Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
227/22.4GBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUTAÇÕES GENÉRICAS
ALTERAÇÃO DA PENA
ALTERAÇÃO DO VALOR DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 152º, 71º DO CÓDIGO PENAL; 374º, N.º 2, 412º, N.ºS 3 E 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 496º, N.º 4, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A consciência da ilicitude não é um dos elementos subjectivos do tipo, relevando apenas em termos de culpa.
II - Agir com o propósito de ..., é agir de propósito, que é o contrário de agir sem querer, involuntariamente ou acidentalmente, bastando essa imputação e não sendo necessário alegar fórmulas tabelares como “Agiu livre, voluntária e conscientemente”.

III - Quando o Recorrente não dá cumprimento ao disposto no art.º 412º/3/4, não fazendo as especificações impostas por esta norma, fica o tribunal da Relação impossibilitado de reapreciar a matéria de facto.

IV - Quando a fundamentação da matéria de facto explica, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para fixar a matéria de facto e esse caminho é razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, é inatacável.

V - Integram o conceito de imputações genéricas, para efeitos penais, as que não especificam as condutas em que se concretizou o crime, nomeadamente não indicam as circunstâncias de tempo e lugar, motivação, grau de participação e outras relevantes.

VI - Nos crimes de violência doméstica, abuso sexual ou outros em que exista uma reiteração de condutas ao longo de um período relativamente longo, numa dinâmica intrafamiliar, os actos isolados tornam-se mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, tanto maior quanto maior o seu número e o distanciamento temporal entre as ocorrências e a acusação e/ou o julgamento, admitindo-se, por tal razão, uma menor pormenorização dos factos.

VII - Sendo, embora, imputação genérica dizer-se “Desde o início do relacionamento, e durante o período da coabitação…, sempre que ingeria bebidas alcoólicas, adotava um comportamento agressivo, ciumento, e controlador dos movimentos da vítima, infligindo maus tratos físicos e verbais na mesma”, este enquadramento geral do contexto relacional em que o crime de violência doméstica foi perpetrado é importante e deve, por isso, ser mantido.

VIII - A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares;

IX - Embora os tribunais de recurso possam alterar o valor do dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: Relator: João Abrunhosa
Adjuntas: Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho

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Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

No Juízo Central Criminal de Coimbra, por acórdão de 23/11/2023, foi o Arg.[1] AA, com os restantes sinais dos autos, condenado, para além do mais, nos seguintes termos :

“... Nos termos e pelos fundamentos expostos, este Tribunal Coletivo decide:

I.          Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica, pp. pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

II.        Condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

III.       Em cúmulo, englobando as penas referidas em I. e II., vai o arguido AA condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.

IV.       Vai, ainda, o arguido AA condenado na sanção acessória de proibição de contactos com a vítima BB, pelo prazo de 4 (quatro) anos, fiscalizada pelos meios técnicos de controlo à distância, quando o arguido estiver em liberdade – artigo 152.º, n.º 4 e 5 do Código Penal.

V.        Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB, condenando o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).  ...”.


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Não se conformando, o Arg., interpôs recurso, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“... 1. Resultando como não provado o facto acusatório de o arguido ter direccionado propositadamente, na sequência de uma discussão com a ofendida, a viatura na direcção de um muro (alínea k dos factos não provados) deve, coerentemente, ser expurgados dos factos provados, os pontos 19 a 23 dos factos provados, por não respeitarem a um crime de violência doméstica. Também o ponto 4 deve ser expurgado, por não conter factos, apenas conclusões.

2. Deveria o arguido ter sido absolvido de ambos os crimes de que vinha acusado, por falta na Acusação Pública (aliás por tal facto, nula) de elementos do dolo, respeitantes ao tipo subjectivo de ilícito, e que só acabaram nos factos provados porque foram (ilegalmente) acrescentados, sem qualquer comunicação prévia, pelo Tribunal a quo. Referimo-nos ao ponto 51 dos factos dados como provados no Douto Acórdão, onde passou a constar, em comparação com a Acusação, "condutas" em vez de "conduta" (pretendendo abarcar a conduta relativa ao crime de violência doméstica), e ao tempo verbal de "eram" (pretérito imperfeito), em vez de "é" (presente do indicativo), bem como à ausência, relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, de qualquer menção a que o arguido agira "livre, voluntária e conscientemente" (este facto, constante do ponto 48 dos factos provados respeitava tão somente ao crime de violência doméstica). Foi violado o artigo 293, n.º 3 alínea b) do CPP.

3. Deverá ainda subsidiariamente assim o arguido, em respeito ao princípio in dubio pro reo, ser absolvido do crime de condução sem habilitação legal, uma vez que a única prova existente nos autos quanto ao facto de ser este o efectivo condutor do veículo em causa, é precisamente a da assistente, que, além de ser a sua proprietária, também não é titular de qualquer habilitação para conduzir tal veículo.

4. Também subsidiariamente, certo é que a condenação por este crime de condução sem habilitação legal na pena de 1 ano e 6 meses de prisão levou em linha de conta outras condenações por factos ocorridos depois dos factos destes autos (as mencionadas nos factos provados sob n.º 52, alíneas n) e o)), o que seria só de ponderar em sede de conhecimento superveniente do concurso e não na presente decisão. Tais considerações, intempestivas, contaminaram a decisão com um excesso de pena, que não deverá ser superior a 1 ano e 4 meses de prisão.

5. Por outro lado, e subsidiariamente, considerando que é a primeira condenação do arguido quanto a este crime de violência doméstica, a pena, excessiva, deveria fixar-se em não mais que 3 anos de prisão.


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6. Comparando os factos constantes do PIC formulado, no valor de €15.000,00, e os factos provados - e não provados - na condenação final, no valor de €5.000,00, continua sem se conceber, por falta de causa de pedir inicial, em quanto decaiu a demandante por cada um (e foram muitos) dos factos não provados. O PIC, não correlacionando esses factos (provados e não provados) com os danos genericamente peticionados, era na realidade inepto, e isso contaminou o Douto Acórdão, que acaba nulo por não ser concretamente fundamentado.

7. Caso assim não se entenda, atento, além do mais, o teor das cartas voluntariamente escritas pela vítima ao arguido, e que foram juntas aos autos na sessão de 13-11-2023, a condenação no pagamento de € 5.000,00 é excessiva.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser recebido e julgando procedente, eliminando-se a matéria acima elencada e revogando-se a decisão proferida e substituindo-a por outra que absolva o arguido de ambos os crimes por que que vem acusado e condenado, com todas as consequências legais;

Quando assim não se entenda, deve ser reduzida, por excessiva, a medida da pena relativamente ao crime de condução sem habilitação legal.

E independentemente da procedência das questões anteriores, deverá ser sempre revogada a decisão, não fundamentada, que o condena ao pagamento do valor indemnizatório de € 5.000,00 à demandante civil, por ser inepta a PI.

Caso assim não se entenda, deverá tal indemnização ser reduzida. ...”.


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O Exm.º Magistrado do MP[2]  respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

“... 1- O recorrente, pretendendo impugnar matéria de facto dada como provada, encontrava-se, nos termos estabelecidos pelo artigo 413.º, n.º 3, e n.º 4, do Código de Processo Penal, vinculado ao ónus de especificar, os concretos pontos de facto que veio a considerar incorrectamente julgados e as provas concretas que impunham decisão diversa.

2- Não tendo sido observado esse dever de especificação probatória e porque, por outro lado não se verifica qualquer das demais situações previstas no artigo 431.º, daquele Código, torna-se imodificável a matéria de facto assente no douto acórdão recorrido.

3- Os factos 19.º a 23.º, da fundamentação de facto do douto acórdão recorrido, não podem ser eliminados por consubstanciarem a prática, pelo arguido, do crime de condução sem habilitação legal, um dos crimes pelos quais veio a ser condenado.

4—Igualmente, não pode ser expurgado da douta fundamentação de facto do acórdão proferido pelo tribunal a quo, o facto 4.º, pois contém uma resenha do substrato factual constante dos pontos seguintes da matéria de facto, visando tão só enquadrar os comportamentos adiante descritos onde se indicam concretamente os modos de atuação do arguido em relação á vítima.

5- O douto Acórdão recorrido não enferma de nulidade ou de outro vício que obste à eficácia do aí decidido.

6- A factualidade fixada como provada preenche todos os elementos subjectivos constitutivos dos crimes de violência doméstica e condução de veículo sem habilitação legal censurados ao arguido.

7- A pena parcelar de um (1) ano e seis (6) meses de prisão aplicada ao recorrente, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, mostra-se ajustada à gravidade dos factos em ponderação e a uma personalidade que evidencia propensão para o crime, desprezo pelas sanções criminais antes impostas, total indiferença pelas regras jurídicas que disciplinam a vida em sociedade e por elevados bens jurídicos merecedores de tutela do direito penal e ausência de determinação para uma alteração de padrão de vida em normatividade e socialmente adequado.

8- O douto acórdão recorrido, ainda que contendo um manifesto lapso de escrita, sem qualquer interferência no processo de determinação da pena parcelar determinada e que pode ser oficiosamente corrigido, fez correcta interpretação dos preceitos legais que havia a aplicar, não se mostrando ofendido qualquer normativo.

Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, segura e sabiamente não deixarão de suprir, negando-se provimento ao recurso

interposto e, consequentemente, confirmando o acórdão condenatório recorrido, far-se-á Justiça. ...”.


