Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1797/22.2T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INTERESSE EM AGIR
RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
PARCELA DE TERRENO NÃO DESANEXADA
AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO
NECESSIDADE DE TUTELA JUDICIAL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, N.º 2, 30.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 89.º E SEGS. DO CÓDIGO DE NOTARIADO E 116.º E SEGS. DO CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL
Sumário: I – Numa ação, não contestada, em que, para além do mais, foi pedida a condenação do réu a reconhecer a constituição e existência de um prédio como autónomo e distinto, dividido e demarcado, bem como o direito de propriedade dos autores sobre tal prédio, abstendo-se aquele da prática de atos que perturbem ou impeçam o exercício desse direito, com fundamento em compra verbal de uma parcela de terreno ao réu, cuja escritura de compra e venda nunca foi realizada por o vendedor nunca ter procedido à desanexação de tal parcela, em cuja posse os autores se encontram desde 1996, assim tendo adquirido o domínio por via de usucapião, é de ter por verificado o pressuposto do interesse em agir.

2. – No caso, a inação do réu, em não permitir que os autores possam regularizar a situação, é suficiente para que lhes seja reconhecido o direito de recorrer a juízo, a fim de obterem o reconhecimento do direito a que se arrogam, não se lhes podendo impor, apenas e só, o recurso ao processo de justificação, previsto no CRPredial, ou à escritura de justificação notarial.

Decisão Texto Integral:  
Relator: Arlindo Oliveira
1.ª Adjunta: Maria João Areias
2.ª Adjunto: Emídio Francisco Santos

 

                  Processo n.º 1797/22.2T8CTB.C1 – Apelação
                   Comarca de Castelo Branco, Castelo Branco, Juízo Local Cível

 
                   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

 

 
AA, e mulher BB, casados no regime da comunhão geral de bens, residentes na Rua ..., ..., vieram propor a presente ação declarativa sob a forma processo comum contra CC, divorciado, residente na Praça ..., ... ..., peticionando que: 
I - se declare constituído como prédio autónomo o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial; 
II – se reconheça o direito de propriedade dos Autores, sobre o prédio rústico referido no artigo 1º da petição inicial: “Prédio rustico, sito ao ... e ..., freguesia e concelho ..., com a área de 31.089,2436 m2, a confrontar do norte com Herdeiros de DD, do sul com via publica, do nascente com herdeiros de EE e do poente com estrada, composto de cultura arvense-granitos, árvores de fruto, mata de carvalhos, mato e construção rural, a desanexar do prédio rústico inscrito sob a matriz predial sob o artigo ...1 da secção H, da freguesia e concelho ..., o qual teve origem no artigo 5.º da secção H, que foi eliminado, tendo dado origem ao artigo 9.º da secção H, o qual por sua vez, também foi eliminado, dando origem ao artigo 13.º da secção H, também eliminado, dando origem aos artigos 16.º e 17.º, ambos da secção H, e eliminados estes originaram os artigos 18.º e 19.º da secção H, e o artigo 19.º deu origem ao artigo 21.º da Secção H, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...61.” 
III – se condene o Réu a reconhecer e aceitar a constituição e existência de tal prédio como autónomo e distinto, dividido e demarcado, assim como o direito de propriedade dos Autores sobre o citado prédio nos termos aludidos e a abster-se da prática de qualquer acto que perturbe ou impeça a existência e o exercício desse prédio e direitos respectivamente.  IV- se notifique a Senhora Conservadora do Registo Predial ... do teor da sentença proferida nestes autos. 
Alegaram, para tanto, em síntese, que os Autores AA e mulher, BB, são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio rustico, sito ao ... e ..., freguesia e concelho ..., com a área de 31.089,2436 m2, a confrontar do norte com Herdeiros de DD, do sul com via publica, do nascente com herdeiros de EE e do poente com estrada, composto de cultura arvense, granitos, árvores de fruto, mata de carvalhos, mato e construção rural, a desanexar do prédio rústico inscrito sob a matriz predial sob o artigo ...1 da secção H, da freguesia e concelho ..., o qual teve origem nos artigo 5 da secção H, que foi eliminado, tendo dado origem ao artigo 9 da secção H, o qual por sua vez, também foi eliminado, dando origem ao artigo 13 da secção H, também eliminado, dando origem aos artigos 16 e 17, ambos da secção H, e eliminados estes originaram os artigos 18 e 19 da secção H, e o artigo 19.º ao artigo 21.º, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...61, tendo-o adquirido verbalmente ao Réu, em Outubro de 1996, pelo preço de 4.700.000$00 (quatro milhões e setecentos mil escudos – Euros 23.443,50). 
Neste conspecto alegam que, em Outubro de 1996, o Réu vendeu aos Autores uma parcela de terreno, a desanexar do prédio rústico, actualmente inscrito sob a matriz predial sob o artigo ...9 da secção H, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...61, denominada de lote .... 
Mais acrescentam que após a referida compra, vendedor e comprador, procederam, desde logo à demarcação da parte do prédio, pertencente ao comprador, a qual foi devidamente demarcada por marcos, parcela esta que corresponde actualmente ao prédio supra identificado, tendo inclusivamente procedido à sua vedação, encontrando-se actualmente, e desde há mais de 10 anos, o prédio totalmente murado em blocos em cimento. 
Alegam ainda que, não obstante não ter sido outorgada a escritura, porque o vendedor nunca procedeu à desanexação da referida parcela de terreno, certo é que, o referido comprador e sua mulher, desde a data da compra e venda (Outubro de 1996), entraram na posse imediata da parcela de terreno, e jamais deixaram de se comportar como seus verdadeiros proprietários, encontrando-se desde há mais de 10 anos ligada à rede pública de energia e de água, posse essa que os AA. mantiveram desde o seu início, ininterrupta, pública, pacificamente e de boafé, à vista de toda a gente e sem a menor oposição de quem quer que fosse, traduzida em actos de fruição, de conservação, beneficiação e de defesa, com o ânimo de quem exercita um direito próprio. Dizem ainda que procederam à plantação de dezenas de árvores de fruto e edificado uma construção rural e um tanque de rega, cultivando-o, colhendo os seus frutos, e gozando de todas as utilidades por ele proporcionadas, respeitando rigorosamente as suas extremas, demarcação e divisórias com total exclusividade e independência como de coisa sua se tratasse, o que dura há cerca de 25 anos. 
Terminam concluindo que adquiriram o direito de propriedade, por usucapião, do prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial. 

