Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
75/21.9T8ANS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 363.º; 405.º; 686.º E 696.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 10.º, 5; 54.º, 2; 703.º, 1, B); 707.º E 735.º, 1, DO CPC
Sumário: Um contrato de abertura de crédito exarado em documento autêntico, na medida em que apoiado por um outro instrumento documental (v. g., um extrato de conta), elaborado de acordo com as cláusulas do contrato, e que mostre (que indicie com suficiência bastante, que prove) terem sido disponibilizados os recursos pecuniários naquele previstos, constitui título executivo (compósito) bastante para poder sustentar uma ação executiva.
Decisão Texto Integral:
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Luís Cravo
                  Rui Moura

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            (…)

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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


            I. Em 11.5.2021, AA, por si e na qualidade de herdeira de BB, e, em 02.9.2022, CC e DD, também na qualidade de herdeiras de BB[1], deduziram embargos e oposição à penhora, por referência (e apenso) à execução que lhes move A..., S. A., dizendo e excecionando, nomeadamente: a) falta de personalidade e de capacidade de BB, atento o seu falecimento; b) inexiste qualquer crédito da exequente sobre as embargantes; c) não intervieram no documento dado à execução, ao qual, assim, são alheias, pelo que concluem, quanto a si, pela inexistência/falta de título executivo e pela ineptidão do requerimento executivo, por não ter sido formulado pedido; d) gozam de direito real de retenção sobre a fração, que prevalece sobre a hipoteca; e) na pendência da execução n.º 4364/10.... foi cancelada a hipoteca que incide sobre a fração B e a exequente omite o valor recebido pela credora originária; f) desconhecem o valor percebido pelas frações H, D e G, pelo que impugnam a quantia exequenda; g) impugnam os juros reclamados, porquanto a exequente não especifica o período a que correspondem e, por isso, poderão estar prescritos; h) desconhecem se o montante total de € 600 000 foi efetivamente utilizado pela sociedade mutuária, e impugnam a genuinidade e autenticidade das “notas de débito”, bem como do extrato de “consulta de movimentos” datado de 26.6.2012, juntos ao requerimento executivo; i) é nulo o n.º 4 da cláusula 3ª da escritura que contemplou juros à taxa de 13,75 %, devendo efetuar-se a sua redução nos termos fixados por lei. Concluíram pela procedência dos embargos e a inadmissibilidade da penhora.

           A exequente/embargada contestou, reiterando o teor do requerimento executivo, e referindo, designadamente, que as embargantes não têm legitimidade para arguir a nulidade de qualquer cláusula do contrato e, mesmo que assim não fosse, a arguição é extemporânea visto que já intervieram na outra ação executiva e não arguiram qualquer nulidade; relativamente às suspeições sobre a genuinidade de documentos juntos com o requerimento executivo, reitera que são genuínos, e caso pretenda o Tribunal e assim o autorizar, a exequente pode remeter os originais dos mesmos para consulta das embargantes na secretaria judicial, através de requerimento ad hoc em suporte físico. Concluiu pela improcedência da matéria de exceção e a total improcedência dos embargos de executado.

            Foi designada data para a realização de audiência prévia, com as finalidades referidas no despacho de 10.02.2023 (fls. 93); as embargantes não impugnaram os documentos então juntos (cf. fls. 101 e seguintes[2] e despacho de fls. 130) e o Tribunal informou as partes que, “sem prejuízo do exercício de contraditório” ao teor dos mencionados documentos, considerava que os autos continham “todos os elementos necessários para prolação de decisão, sem necessidade de produção de qualquer outra prova” (fls. 130 verso).

           Apenas a exequente se pronunciou, reiterando a posição expressa na contestação.[3]

           Por sentença de 23.5.2023, a Mm.ª Juíza do tribunal a quo julgou “totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos de executado”.

           Inconformada, a executada/embargante AA apelou formulando as seguintes conclusões:

           1ª - A exequente alega no requerimento executivo que, em 30.12.2016, através de um contrato de cessão de créditos, a Banco 1... vendeu o crédito, objeto dos presentes autos, à B..., S. A, que, por sua vez, em 24.02.2017, transmitiu os direitos e obrigações decorrentes do referido contrato àquela.