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Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

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A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.

Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação.

O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:

“... Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1.         O arguido AA e a vítima BB iniciaram um relacionamento amoroso, no início de 2021, altura em que se conheceram através da rede social “Facebook”.

2.         A vítima BB padece de Perturbação Depressiva, desde 2003.

3.         No dia 12 de outubro 2021, o arguido AA e a vítima BB começaram a partilhar cama, mesa e habitação como se de marido e mulher se tratassem, na residência sita na Rua ..., ....

4.         Desde o início do relacionamento, e durante o período da coabitação no referido local, que o arguido AA, sempre que ingeria bebidas alcoólicas, adotava um comportamento agressivo, ciumento, e controlador dos movimentos da vítima, infligindo maus tratos físicos e verbais na mesma.

5.         Durante a referida coabitação, o arguido encetou múltiplas discussões com a vítima, quando se encontrava em estado de embriaguez, apelidando-a de «puta» e «malandra», dizendo igualmente que a mesma não sabia fazer nada e que só sabia dormir.

6.         Durante tais discussões, o arguido partiu diversos objetos da residência, concretamente telemóveis da vítima, televisões, micro-ondas, aparelhagens e uma máquina de café.

7.         Em data não concretamente apurada, mas ocorrida próxima do dia 26.11.2021, no interior do domicílio, e na sequência de uma discussão encetada pelo arguido, este dirigiu-se junto da vítima e desferiu-lhe diversas bofetadas na face.

8.         Em data não concretamente apurada, mas ocorrida nos meses de março ou abril de 2022, o arguido dirigiu-se junto da vítima e desferiu-lhe, novamente, diversas bofetadas na face.

9.         Tal episódio levou a que a vítima abandonasse a residência comum, tendo-se deslocado, pelas 21h30, para a ..., de comboio.

10.       Na ..., a vítima passou a habitar na Rua ....

11.       Em data não concretamente apurada, mas ocorrida em junho ou julho de 2022, o arguido contactou a vítima tendo convencido a mesma a reatar a relação amorosa.

12.       A vítima aceitou, tendo o arguido ido residir com esta na habitação sita na morada supra mencionada.

13.       Todavia, o arguido continuou a perpetrar sobre a vítima, BB, os comportamentos descritos em 4. e 5.

14.       Em datas não concretamente apuradas, mas ocorridas durante a coabitação na residência da ..., o arguido, movido por ciúmes, partiu três telemóveis da vítima acusando-a de «apenas querer falar com amigos».

15.       Em data não concretamente apurada, mas ocorrida logo no início da coabitação na ..., o arguido, na sequência de uma discussão, e no estado de embriaguez, dirigiu-se à vítima e desferiu-lhe diversas bofetadas no corpo, ao mesmo tempo que lhe dizia que era «malandra» e que não sabia fazer nada.

16.       Em data não concretamente apurada, mas ocorrida no mês de agosto de 2022, o arguido, novamente em virtude de ciúmes, encetou uma discussão com a vítima, que se encontrava sentada no sofá da sala, tendo desferido no corpo da mesma diversas bofetadas, ao mesmo tempo que lhe dizia que era «malandra» e que não sabia fazer nada.

17.       No dia 18.09.2022, no interior da referida residência, pelas 23h30, o arguido, empunhando a faca de mato, com 26 cm de comprimento, sendo 14,7 cm de lâmina, disse à vítima «eu mato-te a ti, os teus filhos, a tua mãe, e o teu irmão! Já ando farto desta gente toda!».

18.       Nessa sequência, e enquanto o arguido se encontrava distraído, a vítima pegou na referida faca e escondeu-a num baú que se encontrava no quarto da mesma.

19.       No dia 20.09.2022, pelas 17h30, o arguido e a vítima circulavam no veículo automóvel de matrícula ..-..-GU, propriedade da vítima, em ..., concelho ..., sendo que o mesmo se encontrava a ser conduzido pelo arguido, sem ser titular de documento que o habilitasse a conduzir esse tipo de veículos, o que sabia ser obrigatório por lei.

20.       Durante a circulação automóvel, o arguido encetou uma discussão com a vítima.

21.       Nessa sequência, o arguido acabou por embater num muro ali existente, sito na Rua ....

22.       Após o embate, o arguido saiu do veículo e abandonou o local na direção da residência comum.

23.       Como consequência do embate no muro, a vítima ficou com o peito pisado, fruto da fricção causada pelo cinto de segurança, aquando do embate.

24.       Ainda no mesmo dia, pelas 23h30, no interior da residência comum, quando a vítima se encontrava a descansar deitada na sua cama, o arguido iniciou uma discussão com a mesma, tendo, nessa sequência, partido o telemóvel da vítima.

25.       Tal circunstância levou a que a vítima abandonasse a referida residência e tivesse apresentado queixa na GNR ..., pelas 00h20, do dia 21.09.2022.

26.       Após a apresentação da queixa, a vítima foi encaminhada para uma casa abrigo com a finalidade de evitar a prática de mais condutas agressivas por parte do arguido.

27.       Contudo, a vítima abandonou a referida casa-abrigo no dia 30.09.2022, por sua vontade, tendo ido residir para casa da sua mãe, CC, sita na Rua ..., ....

28.       No dia 17.10.2022 a vítima apresentou requerimento nos presentes autos, referindo que tinha feito as pazes com o arguido e que não pretendia continuar com a queixa.

29.       No mesmo dia, a vítima recusou, através de requerimento assinado por si, a implementação dos mecanismos de proteção através de teleassistência.

30.       A partir de tal data, arguido e vítima passaram a residir novamente juntos, na Rua ..., ..., na ....

31.       No dia 27.10.2022, pelas 03h00, no interior da referida residência, e no decurso de uma discussão encetada pelo arguido, que se encontrava embriagado, a certa altura este disse à ofendida “espera lá que se é para acabar, é já hoje”, dirigindo-se de seguida à casa de banho de onde regressou com um frasco de álcool etílico numa mão e um isqueiro na outra.

32.       Assim que chegou à cozinha despejou praticamente todo o conteúdo do frasco de álcool no corpo da ofendida e tentou acionar o isqueiro, o qual só não acendeu porque bloqueou naquele momento.

33.       No decurso de tal discussão, o arguido proferiu à vítima as seguintes expressões: «mato-te a ti e ao menino», referindo-se ao filho da vítima, DD, residente na Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP), sita em ..., tendo, ainda, pegado no telemóvel da vítima e no respetivo cartão SIM, partindo, de seguida, os mesmos.

34.       Em ato contínuo, o arguido dirigiu-se ao quarto da vítima, pegou noutros telemóveis da mesma e quebrou-os.

35.       Nessa sequência, e no mesmo dia, pelas 10h00, a vítima foi apresentar nova queixa na GNR ..., tendo sido encaminhada para nova casa abrigo.

36.       No dia 27.10.2022, em hora ainda não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se à residência da mãe da vítima, sita na Rua ..., ..., a fim de a procurar e estabelecer contacto com a mesma, tendo, para o efeito, aberto uma cancela que separa o imóvel da mãe da vítima da via pública, e posteriormente, por meio ainda não concretamente apurado, tentado introduzir-se no interior de tal residência, provocando, deste modo, receio e inquietação junto dos familiares da vítima.

37.       No dia 04.11.2022, o arguido foi detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicadas as seguintes medidas de coação:

a.         Termo de Identidade e Residência, já prestado;

b.         Obrigação de não permanecer, nem comparecer, na residência habitada atualmente pela ofendida (que tem sido a residência comum do casal) ou qualquer outra que a mesma venha a habitar, devendo manter um afastamento de tal local em um raio não inferior a 300 metros, ou outro que vier a ser indicado pelos serviços de reinserção social em função das características geográficas e das rotinas diárias do arguido e da ofendida;

c.         Obrigação de não comparecer, nem permanecer, no local de trabalho da ofendida, devendo manter um afastamento de tal local em um raio não inferior a 300 metros, ou outro que vier a ser indicado pelos serviços de reinserção social em função das características geográfica e das rotinas diárias do arguido e da ofendida;

d.         Obrigação de não contactar, por qualquer meio, com a ofendida, devendo manter um afastamento da mesma em um raio não inferior a 300 metros, ou outro que vier a ser indicado pelos serviços de reinserção social em função das características geográficas e das rotinas diárias do arguido e da ofendida;

e.         Obrigação de não contactar, por qualquer meio, com os familiares diretos da ofendida ou com quaisquer testemunhas dos presentes autos;

f.          Obrigação de apresentação periódica diária, no posto policial da área da respetiva residência;

g.         Obrigação de não deter, não adquirir, nem usar quaisquer armas, devendo entregar as que seja eventualmente possuidor, no prazo de 24 horas, no posto policial da área da sua residência, à ordem dos presentes autos.

h.         Obrigação de sujeição a tratamento à dependência do consumo de álcool, se necessário com internamento, sob supervisão dos serviços de reinserção social.

38.       Mais foi decretado que as medidas de coação que implicam a restrição de contactos com a ofendida seriam fiscalizadas através de meios eletrónicos de controlo à distância.

39.       Em 05.01.2023, a ofendida veio retirar consentimento para utilização do equipamento eletrónico de fiscalização à distância,

40.       Tendo reatado a relação amorosa com o arguido desde então, o qual voltou a habitar na sua casa, sita na Rua ..., ..., na ..., não obstante as medidas de coação que lhe foram aplicadas.