Regularmente citado com a cominação de que a não contestação importaria a confissão dos factos articulados, o Réu não contestou, tendo juntado procuração a mandatário judicial. 
*
Conforme despacho de fl.s 23, a M.ma Juiz a quo, ordenou a notificação das partes para se pronunciarem “quanto à eventual excepção dilatória inominada da sua falta de interesse em agir, tendo em conta a inexistência, através dos factos articulados na petição inicial, de um conflito de interesses com o R., e em consequência a absolvição do R. da instância”. Na sequência do que, cf. requerimento de fl.s 24 a 27, os AA, pugnam pela verificação de interesse em agir, em resumo, porque não foi possível realizar a escritura de compra e venda porque o vendedor nunca procedeu à desanexação da parcela, o que só ele poderá fazer e reiterando que têm interesse em ver declarada a aquisição do terreno em causa.

 
Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferida a decisão de fl.s 28 a 37 (aqui recorrida), na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e se julgou verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir dos autores, absolvendo-se o réu da instância, ficando as custas a cargo dos autores.

  
Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 53), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:
“I-Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença, que entendeu verificada a excepção inominada de falta de interesse em agir dos Autores, e, em consequência absolveu o Réu da instância.
II- Salvo o devido respeito, e a douta fundamentação da sentença, ao contrário do que consta da mesma existe um manifesto conflito de interesses entre Autor e Réu.
III- ::: “ O interesse em agir é definido como a utilidade ou necessidade do processo. Portanto, é óbvio que não faz sentido o autor mover toda a máquina judiciária se o processo for inútil ou desnecessária. ….
A noção de necessidade é acrescentada à noção de utilidade, que mostra um panorama razoavelmente apropriado da categoria do interesse d agir. Parece haver uma técnica para ver uma subsunção de uma ideia de utilidade à necessidade, sendo a necessidade uma condição suficiente para a utilidade, enquanto a utilidade é uma condição necessária para a utilidade. Em outras palavras, o que é necessário também é útil, mas o contrário não é válido. …
IV- I-O interesse em agir é também apelidado de “interesse de agir”, “interesse processual”, ”causa legítima da acção”, “motivo justificativo dela”, ”necessidade de agir, ou necessidade de tutela jurídica”. Como resulta de todas estas designações, consiste na necessidade de recorrer ao processo.
II- O artigo 3ºdo Código de Processo Civil estrutura a acção judicial -qualquer acção judicial – na base de um conflito de interesses e este evidencia-se numa acção de simples apreciação positiva, perante a configuração pelo seu autor através de factos, de uma atitude do réu que implique colocar em causa o seu direito ou consistência do mesmo, implicando para esse direito um grave e objectivo estado de incerteza que possa comprometer o valor ou negociabilidade da própria relação jurídica; e numa acção de condenação, na configuração pelo seu autor, igualmente através de factos, de comportamentos do réu que
impliquem a violação pelo mesmo daquele direito, ou ameaça dessa violação. (…)
In Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 3583/16.0T8SNT.L1-2 de 19/01/2017
V-1- O interesse processual consiste na necessidade de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
2-Nas acções de simples apreciação, destinadas a obter declaração de existência ou inexistência dum direito ou dum facto, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave.
In Acórdão do Tribunal da relação de Lisboa proferido no Processo 99/08.1TBVFC.L.1-2 de 4/6/2009
VI-1. Ao invés do que tipicamente acontece com a acção de condenação, a acção de simples apreciação não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada. Porém, o autor tem de demonstrar que tem um interesse na obtenção da declaração judicial da existência ou inexistência que pede, pois esta, como qualquer outra acção, supõe a existência de interesse em agir. (…)
