Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2806/11.6TBVIS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INSTÂNCIA CENTRAL - SEC. COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ART.º 442º E AL. F) DO N.º 1 DO ART.º 755.º DO CC E LEI 24/96, DE 31 DE JULHO
Jurisprudência Nacional: AUJ 4/2014, PUBLICADO NO DR N.º 95, I-SÉRIE, DE 19 DE MAIO DE 2014
Sumário: I. Nos termos da doutrina fixada no AUJ 4/2014, publicado no DR n.º 95, I-Série, de 19 de Maio de 2014, o promitente-comprador em contrato promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional, sinalizada, que tenha beneficiado da tradição da coisa prometida vender, tem direito, em caso de recusa de cumprimento por banda do AI, à indemnização calculada nos termos gerais prescritos no n.º 2 do art.º 442.º.

II. Tal crédito é garantido pelo direito de retenção previsto na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC desde que o promitente-comprador revista a qualidade de consumidor.

III. A qualidade de consumidor é, deste modo, elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao credor que dela se pretenda prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que a mesma se consubstancia.

IV. O conceito a adoptar para efeitos de delimitação da previsão normativa outro não poderá ser senão o consagrado na Lei 24/96, de 31 de Julho, “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, critério interpretativo imposto pelo n.º 1 do art.º 9.º do CC.

V. Consumidor será assim, para os mencionados efeitos, “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Decisão Texto Integral:

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Na presente apelação, considerando que a questão essencial suscitada nos autos tinha sido objecto de apreciação e decisão no AUJ n.º 4/2014, no DR Série I de 19 de Maio de 2014, foi pela ora relatora proferida decisão sumária.

Discordando da decisão, incluindo dos fundamentos que determinaram a prolação da decisão singular, vieram os reclamantes A... e mulher, B... , reclamar para a conferência, reclamação em cuja sede alegaram que a qualidade de consumidor é facto cuja alegação e prova incumbia à recorrente; a apelante apenas em sede de recurso suscitou a questão, tratando-se assim de questão nova; a decisão reclamanda faz uma interpretação absolutamente restritiva do conceito de consumidor, que não encontra eco, nem no invocado AUJ, nem na jurisprudência, para além de não ter acolhimento na lei; não se encontra excluída a aquisição de fracções para outros fins que não a habitação; a recorrente não logrou provar que os recorridos, por si, exerciam a actividade de comerciantes/industriais no imóvel prometido, devendo perfilhar-se a interpretação de que só deve ser excluído do conceito de consumidor aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.

Pois bem, discordando os recorridos da prolação da decisão singular, reclamaram para a conferência no uso de faculdade que a lei lhes confere, termos em que, sendo aquela decisão substituída pelo acórdão que ora recai sobre a reclamação apresentada, em nada resulta prejudicada a sua posição no processo.

Deste modo, e tendo presente que, ao contrário do alegado pelos ora reclamantes, a recorrente efectivamente suscitou na resposta à reclamação a ausência da qualidade de consumidor dos recorridos, o que decorria dos factos pelos próprios alegados,

Acordam em conferência na 1.ª Secção Cível

I- Relatório

No processo de insolvência n.º 2806/11.6TBVIS, por sentença proferida em 21 de Dezembro de 2011, transitada em julgado a 2 de Fevereiro de 2012, foi declarada a insolvência de C... E D... , com última residência conhecida na (...) , Viseu.

Fixado em 30 dias o prazo de reclamação de créditos, uma vez findo, fez o Sr. AI juntar aos autos a relação a que alude o art.º 129.º do CIRE, da qual constavam como créditos reconhecidos, para o que importa aos termos do presente recurso, os seguintes:

- crédito no valor de €359 982,90, respeitando €331 000,00 a dívida de capital (dobro do sinal entregue) e juros, reclamado por A... , reconhecido como comum;

- crédito no valor de €430 000,00 (dobro das quantias entregues a título de sinal e €4000,00 de despesas), reclamado por E... , reconhecido como comum;

- crédito no valor de €153 000,00 (dobro da quantia entregue a título de sinal e €3 000,00 de despesas), reclamado por J... , reconhecido como comum;

- crédito no valor de €74 000,00 (dobro do sinal entregue e €4 000,00 de despesas), reclamado por L... , reconhecido como comum.

Explicitou o Sr. AI em relação a cada um dos elencados créditos, os quais haviam sido reclamados como garantidos por invocado direito de retenção, que os havia reconhecido apenas como créditos comuns, “por não ter sido possível comprovar inequivocamente a efectiva posse do bem imóvel por banda dos reclamantes”.

Notificados os identificados credores, impugnaram a relação apresentada, restringindo a impugnação à natureza do crédito que a cada um fora reconhecido, o que fizeram com os seguintes fundamentos:

1. Os reclamantes A... e B...

Defenderam a natureza garantida do crédito reconhecido, com base no invocado direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra A, destinada a comércio, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (...) , em Viseu, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 875/20071127-A (cf. folhas 24 e seguintes), porquanto:

- com data de 17 de Maio de 2007, os declarados insolventes celebraram com o reclamante marido contrato promessa de compra e venda tendo por objecto a referida fracção autónoma, pelo preço de €299 500,00, de que receberam no acto, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €66 500,00;

- tal sinal veio a ser reforçado com €99 000,00 mais, “quantia da qual os promitentes vendedores se confessaram devedores à sociedade H... , Lda.”, 3.ª outorgante e no acto representada pelo seu gerente, o promitente-comprador A... , “por ser esta a empreiteira da execução das obras do edifício em referência, cedendo esta ao segundo outorgante o crédito que detém sobre os primeiros” (cf. cláusula 6.ª do contrato promessa);

- a parte restante do preço deveria ser paga na data da celebração do contrato prometido;

- aquando da celebração do contrato promessa a fracção prometida vender foi entregue aos reclamantes, que desde então dela vêm cuidando como se sua fosse, procedendo a limpezas frequentes e a uma pintura, sendo que o requerente marido publicitava na fracção os empreendimentos das sociedades de que é sócio ( G... , Lda. e H... , Lda.), recebendo os seus clientes e os clientes das ditas sociedades no estabelecimento que nela instalou, aqui discutindo os termos das eventuais vendas e obras; celebrou contratos de mediação imobiliária com diversas imobiliárias da sociedade, com vista à venda e arrendamento da fracção; no âmbito de tais contratos, por diversas vezes mostrou a loja a possíveis interessados angariados pelas imobiliárias e outros, chegando inclusive a celebrar um contrato promessa de arrendamento tendo por objecto a mesma fracção (cf. art.ºs 16.º a 20.º da impugnação);

- os reclamantes registaram a aquisição provisória do imóvel a favor do Banco Totta, entidade com a qual haviam contratado o financiamento através de leasing financeiro para compra da fracção;

- os requeridos nunca se dispuseram a celebrar o contrato definitivo, apesar de terem sido interpelados para o efeito por diversas vezes, inclusivamente através de notificação judicial avulsa;

- ocorreu incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa, o que origina o direito dos impugnantes a exigirem o dobro da quantia entregue a título de sinal, assistindo-lhes direito de retenção para garantia do aludido crédito;

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2. O reclamante E...

Impugnou a natureza atribuída ao crédito que lhe foi reconhecido no montante de €430.000,00, considerando que o mesmo tem a natureza de garantido com base no direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra G, correspondente ao 2.º andar direito, e ainda sobre a fracção autónoma designada pela letra I, correspondente ao 3.º andar direito, ambas do edifício para habitação e comércio sito na Av. (...) , em Viseu (cf. folhas 112 e seguintes), porquanto:

- por contrato promessa celebrado em 19 de Setembro de 2005, os declarados insolventes prometeram vender ao reclamante a fracção autónoma designada pela letra G, pelo preço de €105 000,00, a pagar integralmente na data da assinatura do mesmo contrato;

- em 31 de Julho de 2008, os promitentes vendedores fizeram entrega da fracção prometida vender ao reclamante que, desde então, passou a praticar todos os actos necessários para a tornar habitável, concluindo as obras que se encontravam inacabadas, no que despendeu cerca de €2 000,00, findas as quais cedeu o respectivo gozo a seu filho,N... , que nela reside desde 1 de Setembro, arcando com as despesas de água, luz e gás;

- no que respeita à fracção autónoma designada sob a letra I, foi a mesma prometida vender ao reclamante por contrato celebrado em 22 de Agosto de 2006, pelo preço de €105 000,00, que no acto os devedores, promitentes vendedores, receberam do promitente-comprador;

- tal valor veio a ser posteriormente rectificado para €110,000, tendo o ora reclamante procedido à entrega de €8 000,00, devendo o remanescente -€2 000,00- ser pago no acto da escritura;

- à semelhança do que ocorrera com a fracção G, também a fracção I foi entregue ao reclamante, na qualidade de promitente-comprador, em 31 de Julho de 2008, que a partir de então sobre ela passou a actuar como se dono fosse, concluindo as obras necessárias a conferir-lhe condições de habitabilidade, no que despendeu cerca de €2 000,00, após o que cedeu o respectivo gozo a M..., que ali reside desde 1 de Setembro de 2008;

- tais actos de posse têm vindo a ser exercidos à frente de toda a gente, sem qualquer oposição de quem quer que fosse, tendo o impugnante dado às fracções em causa o uso que bem entendeu, tendo-as arrendado a terceiros que as habitam diariamente;

- os devedores nunca celebraram os contratos prometidos, sendo o reclamante credor do dobro das quantias entregues e ainda dos montantes despendidos na realização de obras, crédito garantido por direito de retenção.