41.       No dia 09.02.2023, pelas 20.00 horas, no interior da sua casa, sita na morada referida supra, o arguido, em estado de embriaguez, começou a discutir com a ofendida, a dizer que ela lhe devia dinheiro e a ameaçar que a matava a si, bem como à mãe desta, aos seus dois filhos e ao seu irmão EE.

42.       De seguida, o arguido deu uma bofetada à ofendida que a atingiu no lado esquerdo da face.

43.       Neste dia, após a discussão, a ofendida tentou matar-se ingerindo comprimidos – calmantes – tendo adormecido sob o efeito dos mesmos, sendo que quando o arguido regressou a casa, vindo do café, encontrou-a adormecida e deu-lhe bofetadas na cara e rasgou-lhe a roupa para a acordar.

44.       No dia 14.02.2023, também pelas 20.00 horas, no interior da sua residência, estando o arguido novamente embriagado começou a discutir com a ofendida.

45.       Durante as discussões que ocorreram nos dias 09.02.2023 e 14.02.2023, o arguido pegou no telemóvel da ofendida e arremessou-o ao chão.

46.       Nestas discussões ocorridas nos dias 09.02.2023 e 14.02.2023, o arguido chamou à ofendida “puta” e “cabra”.

47.       No dia 17.02.2023, o arguido foi detido e sujeito a novo interrogatório judicial, tendo ficado em prisão preventiva.

48.       Em todas as supra citadas situações, o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente.

49.       Em todas as supra citadas situações e com as condutas descritas o arguido quis e conseguiu molestar física, emocional e psicologicamente a ofendida BB, atentando contra o seu bem-estar físico e emocional e, ainda, contra a sua paz e sossego, não se abstendo de o fazer mesmo sabendo que a ofendida era sua companheira e que, por isso, lhe devia especial respeito e consideração, tendo praticado tais atos no domicílio de ambos.

50.       No dia 20.09.2022 ao conduzir o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-GU, na localidade de ..., sem ser titular de documento que o habilitasse a conduzir, o que sabia ser obrigatório por lei, agiu com o propósito conseguido de conduzir veículo automóvel na via pública, sem ser titular de documento válido que o habilitasse para o efeito.

51.       O arguido não se eximiu de atuar conforme descrito, mesmo sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais se provou:

52.       O arguido foi condenado:

a.         Em 25.11.2003, por decisão transitada em julgado em 19.01.2004, pela prática, em 20.03.2003, de dois crimes de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa (Proc. Abrev. 50/03....);

b.         Em 02.12.2003, por decisão transitada em julgado em 30.01.2004, pela prática, em 25.01.2003, pela prática de um crime condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa (PCS 22/03....);

c.         Em 20.12.2004, por decisão transitada em julgado em 17.01.2005, pela prática, em 02.11.2001, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na execução pelo prazo de 2 anos e 3 meses (PCC 361/01....);

d.         Em 26.01.2010, por decisão transitada em julgado em 02.03.2010, pela prática, em 18.07.2005, de um crime de burla na obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, na pena de 30 dias de multa (PCS 599/05....);

e.         Em 15.10.2008, por decisão transitada em julgado em 11.01.2011, pela prática, em 20.10.2007, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 7 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 1 ano (PCS 305/07....);

f.          Em 19.06.2012, por decisão transitada em julgado em 26.10.2012, pela prática, em 23.05.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 150 dias de multa (Proc. Sum. 188/12....);

g.         Em 09.07.2012, por decisão transitada em julgado em 26.10.2012, pela prática, em 04.2011, de três crimes de furto qualificado na pena de 5 anos e 3 meses de prisão (PCC 151/11....);

h.         Em 12.11.2012, por decisão transitada em julgado em 12.12.2012, pela prática, em 28.01.2012, de um crime de auxílio material, na pena de 8 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 1 ano (PCC 30/12....);

i.          Em 06.06.2013, por decisão transitada em julgado em 08.07.2013, foi efetuado cúmulo jurídico superveniente, englobando as penas descritas em e), f), g)e h) tendo sido condenado na pena única de 5 anos e 9 meses de prisão e 150 dias de multa;

j.          Em 25.11.2014, por decisão transitada em julgado em 25.11.2014, pela prática, em 30.10.2013, de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 70 dias de multa (Proc. Sumaríssimo 717/13....);

k.         Em 14.01.2020, por decisão transitada em julgado em 14.02.2020, pela prática, em 10.02.2017, de um crime de denúncia caluniosa, na pena de 3 meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação (PCS 116/17....);

l.          Em 17.11.2020, por decisão transitada em julgado em 17.12.2020, pela prática, em 08.10.2020, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade (Proc. Sum. 558/20....);

m.        Em 07.07.2021, por decisão transitada em julgado em 22.09.2021, pela prática, em 26.01.2022, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena 16 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 2 anos (Proc. Abrev. 8/21....);

n.         Em 08.03.2023, por decisão transitada em julgado em 17.04.2023, pela prática, em 16.12.2022, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena 5 meses de prisão (Proc. Sum. 301/22....);

o.         Em 08.03.2023, por decisão transitada em julgado em 17.04.2023, pela prática, em 28.12.2022, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena 5 meses de prisão (Proc. Sum. 314/22....);

p.         Em cúmulo, englobando as penas descritas em n. e o., foi o arguido condenado na pena única de 7 meses de prisão.

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53.       Desde 26 de novembro de 2022, após ter sido apresentada queixa por violência doméstica pela ex-companheira, o arguido foi sujeito à medida de coação de proibição de contactos fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, no âmbito do atual processo, passando, a pernoitar, por um curto período de tempo, numa residencial, na referida localidade.

54.       Exerceu atividade laboral como pedreiro numa empresa de construção civil sediada na ..., auferindo mensalmente o valor correspondente ao ordenado mínimo nacional, ao qual acrescia o subsídio de alimentação e horas extra.

55.       Foi-lhe atribuído um montante pecuniário, por parte da progenitora, referente à venda de um imóvel de que aquela era proprietária, pelo que a sua situação económica é satisfatória.

56.       Tem vários irmãos a residir no estrangeiro, beneficiando apenas do apoio da progenitora.

57.       Não apresentou qualquer atividade estruturada, ao nível dos tempos livres, antes da atual reclusão.

58.       AA é conhecido no meio socio residencial de origem, estando associado ao aparelho de justiça, não se registando, no entanto, reações adversas à sua presença naquela comunidade.

59.       A nível da sua trajetória de vida, AA processou o seu desenvolvimento junto dos seus três irmãos, integrado num ambiente sociofamiliar desfavorecido e conflituoso, devido às frequentes agressões mútuas entre os progenitores, o que levou a que passasse longos períodos da sua infância junto dos avós maternos.

60.       Num ambiente familiar que não valorizava a educação, cedo o arguido teve de abandonar a escola para se iniciar no mundo laboral, de modo a contribuir para a economia familiar.

61.       Ainda assim, concluiu o 6.° ano de escolaridade.

62.       Iniciou o seu percurso laboral como ajudante de mecânico, tendo, posteriormente, desenvolvido atividades na área da construção civil e na jardinagem, havendo também referência a um período em que cumpriu o serviço militar, altura em que se envolveu no consumo de estupefacientes.

63.       Com cerca de vinte anos de idade, AA emigrou para a Holanda, país onde tinha um irmão, tendo trabalhado durante vários anos em estufas e na área da jardinagem.

64.       Por essa altura, estabeleceu uma relação afetiva com uma cidadã polaca de quem tem um filho, hoje maior de idade (28 anos).

65.       Posteriormente, o arguido regressou a Portugal, intensificando o consumo de estupefacientes, fator que acabou por condicionar as suas opções de vida, tendo estado por duas vezes internado em comunidades terapêuticas com vista à sua recuperação.

66.       Numa tentativa de reorganizar o seu projeto vida, o arguido tentou alcançar estabilidade laboral, tendo estabelecido nova relação da qual nasceu um filho, atualmente com 24 anos de idade.

67.       Contudo, as recaídas no consumo de estupefacientes e o quotidiano desregrado que o arguido protagonizou em diversos períodos da sua vida, não foram estranhos a que o arguido se envolvesse com o aparelho de justiça, tendo cumprido pena de prisão, altura em que cessou o consumo de estupefacientes.

68.       No que diz respeito ao consumo de bebidas alcoólicas, o arguido reconhece e admite ter possuído esse hábito, não considerando, contudo, tratar-se de um comportamento de dependência, nem problemático.

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Do pedido de indemnização civil:

69.       Em consequência dos factos acima descritos perpetrados pelo demandado, a ofendida vivia amedrontada, triste, angustiada e sofreu dores.

70.       Sempre que a demandante fugia do arguido, este vinha atrás dela e conseguia convencê-la a reatar a relação e a viverem de novo juntos.

71.       Em consequência da conduta do arguido, perdeu o gosto de viver e tentou suicidar-se.

****

Não se provaram outros factos com interesse para a causa.