7. Se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito. Se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação são constitutivas desse direito (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipso habet). É preciso pois provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris).
( o sublinhado é nosso)
In Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no Processo 32/18.2T8MGR.C1 de 08/05/2019
VI- I- O interesse em agir, não estando autonomizado enquanto pressuposto processual tem vindo a afirmar-se como verdadeira e própria excepção dilatória inominada.
II- O interesse em agir do autor verificar-se-á quando a situação de carência em que se encontra necessite de intervenção dos tribunais.
III- Tem de verificar-se um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência de um direito a apreciar, incertezas que deve ser objectiva e grave, devendo resultar, não de uma dúvida subjectiva, mas antes de um facto exterior, que seja capaz de trazer prejuízo sério ao demandante, impedindo-o de exercer ou afirmar um direito.(…)
In Acórdão da Relação de Guimarães proferido no Processo 237/18.6T8VFL.G1, de 28/05/2020.
VII- (…) V- Nas acções de simples apreciação, positiva ou negativa, o interesse em agir é representado pela incerteza objetivamente relevante quanto, respetivamente, à existência ou inexistência de um certo direito ou de um facto. (…)
In Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no Processo 5005/21.5T8PRT.P1 de 04-5-2022
VIII - I) O interesse em agir constitui pressuposto processual autónomo e consiste na necessidade ou utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, tal como a acção é configurada pelo Autor. (…)
IV)Visando impedir a prossecução de acções inúteis …
V)O interesse em agir deve ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça, de modo a que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso inútil.
In acórdão da Relação de Lisboa proferido no Processo 1712/17.5T8BRR-B.1.1-6 de 26/09/2019.
IX- E, o conflito de interesses entre autores e Réu surge desde logo porque a parcela de terreno que se pretende autonomizar está implantada num prédio propriedade do Réu. X-De onde resulta que entre Autor e Réu existe um conflito de interesses relativamente a um prédio propriedade do Réu no qual o autor tem a posse e age como proprietário de uma parte determinada do mesmo.
XI-Ora, o conflito de interesses, como devido respeito, é evidente pois resulta para o Réu de uma diminuição do seu património.
XII-O conflito de interesses resulta ainda do facto de, como vem alegado pelo Autor no artigo 6º da petição, não foi, nem é possível realizar a escritura de compra e venda porque o Réu vendedor nunca procedeu à desanexação da parcela de terreno (ver artigo 6º da petição inicial). A única forma que o autor dispõe para que possa usufruir em pleno da sua propriedade é através de uma decisão judicial que declare a aquisição do prédio com a área e confrontações descritas na petição inicial, e dessa forma poder exercer em pleno os direitos emergentes do direito de propriedade.
XIII- Não dispondo os autores sequer de alternativa que não seja o recurso à acção judicial.
Porquanto,
XIV-A justificação notarial se revela inviável face á posição assumida pelas conservatórias do registo predial e pelos serviços geográficos e cadastrais da Direcção Geral do Território, que não viabilizam os processos de justificação de prédios rústicos.
XV-O que tem gerado enormes prejuízos à segurança jurídica do património imobiliário e inclusive responsabilização pelas obrigações decorrentes do direito de propriedade em particular dos prédios rústicos.
XVI- Encontram-se, pois, reunidos os requisitos de necessidade e utilidade da acção, requisitos que não são sequer cumulativos.
XVII- Não se mostra, pois, verificada a excepção inominada de falta de interesse em agir, violando pois a douta sentença recorrida o disposto no artigo 3º, nº 3 do CPC.
Nestes termos
E nos mais de Direito que V. exas. doutamente suprirão,
Deve ser dado provimento ao presente recurso que é de Apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, e, em consequência, ser revogada a douta sentença objecto do presente recurso, ordenando-se o prosseguimento dos autos com vista à prolação de sentença sobre a matéria dos autos, como é de DIREITO E INTEIRA JUSTIÇA