           2ª - Trata-se de um crédito proveniente da abertura de crédito em conta corrente, em que foram disponibilizados fundos à sociedade “C..., Lda.”, até ao montante de € 600 000, que se destinavam à construção de um edifício habitacional, nas condições constantes da escritura e documento complementar que a exequente juntou com o requerimento executivo.

           3ª - A utilização do crédito seria feita mediante cheques, numerados, sacados sobre a conta de depósito à ordem da sociedade executada.

           4ª - Para garantia do capital disponibilizado, respetivos juros e despesas, foi constituída uma garantia hipotecária, sobre determinadas frações, designadamente, a fração do recorrente.

           5ª - Através da celebração do contrato de abertura de crédito, a Banco 1... obrigou-se a colocar à disposição da C... a quantia acordada, para que esta a pudesse utilizar nos termos acordados.

           6ª - Porém, a Banco 1... não se constituiu, desde logo, credora de uma prestação pecuniária, pois, isso só viria a verificar-se com a posterior mobilização pela referida Sociedade da importância por aquela disponibilizada.

          7ª - O art.º 703º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (CPC), confere força executiva aos documentos exarados ou autenticados por notário que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.

           8ª - No entanto, da abertura de crédito não resulta ter sido constituída ou reconhecida qualquer obrigação pecuniária pela executada.

           9ª - Não emerge daí a efetiva entrega de qualquer montante à executada, pois, em bom rigor a Banco 1... emitiu, simplesmente, a vontade de vir a tornar-se credora.

           10ª - A abertura de crédito origina, apenas, a constituição de obrigações pecuniárias a contrair no futuro, a partir dos saques, cheques, transferências, sobre a conta de depósitos à ordem associada à conta corrente.

           11ª - No entanto, essa determinação deveria ter sido feita pela exequente, juntando documentação demonstrativa dos meios concretamente utilizados pela C... para movimentação dos fundos disponibilizados pela Banco 1... e com a discriminação dos respetivos montantes.

           12ª - Conforme dispõe o art.º 715º, do CPC, quando a obrigação esteja dependente de uma prestação por parte do credor ou de terceiro, incumbe-lhe provar, documentalmente, que efetuou ou ofereceu a prestação.

            13ª - Assim, como não resulta do contrato a concessão, efetiva, de qualquer crédito, tornava-se necessário que a exequente, através de documentação complementar, demonstrasse a entrega do montante e a sua utilização.

            14ª - Pois, resulta do contrato que “os cheques e as ordens de transferência ou de pagamento (…) deverão ser subscritas pela parte devedora ou por quem a represente”.

            15ª - A exequente, em complemento ao requerimento executivo, juntou notas de débito, consultas de movimentos e, posteriormente, um “extrato de movimentos”, sem que se consiga aferir a autoria dos mesmos.

           16ª - Tais documentos, cuja autoria se desconhece e não estão assinados pela Sociedade, não podem considerar-se constitutivos ou recognitivos de uma obrigação.

           17ª - Assim, a escritura de abertura de crédito em conta corrente, garantido por hipoteca, e a documentação junta pela exequente, não constituem título executivo.

           18ª - Não está demonstrado a entrega do montante correspondente ao crédito objeto do contrato, nem a sua efetiva utilização pela C....

           19ª - Não se encontrando a exequente munida de título, por manifesta falta ou insuficiência, o requerimento executivo deveria ter sido indeferido liminarmente (art.º 726º, n.º 2, alínea a), do CPC).

           20ª - Com a prolação da decisão recorrida, foram violados, entre outros, os art.ºs 703º, n.º 1, alínea b), 715º e 726º, n.º 2, alínea a), do CPC.

           Remata dizendo que deverá ser julgada a oposição à execução, mediante embargos de executado, procedente, por manifesta falta ou insuficiência do título.
A exequente/embargada não respondeu.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa verificar e decidir se existe título executivo bastante.


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            II. 1. A 1ª instância[4] deu como provados os seguintes factos:

           1) Em 10.5.2021, a exequente intentou ação executiva contra, para além do mais, BB e AA, como proprietários da fração E do prédio urbano sito em ..., lote ...3, Rua ..., Urbanização ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial (CRP) sob o n.º .../....