Com efeito, não se provou que:

a)         A vítima sofre de depressão desde 2011.

b)         Os factos descritos em 5 ocorriam diariamente.

c)         O arguido apelidado a ofendida de «gorda».

d)         O arguido, em três ou quatro ocasiões disse à vítima que a matava, enquanto empunhava simultaneamente uma faca de cozinha.

e)         Ainda durante o período em que coabitaram na ..., o arguido, em virtude dos ciúmes, não deixou a vítima sair de casa por diversas vezes, impedindo-a de conviver com outras pessoas.

f)          Nas circunstâncias referidas em 7. e 8. o arguido desferiu palmadas nos braços da ofendida.

g)         No momento referido em 9., a ofendida foi para casa de uma tia do arguido.

h)         Os factos descritos em 13. ocorriam com uma periodicidade semanal.

i)          Em consequência dos factos descritos e 16, a vítima ficou com a cara vermelha e com sangue pisado num dos olhos.

j)          Em datas não concretamente apuradas, mas ocorridas durante a coabitação na ..., o arguido, no interior da residência, disse à vítima diversas vezes que a matava, ao mesmo tempo que empunhava uma faca de mato.

k)         O arguido direcionou propositadamente a viatura na direção de um muro.

l)          O arguido partiu uma ventoinha.

m)        No dia 01.10.2022, pelas 9.00 horas, o arguido contactou telefonicamente a vítima tendo-lhe dito que, caso fosse preso em virtude do inquérito que contra ele corre, e logo que cumprisse pena, a primeira coisa que iria fazer seria matar a vítima e o seu filho mais velho, DD.

n)         O arguido disse à ofendida, no momento referido em 33., «eu corto-te as pernas».

o)         Com a bofetada que desferiu à ofendida, provocou-lhe hematomas.

p)         O arguido agarrou o pescoço da ofendida com a mão, apertando-o.

q)         No dia 14.02.2023, antes de o arremessar o telemóvel ao chão, o arguido perguntou à ofendida se esta queria que ele o atirasse ao chão ou à cabeça da mesma.

r)         Devido à conduta do arguido, a demandante agravou a sua doença depressiva.

s)         A demandante não conseguia dormir. ...”.


*

Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[3] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.

Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.

No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:

“... Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.

Analisemos, em pormenor.

O arguido admitiu que conheceu a ofendida através da rede social do Facebook, no ano de 2021; que esta sofre de perturbação depressiva, desde que a filha morreu, ou seja, há cerca de 20 anos, e que começaram a viver juntos em outubro de 2021. Todavia, negou que lhe controlasse os seus movimentos (exceto quando a ofendida estava medicada em demasia, para ter a certeza que estava sem segurança), que lhe chamasse nomes, que a ameaçasse de morte ou aos seus familiares e que lhe batesse.

Também relatou que não bebia bebidas alcoólicas em excesso.

Referiu, outrossim, que nunca partiu objetos em casa, mas o seu cão, que é muito grande, efetivamente partiu a televisão, o micro-ondas, a aparelhagem e a máquina de café, deixando claro que os objetos eram todos seus.

Admitiu que a ofendida saiu da sua casa na ... e regressou à sua na ... e que, passado algum tempo, reataram a relação e foi viver para casa dela.

Também negou que conduzisse o veículo automóvel ..-..-GU no dia 20.09.2022, dizendo que era a ofendida quem o conduzia e que nem estava o local.

Disse que a ofendida ingeriu vários medicamentos, na tentativa de se suicidar, e que a socorreu dando-lhe pequenas palmadas na cara para a acordar.

Admitiu que violou as medidas de coação lhe que haviam sido aplicadas nos autos, explicando que tal ocorreu porque a ofendida lhe começou a enviar mensagens e foi ter consigo à pensão onde estava instalado, deixando o aparelho que lhe foi entregue pela DGRSP, que fiscalizava a sua aproximação, em casa da mãe.

Também relatou que foi a casa da mãe do arguido, apenas para advertir o irmão da ofendida para não ameaçar o filho desta.

Que os telemóveis partidos eram todos seus, que nunca partiu telemóveis da ofendida.

A ofendida, BB, foi ouvida em declarações para memória futura – fls. 768, a 17.02.2023 – e em sede de audiência de julgamento e, de forma isenta e coerente, descreveu os factos da forma como os considerámos provados.

A este passo importa dizer que a ofendida sofre de perturbação depressiva há muitos anos, desde a morte da sua filha, e é uma pessoa humilde e simples. E foi com esta simplicidade e humildade que nos disse que se o arguido deixasse de beber, voltaria para ele, que gosta dele e que este, quando não bebe, a trata bem. Não raras vezes as vítimas de violência doméstica têm este tipo de comportamentos, reatando por diversas vezes as relações amorosas que lhes foram dolorosas, acreditando que os agressores podem mudar. Esta atitude das vítimas em nada altera a nossa convicção que os factos podem ter ocorrido e foi exatamente isso que entendemos que aconteceu no caso dos autos.

Diremos, assim, que a arguida relatou os factos da forma como os considerámos provados e as suas declarações mereceram-nos credibilidade, mas há outros elementos de prova que corroboram a versão dos factos trazida pelo ofendida.

As cartas que o arguido juntou aos autos, duranta a audiência de discussão e julgamento, para descredibilizar a ofendida, não colocaram em causa a nossa convicção de que a mesma falou a verdade quando relatou os factos, pois o conteúdo das mesmas demonstra, por um lado, que foi o arguido, mais uma vez, que contactou a ofendida e que esta se limitou a responder e, por outro lado, que esta estava muito magoada, mas que perdoa o que o arguido fez. Ora, segundo o arguido, nada havia a perdoar, porque nunca a tratou mal… Temos, assim, que estas cartas comprovam, inequivocamente, que a ofendida foi maltratada pelo arguido.

Não ignoramos que a ofendida tentou esconder a existência desta correspondência, talvez por vergonha e por estas serem muitos pessoais, mas, como referimos, isso não afeta a nossa convicção de que a ofendida falou com verdade quando relatou os factos em Tribunal.

Mas há mais, muito mais.

A mãe da ofendida, a testemunha CC, confirmou que a filha lhe confidenciou que o arguido a ameaçava, a agredia e que viu marcas no corpo da filha que comprovavam as suas alegações. Também disse que a filha sofre e depressão há muitos anos, desde que a filha morreu, que anda sempre medicada e que chegou a tomar medicação a mais por causa dos maus tratos do arguido.

Mais referiu que, quando o arguido e a filha discutiam, era esta quem saía de casa, mesmo quando viviam na casa da ofendida, mas depois, contra os conselhos que lhe davam, ela voltava a viver com o arguido.

Confirmou que a ofendida comprou um carro, mas que ela não tem carta de condução e nunca conduziu na vida, e que era o arguido quem conduziu o veículo.   

Também a testemunha FF, cabeleireira da ofendida, depôs afirmando que a vítima lhe contava que o arguido, quando bebia em excesso, lhe chamava nomes e lhe batia e que a viu com marcas de agressão. Todavia, a ofendida acabava por o perdoar, dizendo que o arguido, quando não bebia, a tratava bem.    

O filho da arguida, a testemunha DD, que, à data dos factos estava institucionalizado, relatou que, quando estava em cada da mãe, ouviu o arguido chamar a esta «vaca» e «preguiçosa», que ele discutia com violência, quando chegava a casa bêbado, receando, nestes momentos, pela integridade física da mãe. Mais declarou que só o arguido gritava, ficando a mãe mais retraída. A mãe contou-lhe que o arguido lhe partia os telemóveis para não poder falar com outras pessoas. Recordou que a mãe comprou um carro, mas era o arguido quem o conduzia.

A tudo a isto acresce o facto de não se encontrar qualquer motivo para a ofendida sair de casa, fazer queixa na GNR e ter sido acolhida em casas abrigo, não fosse a circunstância de ser vítima de maus tratos por banda do arguido.

Por fim, a mãe do arguido, GG, relatou que a ofendida lhe pedia dinheiro e que o filho nunca lhe disse para não dar, e que pensa (não assistiu) que os problemas económicos podiam estar na base das discussões deles. Mas também disse que o arguido se pode tornar violento, principalmente quando ingere bebidas alcoólicas, o que, como sabemos, é o que diz a ofendida.

A testemunha HH, técnico superior da Equipa de V.E., confirmou que a ofendida lhe entregou o equipamento de vigilância eletrónica, por não o querer usar.

Claro está que relativamente às medidas de coação impostas nos autos valorámos os autos de interrogatório de 04.11.2022 e 17.02.2023.

Quanto às características da faca apreendida a fls. 516 e 517, atentámos ao auto de exame de fls. 186

Mais valorámos o auto de apreensão de fls. 195 e fotos que acompanham, onde se pode ver um telemóvel partido e o frasco de álcool utilizado pelo arguido. 

A mãe da ofendida, descreveu, de forma isenta e credível, os factos descritos no ponto 36.

A prova enunciada evidencia à saciedade que o arguido faltou à verdade, na tentativa de se eximir à ação da justiça.

Por tudo isto, não tivemos qualquer dúvida que os factos ocorreram da forma como os demos como provados nos pontos 1 a 47.

Os factos descritos nos pontos 48 a 51 foram dados como provados conjugando as regras da experiência comum e os restantes factos dados como provados. Como vem sendo dito na jurisprudência, dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infração. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência (neste sentido vide Ac. da R.P. 0140379, de 03.10.2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14.12.2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.).

Os factos constantes dos pontos 53 a 68 resultaram provados tendo em consideração o relatório social junto aos autos. Quanto à inserção social do arguido, atendemos ainda ao depoimento da testemunha de defesa II, que confirmou que o arguido trabalhou para si até ser preso preventivamente.