 
Não foram apresentadas contra-alegações.

 
Dispensados os vistos legais, há que decidir.  
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se os autores têm interesse em agir.

 
É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...20 da freguesia ..., um prédio rústico denominado de ... e ..., situado em ..., composto por terra de cultura arvense, cultura arvense granítica, horta, oliveiras e mato com 3207750 m2, inscrito na matriz sob o artigo ....º, secção H; confrontações: norte, FF; sul, P...; nascente, ribeiro; e poente, estrada nacional; com as seguintes menções: 
**... 15.500 m2 para formar o prédio nº ...22 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela com 31570 m2 para formar o prédio nº ...27 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela de terreno com a área de 32.000 m2 para formar o prédio nº ...54 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela de terreno com 6.000 m2 para formar o prédio descrito na ficha nº
12006 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela de terreno com 6.250 m2 para formar o prédio descrito na ficha nº ...05 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela de terreno com 1.077.000 m2 para formar o prédio descrito na ficha nº ...77 de ... (descrição não actualizada) 
**Desanexada uma parcela de terreno com 41.790 m2 para formar o prédio descrito na ficha nº ...13 de ... (descrição não actualizada) 
2. Sobre a descrição identificada no número anterior incidem as seguintes anotações: 
Oficioso - AP. ...26 de 2016/04/19 – anotação – aberta a ficha n.º 12.005, a desanexar desta; 
Oficioso - AP. ...25 de 2019/05/27 - anotação – aberta a ficha n.º 12413, a desanexar desta;  3. Sobre a descrição identificada no número anterior incidem as seguintes inscrições / averbamentos: 
AP. ...7 de 2006/01/20 – Aquisição a favor de CC, divorciado, tendo como causa usucapião; 
AP. ...5 de 2007/03/16 – Servidão - coisa dominante: passagem de gás combustível - Conteúdo: 1 - Ocupação do solo e subsolo (com gasodutos), à profundidade regulamentar de segurança, exercendo-se, neste prédio, sobre quatro parcelas com 8.895 m2, 8513 m2, 186 m2 e 26100 m2 respectivamente. 2 - Passagem e ocupação temporária de terreno ou outros bens, devido ás necessidades de construção, vigilância, conservação e raparação de todo o equipamento necessário ao transporte do gás, exercendo-se numa faixa, sobre as tubagens, não excedente a 18m de largura. 
Averb. - OF. de 2009/04/17 - Rectificação - DA AP. ...5 de 2007/03/16 – Servidão – E..., S.A., com sede na Estrada Nacional ...16, ..., ..., .... 
Averb. - AP. ...42 de 2009/06/25 – Actualização dA AP. ...5 de 2007/03/16 – Servidão - A concessionária é actualmente a R..., S.A., NIPC ..., com sede na Estrada Nacional ...16, ..., .... 
4. O artigo matricial ....º, da secção H, da freguesia ... referente ao prédio id. em 1) foi eliminado, tendo dado origem ao artigo 9.º da secção H, tendo este sido eliminado dando origem ao artigo 13.º da secção H, este deu origem aos artigos 16.º e 17.º, ambos da secção H, tendo este último sido também eliminado dando origem aos artigos 18.º e 19.º da secção H, tendo este último dado origem ao artigo 21.º da secção H, todos da freguesia ....