           2) Apresentou, como título executivo, o contrato de compra venda e abertura de crédito com hipoteca e fiança exarado em escritura pública lavrada no dia 14.12.2005, no Cartório Notarial ... a cargo do Notário EE, que consta de fls. 21 a fls. 25 do livro de notas para escrituras diversas n.º 29-A, desse Cartório, e de fls. 21 a 25 v.º dos autos de execução e respetivo documento complementar de fls. 26 a 29, conjugado com os documentos bancários de fls. 29 v.º a 31 v.º e 33 dos autos de execução.

            3) Da escritura pública decorre, para além do mais, que entre a sociedade C..., Lda. e a Banco 1... (Banco 1...) foi celebrado um contrato de abertura de crédito em conta corrente com garantia hipotecária, regido, para além do mais, pelas seguintes cláusulas:

                      1. A Banco 1... abre um crédito em conta corrente à parte devedora até ao montante de 600 mil euros, que desde já se considera à sua disposição e que se destina, segundo declaração da parte devedora, à construção de um edifício habitacional no imóvel adiante hipotecado (cláusula primeira)[5];

                       2. Para garantia do integral cumprimento das obrigações emergentes e assumidas no contrato, a parte devedora constitui a favor da Banco 1... hipoteca voluntária sobre o prédio urbano composto de parcela de terreno para construção, sito na Rua ..., em ..., ..., ..., descrito na ... CRP ... sob o n.º ... da freguesia ... e inscrita na matriz predial sob o artigo 1892, hipoteca que abrange o imóvel e todas as construções, edificações, melhoramentos e benfeitorias que no mesmo venham a ser implantadas e ou averbadas no registo predial, sendo o montante máximo de capital e acessórios garantido pela hipoteca de 919 500 euros (cláusula terceira).[6]

            4) Do documento complementar elaborado nos termos do art.º 64º, n.º 2 do Código do Notariado, consta, para além do mais, o seguinte:

                        1. O capital efetivamente utilizado ao abrigo da abertura de crédito em conta corrente vence juros à taxa de 4,25 %, que resulta da média aritmética simples de três dias úteis de publicação das taxas diárias Euribor a três meses, que antecedem os três dias úteis anteriores à data da celebração do contrato ou das suas revisões trimestrais, arredondada para o quarto de ponto percentual imediatamente superior e acrescida, nesta data, de um spread de 1,75 % (cláusula primeira);[7]

     2. Em caso de incumprimento de qualquer obrigação contratual e se a Banco 1... recorrer a juízo para recuperação dos seus créditos, será devida, além de juros remuneratórios, uma indemnização com natureza de cláusula penal no montante que resultar da aplicação da sobretaxa de 4 %/ano, calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora (cláusula terceira);[8]

  3. Findo ou resolvido este contrato, não abrangendo a resolução as prestações já efetuadas pela parte devedora, ou vencido o crédito, a conta corrente será para todos os efeitos havida por encerrada[9], obrigando-se desde já a parte devedora ao pagamento do respetivo saldo; o extrato de conta corrente prova os lançamentos a débito e a crédito na mesma efetuados e o respetivo saldo, sendo considerado documento com força executiva nos termos do artigo 50º do CPC (cláusula décima).[10]

           5) A mutuária não pagou a quantia em dívida vencida em 14.3.2008.

           6) Entre 14.12.2005 e 14.12.2008 foram efetuados os movimentos que constam de fls. 31 e v.º dos autos de execução e de fls. 119 a 120 destes autos, resultando o capital vencido de € 450 000.

           7) Entre a sociedade C..., Lda., como promitente vendedor e BB, como promitente comprador, foi celebrado, em 05.5.2008, um contrato promessa de compra e venda da fração identificada pela letra E, do prédio urbano sito em ..., lote ...3, Rua ..., Urbanização ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1ª CRP sob o n.º .../..., livre de ónus ou encargos, pelo valor de € 80 000, que serão liquidados no ato da outorgada da assinatura do contrato.

         8) Por escritura pública de compra e venda celebrada no dia 29.01.2010, no Cartório Notarial a cargo da Senhora Notária FF, sito na Rua ..., ..., ..., ..., ..., a sociedade C..., Lda. vendeu a BB, casado com AA, a fração identificada pela letra E, do prédio urbano sito em ..., lote ...3, Rua ..., Urbanização ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1ª CRP sob o n.º .../....[11]

           9) Da referida escritura, decorre ainda, para além do mais, que sobre a referida fração pende uma hipoteca a favor da Banco 1... (cf. AP ... de 2006/01/05), cujo cancelamento a vendedora assegura.