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3. O reclamante J...

Impugnou a natureza atribuída ao crédito que lhe foi reconhecido, no montante de €153.000,00, considerando que o mesmo é garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1.º andar esquerdo do edifício para habitação e comércio sito na Av. (...) , em Viseu (cf. folhas 121 e seguintes), porquanto:

- por contrato promessa celebrado em 17 de Fevereiro de 2006, os devedores, na qualidade de promitentes vendedores, prometeram vender ao reclamante, pelo preço de €140 000,00, a fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1.º andar esquerdo, de tipologia T2, do identificado prédio, tendo recebido no acto a quantia de €25 000,00 a título de sinal e princípio de pagamento, sinal que foi posteriormente objecto de dois reforços, nos valores de €15 000,00 e €35 000,00, num total de €75 000,00;

- no dia 10 de Março de 2008 os promitentes-compradores entregaram ao reclamante as chaves da aludida fracção, que a partir de então passou a praticar os actos necessários para lhe conferir condições de habitabilidade, executando obras no valor de cerca de €3000,00, após o que passou a desenvolver na fracção a sua actividade profissional de assessor de empresas, ali recebendo clientes e amigos, nela desenvolvendo de forma estável a referida actividade, arcando com todas as despesas inerentes a tal ocupação (cf. factos 15.º a 18.º);

- tais actos de posse têm sido exercidos à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, fazendo o impugnante dado à fracção o uso que bem entende, “nela tendo habitado por longo período (…), tendo posteriormente optado por destinar a mesma fracção ao uso exclusivamente profissional para assessoria a empresas”;

- o aludido contrato promessa nunca foi cumprido pelos devedores, não obstante terem sido diversas vezes para tal interpelados, incumprimento do qual deriva o seu direito a receber o dobro das quantias entregues, crédito garantido por direito de retenção.
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4. Os reclamantes L... e O...

Impugnaram a natureza atribuída ao crédito no montante de €74.000,00 que lhes foi reconhecido, considerando que tal crédito tem a natureza de garantido com base no direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao 4.º andar direito do edifício para habitação e comércio sito na Av. (...) , em Viseu (cf. folhas 129 e seguintes), porquanto:

- por contrato promessa celebrado no dia 26 de Março de 2004, os devedores, na qualidade de promitentes vendedores, prometeram vender aos reclamantes pelo preço global de €87 500,00 a fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao 4.º andar esquerdo, de tipologia T1, do identificado prédio, tendo recebido no acto a quantia de €10 000,00 a título de sinal e princípio de pagamento, posteriormente objecto de dois reforços, nos valores de €10 000,00 e €15 000,00, este constituído pela quantia que os reclamantes haviam entregado, também a título de sinal, no âmbito de um outro contrato promessa, no qual detinham igualmente a qualidade de promitente compradores, à aí promitente vendedora sociedade R... , Lda., da qual o insolvente era sócio-gerente;

- em Janeiro de 2008, os insolventes “conferiram posse plena” (sic) da fracção aos reclamantes, autorizando-os expressamente a nela habitarem e nela praticarem todos os actos necessários ao uso a que a mesma se destina, fazendo entrega das respectivas chaves;

- os reclamantes realizaram obras na fracção, em ordem a conferir-lhe as necessárias condições de habitabilidade, no que despenderam cerca de €4 000,00, tendo celebrado, em 1 de Janeiro de 2010, contrato de comodato com P... , tendo a mesma por objecto, que nela passou a residir desde então;

- o contrato prometido nunca foi celebrado, não obstante os devedores para tal terem sido diversas vezes interpelados, incumprimento do qual deriva o direito dos reclamantes a receberem o dobro das quantias entregues, crédito garantido por direito de retenção.
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Respondeu doutamente às descritas impugnações (e a todas elas, não apenas às 3 primeiras, conforme por lapso se refere na sentença apelada) a credora “I... , S.A., nos termos da peça constante de fls. 137 a 164 dos autos, na qual:

- no que respeita aos credores A... e mulher, tendo impugnado, por desconhecida, parte da factualidade por aqueles invocada, suscitou fundamentadamente a questão de saber se deveria ser atribuída a natureza de sinal ao montante de €99 000,00, alegadamente proveniente de um crédito de uma sociedade terceira sobre os devedores, e por aquela cedido ao reclamante marido. Mais alegou, relevantemente, que, desconhecendo embora a actividade profissional do impugnante, a fazer fé no que pelo mesmo fora alegado, “utilizava a fracção para exploração da sua actividade empresarial, ligada ao sector imobiliário, donde forçoso se torna concluir que não pode ser considerado consumidor” para efeitos do disposto no art.º 2.º, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (cf. art.ºs 23.º e 24.º da resposta), concluindo no sentido de não poder beneficiar do direito de retenção;

- quanto à impugnação apresentada pelos credores L... e mulher, tendo igualmente impugnando, por desconhecida, parte da factualidade por eles alegada, suscitou, também aqui, a questão atinente à pretendida natureza de sinal da quantia de €15 000,00[1] entregue no âmbito de distinto contrato promessa, celebrado com uma entidade terceira. Mais sublinhou a estranheza causada pelo facto, pelos impugnantes alegado, de terem celebrado contrato de comodato com terceiro, tendo por objecto a referida fracção, da qual não eram os proprietários, defendendo não estar minimamente demonstrada a realização de quaisquer obra, sendo que o crédito proveniente de eventuais despesas a este título efectuadas não está garantido por direito de retenção;

- no que concerne à impugnação do credor reclamante E... , impugnou parte da factualidade alegada e, bem assim, os documentos juntos, tal como as despesas alegadamente realizadas, assinalando ainda, com estranheza, o facto de ter celebrado contratos de arrendamento com terceiros, cedendo o gozo e a fruição das fracções prometidas vender, bem sabendo que as mesmas lhe não pertenciam;

- finalmente, e no que se reporta à impugnação apresentada pelo credor J... , impugnou, por desconhecida, parte da factualidade invocada e, bem assim, os documentos juntos, assinalando não ter sido oferecida prova das invocadas entregas de dinheiro ou do dispêndio alegadamente efectuado com a realização de obras na fracção, sendo certo que o crédito daqui decorrente não beneficia de direito de retenção.

Mais alegou que, tendo em atenção a própria alegação do credor reclamante no sentido de exercer na fracção prometida vender a sua actividade profissional de assessor de empresas, não poderia ser considerado consumidor, o que constitui obstáculo a que o crédito que eventualmente lhe venha a ser reconhecido seja garantido por direito de retenção, sendo certo ainda, acrescentou, que o contrato não deveria considerar-se incumprido, verificando-se apenas mora dos promitentes vendedores.
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Foi designada data para tentativa de conciliação, na qual foi reconhecido o crédito da credora “Q... , Lda.”, conforme decorre da acta de fls. 194/195.

Foi entretanto proferida sentença em acção para verificação ulterior de créditos, por cujos termos foi reconhecido a F... um crédito no valor de €210.000,00 (duzentos e dez mil euros), proveniente do incumprimento de contrato promessa de compra e venda celebrado com os insolventes, tendo o contrato prometido por objecto a fracção C do prédio urbano sito na Rua (...) , freguesia de Viseu ( ...s), concelho de Viseu, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 875, com inscrição sob o artigo 2354, e a que o STJ, em douto aresto ali proferido, reconheceu encontrar-se garantido por direito de retenção incidente sobre a mesma fracção (cf. fls. 213 a 224 dos autos).

Foi elaborado despacho saneador, nele tendo sido reconhecidos os créditos como tal incluídos na lista apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência e não impugnados e, bem assim, o aprovado na tentativa de conciliação, prosseguindo os autos com fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas nos termos que constam de fls. 247 a 253.