 
A que acresce o seguinte, por via da falta de contestação do réu:
5. Não foi outorgada a escritura, porque o vendedor nunca procedeu à desanexação da parcela de terreno que vendeu aos autores (artigo ....º da p.i.).
6. Após a compra, vendedor e comprador, demarcaram a parte do prédio ora dos autores, colocando marcos e os autores, há cerca de 10 anos, vedaram-no com um muro de blocos de cimento (artigos 4.º e 5.º da p.i.).
7. E sobre a mesma praticaram os actos melhor descritos nos artigos 7.º a 15.º da p.i., nos termos e condições ali descritas.  
Se os autores têm interesse em agir.
Como resulta do relatório que antecede, os autores justificam a necessidade de recurso à presente acção pelo facto de, embora venham a exercer os poderes de facto descritos na p.i., nos termos e condições ali descritas, conducentes à aquisição da propriedade da identificada parcela de terreno, através da usucapião, não a conseguirem autonomizar como prédio autónomo e distinto do prédio de que foi demarcado, porque o réu vendedor nunca procedeu à desanexação de tal parcela de terreno, a qual, continua, assim, integrada, implantada num prédio que é pertença do réu.
Na decisão recorrida, denegou-se tal pretensão dos autores, absolvendo-se o réu da instância, com fundamento na falta de interesse em agir, com a seguinte fundamentação:
“Ora, do ante exposto, o que resulta dos factos alegados pelos Autores é que estes não dispõem de título para registar o seu direito sobre a parcela de terreno adquirida e que o Réu reconhece que os Autores adquiriram a referida parcela por usucapião. 
E pese embora, se entenda que a acção sub judice tenha também uma vertente condenatória uma vez que é pedida literalmente a condenação do Réu a reconhecer o que antes se pediu que fosse declarado, e a abster-se da prática de qualquer acto que perturbe ou impeça a existência e o exercício desse prédio e direitos respectivamente, a presente acção configurase, no essencial, como acção de simples apreciação, porquanto pretendem os Autores ver declarado para efeitos de desanexação da parcela em questão e respectivo registo a seu favor o seu direito de propriedade (que alegam ter adquirido por usucapião) sobre determinada parcela, com determinada área, que faz parte de um prédio rústico. 
Escamoteando a petição inicial, resulta que não há qualquer conflito de interesses entre os Autores e o Réu, não sendo imputada a este qualquer violação do direito dos Autores, tão pouco se lhes atribui qualquer conduta que coloque a afirmação pelos Autores do seu direito em situação de incerteza, e de incerteza grave como se vem exigindo no âmbito das acções de simples apreciação positiva para configurar o interesse em agir por parte dos seus autores.  Com efeito, não se extrai da petição inicial que o Réu alguma vez tivesse violado o direito de propriedade sobre uma concreta e determinada parcela de um prédio rústico que pertencerá aos AA. como alegam, ou que alguma vez tivessem questionado ou colocado em dúvida a sua existência e, portanto, não se vislumbra qualquer interesse dos Autores em obter a condenação do Réu ao reconhecimento de um direito que este nunca violou e nunca pôs em
causa; e, nessas circunstâncias, também não existe qualquer situação de incerteza grave e objectiva que tenha sido provocada pelo Réu (seja no que toca à existência do direito, seja no que toca à área do prédio) e que possa justificar o interesse dos Autores em demandar o Réu com vista à obtenção de uma declaração judicial de reconhecimento desse direito. 
Sendo que os AA. no sentido de justificar a instauração da presente acção, alegam que o R. não procedeu à desanexação da referida parcela de terreno, apesar de não existir qualquer conflito com o Réu tendo em conta a posição que assumiu ao não contestar; bem como, todavia, como alegado pelos AA. que, apesar de não ter sido outorgada a escritura de compra e venda devido à invocada falta de desanexação, os mesmos, desde outubro de 1996, que vêm praticando actos de posse sobre a parcela de terreno em causa, comportando-se como verdadeiros proprietários, o que não mereceu oposição do Réu, não colocando em crise o direito invocado dos AA.; para além de que, não foi sequer alegado que o R. tenha posto em causa a área da parcela em causa ou a do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...1.º, secção H, a favor do R. resultante da pretendida desanexação; nem tão pouco, repita-se, foi alegado qualquer facto imputado ao R. como violador por qualquer forma do direito dos AA. de uso e fruição da parcela do terreno em discussão.
Reitera-se que lendo a petição inicial, a ilação que se retira é que dela não poderemos inferir a existência de qualquer conflito ou litígio com o Réu no que toca ao direito que os Autores aqui pretendem ver reconhecido: o seu direito de propriedade sobre uma concreta e determinada parcela de um prédio rústico que pertence ao Réu, não ressaltando da petição inicial que o Réu alguma vez tivesse violado esse direito ou que alguma vez tivesse questionado ou colocado em dúvida a sua existência. 
Em suma, não se vislumbra qualquer litígio / conflito com o R. Tanto mais, reitera-se, tendo em conta a posição do R. que assumiu nos autos ao não contestar a demanda. 
Colocar-se-á, assim, a questão: qual é a litigiosidade que justifica o interesse de agir dos AA. contra o R.?!  
Como os próprios AA. alegam, o seu interesse na propositura da acção reconduz-se ao facto de pretenderem obter a efectiva desanexação da parcela que alegam ter adquirido por usucapião e o registo a seu favor da aquisição do respectivo direito de propriedade, de molde a legalizar a situação do referido prédio. 
Logo, inexiste conflito / litígio com os RR. que justifique a instauração da presente demanda contra os mesmos. 
Assim sendo, não terão os AA. necessidade de instaurar uma acção judicial contra estes, sendo certo que têm ao seu dispor a escritura de justificação notarial, nos termos dos artigos 89.º e segs. do Código de Notariado ou o processo de justificação previsto nos artigos 116.º e segs. do Código de Registo Predial, nada os impedindo de recorrer a tais meios, dispondo os AA. de alternativa, ao contrário do por si alegado em sede de requerimento de 19.01.2023 (v. ref.ª 3118544), não se constatando qualquer violação do direito do acesso ao direito e à justiça.”. 

