Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3170/09.9TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: DEMARCAÇÃO
PRESSUPOSTOS
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1353.º E 1354.º DO C. CIVIL
Sumário: I – Porque o direito de propriedade é pressuposto do direito de demarcação, não reconhecido aquele em acção de reivindicação de certa parcela de terreno por sentença transitada em julgado, a força e autoridade do caso julgado impede seja proposta nova acção, agora com a pretensa finalidade de demarcação da parcela;

II – Sabendo os AA. não estar em causa conflito de estremas com os RR. e que já antes, por sentença transitada em julgado, lhes havia sido denegado o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno com base em sucessão e usucapião e, ainda assim, lograram obter um título de aquisição derivada (sucessão) (por transacção em processo de inventário) para servir de base ao registo de propriedade, com base no qual e também em usucapião propuseram nova acção, agora sob a veste de demarcação de tal parcela, justifica-se a sua condenação a título de litigância de má fé.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

A... e mulher B... propuseram, no 3.ª Juízo Cível de Viseu, a presente acção sob a forma de processo sumário contra C... e mulher D... , pedindo sejam os réus condenados a reconhecer que os autores são os donos do prédio descrito no art. 1º da petição inicial (p. i.), por herança de seus antecessores, bem como a ver reconhecido que a estrema ou limite sul do prédio dos autores a confinar com o prédio dos réus identificado em 2º se situa na linha assinalada em 22º e levantamento junto, limite que deverá ser demarcado nesses precisos termos.

Alegaram, para tanto, ser proprietários do prédio identificado nos art. 1º e 3º da p. i., que adveio à sua propriedade por partilha por óbito de E... , F... e G... , avós e pai do autor marido, que as heranças a que os autores sucederam, e os próprios autores, andam na posse exclusiva desse prédio desde há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, ininterruptamente, de forma pública e pacífica, pelo que o adquiriram por usucapião, sendo certo que tal prédio resultou da divisão de outro que ficou materialmente separado aquando da abertura da estrada que liga a EN 2 ao Centro de W..., que o atravessou em 1933, mais alegando que os réus são proprietários de um prédio confinante, a norte desse prédio e a sul do prédio dos autores, encontrando-se todas as estremas assinaladas por linhas e cruzes escavadas em rocha, sendo que os réus, abusivamente, colocaram pedras e aterro sobre o prédio dos autores.

Na contestação os réus arguiram a excepção do caso julgado, face à sentença, transitada, anteriormente proferida na acção sumária 2055/04.0TBVIS do mesmo Juízo e, para o caso de tal excepção não proceder, deduziram reconvenção, na qual pediram fosse declarado o direito de propriedade dos réus sobre o prédio identificado no art. 40º da p. i., fosse declarado que o limite norte deste prédio é a estrada municipal que conduz à povoação de W... e condenados os autores a respeitar o direito de propriedade dos réus sobre tal prédio, abstendo-se de o violar ou perturbar e ordenado o cancelamento do registo referido no art. 3º da p. i., por o prédio a que o mesmo respeita não ter qualquer existência real e, finalmente, pediram a condenação dos autores como litigantes de má fé em multa e indemnização não inferior a € 2.500,00.

Foi apresentada resposta onde os autores pugnaram pela improcedência quer da excepção do caso julgado, quer da reconvenção.

Findos os articulados e após tentativa frustrada de conciliação, foi proferido despacho saneador - sentença a julgar procedente a excepção de caso julgado e a absolver or réus da instância principal e a julgar extinta por inutilidade superveniente a instância reconvencional subsidiariamente deduzida e procedente, ainda, o incidente de litigância de má fé e os réus condenados na multa de 4 UC e na indemnização aos réus e respectivo mandatário no valor global de € 2.500,00.

Inconformados, os réus recorreram, apresentando alegações finalizadas com as seguintes úteis conclusões:

a) – Na presente acção não se repetem nem o pedido, nem, sobretudo, a causa de pedir em que se fundava a acção anteriormente julgada e, não se verificando tal repetição, inexiste caso julgado que obste ao prosseguimento da causa, que deverá seguir os seus termos;

            b) – Seja porque não ocorre aquela excepção, seja porque a actuação dos AA. parte da dúvida em que ficou o tribunal (e eles próprios) na acção anterior, quanto a saber se a parcela em disputa se inscrevia no prédio dos seus antepossuidores e se autonomizou (o que significaria que estava por partilhar), ou no prédio dos RR., não deverão ser condenados em má fé;

            c) – Violou o tribunal recorrido o disposto nos art.ºs 497.º, n.º 1 e 2, 498.º, n.º 4 e 456.º, do CPC, pelo que deve a decisão ser revogada e determinar-se o prosseguimento dos autos.