           10) A aquisição da fração E a favor da embargante mostra-se registada pela AP n.º ...47 de 2010/02/08.

           11) Em 09.9.2010, a cedente Banco 1... intentou ação executiva contra, para além do mais, a sociedade C..., Lda., que correu termos sob o n.º 4634/10...., deste Juízo, apresentando como título executivo a escritura referida em a) (sic)[12] e peticionando o pagamento da quantia de € 571 550,51, correspondendo ao capital de € 450 000.

         12) Na pendência da ação executiva n.º 4634/10.... o crédito exequendo gozava de garantia real de hipoteca sobre as frações autónomas designadas pelas letras A, B, C, E e F.

           13) Nesses autos, a cedente Banco 1... deduziu incidente de intervenção de terceiros, contra, para além do mais, a (1ª) embargante e BB, por ter tomado conhecimento, na pendência da causa, que a fração E do prédio sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o n.º ..., lhe foi transmitida.

            14) Sobre a fração B incidia penhora registada pela Ap. ...2 de 2008/12/04 a favor da Fazenda Nacional.

           15) Essa mesma fração B foi objeto de venda no processo de execução fiscal n.º ...36 e, nessa sequência a hipoteca registada pela Ap. n.º ... de 2006/01/05 foi cancelada.

           16) A Banco 1... deu conta, nesses autos de execução n.º 4634/10...., que não obteve pagamento do seu crédito nesse processo executivo, na medida que os créditos reclamados nesse processo, graduados com prevalência sobre o seu, consumiram a totalidade do preço da venda do imóvel (cf. decisão de graduação junta a fls. 106 a 108 dos autos).

           17) A execução n.º 4634/10.... foi declarada deserta por despacho de 01.4.2020.

            2. E deu como não provado:

            a) O valor acordado para o distrate da fração E foi pago ao Cedente pela sociedade C....

            3. Cumpre apreciar e decidir.

           A executada/recorrente conformou-se com o decidido, no sentido da improcedência, relativamente ao invocado “direito de retenção sobre a fração E” e sobre a quantia  exequenda[13], imputação do preço das frações H, D e G (cujas hipotecas foram canceladas em datas anteriores à execução n.º 4364/10....), prescrição dos juros peticionados pela embargada e nulidade da cláusula 3, n.º 4 (que contemplou juros à taxa de 13,75 %).

           Subsiste, apenas, a questão da existência de título executivo suficiente.

            4. A execução deu entrada em 2021, aplicando-se, pois, o CPC de 2013 [cf. art.ºs 6º, n.º 3 e 8º, da Lei n.º 41/2013, de 26.6].

           Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objetivos e subjetivos (art.º 10º, n.º 5, do CPC).

            O título executivo apresenta-se como requisito essencial da ação executiva e há de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, i. é, documento suscetível de, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo.

Dito doutra forma, tal documento constituirá prova do ato constitutivo da dívida na medida em que nos dá a relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da dívida (a existência da obrigação por ele constituída ou nele certificada), sem prejuízo de o processo executivo comportar certa possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe (a obrigação nunca se constituiu ou foi extinta ou modificada posteriormente).

            5. O contrato de abertura de crédito, previsto no art.º 362º, do Código Comercial, é o negócio jurídico mediante o qual a instituição bancária se obriga a disponibilizar ao cliente a utilização de determinada quantia em dinheiro durante certo período de tempo, obrigando-se este a, para além de outros valores convencionados, reembolsar o banco na medido dos montantes de crédito efetivamente colocados à sua disposição – a obrigação de reembolso a cargo do creditado está diretamente ligada ao montante efetivamente disponibilizado, pelo que o banco, dando à execução essa obrigação, terá de demonstrar a celebração daquele contrato e a prestação pela qual pôs o crédito à disposição do cliente.

            Porque a escritura de abertura de crédito não contém senão uma promessa de empréstimo, é que não constitui, só por si, título executivo contra o creditado. A obrigação deste só surge depois, no momento em que, por conta do crédito aberto, faz algum levantamento ou movimenta determinada quantia; é então que surge o empréstimo definitivo e consequentemente nasce a dívida.

           Por conseguinte, a prova complementar do título faz-se através de documento passado em conformidade com as cláusulas constantes do negócio jurídico consubstanciado no documento em causa, provando-se, dessa forma, que a obrigação futura, que se pretende executar, foi efectivamente constituída.

