conhecimento do Requerido, subscreveu um contrato de arrendamento de uma casa de habitação correspondente à fração ...-“águas furtadas” sita na Rua ..., em ..., onde veio a constituir a casa de morada de família com o Requerido.»

Relativamente ao primeiro destes pontos de facto, o Requerido/recorrente, em síntese, sustenta que «(…) o que ficou provado é que, o contrato de arrendamento não foi celebrado pela Requerente com conhecimento do requerido, mas foi o requerido quem efectivamente celebrou o contrato com o senhorio, que a requerente sequer conhecia, a requerente, sequer negociou os termos do contrato, foi o requerido quem assumiu as obras necessárias».

Como meio de prova para tanto invoca as “declarações” do próprio, mais concretamente transcrevendo pequenos excertos das mesmas que localiza ao “Minuto 1.50”, “minuto 2.30”, “minuto 2.46 e 3.06”, “Minuto 15.25”, “minuto 16.25” e “minuto 17.01”.

Que dizer?

Desde logo salta à evidência que o Requerido/recorrente aparentemente não leu com atenção – ou pelo menos não percecionou corretamente! – o que está referido no ponto de facto em questão, na sua literalidade, a saber, que o contrato em causa foi “subscrito” pela Requerente na “qualidade de arrendatária”, “com o conhecimento do Requerido”.

Na verdade, ele não questiona minimamente nas suas alegações esses dois primeiros pressupostos, os quais, aliás, são inquestionáveis face ao que se extrai do documento escrito que é o contrato junto aos autos; e quanto ao último pressuposto, não o questiona diretamente, antes invoca que a sua participação foi muito mais ampla, pois que teria sido o próprio a primeiramente contatar o senhorio e a com ele negociar os termos do contrato, mas isso extravasa claramente do que consta do ponto de facto em análise, sendo certo que a circunstância de o contrato ter sido subscrito pela Requerente “com o conhecimento do Requerido”, não resulta sequer diretamente questionada por ele.

Face ao que vem de se expor, e sem se entrar na discussão da validade do meio de prova “declarações de parte”, improcede sem mais a pretensão do Requerido/recorrente no que a esse primeiro ponto de facto diz respeito.

                                                           ¨¨

Já o segundo ponto de facto tem o seguinte teor literal:

«22. O Requerido presta serviços ocasionais, indiferenciados e remunerados por CC numa garagem.»  

Já relativamente a este ponto de facto, o Requerido/recorrente invoca que «Tal consideração contudo não tem adesão nas declarações do Requerido, não contraditadas pela requerente», passando a transcrever dois excertos das mesmas que localiza ao “minuto 20.04” e “minuto 20.36”, a saber, respetivamente:

«24. Ao minuto 20.04, das suas declarações, o Requerido declara: pretendo iniciar um projecto para recuperação de automóveis clássicos.

25. Perguntado pelo Meritíssimo Juiz; Vai iniciar quando? Responde: o proprietário (do espaço) que está aqui hoje, diz-me que até meados de 2024, quando estão as instalações feitas.

26. Pergunta o Meritíssimo Juiz: Isso quer dizer o quê em termos de rendimento, vai esperar até 2024? Responde o requerido: neste momento eu estou lá a ajudá-lo porque aquilo estava em mau estado.

27. Pergunta o Meritíssimo juiz: Está a ajudá-lo gratuitamente? Responde o requerido: Não tenho nenhum contrato para receber nada com ele. Ele ajuda-me porque sabe que eu estou nesta situação. Pergunta o Meritíssimo Juiz: Ele ajuda-o como? Responde o Requerido: Ele ajuda-me. Quando eu preciso de algum dinheiro, ajuda-me!