Instruída a causa, teve por fim lugar a audiência de discussão e julgamento, em cujo termo foi proferida sentença que, após ter sido objecto de rectificação a requerimento da apelante I... , e para o que aqui releva, decretou como segue:

“Em face do exposto supra, decide-se homologar a lista de credores reconhecidos, elaborada pelo Sr. Administradora da Insolvência, e, em conjugação com o decidido, graduam-se os créditos reconhecidos e aqui sob juízo da forma que agora se descreve:

Para serem pagos pelos bens imóveis apreendidos:

(…)

C. Quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 3 (na Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 875-A, sito na Rua (...) , n.º 140)

1.º O crédito de A... , que beneficia do direito de retenção sobre o referido prédio;

2.º O crédito da “ I... ” que beneficia de hipoteca sobre o referido prédio;

3.º O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional;

4.º O crédito privilegiado do credor “Instituto da Segurança Social, IP”

5.º Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cf. artigo 176.º do CIRE)

6.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cf. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

(…)

F. Quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 6 (na Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 875-D, sito na Rua (...) , n.º 140)

1.º O crédito de J... , que beneficia do direito de retenção sobre o referido prédio;

2.º O crédito da “ I... ”, que beneficia de hipoteca sobre o referido prédio;

3.º O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional;

4.º O crédito privilegiado do credor “Instituto da Segurança Social, IP”

5.º Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cf. artigo 176.º do CIRE)

6.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cf. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

G. Quanto ao imóvel descrito sob as verbas n.º 8 e 10 (na Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 875-G e 875-I, sito na Rua (...) , n.º 140)

1.º O crédito de E... que beneficia do direito de retenção sobre os referidos prédios;

2.º O crédito da “ I... ” que beneficia de hipoteca sobre o referido prédio;

3.º O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional;

4.º O crédito privilegiado do credor “Instituto da Segurança Social, IP”

5.º Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cf. artigo 176.º do CIRE);

6.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cf. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

 

H. Quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 12 (na Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 875-L, sito na Rua (...) , n.º 140)

1.º O crédito de L... que beneficia do direito de retenção sobre o referido prédio;

2.º O crédito da “ I... ” que beneficia de hipoteca sobre o referido prédio;

3.º O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional;

4.º O crédito privilegiado do credor “Instituto da Segurança Social, IP”

5.º Os créditos comuns, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cf. artigo 176.º do CIRE)

6.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cf. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

(…)
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Saliente-se ainda que, ao contrário do anterior regime, em que a declaração de falência tinha como um dos efeitos a estabilização do passivo, traduzido no encerramento de todas as contas correntes e cessação da contagem de juros, o novo Código prescreve que os juros continuam a contar-se após a declaração de insolvência, por se entender que não existem razões para isentar o insolvente do pagamento de juros, quando a massa insolvente tenha meios para tal.

Tais juros constituem, grosso modo, créditos subordinados.
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As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem (artigo 172.º, n.ºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Custas pela massa insolvente - Artigo 304.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
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Inconformada com o decidido, nos transcritos segmentos, apelou a credora I... , SA e, tendo alegado doutamente, formulou as seguintes necessárias conclusões:

“1.ª A ora recorrente alegou, em sede de resposta às impugnações, que os credores não podem ser considerados consumidores, de acordo com o conceito legal de consumidor, não tendo por isso direito de retenção sobre as respectivas fracções objecto dos contratos promessa por aqueles celebrados.

2.ª Os impugnantes A... e mulher, B... , alegaram que o impugnante marido utilizava a fracção respectiva para exploração da sua actividade empresarial, ligada ao sector imobiliário.

3.ª O impugnante J... alegou que utilizava a fracção respectiva para exercer a sua actividade profissional, ligada ao sector da consultoria e assessoria a empresas.

4.ª O Tribunal a quo tinha necessariamente que conhecer da questão, na medida em que era determinante para a existência ou não do invocado direito de retenção.

5.ª O direito de retenção só é concedido ao beneficiário da promessa que seja consumidor.

6.ª Ao não se pronunciar sobre esta verdadeira questão de fundo e de extrema relevância, a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º 1 al. d) do CPC.

Sem prescindir,

7.ª A doutrina e a jurisprudência têm defendido uma interpretação restritiva da norma constante da alínea f) do n.º1 do art. 755.º do Código Civil, afastando do âmbito do direito de retenção os promitentes adquirentes que não sejam consumidores.

8.ª A ratio da lei é a tutela, na promessa sinalizada com tradição da coisa, da posição do promitente-comprador, quando ele seja um consumidor. É essa a carência de protecção, é essa a necessidade da tutela, do promitente-comprador/consumidor, que a norma visa conceder.

9.ª No conflito de interesses entre os beneficiários da promessa de compra e venda e as entidades bancárias financiadores da mesma e titulares de hipoteca sobre o imóvel prometido vendar afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares.

10.ª A protecção concedida ao beneficiário da promessa de transmissão ou de constituição de direito real, em detrimento de interesses de terceiros, designadamente, de instituições bancárias credoras do promitente faltoso, e do comércio jurídico em geral decorre, sem dúvida alguma, de uma ponderada e deliberada opção legislativa, dentro de uma política de defesa do consumidor.

11.ª Trata-se, pois, de uma escolha do legislador, à semelhança de outras – v.g. os créditos dos trabalhadores, garantidos por privilégio mobiliário geral e imobiliário especial – que evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente a compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa.

12.ª A interpretação restritiva da norma constante da alínea f) do n.º1 do art. 755.º do Código Civil foi recentemente consagrada através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 22 de Maio de 2013, Revista n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, publicado em Diário da República, 1ª Série, n.º 95, de 19.05.2014, no qual se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º n.º 1 alínea f) do Código Civil”.

13.ª Em face da factualidade dada como provada na sentença recorrida, não restam dúvidas que os promitentes-compradores não são, in casu, consumidores, no sentido de serem utilizadores finais com o significado comum do termo, nem utilizam as fracções para seu uso próprio, para a sua habitação própria e permanente.

14.ª A sentença recorrida faz uma interpretação errada da norma constante do art.º 755º n.º 1 al. f) do Código Civil, além de que contraria a jurisprudência recentemente uniformizada através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 22 de Maio de 2013, Revista n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, publicado em Diário da República, 1ª Série, n.º 95, de 19 de Maio de 2014, sem que apresente qualquer justificação para dissentir de tal orientação”.

Com os aludidos fundamentos requer que, na procedência do recurso, seja declarada a nulidade da sentença ou, quando assim se não entenda, sempre a mesma deverá ser revogada e, julgando-se improcedentes as impugnações deduzidas pelos credores A... e B... , E... , J... , L... e O... , não lhes seja reconhecido o direito de retenção sobre as fracções “A”, “G”, “I”, “D”, “L”, apreendidas para a Massa Insolvente.

Contra-alegaram os credores em causa, defendendo naturalmente a manutenção do julgado.
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A Mm.ª juíza pronunciou-se sobre a invocada nulidade e, tendo considerado que se trata de questão nova, nunca antes invocada pelas partes, para além de não ser unânime, disse, quer na doutrina, quer na jurisprudência, o entendimento que defende que o reconhecimento do direito de retenção depende da qualidade de consumidor final do promitente-comprador, julgou improcedente a arguição (cf. despacho de fls. 443 a 446).
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões submetidas à apreciação deste Tribunal são duas:

i. decidir se a sentença apelada padece do vício da omissão de pronúncia, causante de nulidade;

ii. decidir se ocorreu erro de julgamento, por errada interpretação do disposto no art.º 755.º, n.º 1, al. f) do CC, devendo ser negado o reconhecimento do direito de retenção aos créditos aqui em causa.
     *

i. da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

A recorrente imputa à decisão proferida o vício extremo da nulidade, por não se ter pronunciado sobre questão submetida ao seu conhecimento. Vejamos, pois, se ocorre tal vício.

A nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPC sanciona o incumprimento da imposição constante do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma, disposição legal nos termos da qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Refira-se, a propósito do assim preceituado, que com as questões de facto e de direito sobre as quais o Tribunal há-de necessariamente pronunciar-se, não se confundem os meros argumentos ou razões invocadas pelas partes para convencer da bondade da sua tese, não integrando a nulidade constante da al. d) do preceito a que nos vimos reportando a falta de discussão de parte do argumentário expendido.

No caso que nos ocupa, a apelante suscitou efectivamente na resposta à impugnação a falta de qualidade de consumidor, que tinha por necessária ao reconhecimento do invocado direito de retenção, dos reclamantes A... e J... . Certo é, também, que sobre tal matéria a Mm.ª juíza “a quo” não se pronunciou. Não obstante, ainda assim não cremos que esteja em causa o vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Vejamos:

A questão que se suscitava era saber se os créditos reconhecidos aos credores reclamantes se encontravam garantidos pelo invocado direito de retenção. E como quase sempre acontece a propósito de cada questão sobre a qual o Tribunal há-de emitir pronúncia, também aqui as partes invocaram várias razões ou argumentos, nomeadamente de natureza jurídica, para fazerem valer os respectivos pontos de vista. E foi neste âmbito que a apelante veio defender que aos credores impugnantes A... e J... não assistia a requerida garantia, já que não detinham a qualidade de consumidores, que entendia necessária, argumento ou razão jurídica que a Mm.ª juíza não apreciou, sem que, todavia, tenha deixado de decidir a questão que lhe havia sido colocada.

E tanto o que vem de se referir é exacto que, a entender-se como válido o argumento aduzido pela apelante, devendo a qualidade de consumidor ser tida como facto constitutivo do direito de retenção do promitente-comprador tradiciário, e a existência de tal requisito deverá ser aferida mesmo em relação aos credores relativamente aos quais não invocou a ausência deste pressuposto. A desconsideração pela Mm.ª juíza do assinalado pressuposto ou requisito poderá assim consubstanciar erro de julgamento, mas não tem a virtualidade de afectar a validade da sentença.