 
Este Tribunal e Secção ainda recentemente (Apelação n.º 1197/22.4T8LRA, de 28/3/2023, em que o ora Relator e 2.º Adjunto, foram, respectivamente 1.º e 2.º Adjuntos), foi chamado a decidir questão semelhante à ora em análise, pelo que se passa a seguir o ali decidido.
“O que está em causa nestes autos, é o de saber se está preenchido o pressuposto processual inominado do interesse em agir.
Como é sabido, a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.
E que a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção – artigo 2.º do Código do Processo Civil, que será o diploma a citar sem menção de origem.
Em consonância com este princípio estabelece o art.º 10.º que as acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. As acções de simples apreciação destinam-se a obter unicamente a declaração da existência  - acções positivas - ou inexistência – negativas - de um facto ou de um direito.
 Preceitua o Artigo 278.º 1- O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da
instância:
a) Quando julgue procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal;
b) Quando anule todo o processo;
c) Quando entenda que alguma das partes é destituída de personalidade judiciária ou que, sendo incapaz,
não está devidamente representada ou autorizada;
d) Quando considere ilegítima alguma das partes;
e) Quando julgue procedente alguma outra exceção dilatória.
O interesse como pressuposto processual – também denominado interesse em agir – define-se como o interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional - art.º 30.º.
n.º 2/ Diferentemente, negando a qualificação do interesse processual como pressuposto processual – com fundamento no disposto no art.º 535.º, n.º 1, do CPC, que estabelece que quando o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste as custas são pagas pelo autor – Lebre de Freitas/I. Alexandre, CPC Anot., II, 2017, pág. 441, e Rui Pinto, O Recurso Civil, 2017, pág. 193 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, AAFDL, 1980, págs. 180 e 190. A jurisprudência orienta-se, porém, esmagadoramente no sentido da qualificação do interesse processual como pressuposto processual: assim, v.g., o Ac. da RL de 26.09.2019, cit., do STJ de 05.02.3013 (684/10.1YXL.SB.L1.S1).
11.03.2013 (403/09.5TJL.SB.L1.S1), 29.06.2017 (5043/16.0T8STB.S1) e de 19.12.2018 (742/16.9T8PFR.P1.S1).
Importa que a incerteza resulte de um facto exterior, que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria, nomeadamente cerceando-lhe o crédito, dificultando-lhe quaisquer actos de disposição – cfr. Manuel de Andrade, in Noções elementares, 78/82.  
Ou seja, o alegado direito do autor tem de estar carecido de tutela judicial, tem necessidade de se socorrer dos tribunais, instaurando o respectivo processo.
 “Esta necessidade não tem que ser absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais que isso”.  Em sentido semelhante, afirma Manuel de Andrade[3] que “não se trata de um necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece” – No Acórdão desta Relação de Coimbra de 28.6.2022 (relatora Maria Catarina Gonçalves) e doutrina aí citada; pesquisável em www.dgsi.pt.
A falta de interesse em agir reportar-se-á, portanto, às situações em que o autor não tem uma necessidade justificada e razoável de recorrer aos tribunais para assegurar o seu direito ou para satisfazer a sua pretensão e, portanto, a decisão que viesse a julgar a acção procedente seria inútil ou perfeitamente dispensável porque, na realidade, não determinaria para o autor um qualquer benefício ou proveito prático que, de algum modo, justificasse a demanda do réu e a actividade do tribunal.
A exigência de que a parte seja portadora de um interesse processual ou o condicionamento do exercício do direito de acção à utilidade da obtenção de tutela jurisdicional justifica-se por razões de economia e de paz jurídica, evitando-se, assim, o dispêndio inútil de actividade jurisdicional e os custos e incómodos para o demandado com a apreciação de acções inúteis.
O interesse processual pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela jurisdicional e constitui um pressuposto processual respeitante a
ambas as partes – dada correlatividade dos respectivos interesses, necessariamente contrapostos – e é aferido, objectiva e exclusivamente - como qualquer outro pressuposto processual - perante o objecto definido pelo autor, pela posição daquelas mesmas partes, no momento da propositura da acção, pela utilidade da concessão da tutela jurisdicional.