Quanto aos antecedentes criminais, atendemos ao CRC de fls. 1034, sendo certo que estão juntas aos autos certidões de alguns processos – cf. fls. 864, 887, 897, 1001 e 1018.

No que se refere aos factos não provados, importa dizer que não se fez qualquer prova quanto à sua ocorrência, nomeadamente por a ofendida não os ter confirmado.

Importa, por fim, dizer que o INML não conseguiu estabelecer o nexo de causalidade entre as lesões que a ofendida apresentava e o as agressões perpetradas pelo arguido. Importa, então dizer, que esta impossibilidade ocorre por a ofendida ter sido vítima de um acidente quando andava de trotinete. Ora, esta impossibilidade leva-nos a dar tal facto como não provado. Este facto não provado significa apenas e tão só que não se fez prova, jamais podendo ser extraído daqui que as lesões não foram provocadas pelo arguido, ...”.


*

Isto posto, é pacífica a jurisprudência do STJ[4] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[5], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no recurso são as seguintes:

I – Nulidade da acusação;

II – Nulidade resultante da alteração de factos constantes da acusação, fora das condições legais;

III – Falta de fundamentação da decisão recorrida, na parte cível;

IV - Impugnação da matéria de facto;

V – Reapreciação das medidas das penas;

VI – “Ineptidão da petição inicial” e reapreciação da medida da indemnização.


*

Cumpre decidir.

I – Entende o Arg. que a acusação padece de nulidade, porque “... Deveria o arguido ter sido absolvido de ambos os crimes de que vinha acusado, por falta na Acusação Pública (aliás por tal facto, nula) de elementos do dolo, respeitantes ao tipo subjectivo de ilícito, ...” (2ª conclusão).

A nulidade da acusação prevista no artigo 283 nº 1[6] alínea a) do Código de Processo Penal de 1998 é de conhecimento oficioso, pela via do artigo 311º, nºs 2 alínea a) e 3 alínea a) do mesmo código.[7].

Assim, as nulidades da acusação são umas vezes sanáveis e outras insanáveis[8].

No presente caso, a nulidade arguida (falta de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arg. de uma pena) seria insanável, nos termos do art.º 311º/2-a)/3-b) do CPP.

Ora, da acusação em causa, para além do mais, consta:

“... 52 – Em todas as supra citadas situações, o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente.

53- Em todas as supra citadas situações e com as condutas descritas o arguido quis e conseguiu molestar física, emocional e psicologicamente a ofendida BB, atentando contra o seu bem-estar físico e emocional e, ainda, contra a sua paz e sossego, não se abstendo de o fazer mesmo sabendo que a ofendida era sua companheira e que, por isso, lhe devia especial respeito e consideração, tendo praticado tais actos no domicílio de ambos.

54- No dia 20.09.2022 ao conduzir o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-GU, na localidade de ..., sem ser titular de documento que o habilitasse a conduzir, o que sabia ser obrigatório por lei, agiu com o propósito conseguido de conduzir veículo automóvel na via pública, sem ser titular de documento válido que o habilitasse para o efeito.

55 - O arguido não se eximiu de actuar conforme descrito, mesmo sabendo que a sua conduta é proibida e punida pela lei penal. ...”.

Por um lado, a consciência da ilicitude não é um dos elementos subjectivos do tipo (artº 14º do CP), relevando apenas em termos de culpa, artº 17º do CP)[9].

Por outro, agir com o propósito, é agir de propósito, que é o contrário de agir sem querer, involuntariamente ou acidentalmente (ver “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa), bastando essa imputação e não sendo necessário alegar fórmulas tabelares como “Agiu livre, voluntária e conscientemente”.

Por isso, os elementos subjectivos dos tipos de ambos os crimes encontravam-se suficientemente descritos na acusação, assim improcedendo, nesta parte, o recurso.


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II – Entende o Recorrente que a decisão recorrida, por alteração dos factos constantes da acusação. Porque “... Deveria o arguido ter sido absolvido de ambos os crimes de que vinha acusado, por falta na Acusação Pública (aliás por tal facto, nula) de elementos do dolo, respeitantes ao tipo subjectivo de ilícito, e que só acabaram nos factos provados porque foram (ilegalmente) acrescentados, sem qualquer comunicação prévia, pelo Tribunal a quo. Referimo-nos ao ponto 51 dos factos dados como provados no Douto Acórdão, onde passou a constar, em comparação com a Acusação, "condutas" em vez de "conduta" (pretendendo abarcar a conduta relativa ao crime de violência doméstica), e ao tempo verbal de "eram" (pretérito imperfeito), em vez de "é" (presente do indicativo), bem como à ausência, relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, de qualquer menção a que o arguido agira "livre, voluntária e conscientemente" (este facto, constante do ponto 48 dos factos provados respeitava tão somente ao crime de violência doméstica) ...” (2ª conclusão).

Ora, ainda que tenha havido as referidas alterações do tempo verbal e do singular para o plural, a verdade é que, como vimos supra, a consciência da ilicitude não é um dos elementos subjectivos do tipo, relevando apenas em termos de culpa, pelo que a sua descrição nos factos provados não era imprescindível, assim se mostrando irrelevante tal alteração.

Improcede, pois, também nesta parte, o recurso.


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III – Entende o Arg. que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação, na parte cível, porque “... Comparando os factos constantes do PIC formulado, no valor de €15.000,00, e os factos provados - e não provados - na condenação final, no valor de €5.000,00, continua sem se conceber, por falta de causa de pedir inicial, em quanto decaiu a demandante por cada um (e foram muitos) dos factos não provados. O PIC, não correlacionando esses factos (provados e não provados) com os danos genericamente peticionados, era na realidade inepto, e isso contaminou o Douto Acórdão, que acaba nulo por não ser concretamente fundamentado. ...”. (6ª conclusão).

A falta de fundamentação da sentença constitui uma nulidade (art.ºs 374º/2 e 379º/1-a) do CPP).

Essa nulidade deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP).

Mas, a deficiência da fundamentação só constitui esta nulidade, quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou os raciocínios subjacentes à qualificação jurídica da conduta do Arg., ou à determinação das medidas das penas.

Como já dissemos, quanto à fundamentação necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado.

A fundamentação da decisão cível encontra-se infra transcrita.

Dela resulta, claramente, que o tribunal recorrido determinou equitativamente o montante indemnizatório por danos não patrimoniais, atendendo aos danos sofridos pela Ofendida e à modesta situação económica do Arg..

Tanto basta para fundamentar a determinação da indemnização, ainda que se possa discordar da mesma.

Improcede, pois, também nesta parte, o recurso.


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IV - Entende o Recorrente que o tribunal recorrido não devia ter dado como provados os factos 19 a 23, “... por não respeitarem (terem deixado de respeitar) ao crime de violência doméstica ...”, que o facto provado deve ser expurgado “... por se tratar de uma pura conclusão ...”,

Quanto ao facto provado 4, sendo certo que é uma imputação genérica, porque “... tem carácter geral, independentemente de qualquer aspecto específico, de particularidades ou detalhes. ...”[10].

Integrarão, pois, este conceito, para efeitos penais, as imputações feitas sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o crime pelo qual é acusado ou condenado, nomeadamente, sem indicação das circunstâncias de tempo e lugar, nem da motivação, nem do grau de participação, nem doutras relevantes.

Mas, quando estão em causa casos de violência doméstica, abuso sexual ou outro tipo de crimes em que existe uma reiteração de condutas, ao longo de um período relativamente longo, numa dinâmica intrafamiliar, em que os actos isolados se tornam mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, quanto maior o seu número, e o distanciamento temporal entre a ocorrência dos mesmos e a acusação e/ou o julgamento, admite-se uma menor pormenorização dos factos[11].

Ora, este facto, sendo uma genérica, destina-se a fazer o enquadramento geral do contexto relacional em que o crime de violência doméstica foi perpetrado, descrevendo-se nos factos seguintes as condutas concretas integradoras deste crime.

Uma vez que esse contexto relacional é importante, não há que eliminar tal facto.

Quanto aos factos provados 19 a 23, por um lado, como afirma o MP na sua resposta, dizem respeito ao crime de condução sem carta.

Por outro, o Arg. não deu cumprimento ao disposto no art.º 412º/3/4, não fazendo as especificações impostas por esta norma, pelo que fica este tribunal impossibilitado de reapreciar a matéria de facto.

Sempre diremos, no entanto, que o tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar fixar a matéria de facto e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que é inatacável[12].

Quanto à violação do princípio in dubio pro reo[13], dir-se-á, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, p. 205)[14].

Ora, não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão tais factos, ou seja, não teve qualquer dúvida e também não vemos que devesse ter tido. O tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.

É, pois, improcedente, também nesta parte, o recurso.


*

Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[15] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[16].

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V – Entende o Arg. as medidas das penas são excessivas e devem ser reduzidas.

O tribunal recorrido fundamentou a escolha e a determinação que fez das medidas das penas, nos seguintes termos:

“... Apurada a responsabilidade criminal do arguido pelos crimes em que ficou provada a sua autoria, cumpre, aqui, determinar a pena aplicável.

Pela prática do crime de violência doméstica o arguido incorre numa pena de 2 a 5 anos de prisão, pelo crime de condução sem habilitação legal incorre numa pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

O crime de condução sem habilitação legal é punido em alternativa com pena de multa ou de prisão.