Os réus responderam no sentido da manutenção do decidido.

Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questões a apreciar:

a) – Se não se verifica a excepção do caso julgado;

            b) – Se não deve haver lugar à condenação dos recorrentes a título de litigância de má fé.


*

            2. Fundamentos

            a) – De facto

            Os factos dados como provados na decisão recorrida e não impugnados, foram os seguintes:

1) Sob o nº 2055/04.0TBVIS do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Viseu correu termos uma acção com processo ordinário proposta por A...e mulher B... contra C... e mulher D..., na qual os autores pediram que, pela procedência da mesma, sejam os réus condenados a:

a) - Reconhecer que os autores são os donos do prédio descrito no art. 1º da p. i.

b) - Reconhecerem que o mesmo tem a configuração e limites que decorrem do levantamento topográfico junto como doc. 2 à providência apensa;

c) – Abster-se de, por qualquer forma, perturbarem a posse dos autores sobre o prédio;

d) - Retirar do prédio as pedras e aterro que nele colocaram.

2) Na acção referida em 1), alegam os então autores, em síntese, que são donos do mesmo prédio em causa nos presentes autos, que lhes adveio por partilha meramente verbal efectuada em 1975 e que também adquiriram por via da usucapião, sendo que tal prédio, que se encontra omisso na matriz, resultou da divisão de outro do qual ficou materialmente separado aquando da abertura da estrada que liga a EN2 ao Centro de W..., tendo a configuração que se alcança do doc. 2 junto ao procedimento cautelar. Mais alegam que os réus são donos de um prédio confinante e que os mesmos invadiram o prédio dos autores com trabalhadores e retroescavadora, colocando pedras e aterro no mesmo.

3) Na acção referida em 1), os réus contestaram, alegando em síntese que o terreno em questão faz parte integrante de um prédio que lhes pertence, encontrando-se registralmente inscrito em favor dos réus o facto relativo à aquisição, por partilha, de tal prédio, o qual também adquiriram por via da usucapião.

4) Na acção referida em 1), foi proferida sentença em 3-08-2007, já transitada em julgado, na qual foi julgada a acção totalmente improcedente.

5) O prédio referido em 1) corresponde ao prédio inscrito na matriz de W... sob o art. x... e descrito na 2ª CRP de Viseu sob o nº xx.../20060130.

 6) Em relação ao prédio referido em 5), foi registada, pela ap. 7 de 2006-01-30, a acção referida em 1), tendo tal inscrição sido cancelada, pela ap. 1236 de 2009-05-05. – doc. de fls. 18-19 do PP.

7) Pela ap. 2639 de 2009-04-02, foi inscrito a favor dos ora autores o facto relativo à aquisição por partilha judicial do prédio referido em5), por óbito de F... e E....

8) Os autos de inventário onde foi partilhado o bem referido em 1) deram entrada em juízo no dia 07-01-2008, tendo corrido termos no 2º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 109/08.2TBVIS.

9) Nos autos de inventário referidos em 8), foi declarado pelo cabeça-de-casal M... , em 04.03.2008, que eram inventariados F... e marido E..., bem como o filho destes, G... – doc. de fls. 11 e seg.

10) Nas declarações de cabeça de casal referidas em 9), foi identificado como sendo um dos interessados, por sucessão de G..., o seu filho A...s, casado no regime da comunhão geral de bens com B...– doc. de fls. 11 e seg.

11) Nos autos de inventário referidos em 8), o único bem relacionado foi o prédio identificado em 5) – doc. de fls. 11 e seg.

12) Nos autos de inventário referidos em 8), foi em 08-01-2009 celebrada, entre os interessados, transacção nos termos da qual ficou adjudicada ao interessado A...a única verba relacionada.

13) Por escritura pública de partilhas celebrada no dia 3-05-1990, em que foram outorgantes, entre outros, M... (referido em 9), G... (referido em 9) e 10) e os ora autores, não foi relacionado e partilhado o bem referido em 5).