Como se escreve no Acórdão desta Relação de Coimbra de 13.12.2022
(relator Henrique Antunes), pesquisável em www.dgsi.pt, “porque se tem por axiomático que o interesse processual se afere relativamente às partes presentes em juízo, pela posição destas mesmas partes perante a utilidade da concessão da tutela jurisdicional, averiguando-se se esta tutela alguma vantagem traz para o autor e alguma correlativa desvantagem acarreta para o réu – e não para terceiro, i.e., para quem não tem, no processo pendente em que se procede a essa aferição, a qualidade de parte. Portanto, para o preenchimento do interesse processual é irrelevante que a concessão da tutela seja, eventualmente, desvantajosa para terceiro; desde que o não seja para o demandado – e, consequentemente, dada correspectividade dos interesses, não seja vantajosa para o demandante – ao autor não pode ser reconhecido qualquer interesse na obtenção daquela tutela.
Por razões que se compreendem por si, o interesse processual não pode ser afirmado em abstracto: apenas comparando a situação em que a parte, activa ou passiva, se encontra antes da propositura da acção com aquela em que existirá se a tutela jurisdicional for concedida, se pode saber se essa concessão representa um benefício para o autor e uma desvantagem para o réu; se a situação relativa entre as partes se não alterar com a concessão daquela tutela judiciária, falta o interesse em agir”.
 A falta de interesse processual, i.e., a falta de interesse em exercer o direito de acção, resolve-se numa excepção dilatória – inominada - oficiosamente cognoscível que, à semelhança da generalidade das excepções dilatórias, implica a
absolvição do réu da instância - artºs 576.º, n.º 2, e 278.º, n.º 1, e).”.

Analisando o petitório dos autores, ressalta que estes pretendem obter o reconhecimento e inerente condenação do réu, a reconhecer a propriedade da identificada parcela, constituída em prédio autónomo, em conformidade com a divisão e demarcação efectuada pelas ora partes e que o réu se abstenha da prática de qualquer acto que impeça ou perturbe o exercício do respectivo direito de propriedade dos autores.
Ou seja, efectivamente, não obstante a componente condenatória inserta em tal pedido, releva de essencial, a declaração/reconhecimento da autonomização da parcela em causa, o que acarreta que se qualifique a presente acção como de simples apreciação positiva. 
Assim e retornando ao Acórdão que vínhamos seguindo:
“…, considerando que as acções de simples apreciação – que são aquelas em que se pede a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto – não têm por objecto ou não têm por finalidade fazer valer um direito subjectivo – dado que não há um direito à declaração – pelo que a utilidade da tutela, como parâmetro de aferição do interesse processual, tem de referir-se, necessária e exclusivamente, à própria declaração da existência ou inexistência daquele direito ou deste facto, pelo que aquele interesse se encontra preenchido – mas só se encontra preenchido – quando o autor tenha um interesse atendível naquela declaração - art.º 10.º, n.º 3, a).
Que o interesse em agir não se destina a assegurar a eficácia da sentença, o que está em jogo é a sua utilidade, devendo o demandante, por isso, demonstrar a necessidade de usar o meio que a acção exprime, sob pena dos Tribunais serem enxameados de acções, para se obterem decisões a que poderiam corresponder meros caprichos, ou propósitos de soluções meramente académicas, transformandoos em órgãos de consulta.”.
 