Acresce que, mesmo a verificar-se nulidade da sentença proferida, tal importaria apenas e só que este Tribunal se substituísse ao Tribunal “a quo”, conhecendo em todo o caso do objecto da apelação, conforme impõe o disposto no art.º 665.º, no seu n.º 1, preceito este do CPC.

Em face a todo o exposto, improcede este fundamento recursivo e com ele as conclusões 1.ª a 6.ª.

Sobra assim, como única questão a decidir, tal como a apelante correctamente enunciou, saber se poderão os credores impugnantes ser considerados consumidores para efeitos de verificação e reconhecimento do direito de retenção a que se refere o art. 755º n.º 1 al. f) do Código Civil nos contratos-promessa de compra e venda de fracção autónoma com eficácia meramente obrigacional sinalizados, nos quais tenha ocorrido a traditio da coisa prometida vender.
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II. Fundamentação

De facto

Não tendo a decisão proferida sobre a matéria de facto sido objecto de impugnação, é a seguinte a factualidade a atender, tal como foi fixada na sentença recorrida:

Da impugnação apresentada por A... e B...

1. Os Impugnantes reclamaram os seus créditos como garantidos, tendo por base o direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra A, destinada a comércio, correspondente ao rés-do-chão esquerdo do constituído em propriedade horizontal sito na Rua (...) , em Viseu, freguesia de ...s, inscrito na matriz sob o artigo 2354 desta freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº 875/20071127-A da mesma freguesia.

2. O Senhor Administrador da Insolvência, reconheceu o crédito dos Impugnantes como comum, alegando que “não é possível comprovar-se inequivocamente a efectiva posse do bem imóvel pelo reclamante”.

3. Aquando da “tomada de posse” da fracção por parte do Sr. Administrador da Insolvência, as únicas chaves do imóvel encontravam-se em posse dos Impugnantes.

4. Naquela da data encontram-se no local vários bens pertença dos Impugnantes.

5. A fracção referida encontra-se definitivamente registada a favor dos Insolventes, tendo sido apreendida pela Massa Insolvente.

6. O prédio encontrava-se onerado com uma hipoteca (Ap. 23 de 2005/02/14) e ainda uma penhora (Ap. 22 de 29/11/2005).

7. O Impugnante marido e os Insolventes celebraram, em 17 de Maio de 2007, o contrato promessa, através do qual, os Insolventes, dizendo-se donos a legítimos possuidores da referida fracção prometeram vender aos Impugnantes e estes prometeram comprar o imóvel referido em 1., cuja venda seria realizada livre de quaisquer ónus ou encargos (cf. Cláusula 14.ª) e pelo preço de €299.500,00 (duzentos e noventa e nove mil e quinhentos euros) (Cf. Cláusula 5.ª). Com a celebração do contrato, o Impugnante marido entregou aos Insolventes a quantia de €66.500,00 (sessenta e seis mil e quinhentos euros), verificando-se um reforço de sinal de €99.000,00 (noventa e nove mil euros), (cf. Cláusula 5.ª), sendo que o remanescente do preço (€135.000,00 cento e trinta e cinco mil euros) seria pago na data da celebração do contrato prometido (cf. Cláusula 7.ª).

8. Desde a data de celebração do contrato, os Insolventes entregaram a fracção aos Impugnantes para que estes a fruíssem como se fosse sua até à celebração do contrato prometido.

9. Desde então os Impugnantes vêm administrando a dita propriedade como se sua fosse, cuidando do seu asseio e limpeza; efectuaram uma pintura, tendo despendido € 144,00; colocaram cortinas amovíveis na montra; após uma tentativa de assalto, mudaram a fechadura; debelaram problemas de humidade; vêm tratando da manutenção da fracção para evitar o seu perecimento como qualquer proprietário faria.

10. O Impugnante marido publicitava na fracção os empreendimentos das sociedades de que é sócio ( G... , Lda. E H... , Lda.), recebia os seus clientes e os clientes das sociedades no estabelecimento que instalou na fracção, ali discutindo os termos das eventuais vendas e obras.

11. Celebrou pelo menos um contrato de mediação imobiliária com vista à venda e arrendamento da fracção, chegando a ter 2 interessados.

12. Por diversas vezes os Impugnantes interpelaram os Insolventes para cumprirem o que haviam prometido, por carta.

13. Em 21.04.2009 requereram a Notificação Judicial Avulsa dos Insolventes para que agendassem o contrato definitivo no prazo de cinco dias, consideram haver incumprimento definitivo caso tal não acontecesse, do que foram notificados em 08.05.2009.

14. Em 18.05.2009 os Insolventes requereram a Notificação Judicial Avulsa dos Impugnantes para lhes dar conhecimento que o contrato prometido se realizaria no dia 15.10.2009, não tendo os Insolventes comparecido ou dado qualquer justificação para o facto.

15. Os Insolventes já deveriam ter obtido, junto do Banco Popular, o documento de distrate da hipoteca, a fim de se criarem as condições para a realização da escritura, o que não fizeram.

16. O Impugnante marido é detentor das únicas chaves da dita fracção com exclusão de qualquer outra pessoa, guardando diversos utensílios, e mercadorias com vista à abertura de um negócio no dito local.

17. Os Impugnantes intentaram Acção de Processo Ordinário em 06.11.2009.

Da impugnação apresentada por E...

18. Os devedores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto por casa para habitação e comércio, constituído por cave, r/c, 1º, 2º, 3º e 4º andares, com as fracções autónomas A, B, C, D, F, G H, I, J, L, a confrontar do Norte com ..., do Sul e Poente com Manutenção Militar e do Nascente com a Rua (...) , da freguesia de Viseu ( ...), descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 875 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 2354.

19. Na qualidade de donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra G, correspondente ao 2º andar direito (tipologia T2), do Edifício para Habitação e Comércio, sito na Av. (...) , os devedores celebraram em 19 de Setembro de 2005, um contrato-promessa de compra e venda onde prometeram vender ao impugnante e este prometeu comprar a referida fracção autónoma, pelo valor global de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), a pagar integralmente na data de assinatura do contrato-promessa de compra e venda, acordando que a escritura definitiva de compra e venda seria celebrada logo que os promitentes vendedores tivessem obtido todos os documentos necessários à realização da mesma, tendo o impugnante pago o valor global acordado para o negócio - € 105.000,00 – na data de assinatura do contrato promessa de compra e venda.

20. Em 31 de Julho de 2008, os devedores autorizaram expressamente o impugnante a nela habitar e praticar todos os actos necessários ao uso a que a mesma se destina, entregando-lhe as respectivas chaves da fracção, da entrada principal do edifício e da garagem.

21. O impugnante começou desde aquela data a praticar todos os actos necessários para tornar a fracção habitável, terminando as obras que se impunham à sua habitabilidade, realizando obras e acabamentos no interior da fracção nomeadamente na casa de banho, cozinha e chão.

22. O impugnante celebrou contrato de fornecimento de água com os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento e contrato de fornecimento de gás natural.

23. Após a realização daquelas obras, o impugnante cedeu o gozo da fracção ao seu filho N... , que passou a habitá-la desde 1 Setembro de 2008, ali pernoitando, confeccionando e tomando as suas refeições, recebendo os seus amigos e guardando os seus haveres.

24. Até à presente data o contrato-promessa de compra e venda em causa não foi cumprido pelos devedores, sendo que, a partir de finais do ano de 2009 não mais conseguiu qualquer contacto com os mesmos, desconhecendo o seu paradeiro.

25. Na qualidade de donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra I, correspondente ao 3º andar direito (tipologia T2), do Edifício para Habitação e Comércio, sito na Av. (...) , os devedores celebraram em 22 de Agosto de 2006, um contrato de promessa de compra e venda onde prometeram vender ao impugnante e este prometeu comprar a referida fracção autónoma, pelo valor global de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), montante que foi liquidado naquela data e do qual os devedores deram integral quitação.

26. Na sequência do lapso constante da cláusula primeira do referido contrato promessa de compra e venda, os outorgantes celebraram um aditamento ao referido contrato em 18 de Junho de 2007, onde rectificaram o andar da fracção objecto do mesmo, bem como atribuíram como valor global do negócio o montante de € 110.000,00 (cento e dez mil euros) em substituição dos € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), já pagos, tendo o impugnante entregado aos devedores a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), da qual aqueles deram integral quitação. O remanescente do preço (€ 2.000,00) seria pago no acto da escritura definitiva de compra e venda.[2] Estipularam ainda as partes que a escritura definitiva de compra e venda seria celebrada previsivelmente até Janeiro de 2007 e logo que os promitentes vendedores tivessem obtido todos os documentos necessários à realização da mesma.

27. Em 31 de Julho de 2008, os devedores autorizaram expressamente o impugnante a nela habitar e praticar todos os actos necessários ao uso a que a mesma se destina, entregando-lhe as respectivas chaves da fracção, da entrada principal do edifício e da garagem.

28. O impugnante começou desde aquela data a praticar todos os actos necessários para tornar a fracção habitável, terminando as obras que se impunham à sua habitabilidade, realizando as obras e acabamentos no interior da fracção designadamente na casa de banho, cozinha e chão.