28. Pergunta o Meritíssimo Juiz? O que está a dizer é, eu vou abrir um negócio com um sócio, em meados de 24, eu agora estou lá a ajudá-lo, gratuitamente mas ele ajuda-me quando eu preciso de dinheiro? Responde o Requerido: Sim!»;

«34. Ao minuto 20.36, em resposta a pergunta do mandatário o Requerido esclarece: Tem alguma obrigação de lá ir? Não. Eu é que me sinto na obrigação de ajudar porque tenho lá as minhas coisas, as coisas estão dentro da garagem dele.»

Com apelo a tal, mais concretamente sustenta o Requerido/recorrente que o dito CC «(…) quando o vê mais necessitado, dá-lhe alguma ajuda a titulo pessoal e de amizade; Não o remunera por serviços nenhuns».

Que dizer?

Confrontando a “motivação” expressa pelo Exmo. Juiz de 1ª instância atinente a este particular, daí consta o seguinte:

«Pontos 21) e 22) dos factos provados: declarações do Requerido quanto à atual situação profissional, assinalando-se as respostas evasivas, não colaborantes ou em reserva mental do Requerido quanto à disponibilidade de rendimentos e atual situação laboral, visto que referiu encargos na ordem dos 1000,00€ após o início da situação de desemprego, mais admitindo, a insistências da inquirição do Tribunal perante a vacuidade das respostas, que se desloca a um determinado local, detido pela testemunha (não ouvida) CC, com ferramentas e instrumentos de trabalho, onde fica cerca de 4 horas por dia a fazer serviços ou trabalhos, sendo que essa testemunha lhe oferece dinheiro quando precisa. Ora, perante esta tentativa, gorada, do declarante em esclarecer o Tribunal, afigura-se-nos evidente que essas horas de trabalho não são gratuitas, e independentemente da sua qualificação contratual;»

Que dizer então sobre a valoração probatória feita?

Quanto a nós, não existe efetivamente no nosso atual sistema jurídico-legal uma qualquer impossibilidade de ser utilizada para formar a convicção probatória sobre pontos de facto que se possam considerar “favoráveis” à parte, o que tenha resultado das “declarações de parte” da mesma.

Isto sempre no quadro da livre convicção probatória – que é o paradigma do nosso sistema (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil, expressamente mencionado no nº 3 do art. 466º do mesmo normativo).

De referir que as “declarações da parte” podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar - congruentemente - outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.

Isto é, «a valoração das declarações de uma parte, que forem favoráveis a essa parte, fora do esquema típico do depoimento de parte poderá ser livremente valorada pelo julgador, ainda que com o apoio em outras presunções judiciais, ou valerá como indício ou princípio de prova, conquanto apoiado noutras provas ou em presunções naturais (presunções simples ou hominis) extraídas das regras da experiência.»[3] 

Não há, assim, como aprioristicamente denegar ou contrariar a potencialidade das “declarações de parte” na formação da convicção do juiz.

A propósito da relevância probatória das “declarações de parte” convém ter presente a síntese constante de douto aresto, a saber:

«A relevância probatória destas declarações tem sido objecto de apreciação pela doutrina e jurisprudência, salientando-se, este nível, três posições distintas, a saber:

- Uma primeira que confere às declarações de parte um caracter integrativo e supletivo, no sentido de que as declarações de parte apenas podem servir de elemento de clarificação de outras provas já produzidas ou, ainda, como meio probatório supletivo quando não existam outros meios de prova acessíveis e desde que assegurado o contraditório [4].

- Uma segunda posição, que vem sendo sufragada pela maioria da jurisprudência, sustenta que as declarações de parte constituem um princípio de prova e, nesse contexto, por princípio, não são bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo coadjuvar a prova desde que em conjugação com outros elementos de prova. [5]

Como assim, segundo esta outra corrente, em condições normais e por princípio, as declarações de parte, ainda que livremente valoradas pelo tribunal, não podem servir de sustento à prova de factos favoráveis ao próprio declarante, salvo quando acompanhadas de outros meios de prova que os corroborem.