14) Na acção referida em 1), foi considerada provada, na sentença proferida, a seguinte factualidade:

1) No dia 31-03-2004, A...requereu no Serviço de Finanças de Viseu – 1a inscrição na matriz de um prédio que descreveu como terreno de pinhal e mato sito em W..., em Z..., com a área de 633 metros quadrados, a confrontar do norte com a estrada, nascente com N..., sul com O... (Herdeiros) e poente com P... e ao qual atribuiu o valor patrimonial de 3 euros, referindo que o mesmo se encontrava omisso na matriz rústica da freguesia de W..., concelho de Viseu, desde a entrada em vigor das actuais matrizes em virtude de não ter sido avaliado –A e resp. ao ques. 12º.

2) Os réus são proprietários de um prédio sito à k..., freguesia de W..., concelho de Viseu, inscrito na matriz rústica sob o artigo y... e descrito na 2º Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº yy... da dita freguesia e concelho, que lhes adveio por escritura pública de partilha por óbito de O..., ou O..., e mulher Q..., celebrada no dia 14 de Maio de 2004 –B.

3) A parcela de terreno que os autores reivindicam nestes autos situa-se às Z..., lugar e freguesia de W..., concelho de Viseu, confronta do norte com a estrada, tem a forma de um trapézio cujos lados têm as seguintes dimensões: 21 m x 30,80 m x 30,40 m x 19,20m, partindo do lado que tem a orientação sudoeste/noroeste e seguindo, quanto aos demais, a orientação dos ponteiros de um relógio até chegar ao lado que tem a orientação sudeste/sudoeste – resp. aos ques. 1º e 15º.

4) Junto dos limites da parcela de terreno referida na resposta aos quesitos 1º e 15º existem diversos sinais em forma de cruz, concavidade e linha cravados na pedra e laje ali existentes – resp. aos ques. 17º a 22º e 45º.

5) Os réus colocaram pedras e terra junto à estrada para o centro de W... sobre o limite norte da parcela de terreno referida em 3º - resp. aos ques. 23º, 24º e 25º.

6) Os réus actuaram da forma referida em 5º sem consulta ou autorização dos autores – resp. ao ques. 26º.

7) Os autores são donos de um prédio que fica a norte da estrada que segue para W..., desenvolvendo-se em sentido paralelo à parcela de terreno referida na resposta aos quesitos 1º e 15ºe sita a sul dessa estrada, no sentido poente-nascente – resp. aos ques. 27º, 39º e 40º.

8) No prédio referido em 7º foi construída uma casa a mando dos autores ou de um filho destes –resp. aos ques. 28º, 39º e 40º.

9) No prédio referido em 2), os réus plantam árvores de fruto, videiras, semeiam feijão e milho, fazem o cultivo e amanho da terra na parte que se destina ao cultivo – 30º.

10) Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida em 9) há mais de 30 anos ininterruptamente – resp. ao ques. 34º.

11) Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida em 9) à vista de toda a gente, nomeadamente dos autores – resp. ao ques. 35º.12) O referido em 9º), 10º) e 11º) ocorre sem levantar dúvidas, questões ou oposição de qualquer natureza– resp. ao ques. 36º.

13) Por si e antepossuidores, os réus actuam da forma referida em 9º, 10º, 11º e 12º com animus de proprietários – resp. ao ques. 37º.

14) A parcela de terreno reivindicada nos autos pelos autores tem a confrontação a norte e configuração referidas em 3º) e o prédio referido em 2) confronta do sul com ribeiro – resp. aos ques.41º, 42º, 43º, 44º.

15) Na motivação das respostas à factualidade controvertida na acção referida em 1), consta que “ (…) cumpre aqui realçar a ausência de qualquer referência à parcela ora reivindicada pelos autores como prédio autónomo na escritura de partilhas junta a fls. 127 e seg. do apenso e celebrada por óbito de F... e marido E..., R..., o que causa estranheza e retira verosimilhança à tese  sustentada pelos autores na parte em que referem que a referida parcela constitui um prédio verbalmente herdado em 1975 de G..., pai do autor, que por sua vez o havia herdado do seu pai E....