De acordo com o disposto no artigo 70.º do Código Penal: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Confere, assim, o legislador, prevalência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta seja suscetível de realizar a recuperação social do delinquente e particulares exigências de prevenção não imponham a aplicação de uma pena detentiva.

No caso em apreço, temos de ponderar que o arguido já foi condenado pela prática de seis crimes de condução sem habilitação, tendo também condenação por crime de condução sob a influência do álcool, ou seja, também ligado à circulação rodoviária, sendo certo que nestas duas últimas condenações já foi condenado em pena de prisão efetiva. Assim, parece-nos evidente que só uma pena de prisão satisfaz as exigências do presente caso.

Flui, pois, do exposto, que a pena de multa prevista se afigura insuficiente para a ressocialização da agente, perfilando-se, ainda, como inadequada à manutenção da confiança da comunidade na vigência da norma infringida, à reprovação e à prevenção do crime, razão pela qual se optará pela sanção detentiva

Para determinar a medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo artigo 71.º do Código Penal.

De acordo com esse preceito legal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial), devendo ter-se sempre em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido.

A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.

Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do arguido, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados.

Dentro destes limites e para fixar a medida concreta da pena intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e prevenção especial.

A prevenção geral prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido, enquanto que a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger.

Assim sendo e dentro destas duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir.

No caso sub judice o modo de execução do crime de violência doméstica é muito desvalioso, pois o arguido praticou o crime de violência doméstica durante um período de tempo significativo, foram-lhe aplicadas medidas de coação que o impediam de contactar a ofendida e, em violação das mesmas, o arguido voltou a viver com a ofendida e voltou a agredi-la fisicamente, a injuriá-la e a ameaçá-la. Também há que ter consideração que a violência foi aumentando, sendo que nas últimas situações o arguido chegou a exibir uma faca de mato, ameaçando a ofendida de morte e regou a ofendida com álcool para a incendiar.

A ilicitude do facto mostra-se elevada em relação ao crime de violência doméstica, pois a vítima já era doente – perturbação depressiva -, o que o arguido sabia, não tendo este ponderado que este tipo de comportamento podia ter grande impacto na vida da mesma, sem esquecer que esta se tentou matar, após mais uma discussão com o arguido. O prolongamento dos factos no tempo também é importante lembrar.

A ilicitude do facto é mediana em relação ao crime de condução sem habilitação legal, pois não existem factos não compreendidos no tipo de crime que justifique outra avaliação.

As consequências do crime também são muito graves, pois em duas situações a ofendida teve de abandonar a sua própria casa e ser acolhida em casas abrigo e, noutra situação, tentou suicidar-se.

Quanto à culpa, a conduta do arguido foi dolosa, na modalidade de dolo direto, o arguido tinha a perfeita consciência de que os factos que praticava constituíam condutas criminosas e atuou com intenção de as realizar.

No que concerne às exigências de prevenção geral, elas são especialmente elevadas no crime de violência doméstica, atenta a crescente incidência deste tipo de crime na sociedade portuguesa e às nefastas repercussões familiares e sociais que lhe estão associadas. Não podemos olvidar que no nosso país o número de mortes em casos de violência doméstica é dramático.

Também são elevadas as exigências de prevenção geral no crime de condução sem habilitação legal, pois é um crime muito praticado e que certamente influência os números da sinistralidade estradal, impondo-se repor a confiança nas normas violadas.

No que à prevenção especial diz respeito, temos que o arguido já sofreu catorze condenações criminais, salientando-se as oito condenações por crimes ligados à circulação rodoviária (condução sem carta e em estado de embriaguez) e o crime de ofensa à integridade física qualificada. Não podemos olvidar que o arguido já cumpriu uma pena de 5 anos e 9 meses de prisão e, indiferente a esta sanção, voltou a praticar crimes, tendo posteriormente sido condenado em penas de prisão efetiva.

Nos presentes autos, foram aplicadas ao arguido medidas de coação que o impediam de contactar a vítima e o arguido deliberadamente não as cumpriu, voltando a viver com a vítima e voltando a maltratá-la, não sendo alheio a este comportamento o facto de ingerir bebidas alcoólicas em excesso.

O arguido evidencia, com estes comportamentos, um afastamento profundo do dever ser e das regras sociais, o que não é alheio o facto de continuar a ingerir bebidas alcoólicas.

A seu favor temos a sua integração laboral e o apoio familiar de que beneficia por parte da progenitora.

Por todo o exposto, afigura-se-nos como adequado aplicar ao arguido uma pena de 3 anos e 6 meses de prisão pelo crime de violência doméstica e 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de condução sem habilitação legal.

De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, que se refere às regras de punição de concurso, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente”.

A pena aplicável tem como limite máximo a pena das somas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se em pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (n.º 2 do artigo 77º do Código Penal).

A moldura pena oscila agora entre o mínimo de 3 anos e 6 meses e o máximo de 5 anos de prisão.

Em relação aos factos, já o dissemos, são de elevada gravidade no crime de violência doméstica e mediano no crime de condução sem habilitação legal. Os consumos etílicos do arguido associados aos seus antecedentes criminais evidenciam uma personalidade desconforme com o direito, com desrespeito pelas pessoas que lhe são mais próximas.

Ponderando todos estes factos, este tribunal coletivo considera adequado aplicar ao arguido uma pena de 4 anos de prisão. ...”.

A propósito da escolha e medida da pena da condução sem carta, entende o Arg. que não podiam ser valorados como antecedentes os crimes de condução sem carta praticados em 16/12/2022 e 28/12/2022, porque praticados depois dos que estão em apreciação nestes autos.

Tem razão quando entende que não podem ser valorados como antecedentes, mas a verdade é que podem ser valorados como conduta posterior ao facto, nos termos do art.º 71º/1/2-b) do CP.

A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada[17],[18], ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares[19].

Verificamos que o tribunal recorrido, fixando as penas parcelares pelos crimes de condução sem carta e de violência doméstica em medidas equivalentes, respectivamente, a ½ e ¾ dos intervalos entres os limites mínimos e máximos aplicáveis, e fixando a pena única em medida equivalente a 1/3 desse intervalo, aplicou correctamente os princípios gerais de determinação das penas, não ultrapassou os limites das molduras das culpas, e teve em conta os fins das penas no quadro da prevenção. Por outro lado, em face da matéria de facto apurada, entendemos que não estamos perante qualquer desproporção da quantificação efectuada das penas, nem face a violação de regras da experiência comum, pelo que não se justifica intervenção correctiva deste Tribunal.


*

VI – O Arg. entende que se verifica a “ineptidão da petição inicial” e, de qualquer forma, que a indemnização arbitrada é excessiva.

O tribunal recorrido apreciou o pedido cível, para além do mais, nos seguintes termos:

“... Nos termos do artigo 129.º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”.

Há, assim, que atender ao disposto no artigo 483º, n.º 1 do Código Civil, que regula os casos de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. Este normativo determina que: “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

No caso em análise, verificam-se todos os pressupostos do citado artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, atendendo aos factos que ficaram provados. Na verdade, o arguido, agindo dolosamente, violou o disposto no artigo 152.º do Código Penal, disposição legal destinada a proteger a saúde – física, psíquica e mental – dos ofendidos, causando danos de natureza não patrimonial à vítima.

Por seu turno, determina o n.º 1 do artigo 496.º, do mesmo diploma legal, que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

No caso em análise a ofensa à integridade física, a honra e consideração e a liberdade de determinação da ofendida apresentam a dignidade necessária para que os danos não patrimoniais dela decorrentes sejam tutelados pela ordem jurídica, já que estamos perante direitos consagrados e garantidos pela Constituição da República Portuguesa.

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta os critérios estabelecidos no artigo 494.º do Código Civil, ex vi do n.º 3 do artigo 496.º do mesmo diploma.

A indemnização fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores: “o grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

No caso em análise ficou provado que, em consequência da conduta do arguido, a ofendida era injuriada, ameaçada e agredida fisicamente, tendo mesmo, por duas vezes, sido acolhida em casa abrigo. Com os comportamentos descritos perpetrados pelo arguido, a demandante vivia amedrontada, triste, angustiada e sofreu dores, perdeu a vontade de viver e tentou suicidar-se.

Assim, estando devidamente abordado as circunstâncias do caso, a gravidade dos factos e sem esquecer a situação económica do arguido, que é modesta, consideramos adequada uma indemnização compensatória no montante de € 5.000,00. ...”.

Por um lado, a causa de pedir é integrada pelo crime de violência doméstica praticado pelo Arg. e os danos não patrimoniais que a Ofendida sofreu como consequência do mesmo, pelo que não há qualquer “ineptidão” do pedido cível.

Por outro, o tribunal recorrido fixou os danos não patrimoniais (únicos peticionados) sofridos pela Ofendida com recurso a critérios de equidade, o que podia fazer, porque previsto legalmente (art.ºs 4º/1-a) e 496º/4 do CC[20]).

Embora os tribunais de recurso possam alterar o valor do dano fixado com recurso a critérios de equidade, só o devem fazer quando o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”[21].

No presente caso, entendemos que, tendo em conta a motivação da acção do Arg.; a extensão e consequências dos danos; a modesta condição económica do Arg. e a dimensão punitiva da indemnização por danos não patrimoniais[22], a indemnização foi fixada com ponderação, equilíbrio e justeza, pelo não pode deixar de improceder, também nesta parte, o recurso.


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.


