Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3422/12.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ACTO JURISDICIONAL
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 13º, Nº 2 DA LEI Nº 67/2007, DE 31/12.
Sumário: 1. A norma do artigo 13º, n.º 2 da Lei nº 67/2007, de 31/12 - “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” -, não tem aplicação, desde logo, quando a decisão em crise não admite recurso ordinário, como é o caso das acções sumaríssimas.

2. Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e respectiva valoração jurídica dos factos, na aplicação ao caso concreto, e que constituem o âmago da função jurisdicional, são insindicáveis em termos de erro, a não ser que o mesmo seja intolerável, indesculpável, que procedesse de culpa grave do errante, constituindo uma “aberratio legis”, e assim grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tornasse a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, procedendo de culpa grave do errante.

3. A própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não significa, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada, apenas significando que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

4. O cruzamento de um cheque equivale a uma recomendação de maior cautela, que obriga o estabelecimento a quem é apresentado a ter todo o cuidado na identificação do portador.

Pretende-se evitar que o cheque possa ser recebido por outro que não seja o legítimo possuidor. O portador irregular de um cheque cruzado tem mais dificuldade em levantar o mesmo porque o banco fica obrigado a identificá-lo, e por isso também o sacador pode perseguir mais facilmente o falsário.

5. Para que o aqui Autor pudesse obter ganho de causa na acção n.º … haveria que ficar provado não só que o pagamento tinha sido feito a “não-cliente” do banco sacado, ou a um “não-banqueiro”, mas também matéria de facto que permitisse dar como verificados os demais pressupostos da responsabilização do Banco “supra” referidos, ou seja, que este, ao efectuar o pagamento do cheque, agiu com culpa, ou seja, que os seus funcionários não tomaram as providências que uma pessoa de normal diligência, colocados nas mesmas condições, e perante a observação do título, teria tomado.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1.Relatório
L…, casado, residente periodicamente na Rua … veio instaurar contra o Estado Português, representado em juízo pelo Ministério Público, a presente acção em processo declarativo sob a forma sumária, pedindo a condenação do Réu no pagamento ao Autor da quantia de € 9.240,44, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente por si sofridos, em virtude de ter havido erro judiciário grosseiro na sentença proferida em acção por si instaurada contra o Banco B…, S.A.
Esta acção foi instaurada como processo declarativo comum sob a forma sumaríssima, pedindo, nessa acção, que o referido Banco fosse condenado no pagamento de €3.000,00 acrescido de juros legais a contar da citação, por ter retirado de uma conta de que o Autor era titular aquele montante através de um cheque (cruzado), sem que o Autor tivesse dado a respectiva ordem, sendo que a referida acção foi contestada pelo Banco.
Mais alega que a sentença, ao dar como provado que o Banco pagou a pessoa desconhecida, cabendo-lhe provar que havia pago o referido cheque a um cliente seu ou a um banqueiro, deveria ter condenado o Banco a indemnizar o Autor, no pagamento da quantia descontada, nos termos dos artigos 37.º e 38.º da Lei Uniforme do Cheque, e que ao absolver o Banco do pedido violou tais normas, consistindo essa violação num erro de julgamento indesculpável, e até “roçando o doloso”, por divergência perante os factos dados como provados e a verdade jurídica consignada na lei, pelo que, entende dever ser ressarcido pelo Réu pelos prejuízos causados por tal decisão judicial.
O Réu contestou, onde se defendeu por impugnação, e contra-alegou inexistir qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que fundamente e justifique a condenação do Réu em indemnização ao Autor, e que a decisão alegadamente danosa não foi previamente revogada pela jurisdição competente.

O Tribunal da 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:
“Termos em que, atentos os fundamentos de facto e de direito supra expostos, decide -se julgar a presente acção totalmente improcedente e, consequentemente, decide-se absolver o Réu Estado Português da totalidade do pedido formulado pelo Autor L...”.

2.O Objecto da instância de recurso
O recorrente L… apresentou recurso de tal decisão, assim concluindo:

O Ministério Público em representação do Estado Português apresentou as suas contra-alegações.
3. Do Direito
A 1.ª instância considerou verificada a seguinte matéria de facto – que as partes não colocam em causa:
1. Em 30/12/2008, o Autor instaurou no Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande contra o Banco B…, S.A., acção declarativa comum sob a forma de processo sumaríssimo.
2. Em tal acção o Autor pediu que o referido Banco fosse condenado (para além do mais) no pagamento do montante de €3.000,00, acrescidos de juros legais a contar da citação, alegando em síntese que o banco retirou da sua conta, da agência da Marinha Grande, …, aquele montante através do cheque n.º …, sem que ele (autor) tivesse dado a respectiva ordem de pagamento, conforme petição inicial constante da certidão de fls. 111 e ss., e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Aquela acção veio a ser distribuída e autuada com o n.º de processo … e correu seus termos no 2.º Juízo deste Tribunal Judicial da Marinha Grande.
4. Citado o referido Banco, veio este, em síntese, alegar que o mencionado cheque foi bem pago, alegando, porém, no artigo 34.º da sua contestação, para além do mais, que o cheque em questão só podia ser pago a uma instituição de crédito ou a um cliente do sacado, alegando, ainda, no artigo 36.º de que o banco havia pago o cheque a um cliente seu, concluindo que não tinha obrigação de indemnizar o Autor, conforme consta da contestação de fls. 128 e ss., cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido.
5. O autor requereu que o Banco identificasse a pessoa a quem pagou, se a um cliente seu se a outro banco.
6. Após o que o Tribunal ordenou a notificação do banco para informar a identidade do cliente a quem foi pago o cheque.
7. Em resposta a tal despacho, veio o banco informar que estava sujeito ao dever de segredo bancário e, por isso, entendia não ter que prestar tal informação.
8. Respondeu o Autor pugnando pelo cumprimento do despacho por parte do
Banco.
9. O Tribunal ordenou a notificação do Banco para prestar a informação conforme anteriormente determinado.
10. … tendo o Banco respondido que pagou o cheque ao próprio Autor, conforme se propunha a provar em sede de audiência de discussão e julgamento.
11. Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida a sentença constante de fls. 159 a 163, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. Nessa sentença, foram dados como provados os seguintes factos:

13. Na mesma sentença foram dados como não provados os seguintes factos: “Que a assinatura constante do cheque n.º … não é do Autor.
Que o módulo de cheque foi furtado ao Autor. E falsificado.
Que o réu podia e devia constatar que os elementos constantes do cheque não tinham sido escritos nem assinados pelo A.”
14. No dispositivo da sentença foi decidido julgar a acção improcedente, e absolver o Réu Banco B…, S.A., do pedido deduzido.
15. Não se conformando com o teor da sentença proferida, o Autor deduziu o requerimento constante de fls. 165 a 168, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, onde, em síntese, requer a rectificação da matéria de facto dada como provada e a nulidade da sentença fundada na omissão de apreciação da questões suscitadas na petição inicial, designadamente a referida nos artigos 26 a 39 dessa peça.
16. Pelo Tribunal foi proferido o despacho constante de fls. 170 a 172, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde procede à rectificação do facto respeitante à numeração do cheque, rectificando no sentido de que onde constava “Em 27.04.2007, o Réu entregou em dinheiro, no seu balcão, a pessoa desconhecida, o montante de €3.000,00, através do cheque n.º …, assinado e preenchido” passaria a constar “Em 27.04.2007, o Réu entregou em dinheiro, no seu balcão, a pessoa desconhecida, o montante de €3.000,00, através do cheque n.º …, assinado e preenchido”.
17. Nesse despacho, para além do mais, foi proferida decisão a indeferir a declaração de nulidade suscitada pelo Autor.
18. Na referida sentença, encontra-se explanada a motivação da decisão dos factos provados e não provados, nos termos dela constantes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
19. Na referida sentença encontra-se explanada a fundamentação de direito, nos termos dela constantes e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