Tal documento deve ser conjugado com o documento de fls. 119 do apenso, através do qual o autor requereu em 4-06-1990 o averbamento dos prédios que lhe foram adjudicados através da mencionada escritura de partilhas, da qual resulta que o prédio dos autores confronta do sul com estrada, situando-se por isso a norte desta.

Não se percebe por que motivo o autor não requereu nessa altura a inscrição, como prédio autónomo, do prédio ora reivindicado, juntamente com os prédios que lhe foram adjudicados por escritura pública, como seria lógico e seria de esperar se efectivamente o tivesse herdado, sendo certo que, por razões que se desconhecem, aguardou por 2004 para requerer a inscrição matricial desse prédio” – doc. de fls. 105 e seg..

16) Na acção referida em 1), havia sido alegado pelos autores, nos artigos 2º e 3º da petição inicial daquela acção, que o prédio referido em 1) “veio à propriedade dos autores por partilha meramente verbal a que procederam em 1975, com G..., pai do requerente marido que, por sua vez, o havia herdado do seu pai E..., sendo que, desde 1975, os autores andam na sua posse exclusiva de forma consecutiva e sem interrupção” - doc. de fls. 114 e seg..


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            b) De direito

            De acordo com o disposto nos art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC (como os demais a indicar sem menção), são as conclusões das alegações do recurso que delimitam o âmbito de conhecimento deste, não podendo conhecer-se de outras questões aí não suscitadas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

            Enunciadas que foram as mesmas, comecemos pela excepção do caso julgado.

            Trata-se, como é sabido, de uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância (art.ºs 494.º, alín. 1), 495.º e 493.º, n.º 2).

            De acordo com o disposto no art.º 497.º, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a 1.ª ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (n.º 1) e visa prevenir que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (n.º 2).

Como seus requisitos aponta o art.º 498.º uma tríplice identidade, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, concretizando haver identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, de pedido quando numa e noutra acção se pretende obter o mesmo efeito jurídico e, de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo que nas acções reais a causa de pedir é constituída pelo facto jurídico de que deriva o direito real correspondente.

Desenvolvendo este quadro legal e no que ao caso importa, a doutrina e a jurisprudência assentou em que para haver identidade de pedido entre duas acções não é necessária uma rigorosa identidade formal, bastando sejam coincidentes o objectivo fundamental de que depende o êxito de cada uma delas.[1]

É hoje predominante, também, mormente no STJ, quanto aos limites objectivos do caso julgado (art.º 673.º), o entendimento de que este se estende às questões preliminares que constituíram um antecedente lógico indispensável ou necessário à parte dispositiva do julgado.[2]

Já Manuel de Andrade ensinava que o princípio de que o caso julgado só se forma sobre a decisão não é absoluto, “nem exclui que se possa e deva recorrer à parte motivatória da sentença para interpretar a decisão (para reconstituir e fixar o seu verdadeiro conteúdo): neste sentido é a communis opinio”.[3]

Quanto à causa de pedir, no que respeita às acções reais, v. g. reivindicação, seguindo a nossa lei a teoria da substanciação, sendo a causa de pedir o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade, como vimos, é pacífico não bastar a invocação de uma causa de aquisição derivada, v. g., a sucessão, que, não sendo modo de constituição do direito de propriedade, apenas translativo desse direito, importa demonstrar a existência do direito para o transmitente, ou seja, é preciso provar uma forma de aquisição originária, v. g., a usucapião, eventualmente tendo a conta as regras de sucessão e acessão da posse (art.ºs 1255.º e 1256.º, do CC).[4]

Voltando ao caso em apreço e comparando ambas as acções (a Ord. n.º 2055/04.0TBVIS, com sentença transitada em julgado e a presente, Sum. N.º 3170/09.9TBVIS):

1. Quanto aos sujeitos processuais, as partes são manifestamente as mesmas, mesma sendo a posição jurídica que ocupam em ambas as causas.


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            2. Quanto ao pedido:

            I- Na 1.ª acção pediram a condenação dos RR:

            a) – A reconhecer que os AA. são donos do prédio descrito em 1.º [da p. i.];

            b) – A reconhecer que o mesmo tem a configuração e limites que decorrem do levantamento topográfico junto;

            c) – A abster-se de, por qualquer forma, perturbarem a posse dos AA. sobre o prédio;

            d) – A retirar do prédio as pedras e aterro que nele colocaram.  