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Notifique.

D.N..


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Código de Processo Penal.
[4] Supremo Tribunal de Justiça.
[5]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[6] Trata-se, obviamente, de um lapso de escrita, porque a norma que comina com nulidade a acusação imperfeita é a do art.º 283º/3 do CPP.
[7] Ac. da RP de 02/06/2004, in www.dgsi.pt, proc. 0346961, relatado por Torres Vouga.
[8] Nesse sentido, veja-se o acórdão da RE de 10/10/2006, relatado por Gomes de Sousa, tirado no proc. 996/06, do qual citamos:
“... As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.
Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
Naturalmente que essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal. Veja-se o exemplo citado por Simas Santos, Leal Henriques, Borges de Pinho, de acusação do lesado em vez do arguido [In “Código de Processo Penal” – 2º Vol., Rei dos Livros, pág. 202.] ou de familiar deste em vez do arguido.
Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º.
4 - Estas maiores cautelas - e necessidade de uma interpretação restritiva – na ingerência na acusação mais se justificam se recordarmos que estamos face a casos em que o processo foi remetido a julgamento sem instrução. É que, nestes casos e face à dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório, exigir-se-ia que fossem diversos os juízes: o que aprecia a acusação e o juiz de julgamento.
Não sendo isso possível ou exequível, melhor se entende a tendencial taxatividade e necessidade de interpretação restritiva das hipóteses de rejeição por manifesta improcedência, única forma de evitar que o juiz que irá proceder ao julgamento se pronuncie sobre a substância da acusação, com a consequente desconformidade ao texto constitucional. ...”
[9] Neste sentido, cf.,  por todos, acórdão da RE de 19/12/2019, relatado por Renato Barroso, no proc. 219/18.8GCSLV.E1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “... Entendeu a decisão recorrida que tal condenação não poderia ter lugar por não constar do libelo acusatório e, consequentemente, dos dados como provados, a consciência da ilicitude por parte do arguido, ou seja, que este soubesse que a sua conduta fosse proibida e punida por lei, apoiando-se, para tanto, na doutrina emanada do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1/2015.
Com o devido respeito por opinião contrária, não se pode concordar com o assim decidido, porquanto o conhecimento da ilicitude, ao contrário do que parece resultar da decisão recorrida, não é elemento integrante do elemento subjectivo do tipo (Artº 14 do C. Penal), relevando apenas em termos de culpa, nos termos do Artº 17 do mesmo Código, onde se diz que:
"1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada".
Daqui se extrai, que nos casos em que possa relevar o desconhecimento da ilicitude, a sua consequência é a exclusão da culpa e não, a ausência de verificação de um dos elementos do tipo subjectivo do ilícito em causa.
Ora, para tais situações, a doutrina assumida pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº1/2015 é, inaproveitável, já que o mesmo não se reporta, em regra, a situações em que falta a consciência da ilicitude, mas antes, a casos em que na acusação não foram descritos os elementos subjectivos do tipo.
Plasmou-se em tal aresto, que "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP », aí se explicitando que "O conhecimento da proibição legal, que não é exatamente equivalente a "consciência da ilicitude" será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito.
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à proteção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social.
Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo (...).
Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg".
Ora, a situação dos autos é, claramente, um caso em que o próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência reconhece que o conhecimento da ilicitude promana da realização do próprio facto, dada a relevância axiológica do acto ser significativa e estar enraizada nas práticas sociais, sendo desnecessária a prova do conhecimento da proibição para se saber que o acto é ilícito.
Não existindo qualquer causa extraordinária que exclua esse conhecimento, é óbvio que qualquer pessoa sabe, como bem refere o MP no seu recurso, que "ameaçar outrem, isto é, anunciar a terceiro a prática no futuro de factos que consubstanciam crime, in casu, para o constranger à prática de um ato, como aqui sucede, é facilmente percepcionável pelo comum dos cidadãos - porque inerente ao quadro axiológico basilar da sã convivência social - como um ato que "não se deve praticar", ou seja, que tal comportamento é ilícito, não sendo, por isso, necessários especiais conhecimentos legais ou outros para alcançar o desvalor de tal ação: não é um comportamento axiologicamente neutro"
A consciência da ilicitude só será relevante como objecto autónomo de prova em julgamento quando se tratar de um caso em que a proibição seja axiologicamente neutra ou pouco evidente e o seu conhecimento seja essencial para que se possa dizer que o agente sabia que praticava um crime e que, assim, actuava com culpa.
É inúmera a jurisprudência nesse sentido (Cfr., entre outros Acs. da Relação do Porto de 24/06/17, 12/07/17 e 13/06/18, proferidos nos processos nsº 8473/16.3T9PRT.P1, 833/15.3SMPRT.P1 e 333/16.4T9VFR.P1) e Acórdãos desta Relação, de 06/10/15, 26/06/18, 05/02/19 e 12/03/19, procs. nsº 12/12.1GASSB.E1, 80001/15.8TDLSB.E1, 35/15.9PESTB.E1 e 251/15.3GESTB.E1), sendo que no penúltimo se pode ler, com total acerto, o seguinte:
"...conforme temos entendido, o conhecimento do caráter proibido da conduta não integra o dolo do tipo de ilícito, que corresponde no nosso Código penal à representação ou conhecimento do facto que preenche um tipo de crime e age com vontade de realizá-lo por qualquer das formas previstas nos três números do seu art. 14º, como vimos, sem que se inclua aí qualquer referência à consciência ou conhecimento do caráter proibido da conduta, apesar de o legislador ter optado por definir positivamente o dolo naquele mesmo art. 14º.
A consciência da ilicitude respeita antes à culpa, conforme decorre do regime do erro respetivo acolhido no art. 17º do C.Penal e do contraponto com o regime estabelecido no art. 16º do mesmo C.Penal.
Ou seja, embora possa entender-se que o conhecimento das proibições a que se reporta o art. 16º no 1, 2ª parte, tem que ser articulado e provado juntamente com os elementos objetivos do tipo e o dolo reportado a esses mesmos elementos, por considerar-se que o conhecimento das proibições concretas não pode pressupor-se nesses casos, tal não sucede no chamado direito penal clássico em que se insere o caso presente
A consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegada e provada em cada caso nos chamados "crimes em si" do direito penal clássico - de que são exemplos paradigmáticos o tráfico de estupefacientes ou a detenção de arma proibida -, em que é pressuposta a consciência da ilicitude, por ser patente para a generalidade dos cidadãos que, relativamente a estes crimes, o comportamento típico e ilícito nega os valores socialmente instituído, sendo social, ética e penalmente censurável, sem prejuízo de poder verificar-se excecionalmente erro relevante por falta de consciência da ilicitude que opera, então, como causa de exclusão da culpa ou de atenuação da pena nos termos do art. 17º C. Penal.
Assim, nos crimes do chamado direito penal de justiça apenas há que articular e provar a falta de consciência da ilicitude quando, por ser alegada ou resultar da discussão da causa, a hipótese de erro se coloque, podendo verificar-se então exclusão da culpa por falta de consciência da ilicitude ou persistência da punição prevista a título de dolo quando o erro for censurável ou indesculpável, nos termos do art. 17º do C. Penal, podendo a pena aplicável ser especialmente atenuada nestes casos.
Daqui decorre que não obstante a praxis judiciária de alegar e dar como provado que o arguido «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», ou formulação equivalente, tal facto psicológico não tem que ser casuisticamente questionado, objeto de prova e julgado provado em cada um dos crimes do chamado direito penal clássico, como é o caso presente, conforme referido."
In casu, é certo que dos autos não consta a expressão tabelar, normalmente usada - sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, reportada à consciência da ilicitude - só que o tipo de ilícito em causa, o de coacção, tem um relevo axiológico suficientemente caracterizado e comunitariamente enraizado ou difundido, de modo que mesmo que não alegada a consciência da ilicitude essa falta não é relevante e pode ocorrer condenação, como decorre do disposto no Artº 17 nº2 do C. Penal, por a ausência de consciência do ilícito traduzir uma falta censurável fundamentadora de uma culpa a requerer punição.
Nesta medida, é forçoso concluir que os elementos dados por assentes na decisão recorrida, preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de coação, p.p., pelo Artº 154 nº1 do C. Penal, pois ali deu-se por provado que "O arguido, de forma consciente, livre, e voluntária, representou e quis adotar o comportamento acima descrito bem sabendo que as expressões que dirigiu à ofendida, e pela forma como o fez, eram aptas, como foram, a fazê-la temer pela integridade dos seus outros veículos automóveis, conduta que o arguido adotou com o propósito concretizado de constranger a ofendida a assinar o documento necessário à transferência de propriedade do veículo acima identificado e que atuava contra a vontade da ofendida" ...”.
[10] In “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea”, Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, 2001.
[11] Neste sentido, veja-se a seguinte jurisprudência:
- acórdão do STJ de 20/02/2019, relatado por Júlio Pereira, no proc. 25/17.7GEEVR.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos (sublinhado nosso): “I - Pretende o recorrente que sejam dado por não escritos os factos dados como provados, com consequente absolvição pelo crime de violência doméstica, alegando que o respectivo conteúdo consubstancia imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa do arguido, porém, se é certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso, a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida sendo que, no caso dos autos, quem mais esclarecimentos podia prestar, a vítima, foi silenciada com 17 facadas desferidas pelo arguido.
II - Perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.
III - Se é certo que no ponto 3 da matéria de facto se refere que o arguido "começou a exercer violência tisica e a ofender verbalmente” a ofendida, expressão de índole conclusiva, certo é também que a tal conclusão é dado substrato factual nos pontos seguintes da matéria de facto, indicando-se concretamente os modos de atuação do arguido em relação à ofendida, as palavras ofensivas que lhe dirigia, as agressões que nela praticava, enfim, as humilhações a que a sujeitava, impedindo-a de contactar com as pessoas das suas relações, de decidir a roupa que iria vestir ou até de descansar durante a noite na residência comum do casal, não por proibição do arguido mas por receio da ofendida de ofensas à vida e integridade física, sua e dos filhos, traduzindo-se toda esta factualidade num continuado atentado contra a integridade física e moral da ofendida, contra a sua liberdade e autonomia, enfim, contra a sua dignidade como pessoa, através de agressões, palavras ou proibições bem concretas e especificadas, não havendo assim qualquer dúvida de que os factos apurados em sede de julgamento preenchem tanto os elementos objectivos como subjectivos do crime de violência doméstica.
IV - Os factos constantes da acusação que vieram a ser dados como provados, resultado este que, lembre-se, competia à acusação, contêm a materialidade suficiente para permitirem o exercício do contraditório, que aliás não seria diferente se outra fosse a formulação da peça acusatória dado que o arguido, conforme documentam os autos, se limitou a negar os maus tratos que lhe eram imputados. ...”;
- acórdão do STJ de 27/11/2019, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 86/18.1GBTCS.C1.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos (sublinhado nosso): “I.- Tendo ao arguido sido imputados, no requerimento formulado para julgamento, factos consubstanciadores e incriminativos dos ilícitos-típicos de lenocínio e violência doméstica, executados no âmbito de comunhão de união de facto, estabelecida entre vítima e arguido, e em que as acções distintivas e especificadoras de cada um dos ilícitos não são passíveis de ser fragmentadas e delimitadas, pela natural e corrente sequenciação e efectivação dentro de um quadro espácio-temporal de vivência comum, torna-se impossível ao tribunal, na descrição da factualidade adquirida em julgamento, proceder a um joeiramento de cada um dos singulares e individualizados factos que devam constituir o substrato objectivo de subsunção jurídico-penal;
II. – Cumpre o cominado no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal a descrição dos factos provados operada mediante a narração de acções compósitas e interpenetradas de elementos (fácticos) identificadores de cada um dos ilícitos, ainda que sem uma dependência concreta e confinada de individualização/especificação típica;”;
- acórdão do STJ de 10/12/2020, relatado por Margarida Blasco, no proc. 1416/17.9GAMAI.P1-A.S1, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos (sublinhado nosso): “... IV - Tem este STJ reconhecido que as imputações genéricas são imprestáveis. Ou seja, quando as formulações são de tal modo vagas, imprecisas, genéricas, com indefinição a nível do tempo, espaço, participação do agente, ao ponto de não permitir um efetivo exercício do contraditório, impossibilitando a cabal defesa do arguido, devem considerar-se não escritas (jurisprudência esta que tem sido emanada, essencialmente, a propósito do crime de tráfico de estupefacientes).
No entanto, o grau de precisão na narração factual não se pode dissociar da concreta criminalidade que está em causa, dos seus contornos, do tempo que perdurou, do peso dos actos isolados ou do comportamento global.
Aliás, esse equilíbrio que é necessário lograr, harmonizando o interesse do Estado na punição do crime e do criminoso, o interesse da vítima em que seja feita justiça, e o interesse do arguido na sua defesa, princípios que emanam do art. 283.º, n.º 3, al. b), ao mencionar que a narração do “lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” será feita “se possível”. O que demonstra que o legislador admite, nestes aspectos, um maior grau de generalização, se a investigação não permitir uma melhor pormenorização fáctica.
Assim, nos crimes de violência doméstica, em que existe uma reiteração de condutas, ao longo de um período de tempo relativamente longo, numa dinâmica intrafamiliar, em que os actos isolados se tornam mais difíceis de concretizar no tempo e espaço, quanto maior o seu número, e o distanciamento temporal entre a ocorrência dos mesmos e as declarações da vítima. ...”.