Reiterando, os autores fundamentam a necessidade do recurso a esta acção porque o réu nunca procedeu à desanexação da referida parcela de terreno, o que os impossibilita de fazer corresponder no ordenamento jurídico a situação de prédio autónomo, como na realidade se transformou a parcela que adquiriram, que ali permanece como fazendo parte do prédio do réu, quando, na realidade assim já não sucede.
Para denegar tal pretensão, a M.ma Juiz a quo baseia-se no facto de o réu não ter contestado a acção, o que demonstra que aceita que os autores têm o domínio e posse
sobre a dita parcela, o que resulta na inexistência de qualquer conflito e/ou divergência entre as partes, relativamente à posse e propriedade da dita parcela.
É certo que o réu não contestou, do que resulta que se tenham por confessados os factos articulados pelos autores.
Contudo, daí não resulta, necessariamente, a inexistência de conflito ou divergência entre as partes, podendo corresponder a atitude do réu a mera inacção deste.
Tanto mais que a causa que os autores invocam para recorrer a juízo é o facto de que o réu impossibilitou a realização da competente escritura de compra e venda, porque nunca procedeu à desanexação da supra identificada parcela de terreno.
Este facto, por força da não contestação do réu (bem, como os demais alegados) têm de se ter por confessados, cf. artigo 567.º, do CPC.
Assim, salvo o devido respeito por contrário entendimento, a razão do conflito reside precisamente na atitude contumaz do réu, que ao não proceder à desanexação da dita parcela, que continua a figurar como sendo de sua propriedade, impossibilitou os autores de outorgar a competente escritura de compra e venda e com base nela, regularizar a nível registral a situação decorrente da aquisição da mesma.
O que é suficiente, na nossa perspectiva, para demonstrar o seu interesse em agir - no Acórdão desta Relação de Coimbra de 26 de Abril de 2022 (relator Emidio Francisco) entendeu-se não haver interesse processual porque “como foi devidamente salientado na decisão sob recurso, as partes dão como assente a aquisição do direito e não há sinal do mais leve conflito entre elas a propósito de tal aquisição. Logo, não há nenhum conflito entre as partes, nem nenhuma situação de incerteza objectiva quanto à aquisição do direito que justifique o recurso à presente acção”.
In casu, a inacção do réu em não permitir que os autores possam regularizar a situação, parece-nos suficiente para que aos autores seja reconhecido o direito de recorrer a juízo a fim de verem reconhecido o direito a que se arrogam, não se lhes podendo impor, apenas e só, o recurso ao processo de justificação, previsto no CRPredial ou à escritura de justificação notarial.
Em face do que não pode subsistir a decisão recorrida, reconhecendo-se que os autores têm interesse em agir e, por conseguinte, devem os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

 

       Nestes termos se decide:            
Julgar procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara que os autores têm interesse em agir, devendo, em consequência, os autos prosseguirem os seus ulteriores termos.
Custas, a fixar a final.
Coimbra, 30 de Maio de 2023.

 


Voto de vencido:
No caso, não vislumbro qualquer situação de conflito que justifique o recurso a tribunal. A única alegação dos autores a tal respeito é a seguinte: "Não obstante não ter sido outorgada a escritura, porque o vendedor nunca procedeu à desanexação da referida parcela de terreno". 
Desconhecemos porque motivo o réu não procedeu à desanexação, nem o autor alega que alguma vez o tenha pedido ao réu e este tenha recusado – não sabemos se o réu não procedeu a tal desanexação porque não quis, ou ... porque a legislação não lho permite (para o autor ter aceitado "comprar" tal parcela sem formalizar a compra e a desanexação, é provável que lhes tenham levantado obstáculos legais a tal desanexação, como por ex., o facto de a parcela ser eventualmente inferior à unidade de cultura).
Por outro lado, no caso de inexistência de conflitualidade, o artigo 116º do Código de Registo Predial consagra dois meios ao dispor dos interessados, para o suprimento dos documentos necessários ao reconhecimento do direito de propriedade (caso esse reconhecimento seja admissível por lei) – a escritura de justificação notarial ou processo de justificação previsto no Cod.RP., não podendo o recurso aos tribunais servir como mero expediente para contornar exigências legais.
Como tal, confirmaria a decisão recorrida.
Aliás, tem sido essa a minha posição há vários anos, tendo subscrito como relatora o Acórdão datado de 16 de maio de 2017, no âmbito da Apelação nº 3430/16.2TPBL.C1, e ainda, como adjunta, o acórdão proferido no âmbito da Apelação nº 245/20.7T8CTB.C1, relatado por
Catarina Gonçalves.                                          
                                                                                            Maria João Areias