           Daí a necessidade de completar/complementar a escritura (ou o documento particular) de abertura de crédito com a prova de que foi efetivamente emprestada alguma quantia.[14]

           6. A abertura de crédito configura-se como um contrato consensual, cuja formação e conclusão se completa com o mero acordo das partes (art.ºs 363º e 405º, do Código Civil/CC) e sem necessidade, portanto – ao contrário do que acontece com o contrato de mútuo –, de entrega de qualquer capital, podendo constituir-se e extinguir-se sem que chegue a ser concedido crédito algum.

           Mas, se é certo que a efetiva concessão ou disponibilização do crédito não é necessária para a válida formação do contrato, ela será necessária para a constituição da obrigação de reembolso do capital que venha a ser utilizado. Ou seja, o contrato fica concluído com o acordo das partes, mas a obrigação de reembolso de qualquer capital, ainda que tenha a sua fonte no contrato, apenas nasce e apenas se constitui no momento em que algum capital seja disponibilizado ou utilizado nos termos convencionados

            Assim, a escritura pública ou o escrito particular que formaliza o contrato, dado à execução, tem força executiva, desde que se mostre, por documento passado em conformidade com as cláusulas dele ou revestido de força executiva, que alguma prestação foi realizada no desenvolvimento da relação contratual (demonstrando-se as concretas disponibilizações/utilizações efetivas do crédito/capital nos termos acordados).[15]

7. Sendo a exequibilidade do título o resultado da conjugação de elementos documentais dispersos (título executivo complexo), concluir-se-á pela existência, suficiência e eficácia do mesmo se o exequente comprovar a celebração de determinado “contrato de abertura de crédito” e, mediante documento(s) passado(s) em conformidade com as cláusulas dele constantes, que em cumprimento desse contrato foi entregue ao executado a quantia acordada, provando, dessa forma, que a obrigação futura, que se pretende executar, foi efectivamente constituída[16], importando assim saber se a exequente logrou trazer aos autos os elementos necessários à composição do título exequendo (sendo a exequibilidade do título o resultado da conjugação de elementos documentais dispersos).[17]

8. A dita figura contratual cabe na previsão do art.º 707º, do CPC (sob a epígrafe “exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados[18]).

9. No caso em análise, a exequente apresentou como título executivo a escritura de compra e venda e abertura de crédito com hipoteca e fiança mencionada em II. 1. 2) e 3), supra, e respetivo documento complementar, referido no ponto de facto seguinte, “conjugado com as notas de débito e consultas de movimentos de fls. 29 v.º a 31 v.º dos autos de execução, em conformidade com a cláusula 10ª, n.º 2 do referido documento complementar”, existindo, ainda, “os extratos de movimentos de fls. 118 v.º a 120 v.º apresentados aquando da ação executiva que correu termos sob o n.º 4634/10....”, na qual a embargante/recorrente e marido, BB, intervieram – cf., principalmente, os documentos reproduzidos a fls. 111 verso a 129 e II. 1. 2) a 4), 6), 11) e 13), supra.[19]

Considerou a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo que, à luz dos art.ºs 703º, n.º 1, al. b) e 707º, do CPC, a escritura pública, conjugada com os demais documentos bancários, corporiza “título executivo complexo, em conformidade com a cláusula 10ª, n.º 2 do documento complementar à referida escritura pública” e que, atento preceituado nos art.ºs 54º, n.º 2 e 735º, n.º 1, do CPC e 686º e 696º do CC e a factualidade que decorre dos documentos juntos aos autos [cf., sobretudo, II. 1. 1), 2), 3), 4), 5), 8), 9), 10), 12) e 13), supra], podemos concluir que a exequente dispõe de título executivo; assim, importava demandar as embargantes por serem as proprietárias de uma das frações do prédio constituído em propriedade horizontal oferecido em garantia pela sociedade mutuária/devedora.

            Nessa conformidade, julgou improcedente a exceção dilatória de falta ou inexistência de título executivo.

            10. Nos termos da cláusula décima do acordo levado ao referido documento complementar, findo ou resolvido o contrato de abertura de crédito, ou vencido o crédito, a conta corrente considerava-se encerrada, obrigando-se a parte devedora ao pagamento do respetivo saldo - o extrato de conta corrente prova os lançamentos a débito e a crédito na mesma efetuados e o respetivo saldo, sendo considerado documento com força executiva.