            II – Na presente acção, a condenação dos RR:

            a) – A reconhecer que os AA. são os donos do prédio descrito em 1.º;

            b) – A ver reconhecida que a estrema ou limite sul do prédio dos AA. a confinar com o prédio dos RR. identificado em 2.º se situa na linha assinalada em 22.º do levantamento junto, limite que deverá ser demarcado nesses precisos termos.

            Daqui decorre manifesta identidade quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo prédio e quanto ao pedido de demarcação só aparentemente é diverso.

            Curiosamente, questão idêntica foi tratada no Ac. RG de 15.3.11[5] no qual a decisão recorrida grandemente se baseou e a que igualmente aderimos, quando concluiu que “o caso julgado não tem por que valer apenas como excepção impeditiva do re-escrutínio da mesma questão entre as mesmas partes (efeito negativo do caso julgado). Vale também como autoridade (efeito positivo do caso julgado), de forma que o já decidido não pode mais ser contraditado ou afrontado por alguma das partes em acção posterior.” “A pretensão dos AA. à demarcação parte do pressuposto inelutável de que são donos do referido espaço. Sucede porém que em anterior acção judicial (…) já os AA. ficaram vencidos quanto à propriedade sobre tal preciso espaço” (…) “o que os AA. estão a fazer na presente acção, embora de forma mais ou menos sibilina (sob a aparência formalmente lícita de uma acção diversa, a de demarcação) é obrigar a discutir de novo a sua suposta propriedade sobre um espaço cuja titularidade não lhes foi reconhecida naquela primeira acção. Pois que é precisamente esta propriedade que dá fundamento ou razão de ser à sua pretensão à demarcação (se a alegada propriedade dos AA. não existir, não faz sentido o pedido de demarcação)”.   

            É o que acontece no caso sub judice.

            Usando os AA. em ambas as acções o mesmo levantamento topográfico para situar o (mesmo) prédio em causa, mormente delimitando-o a sul com o prédio dos RR., o exercício do direito de demarcação, com tutela nos art.ºs 1353.º e 1354.º do CC, obviamente pressupõe a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio a demarcar.

            Ora, este direito (com a delimitação indicada da parcela) não foi reconhecido aos recorrentes naquela 1.ª acção, julgada improcedente com trânsito em julgado.

            Daí que se conclua pela identidade dos pedidos em ambas as acções.


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3. Quanto à causa de pedir

            Na 1.ª acção invocaram os AA. recorrentes a usucapião reportada ao ano de 1975, na sequência de partilha verbal, nessa data, com seu pai ( G...), da herança de seu avô ( E...), a quem o mesmo alegadamente pertencia.

            Na presente acção invocaram a usucapião, por posse da herança de seus avós e pai continuada pelos próprios AA., agora reportada à partilha (adjudicação, por transacção, em 8.1.09) que teve lugar no Processo de Inventário n.º 109/08.2TBVIS com base em que, em 2.4.09, procederam ao registo a seu favor.

            Trata-se de uma alegada aquisição posterior à da 1.ª acção (formalmente inválida) embora com alegação de sucessão na posse (art.º 1255.º do CC).

            Ora, à data da adjudicação do prédio já a sentença que julgara a acção real anterior improcedente dispunha da força e autoridade do caso julgado quanto à inexistência do direito de propriedade dos recorrentes.

            E, embora o facto jurídico translativo não coincida na forma (partilha verbal e partilha a título de inventário), trata-se, ainda assim, na substância, de sucessão, coincidindo na forma da (obrigatória) aquisição originária usucapião.

            Em suma, com irrelevantes nuances, estamos na presença de uma mesma causa de pedir.

            Quanto à presunção decorrente do registo, juris tantum, como se sabe, o próprio caso julgado da sentença que julgara improcedente a acção quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade ilide a presunção.

            Daí o acerto da decisão recorrida quando concluiu que “a questão da propriedade de tal prédio já foi definitivamente resolvida entre as partes na causa anterior, não se lhe sobrepondo o título de aquisição derivado posteriormente elaborado e que serviu de título ao registo.

            Daí resulta que, por força do caso julgado material formado naquela acção e que vincula as partes na presente acção, não pode o tribunal apreciar novamente o objecto da acção na parte em que pressupõe a existência do direito de propriedade dos autores”.