- Uma terceira posição defende a auto-suficiência e o valor autónomo das declarações de parte, com o sentido de que as declarações de parte devem ser valoradas de forma livre pelo tribunal e, nesse contexto, nada obsta a que a mesmas, ainda que não se encontrando corroboradas por outros meios de prova, sejam consideradas como meio bastante à demonstração de factos favoráveis ao declarante, desde que as mesmas se revistam de credibilidade bastante para esse efeito. [6]

(…)

[4] Vide, neste sentido, por todos, J. LEBRE de FREITAS, ISABEL ALEXANDRE, “CPC Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 309 e PAULO PIMENTA, “Processo Civil Declarativo “, 2015, pág. 357.

[5] Vide, neste sentido, por todos, CAROLINA HENRIQUES MARTINS, “Declarações de Parte”, UC, 2015, pág. 58 (citada por L. FILIPE PIRES de SOUSA, “Direito Probatório Material”, 2ª edição, pág. 290-291), MARIA dos PRAZERES BELEZA, “A Prova por Declarações de Parte”, in II Congresso de Processo Civil, 2014, pág. 21 e, na jurisprudência, por todos, AC RP de 26.06.2014, relator ANTÓNIO JOSÉ RAMOS, AC RP de 23.03.2015, relator JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA e AC RP de 20.06.2016, relator MANUEL FERNANDES, todos disponíveis in www.dgsi.pt

[6] Vide, neste sentido, por todos, L. FILIPE PIRES de SOUSA, op. cit., pág. 295, ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa?”, in Julgar Especial, Prova Dificil, 2014, pág. 36 e, ainda, na jurisprudência, AC RG de 4.04.2019, relator MARIA JOÃO MATOS, AC RL de 26.04.2017, relator LUÍS SOUSA, AC STJ 7.02.2019, relator ROSA RIBEIRO COELHO, AC STJ de 11.07.2019, relator BERNARDO DOMINGOS, todos disponíveis in www.dgsi.pt»[4]

Salvo o devido respeito, do nosso quadro legal resulta que as “declarações” são e devem ser apreciadas livremente pelo tribunal (cf. 466º, nº 3, do citado n.C.P.Civil), donde, nessa apreciação, em função da credibilidade que as mesmas possam merecer, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar, ainda que favorável ao declarante.

Não obstante o vindo de dizer, e tomando partido face às distintas posições supra enunciadas, tendemos a considerar que, sem olvidar um juízo de liberdade de apreciação casuística pelo tribunal, as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentam, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.

Ora é por assim ser que em nosso entender não existiu qualquer erro de julgamento pelo tribunal a quo quanto a este particular.

Na verdade, a nosso ver, dúvidas não existem de que as “declarações de parte” [que, diga-se, divergem do “depoimento de parte”], devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado, isto porque não se pode ignorar que, como meio probatório são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.

Com efeito, em nosso entender seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de qualquer outro meio probatório, seja ele documental ou testemunhal, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.

Assim, s.m.j., é de todo implausível e inverosímil que se possa ou deva qualificar os “serviços” prestados pelo Requerido na oficina do dito CC e para este, numa média de 4 horas diárias, quando o próprio Requerido aceita que o CC lhe entrega quantias monetárias, como “não remunerados”.

Dito de outra forma: a invocada “ajuda a título pessoal e de amizade” por parte do CC, não pode ser desconectada dos serviços que o Requerido/recorrente presta ao primeiro [no sentido de não ser correspetivo / não haver objetivo de remuneração no que às quantias monetárias envolvidas diz respeito]. 

A versão dos factos invocada pelo Requerido/recorrente não colhe manifestamente sentido, em função das regras da experiência e da lógica.

Sendo certo que ela não se mostra corroborada por qualquer outro meio de prova, designadamente por testemunho do dito CC! 

Donde, nada há igualmente a censurar ao constante do ponto de facto “provado” sob o no “22.”.