           Segundo o Tribunal recorrido, os elementos disponíveis, idênticos aos da execução 4634/10...., mostram/demonstram, com suficiência bastante, terem sido disponibilizados os recursos pecuniários previstos no mencionado contrato; ficou, pois, constituído título executivo (complexo ou compósito) para poder sustentar uma ação executiva que o creditante proponha contra o devedor ou aquele onerado com a garantia hipotecária (com a relevância e o âmbito bem evidenciados na fundamentação da decisão sob censura[20]).

           11. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, não vemos razão para dissentir de tal perspetiva, porquanto também se considera ou entende estarem desde já reunidos os pressupostos da existência de título dotado de força executiva, não se afigurando que o conteúdo do aludido contrato e respetivo documento complementar comportem quaisquer outras exigências a atender na formação do título.[21]

           12. A documentação reproduzida nos autos aparenta respeitar aos originais emitidos pelo Banco 1... (credor originário); contém o timbre ou cabeçalho identificativo da entidade emitente (cf., por exemplo, documentos de fls. 118 verso a 120); discrimina, designadamente, as datas e os montantes das diversas movimentações a débito e a crédito, bem como a data de vencimento da importância do capital reclamado na ação executiva. [22]

           13. No art.º 707º do CPC, o legislador admite que alguns elementos da obrigação exequenda possam não constar do documento que serve de título executivo, mas de outro documento com força executiva própria ou emitido em conformidade com o documento autêntico ou autenticado apresentado como título executivo, considerando que tal constitui garantia suficiente da existência da dívida.[23]

            14. A situação dos autos não configura, pois, falta de título e de extrato complementar (comprovativo do saldo da conta corrente e que traduz ou demonstra a efetiva movimentação das concretas quantias disponibilizadas pelo credor, a concretização/discriminação das operações subsequentes de disponibilização do capital), verificando-se, sim, o cumprimento dos requisitos/pressupostos acordados pelo devedor originário e pela instituição de crédito, tidos por necessários e suficientes para a realização coativa da prestação devida, inclusive, no contexto da concreta realidade obrigacional (com garantias reais) que envolve as partes da presente ação executiva e se funda naquele quadro inicial.

           15. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.    

            Custas pela embargante/apelante.


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13.12.2023



[1] Na sequência da habilitação de herdeiros do apenso C.
[2] Inclusive, cópia do requerimento executivo da execução n.º 4634/10.... e que inclui os mesmos extratos de movimento juntos com o documento n.º 12 da petição de embargos apresentada pela 1ª embargante (cf. fls. 44 a 46, 118 verso a 120).

[3] Referindo “(...) nada tem a opor a que este D. Tribunal, uma vez que dispõe de todos os elementos necessários sem necessidade de produção de qualquer outra prova, proceda à prolação de sentença que decida os presentes Embargos.”

[4] Afirmada a regularidade da instância e julgada improcedente a matéria de exceção consubstanciada na alegada “ineptidão do requerimento executivo” e na “falta de personalidade e de capacidade judiciária”. 
[5] Cf. documento reproduzido a fls. 111 verso e seguintes (fls. 114).
[6] Ibidem (fls. 115)
[7] Ibidem (fls. 116 verso; retificou-se).
[8] Aparentemente, esta cláusula não está reproduzida na documentação junta ao processo físico (fls. 42 verso e seguinte/fls. 117), nem nas “certidões” do processo eletrónico (cf. ata de 04.5.2023/fls.130).
[9] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[10] Cf. documento reproduzido a fls. 111 verso e seguintes (fls. 118).
[11] Cf. documento de fls. 22 verso.
[12] Reporta-se à escritura mencionada em II. 1. 3), supra (cf. fls. 34 verso e seguintes e 109 e seguintes – máxime, fls. 37 verso e 112).
[13] Na execução n.º 4364/10.... o cedente peticionava o pagamento da quantia de € 571 550,51 correspondente ao capital de € 450 000 com garantia real de hipoteca sobre as frações autónomas designadas pelas letras A, B, C, E e F; na pendência da execução, a “fração B” foi vendida no âmbito de um processo de execução fiscal e os créditos reclamados nesse processo, graduados com prevalência, consumiram a totalidade do preço de venda da fração – cf., ainda, II. 1. 11) a 16), supra.
[14] Vide, designadamente, J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, págs. 102 e seguintes; E. Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, edição da INCM, 1987, págs. 76 e seguintes e Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 1º, cit., págs. 161 e seguinte.