[12] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.° 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).

É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.

[13]A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).

Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.

[14] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.

O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.

A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).

Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.

Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.

E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.

Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.

Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».

A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.

Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.

Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).

Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.

Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.

O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.
[15] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.
[16] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[17] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª … .”.
No mesmo sentido se pronunciou, antes, o acórdão do STJ de 29/01/2004, relatado por Pereira Madeira, no processo 03P1874, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Estas considerações levam a que o Supremo Tribunal entenda não interferir na medida concreta encontrada, justamente porque não encontra qualquer assomo de ilegalidade no procedimento seguido para apuramento das penas concretas aplicadas - parcelares e única - sendo certo que, como se sabe, os recursos são meio de corrigir ilegalidades mas não de refinar decisões judiciais.
Neste sentido se vem aqui reiteradamente entendendo (Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.) …”.

No mesmo sentido, cf. Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: “A doutrina (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255) mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. A questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”.
[18] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt, cujo sumário citamos: “O recurso dirigido à medida da pena visa o controlo da (des)proporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, e não a concretização do quantum exato da pena aplicada.”.
[19] Relevantes nos termos do disposto no art.º 8º/3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.
[20] Código Civil.
[21] Neste sentido, veja-se a seguinte jurisprudência:

- Acórdão do STJ de 09/06/2010, relatado por Fernando Frois no proc. 562/08.4GBMTS.P1.S1, do qual citamos: “…Estando em causa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais com apelo a um julgamento segundo a equidade, em que os critérios que «os tribunais devem seguir não são fixos» – Antunes Varela/Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, 1.º vol., anotação ao art. 494.º - «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”» – só se justificando uma intervenção correctiva se a indemnização se mostrar exagerada por desconforme a esses elementos.

Neste sentido podem ver-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2000, processo n.º 2747/00-5ª; de 29-11-2001, processo n.º 3434/01-5ª; de 16-05-2002, processo n.º 585/02-5ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 08-05-2003, processo n.º 4520/02-5ª; de 17-06-2004, processo n.º 2364/04-5ª; de 09-12-2004, processo n.º 4118/04-5ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 13-07-2006, processo n.º 2172/06-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3053/06-5ª; de 27-11-2007, processo n.º 3310/07 -5ª; de 06-12-2007, processo n.º 3160/07-5ª; de13-12-2007, processo n.º 2307/07-5ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 03-07-2008, processo n.º 1226/08-5ª; de 11-09-2008, processo n.º 587/08-5ª; de 11-02-2009, processo n.º 313/09-3ª; de 25-02-2009, processo n.º 390/09-3ª; de 12-03-2009, processo n.º 611/09-3ª; de 15-04-2009, processo n.º 3704/08-3ª.

No acórdão de 11-07-2006, revista n.º 1749/06-6ª, consignou-se que salvo caso de manifesto arbítrio na fixação da indemnização, o STJ não pode sobrepor-se ao Tribunal da Relação na apreciação do quantum indemnizatório por esta julgado equitativo.
O juízo equitativo é critério primordial e sempre corrector de outros critérios. …”;

- Acórdão do STJ de 28/10/2010, relatado por Lopes do Rego no proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1, do qual citamos: “…Temos entendido que – quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, - ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub juditio».

Como se afirma, por ex., no ac. de 5/11/09, proferido no p. 381-2002.S1:
Finalmente – e no nosso entendimento – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá , em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios que generalizadamente vêm sendo adoptados, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e , em última análise, o princípio da igualdade. …”;
- Acórdão do STJ de 07/12/2011, relatado por Santos Carvalho no proc. 461/06.4GBVLG.P1.S1, do qual citamos: “…Além de que não só «escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal”» como, em caso de julgamento segundo a equidade, «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses [que não é a dos autos] em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”» (STJ 16-10-2000, recurso n.º 2747/00-5, 17-06-2004, recurso n.º 2364/04-5 e STJ 27-11-2007, recurso n.º 3310/07-5). …”;

- Acórdão da RC de 01/02/2012, relatado por Maria Pilar de Oliveira, no proc. 6/06.6PTLRA.C1, do qual citamos: “…Como o dano não patrimonial consiste num prejuízo que atinge bens imateriais, insusceptível de avaliação pecuniária, é irreparável mas susceptível de ser compensado por um equivalente monetário, residindo a dificuldade em encontrá-lo, por apelo, sempre imperfeito, ao que o dinheiro pode propiciar e que constitua um lenitivo no sentido de encontrar um equilíbrio entre a dor psicológica e física e o que o dinheiro em substituição pode propiciar. No encontro desse ponto de equilíbrio reside o exercício da equidade, critério para que a lei aponta.
E nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando que estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida (cfr. entre outros o Acórdão de 7.12.2011 proferido no processo 461/06.4GBVLG.P1.S1 publicado em www.dgsi.pt), como igualmente acentua que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica (cfr. entre outros o Acórdão proferido no processo 526/08.4TMS.P1.S1 de 8.6.2010). …”.
[22] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos:
- do STJ de 14/11/2006, relatado por Faria Antunes, no proc. 06A2899, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 15/04/2009, relatado por Raul Borges, no proc. 08P3704, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 13/01/2010, relatado por Santos Carvalho, no proc. 476/09.0PBBGC.P1.S1, in www.dgsi.pt;