                                                           ¨¨

Passando agora ao ponto de facto “não provado” sob o no38.”, vejamos o respectivo teor literal:

«38. O Requerido não tem família alguma a quem possa recorrer, as duas filhas do seu anterior casamento, residem longe e, após o divórcio da sua mãe com o Requerido cortaram relações com ele, não podendo este contar com elas nem com mais ninguém para o acolher.»

Neste particular, mais uma vez invoca o Requerido/recorrente que podiam e deviam ter sido valoradas positivamente as “declarações” do próprio, porque «(…) foi claro e objectivo nas suas declarações», sendo que transcreve pequenos excertos das mesmas que localiza ao “minuto 9.39”, “minuto 9.44” e “minuto 9.56”.

Já a “motivação” da sentença recorrida atinente a este particular foi do seguinte teor:

«Pontos 35) a 41) dos factos não provados: alegações da defesa por impugnação motivada do Requerido sobre o processo de negociação do arrendamento da casa, sobre encargos assumidos por si, ou sobre a necessidade maior da habitação, , sem qualquer índice de corroboração probatória por outros meios de prova, e uma vez que as alegações/declarações da Requerido se revelaram manifestamente insuficientes, conclusivas e/ou vagas sobre estes pontos, carecendo de melhor prova, nomeadamente testemunhal, e que não foi produzida ou contraditada.»

Que dizer?

Salvo o devido respeito, face ao vindo de sustentar na resposta ao ponto antecedente, a resposta a esta questão já inteiramente se adivinha.

Na verdade, trata-se de uma alegação sem qualquer corroboração testemunhal ou documental, sequer quanto à filiação propriamente dita.

Ora se assim é, nada vemos que censurar à convicção probatória no sentido de considerar a factualidade constante deste ponto de facto no elenco dos factos “não provados”.

                                                           ¨¨  

O que tudo serve para dizer que improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto in totum, assim se mantendo a factualidade em causa com a mesma e exatíssima redação que lhe foi dada na decisão de 1ª instância.

                                                           *          

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O enquadramento e decisão que importa operar na situação vertente reporta-se nuclearmente ao referenciado incorreto julgamento de direito/erro de decisão, ao atribuir-se o uso e habitação da casa de morada de família à Requerente ora recorrida.

Para bem se aquilatar um tal questão importa naturalmente aprofundar a ratio legis do normativo legal atinente, a saber, o art. 1793º, nº1 do C.Civil, aplicável ex vi do art. 4º  da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio [que aprovou o regime legal de PROTECÇÃO DAS UNIÕES DE FACTO[5]], o qual tem efetivamente o seguinte teor: “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.

Como é bom de ver, este dispositivo não impede nenhum dos cônjuges ou ex-cônjuges [leia-se, nenhum dos unidos de facto ou ex-unidos de facto] de ter uma habitação, limitando-se a regular a situação em que, desavindos os cônjuges/unidos de facto, se torne impossível ou insuportável a estes ou a algum deles continuarem a viver ambos na antiga casa de morada da família; para tanto, fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges/unidos de facto poderá continuar a habitar a casa, sem impedir o outro de constituir nova habitação.

De referir que «a união de facto dissolve-se por vontade de um dos seus membros, devendo ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela, nomeadamente na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes da dissolução da união de facto, ou em ação que siga o regime processual das ações de estado» [cfr. art. 8º, nº 1 al. b), nº 2 e 3 da dita Lei nº 7/2001], o que foi devidamente operado preliminarmente na sentença recorrida, com devido reporte no dispositivo da mesma.

Prosseguindo.

Recorde-se que o objeto dos autos se refere à atribuição de casa de morada de família, em regime de arrendamento, na sequência de rutura da coabitação paramarital entre as partes, sendo que a causa de pedir da Requerente se fundamentava, essencialmente, na necessidade da habitação e na impossibilidade de coabitação com o Requerido.