29. O impugnante celebrou contrato de fornecimento de água com os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento e celebrou contrato de fornecimento de gás natural.

30. Após a realização daquelas obras, o impugnante cedeu o gozo da fracção a pessoa não concretamente identificada e mais tarde a M... , que passou a habitá-la, ali pernoitando, confeccionando e tomando as suas refeições, recebendo os seus amigos e guardando os seus haveres, arcando todas as despesas com a água, a luz e o gás.

31. Até à presente data o contrato-promessa de compra e venda em causa não foi cumprido pelos devedores, sendo que, a partir de finais do ano de 2009 não mais conseguiu qualquer contacto com os mesmos, desconhecendo o seu paradeiro.

32. O impugnante e os demais possuidores das fracções do edifício em causa têm assegurado a manutenção do prédio no que concerne, por exemplo, à segurança e manutenção do mesmo, tendo nomeadamente assegurado a alteração das bombas de extracção de água das caixas colectoras das águas pluviais aquando das inundações que se verificaram no edifício, pagando os produtos e serviços de limpeza, colocando luzes nas partes comuns.

33. Todos estes actos têm sido exercidos à frente de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e de forma continua desde a data em que a mesma se iniciou, tendo o impugnante cedido as fracções a terceiros que ali habitam diariamente, tomando as suas refeições, recebendo pessoas, dormindo, tratando da sua higiene, preparando e secando a sua roupa, entrando e saindo diariamente do edifício.

Da impugnação apresentada por J...

34. Na qualidade de donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1.º andar esquerdo (tipologia T2), do Edifício para Habitação e Comércio, sito na Av. (...) , os devedores celebraram em 17 de Fevereiro de 2006, um contrato-promessa de compra e venda onde prometeram vender ao impugnante e este prometeu comprar a referida fracção autónoma pelo valor global de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), a pagar da seguinte forma: € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), na presente data, em numerário a título de sinal e princípio de pagamento; € 115.000,00 (cento e quinze mil euros), na data de outorga da escritura pública de compra e venda.

Em cumprimento do estipulado, o impugnante entregou em 17.02.2006 aos insolventes, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros). Mais convencionaram as partes de que poderiam acordar pagamentos intercalares até à data de realização da escritura de compra e venda, o que sucedeu em 22 de Fevereiro de 2007 data em que o impugnante entregou aos insolventes como reforço de sinal a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), em 10 de Março de 2008, quando entregou aos insolventes igualmente a título de reforço de sinal e princípio de pagamento, o montante de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros).

O remanescente do preço seria pago na data de realização da escritura definitiva de compra e venda, que ocorreria previsivelmente até 31 de Maio de 2008

35. Em 10 de Março de 2008, os devedores entregaram as respectivas chaves da fracção e da entrada principal do edifício, bem como todas as responsabilidades inerentes de água, electricidade e gás, autorizando-o a efectuar as obras necessárias, benfeitorias e alterações que entendesse (cf. doc. 3).

36. O impugnante desde aquela data começou a praticar todos os actos necessários para tornar a fracção utilizável, realizando as obras e acabamentos no interior da fracção, designadamente casa de banho, chão e pintura de todas as divisões da fracção.

37. O impugnante contratou também com os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento o fornecimento da água.

38. Após a realização daquelas obras, o impugnante residiu naquela fracção e, mais tarde, passou a desenvolver a sua actividade profissional de assessoria a empresas, ali recebendo os seus clientes e amigos, lá desenvolvendo a sua actividade de forma estável, e arcando com todas as despesas inerentes a tal ocupação.

39. Até à presente data, o contrato-promessa de compra e venda em causa não foi cumprido pelos devedores, sendo que, a partir de finais do ano de 2009 não mais conseguiu qualquer contacto com os mesmos, desconhecendo o seu paradeiro.

40. Aquando da apreensão das fracções foram alteradas as fechaduras de todas aquelas que estavam na posse dos insolventes e, pelo contrário, não foram mudado as fechaduras da fracção referida em 34., nem ter o Sr. Administrador da Insolvência acedido ao interior da mesma.

41. O impugnante tem assegurado a manutenção do prédio no que concerne, por exemplo, à segurança e manutenção do mesmo, tendo nomeadamente assegurado a alteração das bombas de extracção de água das caixas colectoras das águas pluviais aquando das inundações que se verificaram no edifício, pagando os produtos e serviços de limpeza, colocando luzes nas partes comuns.

42. Todos estes actos têm sido exercidos à frente de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e de forma contínua desde a data em que a mesma se iniciou, tendo o impugnante, vindo a usar plenamente a fracção para os fins que tem entendido, nele tendo habitado por longo período, ou seja, ali pernoitando, tomando as refeições e fazendo a sua higiene, recebendo pessoas, entrando e saindo diariamente para o edifício e para a fracção, tendo posteriormente, optado por destinar a mesma fracção ao uso exclusivamente profissional para assessoria a empresas.

Da impugnação apresentada por L... e O...

43. Na qualidade de donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao 4º andar direito (tipologia T1), do Edifício para Habitação e Comércio, sito na Av. (...) , os devedores celebraram em 26 de Março de 2004 um contrato-promessa de compra e venda onde prometeram vender aos impugnantes e estes prometeram comprar a referida fração autónoma, pelo preço global de € 87.500,00 (oitenta e sete mil e quinhentos euros), a pagar da seguinte forma: (CLÁUSULA 3ª DO CONTRATO-PROMESSA – DOC. 1) “a) A título de sinal e como princípio de pagamento o SEGUNDO CONTRATANTE paga aos PROMITENTES VENDEDORES nesta data a quantia de € 10.000,00 € (dez mil euros) os quais dão a devida quitação; b) Haverá lugar a reforço de sinal no valor de 10.000,00 € (dez mil euros) entregue nesta data através de um cheque neste mesmo valor datado para o dia 30 de Abril de 2004; c) Haverá ainda lugar a outro reforço de sinal no valor de 15.000,00 € (quinze mil euros) que será concretizado através de uma tomada de posição noutro empreendimento.”

Em cumprimento do ali estipulado, os impugnantes entregaram em 25.03.2004 aos insolventes, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros).

Mais convencionaram as partes de que, para reforço de sinal, os impugnantes entregariam aos insolventes, na data de assinatura do contrato-promessa de compra e venda, um cheque de igual montante (€ 10.000,00), a ser depositado/descontado em 30 de Abril de 2004.

Entregaram ainda os impugnantes aos insolventes para reforço de sinal, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), ao abrigo da alínea c) da cláusula 3ª do contrato-promessa de compra e venda, correspondente ao valor pago pelos primeiros a título de sinal e princípio de pagamento noutro contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os aqui impugnantes e a sociedade Silva R... , Lda., relativo à fração autónoma, Tipo T3, sita no 2º Andar Esquerdo do Bloco 2 – Entrada C do Empreendimento “Quinta do Apeadeiro”, a construir em terreno para construção, sito na freguesia de Orgens, lugar de Tondelinha, que era propriedade de sociedade em que o insolvente C... era sócio.

O contrato-promessa objecto da presente impugnação foi celebrado em 26.03.2004 em virtude de os impugnantes revogarem o contrato-promessa identificado no artigo anterior com a sociedade Silva R... , Lda., imputando-se os € 15.000,00 (quinze mil euros) pagos no contrato inicial de compra e venda celebrado 15.02.2002 a reforço de sinal do presente contrato-promessa celebrado com os insolventes. O remanescente do preço (€52.500,00), seria pago na data de realização da escritura definitiva de compra e venda, que ocorreria previsivelmente até Dezembro de 2005, tendo os devedores ficado incumbidos de proceder à marcação da referida escritura.

44. A escritura definitiva de compra e venda não se concretizou até Dezembro de 2005, tendo os devedores, em Janeiro de 2008, autorizando os impugnantes expressamente a nela habitar e praticar todos os actos necessários ao uso a que a mesma se destina, entregando-lhe as respectivas chaves da fracção e da entrada principal do edifício.

45. Os impugnantes começaram desde aquela data a praticar todos os actos necessários a tornar a fracção habitável, terminando as obras que se impunham à sua habitabilidade, realizando as obras e acabamentos no interior da fracção, designadamente casa de banho, cozinha, sala, quarto, colocação de reguladores em todos os radiadores de aquecimento central, chão.

46. Os impugnantes celebraram contrato de fornecimento de água com os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, e contrato de fornecimento de gás natural.

47. Após a realização daquelas obras, os impugnantes celebraram em 1 de Janeiro de 2010, um contrato de comodato com P... , através do qual lhe cederam o gozo da fracção referida em 43., passando este a habitar a referida fracção, ali pernoitando, confeccionando e tomando as suas refeições, recebendo os seus amigos e guardando os seus haveres, arcando todas as despesas com a água, a luz e o gás.

48. O contrato-promessa de compra e venda em causa não foi cumprido pelos devedores, sendo que, a partir de finais do ano de 2009 não mais conseguiram qualquer contacto com os mesmos, desconhecendo o seu paradeiro.