[15] Vide, nomeadamente, Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, pág. 501; Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, pág. 763 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 10.12.1997-processo 97B671, da RP de 16.10.2012-processo 1643/11.2TBPFR-A.P1, 11.3.2014-processo 3874/11.6TBPRD.P1 e 07.10.2014-processo 2614/12.7TBGDM-A.P1 e da RC de 10.11.2015-processo 5705/14.6T8CBR.C1, 02.02.2016-processo 18/14.6TBMDA-A.C1 e 16.3.2016-processo 86/15.3T8SRT.C1, publicados no “site” da dgsi.

[16] Cf., designadamente, o acórdão da RC de 25.3.2014-processo 102/11.8TBTMR-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[17] Cf., ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 05.5.2011- Processo 5652/9.3TBBRG.P1.S1 [assim sumariado: Da mesma forma que a causa de pedir pode ser simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser (I); O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo (II)], da RL de 27.6.2007-processo 5194/2007-7, da RC de 12.7.2011-processo 5282/09.0T2AGD-A.C1 e da RP de 10.12.2012-processo 6586/11.7TBMTS-B.P1, publicados no “site” da dgsi.

[18] Normativo que reproduz, sem alterações, o art.º 50º do CPC de 1961 (redação do DL n.º 116/2008, de 04.7). Preceitua: Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.

[19] Na motivação da matéria de facto, explicita a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo que os factos ditos em II. 1. 2) a 4) e 6), supra, “resultam dos documentos apresentados como título executivo, conjugados com os documentos bancários juntos com RE que deu origem à execução n.º 4634/10.... de fls. 109 a 129 v.º dos autos de execução”.

[20] Como bem reconhece a própria recorrente, ao dizer que “(...) estamos perante uma abertura de crédito em conta corrente, garantida por hipoteca que assegura a restituição das quantias utilizadas” (cf. pág. 5 da alegação de recurso / fls. 144 dos autos).
[21] Assim, por exemplo, o consignado nos pontos 3. a 5. da “Cláusula Primeira” do contrato de compra e venda e abertura de crédito – “3. Por conta do referido crédito em conta corrente, a parte devedora fica desde já autorizada a movimentar a quantia de cento e vinte cinco mil euros, ficando a utilização do restante crédito aberto no valor de quatrocentos e setenta e cinco mil euros, dependente de autorização da Banco 1... em função do estado de desenvolvimento da construção.”; “4. A utilização do crédito aberto será feita através de cheques numerados, de ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à Banco 1..., sacadas sobre a conta de depósito à ordem (...), aberta no balcão da Banco 1... em ..., em nome da parte devedora.”; “5. Os cheques e as ordens de transferência ou de pagamento a que se refere o número anterior, deverão ser subscritos pela parte devedora ou por quem a represente.” (cf. fls. 114).
[22] Ao invés do sustentado na alegação de recurso - cf. págs. 4 e 7 da respetiva fundamentação / fls. 143 verso e 145 dos autos.

[23] Cf. acórdão da RP de 08.11.2018-processo 2896/17.8T8LOU-A.P1, e, com alguma similitude, ainda, por exemplo, os acórdãos da RC de 10.11.2015-processo 5705/14.6T8CBR.C1 [constando do sumário: “1. O título executivo complexo formado por um contrato de abertura de conta de depósito à ordem e um extracto do qual resulta a existência de um saldo devedor, só se mostrará formado ou devidamente constituído com a emissão deste extracto. (...)”] e da RL de 16.5.2019-processo 99/13.0TBVFX-B.L1-6, publicados no “site” da dgsi.

   Sobre casos em que o título executivo apresentado corresponde a um documento particular de formação composta por dois momentos distintos (por um lado, a celebração do contrato de abertura de crédito, por documento particular; e, por outro lado, a efetiva movimentação das quantias disponibilizadas pelo credor - o título terá de integrar também os extratos de conta e os documentos de suporte ou saque), cf. os acórdãos do STJ de 10.4.2018-processo 18853/12.8YYLSB-A.L1.S2 e 25.3.2021-processo 6528/18.9T8GMR-A.G1.S1, publicados no “site” da dgsi.