Para dirimir tal situação, há que averiguar qual a solução que os aludidos critérios legais, ali fixados de forma não taxativa – como resulta da utilização da expressão “nomeadamente” – apontam, sendo que se entende que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, apenas havendo que recorrer a outros em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles.

Assim, os critérios essenciais são dois: (i) as necessidades de cada um dos cônjuges/unidos de facto, e (ii) o interesse dos filhos do casal/unidos de facto.

Quanto a este último particular, o do interesse dos filhos, prende-se ele com a situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio/separação destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar.

Na verdade, é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção[6], precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.

Sucede que no caso vertente o recurso a tal critério está ab limine afastado, por não existirem quaisquer filhos das partes conjuntamente entre si (nem com eles conviventes).

Assim sendo, ficava-nos o segundo critério supra enunciado – o das necessidades de cada um dos cônjuges – sendo que só caso este não se mostre apto a dirimir a questão, seria então caso de lançar mão de outros factores atendíveis, posto que aqueles dois sendo os mais importantes, não esgotam a possível solução.

Na sentença recorrida, sufragou-se o entendimento que a situação conduzia à atribuição do direito em causa à Requerente, em detrimento do Requerido, dado que a necessidade daquela revelava «(…) uma prevalência relativa e/ou superioridade residual, marginal e sensível da Requerente sobre o Requerido quanto à casa morada de família».

E a nosso ver – releve-se o juízo antecipatório – bem ajuizou o tribunal de 1ª instância, na medida em que para tal conclusão recorreu, complementarmente, aos critérios suplementares a considerar, por não haver efetivamente diferença “sensível” entre os unidos de facto à luz dos critérios ditos “principais”.

Na verdade, este dito segundo critério não se revelava, por si só, apto para de forma concludente e inquestionavelmente fundada, solucionar a questão: ambos os   Requerente/recorrida e Requerido/recorrente têm necessidade daquela casa por não terem outra (própria ou arrendada) disponível para o efeito, se bem que se consegue logo aqui divisar uma ligeira maior necessidade da parte da Requerente/recorrida, na medida em que a casa se localiza no local de trabalho dela, sendo este o local onde tem vivido nos últimos tempos a esta parte, pelo que, uma atenção às concretas situações da vida real e aos interesses em causa, como seja o não criar desajustamentos, implica que a solução seja de manter em relação a ela Requerente/recorrida.

Ocorre que outros fatores ou “razões atendíveis” é possível erigir como suficientes, senão mesmo decisivos critérios para solucionar a questão, sendo que eles apontam no mesmo sentido.

Que foi o que se fez na sentença recorrida.

Senão vejamos, até por confronto com o que já foi doutamente explanado com relevância para este efeito pela melhor doutrina[7], o que vem sendo perfilhado em doutos arestos jurisprudenciais.[8]

É que se para tal tarefa não se encontra apoio no elemento da diferença de idade entre a Requerente e o Requerido (por objetivamente desconhecidos), nem no elemento do estado de saúde da Requerente e do Requerida (por nada ter sido alegado com relevância para esse efeito), já o mesmo se não diga quanto ao elemento da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, sendo este um factor que aponta decisivamente a favor da Requerente, em detrimento do Requerido: apurou-se que a Requerente trabalha em sítio próximo daquela casa, deslocando-se para o local de trabalho a pé, enquanto em relação ao Requerido, em termos de dinâmica pessoal,  nada se deteta insofismavelmente para se afirmar que o mesmo esteja mais vocacionada para, no presente, ou futuro próximo, ter residência fixada nesta habitação… 

Acresce, com relevância, outro factor igualmente apurado, consistente no elemento da maior ligação de cada um dos ex-unidos de facto em relação à casa em disputa: o contrato de arrendamento dessa casa foi celebrado por ela na qualidade de arrendatária, sendo sempre ela ao longo do tempo naquela casa [desde Março de 2019] a pagar a renda no valor de € 408,00, e as despesas da casa [designadamente, água, luz, gás canalizado, cujos contratos estão em seu nome], acrescendo que desde Novembro de 2022 que o Requerido deixou de assumir encargos com a aquisição de bens alimentares e de utilidade doméstica para uso comum do casal.