49. Aquando da apreensão das fracções foram alteradas as fechaduras de todas aquelas que estavam na posse dos insolventes e, pelo contrário, não foram mudado as fechaduras da fracção referida em 43., nem ter o Sr. Administrador da Insolvência acedido ao interior da mesma.

50. Os impugnantes e os demais possuidores das fracções do edifício em causa têm assegurado a manutenção do prédio no que concerne, por exemplo, à segurança e manutenção do mesmo, tendo nomeadamente assegurado a alteração das bombas de extracção de água das caixas colectoras das águas pluviais aquando das inundações que se verificaram no edifício, pagando os produtos e serviços de limpeza, colocando luzes nas partes comuns.

51. Tais actos têm sido exercidos à frente de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e de forma contínua, tendo os impugnantes, celebrado contrato de comodato com um terceiro que ali habita diariamente, tomando as suas refeições, recebendo pessoas, dormindo, tratando da sua higiene, preparando e secando a sua roupa, entrando e saindo diariamente do edifício.
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De Direito

Verdadeiro direito real de garantia, o direito de retenção confere ao credor que tem em seu poder certa coisa pertencente ao devedor, não só a faculdade de se recusar a entregá-la enquanto o devedor não cumprir, como ainda a de executar a coisa e pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores[3]. Tal é o que resulta do disposto nos artigos 754.º, 758.º e 759.º do Código Civil (diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção de origem).

Consagrada tal garantia desde a versão originária do Código, só com a entrada em vigor do DL 236/80, de 18 de Julho, os promitentes-compradores passaram a beneficiar do direito de retenção, dispondo o n.º 3 do art.º 442.º, na redacção que emergiu daquele diploma, que no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador gozava, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.

Ponderou-se então que “1. O contrato-promessa tem sido a via através da qual os interessados em habitação própria têm procurado garantir a aquisição da desejada unidade habitacional, nos casos em que, por qualquer motivo (…) não é possível a imediata celebração do contrato de compra e venda.

Sucede, porém, que, por efeito do regime legal do contrato-promessa - adequado a épocas de estabilidade social e económica mas que não responde na justa medida a situações de rápida mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a desvalorização da moeda -, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que justifica diversa tutela normativa. Com efeito, ou vêem frustradas as suas aspirações face à resolução do contrato pelo outro outorgante, com uma indemnização (o dobro do sinal passado) que nem sequer equivale já à importância inicialmente desembolsada, não cobrindo o dano emergente da resolução, ou acham-se coagidos, pela força das circunstâncias e para alcançarem o direito de propriedade da casa que, muitas vezes, já habitam e pagaram integralmente, a satisfazer exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado” (do respectivo Preâmbulo).

Ciente da apontada realidade, e com o declarado intuito de “reajustar o regime legal do contrato-promessa, por forma a adequá-lo às realidades actuais, estabelecendo verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador) e desmotivando a sua resolução com intuitos meramente especulativos”, o legislador estabeleceu que “no caso de ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível, a indemnização devida por causa da resolução do contrato pelo promitente-vendedor, seja o valor que a coisa tiver ao tempo do incumprimento - medida do dano efectivamente sofrido -, conferindo-se ao promitente-comprador o direito de retenção da mesma coisa por tal crédito” (idem).

O regime jurídico do contrato promessa veio a ser alvo de alterações através do DL 379/86, de 11 de Novembro que, todavia, manteve as soluções introduzidas pelo DL 236/80, cujo objectivo precípuo, conforme destacou, “foi acautelar a posição do promitente-comprador de edifícios, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais”, intervenção justificada por manifestas anomalias que a prática revelava (cf. Preâmbulo do diploma em causa).

Mais se deixou aí referido que, tendo “o legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedido ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3), pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles”. Sob ponderação que nada justificava que o instituto ficasse confinado a tão estreitos limites, e assinalando que em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito, alargou-se a concessão de tal direito ao beneficiário de qualquer promessa com “traditio rei”.

Finalmente, e reconhecendo embora que o problema levantava “particulares motivos de reflexão, precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito”, dado que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil)”, expressou o legislador de 1986 com meridiana clareza que “Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras.

Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980.”

Pois bem, subsistindo desde 1980 o direito de retenção conferido ao promitente-comprador tradiciário, não se tem furtado a críticas de vários quadrantes a prevalência legal de que goza sobre a hipoteca, não faltando mesmo quem defenda a eliminação do regime consagrado no n.º 2 do art.º 759.º[4].

De todo o modo, assente que nos termos da al. f) do n.º 1 do art.º 755.º goza de direito de retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442.º”, a aplicação do assim preceituado no âmbito do processo insolvencial suscitou diversos e delicados problemas, sem que se lograsse obter consenso doutrinário e dando origem a desencontradas decisões jurisprudenciais.

Primeiro passo na dilucidação da questão, determinar se estamos perante um negócio em curso, na acepção do art.º 102.º do CIRE, no sentido de se não mostrar integralmente cumprido por nenhuma das partes. Sendo a regra, uma vez decretada a insolvência, a suspensão do cumprimento dos negócios nestas condições, tendo em vista o exercício pelo administrador do seu direito (potestativo) de optar entre recusar definitivamente o cumprimento do contrato ou antes executá-lo (cf. n.º 1 do preceito), no caso dos contratos-promessa rege especificamente o art.º 106.º deste diploma.

Epigrafado de “Promessa de contrato”, dispõe o referido art.º 106.º, no seu n.º 1, que: “No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-vendedor”.

Nos termos do n.º 2, é aplicável à recusa de cumprimento (quando permitida), o disposto no n.º 5 do art.º 104.º e, por via da remissão operada por este preceito, o n.º 3 do art.º 102.º, também do CIRE, com a especialidade de a indemnização pela diferença prevista na al. c) deste último preceito ser calculada nos termos ali consagrados.

O transcrito n.º 1 do art.º 106.º procede ao afastamento, no caso do contrato-promessa com eficácia real em que tenha ocorrido traditio, do regime regra consagrado no art.º 102.º, retirando ao AI o poder de recusar o respectivo cumprimento, antes vinculando-o à celebração do contrato definitivo, sob pena do promitente-comprador, em caso de recusa -neste caso ilícita- lançar mão da execução específica. De fora, e sujeitos portanto ao regime do n.º 2 do art.º 106.º, ficariam os contratos-promessa com eficácia real mas sem “traditio rei” e, bem assim, os contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, com ou sem tradição. Tal entendimento tem vindo no entanto a ser rejeitado, defendendo doutrina e jurisprudência de forma consistente uma interpretação restritiva do preceito, de modo que abrangidos pela previsão legal (deste n.º 2) estarão apenas os contratos-promessa não sinalizados[5].

Assim discordando quanto à faculdade que assistia (ou não) ao AI de recusar o cumprimento do contrato quando estivéssemos perante promessa de venda com eficácia meramente obrigacional mas com traditio rei, divergiam ainda doutrina e jurisprudência quanto à possibilidade da formulação de um juízo de culpa nos casos em que tal recusa ocorria, daqui dependendo o reconhecimento do direito do promitente-comprador à indemnização genericamente prevista no n.º 2 do art.º 442.º, crédito garantido pelo direito de retenção, ou antes a recusa em atribuir-lhe tal crédito e garantia. Assim, enquanto uns defendiam que sempre faltaria o reconhecimento de que se tratava de “crédito resultante do não cumprimento imputável à contraparte”, que é requisito de aplicabilidade do art.º 755.º, n.º 1, al. f)[6], obtemperavam outros que, reflexamente embora, ao insolvente era imputável a título culposo o incumprimento (ou, pelo menos, era-lhe imputável no sentido em que lhe teria dado causa), desencadeando o regime sancionatório do n.º 2 do art.º 442.º, crédito garantido por direito de retenção nos termos daquele preceito[7].

Assim centrada a discussão no regime a aplicar, até pela frequência com que se registam, aos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, sinalizados, e nos quais tenha havido tradição da coisa -que se pretendem excluídos, como vimos, da previsão típica do referido n.º 2 do art.º 106.º-, reconhecendo a controvérsia instalada e consequente dispersão das decisões dos nossos Tribunais, veio o STJ a proferir o acórdão uniformizador 4/2014, de 20 de Março de 2014, publicado no DR I-Série de 19 de Maio de 2014, fixando a seguinte doutrina: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no art.º 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil”[8].

Assim resolvida a questão essencial, e a despeito dos diversos votos de vencido apostos ao referido acórdão, não há dúvida que, nos termos da doutrina fixada, o promitente-comprador tem, nestes casos, e na hipótese de recusa do AI, direito a indemnização calculada nos termos gerais prescritos no n.º 2 do art.º 442.º, crédito este garantido pelo direito de retenção, desde que seja concomitantemente consumidor, pois só “interferindo a mencionada restrição podem ter cabimento e aplicação a ratio e teleologia convocadas para a aplicação dos correspondentes preceitos legais no âmbito do direito insolvencial”[9].

 A qualidade de consumidor é, deste modo, elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao reclamante que dele se pretende prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade[10]. Ónus que, no caso vertente, a apelante tem por incumprido por todos os credores impugnantes[11], contrapondo estes que da matéria assente e não questionada emerge essa qualidade.