Improcede, assim, a 1.ª enunciada conclusão recursiva.

Quanto à questão da má fé, pouco há a acrescentar à decisão recorrida, até porque os recorrentes limitam a impugnação da condenação à situação de dúvida em que teria ficado o tribunal na decisão anterior quanto à dominialidade da parcela de terreno – se integrado no prédios dos recorrentes, se dos recorridos.

Compulsando a matéria de facto e os documentos juntos ao processo não se vê propriamente qualquer situação de dúvida do tribunal por falta de prova que mais tarde possa ser suprida. O processo cível não pode ficar, digamos, como o inquérito criminal, a aguardar a produção de melhor prova!

A olhar à sentença da 1.ª acção, o que motivou a sua improcedência foi o não cumprimento do ónus da prova, desde logo dos poderes de facto dos recorrentes sobre a parcela em causa, relativamente à qual somente se provou terem diligenciado pela sua inscrição na matriz em 2004, o que determinou que o non liquet criado fosse resolvido num liquet a eles desfavorável.

Com efeito, os recorrentes, enveredando pela via ínvia escolhida após a improcedência da 1.ª acção, fizeram um uso reprovável do seu direito de acção.

Sabendo, embora, não estar em causa nenhum conflito de estremas com os RR e que já antes e por sentença transitada em julgado lhes não havia sido reconhecida a dominialidade do trato de terreno, a que se arrogavam, ainda assim os recorrentes lograram obter um título de aquisição derivada (por transacção em processo de inventário) para servir de base ao registo de propriedade antes judicialmente não reconhecido, pelo que se justificava fossem condenados, como foram, a título de litigância de má fé.

Porque não foram violados os preceitos legais invocados, eis por que soçobram as conclusões recursivas.


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            3. Sumariando (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            I – Porque o direito de propriedade é pressuposto do direito de demarcação, não reconhecido aquele em acção de reivindicação de certa parcela de terreno por sentença transitada em julgado, a força e autoridade do caso julgado impede seja proposta nova acção, agora com a pretensa finalidade de demarcação da parcela;

                II – Sabendo os AA. não estar em causa conflito de estremas com os RR. e que já antes, por sentença transitada em julgado, lhes havia sido denegado o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno com base em sucessão e usucapião e, ainda assim, lograram obter um título de aquisição derivada (sucessão) (por transacção em processo de inventário) para servir de base ao registo de propriedade, com base no qual e também em usucapião propuseram nova acção, agora sob a veste de demarcação de tal parcela, justifica-se a sua condenação a título de litigância de má fé.


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            4. Decisão

            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelos recorrentes.


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Francisco Caetano (Relator)
António Magalhães
Ferreira Lopes


[1] Calvão da Silva, “Estudos de Direito Civil e Processo Civil”, 1996, pág. 234, cit. por A. Neto, “Código de Proc. Civil, Anot.”, 2008, pág. 700.
V., também, Ac. STJ de 21.3.00, Sumários, 39.º-19.
[2] Ac. STJ de 256.11.04, Proc. 04B3703, in www.dgsi.pt.
[3] “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 317.
[4] P. Lima e A. Varela, “CC, Anot.”, III, pág. 115 e A. Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 245, nota 2.
V., também, Remédio Marques, “Acção Declarativa à luz do Cód. Revisto”, 2.ª ed., que a pág. 656 sustenta que “não obstante, creio que, mesmo nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real não é apenas o acto translativo da propriedade para o autor desta acção – os actos anteriores e ultima ratio, a posse conducente à usucapião e à aquisição originária são também factos jurídicos de que deriva o direito real invocado. De sorte que, o que interessa da conceitualização da causa de pedir para este efeito do caso julgado é, sobretudo, a alteração do núcleo fáctico essencial ou os factos essenciais que se tenham alegado na acção anterior.
No mesmo sentido apontava Manuel de Andrade (ob. cit., pág. 322) quando referia que “dentro da teoria da substanciação poderia aventar-se a ideia de que o título aquisitivo da propriedade é sempre a usucapião, pois os outros apenas podem transmitir a propriedade, mas não constituí-la”.
[5] Proc. 1292.2TBGMR.G1, in www.dgsi.pt.