A este propósito sublinhou-se na sentença recorrida a seguinte linha de argumentação:

«xvi) Efetivamente, além da proximidade ao local de trabalho, é a Requerente quem tem assumido, exclusivamente nos últimos 6 meses, todos os encargos habitacionais – renda e despesas correntes, com proveito do Requerido, sem compensação e após a cessação da união de facto;

xvii) Nos últimos 6 meses, o Requerido, cessada a união de facto, tem beneficiado, sem qualquer fator de contribuição para a economia comum, dos encargos assumidos pela Requerente;

xviii) Nos últimos 6 meses, o Requerido, assumiu encargos apenas com a sua subsistência – cfr. ponto 30) dos factos provados, em clara e evidente desproporção das responsabilidades assumidas pela Requerente com todos os encargos habitacionais;

xix) Sendo juridicamente legítima a transmissão do direito de arrendamento para o Requerido, não se demonstrou qualquer factualidade justificativa dessa ingerência judicial na autonomia das partes contratantes do contrato de arrendamento vigente, sendo que a solução deve privilegiar a manutenção dos efeitos jurídicos dessa autonomia privada;

xx) A situação económica e laboral do Requerido, compatível com a da Requerente, não se afigura impeditiva da procura de residência, e certamente não se apresenta menos favorável do que a situação económica e laboral do Requerente caso fosse confrontada com tal urgência.»

O que tudo serve para dizer que, também em nosso entender, a globalidade do factualismo apurado permite reconhecer maior prevalência, ainda que marginal/residual, à necessidade da Requerente quanto à casa ajuizada, que foi a casa de morada dos unidos de facto…

Atente-se que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura)![9]

Em contraponto, o que poderia favorecer o Requerido a esta luz e que o mesmo ainda intentou fazer através da impugnação à decisão sobre a matéria de facto que deduziu, não resultou minimamente apurado.

O que significa inapelavelmente a improcedência do recurso interposto pelo Requerido/recorrente, sem necessidade de maiores considerações.

                        (…)

                                    *

6 - DISPOSITIVO

           Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso interposto pelo Requerido/recorrente, confirmando-se o sentido da decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas do recurso pelo Requerido/recorrente.

     Coimbra, 13 de Dezembro de 2023


        Luís Filipe Cravo

      Vítor Amaral

      Fernando Monteiro



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Vítor Amaral
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
 
[2] De referir que por ser o âmbito do recurso circunscrito pelo que figura nas “conclusões”, se desconsidera, sem mais, a apreciação de outros pontos de facto que aparecem no corpo das alegações, como sejam os sob os nos “36.” e “37.” do elenco dos “não provados” (ainda que o segundo desses erradamente identificado como “27.”), e “19.” dos “provados” (este último nem sequer expressamente identificado)…
[3] Citámos REMÉDIO MARQUES, “A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte”, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, a págs. 162-163.
[4] Trata-se do acórdão do TRP de 15/12/2021, proferido no proc. nº 1442/20.0T8VNG.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[5] E no qual se preceitua literalmente que «as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a proteção da casa de morada de família – art.º 3.º al. a), sendo que o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto».
[6] Vide, neste mesmo sentido, o acórdão do S.T.J. de 11.12.2001, no proc. nº 01A3852, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[7] Assim por PEREIRA COELHO, in RLJ, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990, págs. 137, 138, 207 e 208.
[8] Assim no acórdão do T. Rel. do Porto de 26/05/2015, no proc. nº 5523/13.9TBVNG-B.P1, e bem assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra de 28/06/2016, no proc. nº 677/13.7TBACB.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
[9] Neste sentido vide o acórdão do TRC citado em segundo lugar na precedente nota.