Importa referir, a propósito, que não sendo a jurisprudência uniformizada sequer vinculativa para os tribunais judiciais, não deixa de constituir um “precedente persuasivo”[12], revestindo natural e reforçada autoridade, considerando a sua qualificada proveniência e o seu processo formativo. Deste modo, por imperativo do princípio da segurança e certeza jurídicas, tão caros ao Direito, o afastamento da doutrina assim fixada deverá assentar em razões ponderosas, alicerçando-se em fundamentação convincente e convocando novos argumentos, não debatidos nem rebatidos pelo acórdão uniformizador.

Pois bem, atendendo ao elemento histórico e ratio da atribuição ao promitente-comprador da garantia, particularmente sólida, do direito de retenção, que a apelante destaca, afigura-se que, efectivamente, o reconhecimento desta excepcional protecção dependerá da subsistência, em cada caso, das ponderosas razões atendidas pelo legislador de 1980 e 1986, pois a não intercederem a favor daquele, difícil se torna justificar o sacrifício do credor hipotecário, ainda mais quando se trata de hipoteca registada anteriormente. E foi partindo desta constatação que se entendeu restringir pela via interpretativa o alcance da previsão da al. f) do n.º 1 do art.º 755.º, designadamente para efeitos do reconhecimento do direito de retenção no âmbito do processo insolvencial, formulando a exigência que se trate de um consumidor, entendimento que aqui se reitera. De resto, faz-se notar, os apelados não questionam a doutrina fixada no citado AUJ, antes pretendendo que o conceito de consumidor tenha uma abrangência que os inclua, ao contrário do defendido pela apelante.

Assente, pois, que estão em causa contratos promessa em curso à data da declaração da insolvência dos promitentes vendedores, tendo por objecto negócios translativos do direito de propriedade sobre fracções autónomas, com passagem de sinal, tendo os beneficiários das promessas obtido a tradição das fracções prometidas vender antes da declaração de insolvência, remanesce portanto a questão de saber se os credores impugnantes deverão ser, para os aludidos efeitos, considerados consumidores.

À luz da factualidade apurada nos autos e que nenhuma das partes impugnou, defende a apelante evidenciar a mesma a ausência da necessária qualidade de consumidores dos impugnantes; contrapõem estes, defendendo uma interpretação estendida do conceito para efeitos da al. f) do n.º 1 do art.º 755.º, e que teria ficado consagrada no texto do AUJ -segundo a qual só não seria consumidor aquele que adquirisse o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis[13]- que o elenco factual em referência permite atribuir-lhes aquela mesma qualidade.

Quanto ao conceito de consumidor a atender, não nos parece, o que desde já se adianta, ser de sancionar o entendimento de que a garantia contempla apenas os beneficiários de promessa tendo por objecto a aquisição de edifício ou fracção destinados a habitação, únicos a quem seria de reconhecer a referida qualidade, conforme a apelante parece defender, tal como se afigura não ser de perfilhar o conceito lato preconizado pelos recorridos. A nosso ver, o conceito a adoptar para efeitos de delimitação da previsão normativa outro não poderá ser senão o consagrado na Lei 24/96, de 31 de Julho[14], “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, critério interpretativo imposto pelo n.º 1 do art.º 9.º[15].

Dispõe o art.º 2.º da denominada Lei de Defesa do Consumidor, sob a epígrafe “Noção e âmbito”: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios” (vide n.º 1).

Atenta a formulação legal, a qualificação do sujeito como consumidor depende assim, essencialmente, da finalidade do acto de consumo, detendo tal qualidade aquele “que adquire um bem ou serviço para uso privado -uso pessoal, familiar ou doméstico na fórmula da al. a) do art. 2º da Convenção de Viena de 1980-, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa[16].

“A noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional –, que defendemos em geral e temos por consagrada no n.º 1 do art.º 2º da LDC… impõe-se pertinente e inquestionavelmente in casu à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do nº 2 do art. 1º)”[17],[18].

Sendo esta a noção que perfilhamos, debrucemo-nos agora sobre a matéria de facto elencada em ordem a dar resposta à questão que nos ocupa.

No que respeita aos credores A... e mulher, tendo aquele outorgado o contrato na qualidade de promitente-comprador, conforme resultava da matéria pelo próprio alegada em sede de reclamação e reiterada na impugnação, pretendeu comprar a fracção designada pela letra A, loja destinada a comércio, e foi essa mesma a destinação que lhe deu. Conforme deflui dos factos assentes em 10. e 11., uma vez obtida a traditio, nela passou o reclamante marido “a publicitar os empreendimentos das sociedades de que é sócio”, “recebendo os seus clientes e os das ditas sociedades  no estabelecimento que instalou na fracção, ali discutindo os termos de eventuais vendas e obras”, “tendo chegado a celebrar pelo menos um contrato de mediação imobiliária com vista à venda e arrendamento da fracção”.

À luz da descrita factualidade, e considerando quanto vem de se referir a propósito do conceito de consumidor, parece claro que os reclamantes não preenchem a previsão legal. Com efeito, inscrevendo-se a pretendida aquisição no desenvolvimento da actividade comercial do reclamante, que a destinou à venda ou arrendamento, sem embargo de nela ter instalado um estabelecimento comercial, parece isento de dúvida que não se trata de “um uso privado”, no apontado sentido de “uso pessoal, familiar ou doméstico” pressuposto pela lei, tratando-se, ao invés, de um uso profissional e com escopo puramente lucrativo. E por assim ser, não sendo de reconhecer aos credores impugnantes a qualidade de consumidores, tal conduz inelutavelmente à exclusão do crédito que lhes foi reconhecido do âmbito da garantia conferida pela al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC, tendo portanto a natureza de crédito comum[19].
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No que concerne ao credor impugnante J... , promitente-comprador da fracção autónoma designada pela letra D, de tipologia T2, correspondente ao 1.º andar esquerdo do prédio identificado, tendo-lhe a mesma sido entregue pelos devedores em Março de 2008, apurou-se que nela passou a residir, afectando-a mais tarde ao desenvolvimento da sua actividade profissional de assessoria a empresas, nela recebendo clientes e amigos e ali “desenvolvendo a sua actividade de forma estável”.

No que respeita a este credor, a despeito da posterior afectação da fracção prometida adquirir ao desenvolvimento da sua profissão liberal de assessoria a empresas, afigura-se que tal não é suficiente para descaracterizar a finalidade primeira do “acto ou relação de consumo” estabelecida com os insolventes aquando da celebração do negócio e entrega da fracção. Com efeito, afigura-se-nos que a qualificação do adquirente do bem como consumidor -com as devidas adaptações por estar em causa a celebração de um contrato-promessa- faz-se tendo em atenção a destinação tida em vista aquando da celebração do contrato, uso neste caso pessoal e doméstico, correspondente aliás à utilização que o reclamante veio a fazer da fracção durante um período inicial, irrelevando em nosso entender posteriores vicissitudes que venham eventualmente a implicar uma diversa afectação do bem adquirido[20].
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No que se refere aos credores L... e O... , promitentes-compradores da fracção autónoma designada pela letra L, correspondente ao 4.º andar direito, apurou-se que, tendo-lhes sido entregue a fracção prometida comprar em Janeiro de 2008, nela realizaram obras de acabamento, após o que celebraram em 1 de Janeiro de 2010 um contrato de comodato com P... , cedendo-lhe o gozo da mesma, tendo o comodatário ali passado a residir.

Quanto ao reclamante E... , promitente-comprador das fracções designadas pelas letras G e I, apurou-se que, tendo-lhes as mesmas sido entregues, nelas realizou trabalhos tendo em vista conferir-lhes condições de habitabilidade, após o que cedeu o gozo da primeira a seu filho N... , que ali reside desde Setembro de 2008, altura em que cedeu o gozo da outra a M... , que nela habita desde então.

Ora, não se tendo aparentemente apurado a que título foi cedido o gozo daquela última fracção ao dito M... -e isto apesar do alegado pelo próprio reclamante E... na sua impugnação, no sentido de “vir dando às fracções prometidas comprar o uso que bem entende”, tendo-as “arrendado a terceiro que as habitam diariamente”- e de terem ficado igualmente por esclarecer as razões que levaram o reclamante L... e O... a celebrar com um terceiro um contrato de comodato, a verdade é que o apurado uso que um e outro deram às fracções prometidas vender, atendendo às considerações feitas quanto ao acto/relação de consumo (e momento a atender para efeitos da sua caracterização como tal), é de qualificar, ainda aqui, como uso privado, permitindo que lhes seja reconhecida a qualidade de consumidores, valendo as razões que levaram o legislador a dotar o crédito de que são titulares, emergente do incumprimento dos contratos celebrado, da protecção conferida pelo direito de retenção. Daí que em relação aos créditos em causa prevaleça a sua qualificação como garantidos.
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III. Decisão

Em face a todo o exposto, e na parcial procedência do recurso interposto pela apelante I... , SA, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Cimbra em qualificar como comum o crédito reconhecido aos credores A... e B... , passando a valer quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 3 a seguinte graduação:

C. Quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 3 (na Conservatória de Registo Predial de Viseu sob o n.º 875-A, sito na Rua (...) , n.º 140)

1.º-  O crédito da “ I... ” que beneficia de hipoteca sobre o referido prédio;

2.º-  O crédito privilegiado do Estado Português – Fazenda Nacional;

2.º- O crédito privilegiado do credor “Instituto da Segurança Social, IP”

4.º- Os créditos comuns, incluindo o reconhecido aos apelados A... e mulher, na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respectiva satisfação integral (cf. artigo 176.º do CIRE)

5.º Os créditos subordinados, pela ordem prevista no artigo 48.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem na mesma alínea (cf. artigo 177.º, n.º 1 do CIRE).

Quanto ao mais, é mantida a sentença apelada.

As custas do recurso ficam a cargo da apelante I... , SA e dos apelados A... e mulher, na proporção de ¾ para a primeira e ¼ para estes.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida


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Sumário (art.º 663.º, n.º 7 do CPC):

I. Nos termos da doutrina fixada no AUJ 4/2014, publicado no DR n.º 95, I-Série, de 19 de Maio de 2014, o promitente-comprador em contrato promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional, sinalizada, que tenha beneficiado da tradição da coisa prometida vender, tem direito, em caso de recusa de cumprimento por banda do AI, à indemnização calculada nos termos gerais prescritos no n.º 2 do art.º 442.º.

II. Tal crédito é garantido pelo direito de retenção previsto na al. f) do n.º 1 do art.º 755.º do CC desde que o promitente-comprador revista a qualidade de consumidor.

III. A qualidade de consumidor é, deste modo, elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao credor que dela se pretenda prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que a mesma se consubstancia.

IV. O conceito a adoptar para efeitos de delimitação da previsão normativa outro não poderá ser senão o consagrado na Lei 24/96, de 31 de Julho, “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, critério interpretativo imposto pelo n.º 1 do art.º 9.º do CC.

V. Consumidor será assim, para os mencionados efeitos, “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

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[1] A questão suscitada pela aqui apelante a propósito da natureza de sinal deste valor e, bem assim, do montante de €99 000,00, considerado reforço do sinal passado pelo reclamante A... , não foram objecto de pronúncia na sentença apelada, tendo-se a Mm.ª juíza “a quo” limitado a referir, a propósito do montante de cada um dos créditos aqui em causa, que o mesmo não havia sido impugnado. Ora, independentemente da correcção de tal entendimento à luz do disposto no n.º 3 do art.º 130.º do CIRE, a verdade é que o mesmo não a isentava, em nosso entender, de se pronunciar sobre a questão assim submetida à apreciação do Tribunal. De todo o modo, como se alcança das conclusões formuladas pela recorrente, são as mesmas omissas no que respeita a esta concreta questão, que terá de haver-se como excluída do objecto do recurso (cf. art.ºs 639, n.º 1 e 635.º, n.º 4, ambos os preceitos do CPC).
[2] Nos termos especificados neste ponto da matéria de facto, e que reproduziu a alegação do credor em causa, o preço total passaria a ser de €115 000 (€105 000 + €8 000 + €2 000) ao invés dos €110 000 alegados. Tal discrepância, porém, parece não ter sido notada e, assim, não foi objecto de qualquer actividade instrutória tendo em vista o seu esclarecimento.
[3] Pires de Lima/A. Varela, CC anotado, vol. I, comentário ao artigo 754.º.
[4] Cf. Maria da Conceição Rocha Coelho, “O crédito hipotecário face ao direito de retenção”, pág. 48, dissertação de mestrado em Direito Privado sob a orientação de Brandão Proença, 2011, acessível on-line.
[5] Assim, o acórdão do STJ de 13/11/2014, processo n.º 1980/116 T2 AVR.B.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt. Na doutrina, também o Prof. Gravato de Morais há muito defende semelhante interpretação, in CDP, n.º 29, pág. 9, onde conclui “Da conjugação destes dois regimes -por um lado, o da venda com reserva de propriedade e entrega da coisa e, por outro, o da insolvência do promitente-comprador- parece que legitimamente se pode concluir pela interpretação restritiva do art.º 106.º, n.º 2, de sorte que este tão-somente se deve aplicar às promessas não sinalizadas.
Quanto às sinalizadas, vale o regime geral do art.º 442.º, n.º 2 do CC, na mesma medida em que isso estava previsto no art.º 164.º-A do CPEREF”.
Formulando idêntica conclusão, ainda que com diferente fundamentação, Pestana Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência” também nos CDP n.º 33, págs. 3 a 29, maxime fls. 17.
[6] Neste sentido, Catarina Serra e Nuno Oliveira, “Insolvência e Contrato promessa”, ROA ano 70, 2010, acessível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe... e Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE anotado, 2.ª Ed., pág. 497, recusando aliás que o promitente-comprador tenha direito ao sinal em dobro.
[7] Pestana Vasconcelos, no citado “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, pág. 19, conclui igualmente pela aplicação do disposto no artigo 442.º, n.º 2, mas por analogia, tendo em vista o suprimento da lacuna teleológica patente consubstanciada na ausência de regulamentação dos efeitos da recusa do administrador no caso dos contratos-promessa sinalizados.
[8] É a referida a identificação correcta do AUJ que versou sobre esta temática, e não o citado pela Mm.ª juíza que, certamente por lapso, fez sempre referência à versão inicial do acórdão a qual, tendo sido anulada, sofreu reformulação, nomeadamente no segmento uniformizador, tendo sido introduzida a menção a consumidor que não constava da versão original, requisito que não foi considerado na sentença apelada, apesar de se encontrar já publicado à data em que a mesma foi proferida.
[9] Do aresto do STJ de 23/11/2014, processo n.º 7167/11.6 TBBRG-C.G1.S1, em www.dgsi.pt.
[10] Tal como não deixou de ser notado e foi sublinhado pelo Ex.mº Sr. Conselheiro Lopes do Rego, no voto de vencido que apôs ao acórdão em apreço, não procedendo assim a argumentação dos apelados que parecem defender entendimento contrário, fazendo recair sobre a apelante o ónus da prova de que não deverão ser considerados consumidores.
[11] E assim tendo limitado o recurso a esta derradeira questão, não discute a apelante que nos contratos em causa ocorreu passagem de sinal, que os promitentes-compradores obtiveram a tradição da coisa prometida vender, que ocorreu recusa de cumprimento do contrato por banda do Sr. administrador (a relacionação do crédito correspondente à restituição do sinal em dobro é, de resto, e conforme vem sendo entendido, comportamento concludente nesse sentido – Cf. Catarina Serra e Nuno Oliveira, “Insolvência e Contrato promessa” citado) e que o “quantum” do crédito de que os reclamantes são titulares é calculado nos termos do n.º 2 do art.º 442.º do CC.
[12] Ribeiro Mendes, “Os recursos no Código do Processo Civil revisto”, 1998, pág. 108.
[13] Assim o entendeu o STJ, no acórdão de 29 de Maio de 2014, processo n.º 1092/10.TDLSB.G.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt e citado pelos apelados, reconhecendo a qualidade de consumidor para efeitos do AUJ “ao promitente-comprador que na fracção prometida comprar tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através de uma sua sociedade com sede na mesma fracção”.
[14] Rectificada pela Rect. n.º 16/96, de 13/11 e alterada pela Lei n.º 85/98, de 16/12, DL 67/2003, de 8/4, pela Lei n.º 10/2013, de 28/1 e pela Lei n.º 47/2014, de 28/7.
[15] E a opção pelo conceito restrito de consumidor é também, parece-nos, a posição seguida por Pestana de Vasconcelos no citado estudo (cf. nota 25, nas págs. 8-9), no qual manifesta concordância com a noção adoptada no anteprojecto do Código do Consumidor, nos termos do qual será consumidor “a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresente como profissional”, noção ainda restrita apesar das extensões previstas, cuja aplicação o legislador, de resto, rodeou das maiores cautelas.
[16] Prof. Calvão da Silva, “Compra e venda de coisas defeituosas”, Almedina, 4.ª edição, pág. 118.
[17] Ainda Calvão da Silva, “Venda de bens de consumo”, 4.ª Ed., Almedina 2010, citado no ac. STJ de 25/11/2014, processo n.º TBBRG-C.G1.S1.
[18] Realça-se que no recente DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs a Directiva n.º 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, adoptando-se idêntico restrito conceito, define-se consumidor como “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” (cf. art.º 3.º, al. c).



[19] Neste sentido acórdão do STJ de 14 de Outubro de 2014, processo 986/12.2bTBFAF-G.G1.S1, e de 25/11/2014, processo n.º 7617/11.6 TBBRG-C.G1.S1 já citado, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

[20] Não estamos aqui a considerar, até porque a factualidade assente nos autos nada indicia nesse sentido, a má-fé do adquirente que diz adquirir com determinada finalidade, a fim de beneficiar da protecção por lei concedida ao adquirente consumidor, quando na verdade destina o bem a uso profissional.