A questão a decidir, e que constitui o “thema decidendum” nos presentes autos, é a de saber se estão preenchidos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil do Estado por erro de decisão judicial – Processo nº ...
O Autor funda o seu direito à indemnização nos danos provocados pela concreta decisão judicial que absolveu o Banco B.. em acção por si instaurada, a qual, na sua perspectiva, padece de erro grosseiro.
Vejamos da oportunidade do recurso.
Como sabemos, actualmente o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado encontra-se previsto na Lei nº 67/2007, de 31/12 - entrou em vigor no dia 30/01/2008 – seu artigo 6º -, e especificamente no que respeita aos danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, surge no seu capítulo III, nos seguintes termos:
“Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional.”
“Artigo 12.º
Regime geral
Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.
Artigo 13.º
Responsabilidade por erro judiciário
1 — Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 — O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”
Como se escreveu no acórdão do S.T.J. de 3.12.2009, citado no acórdão desta Relação de Coimbra de 20.11.12 – ambos retirados do site www.dgsi.pt -, “…, pormenorizando, quanto ao erro judiciário, o legislador logo acrescentou o seguinte: “No que se refere ao regime do erro judiciário, para além da delimitação genérica do instituto, assente num critério de erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, entendeu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa acção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
“Foi esta “justificação” que deu azo à redacção do nº 2 do supra citado artigo 13º: “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.
“Há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter «manifesto» do erro de direito ou o carácter grosseiro na apreciação dos factos, que são pressupostos substantivos da responsabilidade do Estado.”
Mas, ao contrário do que defende o Estado, através do Digno Magistrado do Ministério Público, esta parcela das exigências formais do presente pedido indemnizatório – prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente (O erro é, apenas, sindicável quando estejam esgotados todos os meios de reacção, processualmente, consagrados na lei, de modo a evitar a escolha da alternativa entre o ressarcimento e o recurso) -, não tem aplicação plena.
Desde logo quando a decisão em crise não admite recurso ordinário, como é o caso das acções sumaríssimas - a sua admissibilidade está dependente, segundo o art.º 678º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, da verificação cumulativa dos requisitos aí previstos, salientando-se desde logo a previsão da 1ª parte do nº 1 do artº 678º do CPC “só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre…”.
Como é sabido, a exclusão da recorribilidade da decisão por o valor não ser superior à alçada do tribunal encontra justificação na proporcionalidade entre aquele valor e a suficiência e adequação da actividade dos tribunais.
Nesta perspectiva abstracta e formal, parte-se do princípio de que as causas de maior valor são aquelas que justificam um maior dispêndio da actividade dos tribunais e abstrai-se da importância da decisão para as partes - em especial para o eventual recorrente - e da relevância dos fundamentos da sua impugnação - tais limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecargar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos tribunais inferiores - sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais.
Assim, não permitindo a decisão proferida no processo …, o habitual recurso, atento o seu valor, não estaria vedado, ao ora recorrente, lançar mão do presente procedimento jurisprudencial.
No entanto, tal não pode significar abrir um “janelão” aos casos em que o legislador – por opção politica – vedou o direito ao recurso.
Avançando.
O que o Autor invoca nesta acção - dano decorrente de uma concreta decisão jurisdicional – direcciona-nos para a norma do artigo 13º supra citado.
 Já antes da vigência da Lei 62/2007, de 31 de Dezembro, vinha-se entendendo que o disposto no art.º 22 da CRP, abrangia a responsabilidade do Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, tendo em conta a respectiva aplicabilidade directa.
Mas, desde logo se chamou a atenção para o seguinte:
Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e respetiva valoração jurídica dos factos, na aplicação ao caso concreto, e que constituem o âmago da função jurisdicional, seriam insindicáveis em termos de erro, a não ser que o mesmo fosse intolerável, indesculpável, que procedesse de culpa grave do errante, constituindo uma “aberratio legis”, e assim grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tornasse a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, procedendo de culpa grave do errante.
Encontrando-se as autoridades judiciárias, por mais zelosas que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, sempre sujeitas a alguma margem de erro, a lei apenas releva, para fundamentar a responsabilidade do Estado e o consequente direito à indemnização, o erro grosseiro, onde se engloba o erro temerário, e a ilegalidade manifesta.
Mais, os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis.
Por isso, o erro de direito - que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) - é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis - art.ºs 676º a 761º-.
Mas, a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não significa, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada. Apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo‑se ao primeiro, decidiu de modo diverso - A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina -.
Assim, dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o "iter" decisório que a levem para fora do campo dentro doqual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.
Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada.
Impõe‑se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria, nunca, julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis.
Como já decidiu este Tribunal da Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 20.11.2012, retirado do site www.dgsi.pt, “Os conceitos de manifesto e grosseiro traduzem uma elevada relevância ou importância, não bastando qualquer erro, o erro corrente ou comum. Tratar-se-á de um erro crasso, clamoroso, evidente, palmar, intolerável, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente. Não será a simples diferença de interpretação da lei, nem a normal valoração dos factos e das provas.”
Sabemos que a manifestação essencial do princípio da independência do julgador é a autonomia na interpretação do direito, o que não significa outra coisa senão que no exercício da sua função jurisdicional ele apenas está sujeito às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas.
Por outro lado, o princípio da irresponsabilidade - art.º 216º, nº 2, CRP - tem por finalidade assegurar a independência do juiz na sua função nobre e “espinhosa” de decidir.
Por isso, o juiz não pode ser condicionado na sua função pelo medo de uma punição.
A isto, acresce que a ciência do Direito não é exacta.
 Faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação.
Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tri­bunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir em erro.
O que nos dizem os autos.
Na acção n.º … o Autor pediu que o referido Banco fosse condenado - para além do mais - no pagamento do montante de €3.000,00, acrescidos de juros legais a contar da citação, alegando, em síntese, que o banco retirou da sua conta, da agência da Marinha Grande, …, aquele montante, através do cheque n.º …, cheque esse que se encontrava cruzado, sem que ele (autor) tivesse dado a respectiva ordem de pagamento.
Mais alegou que o referido módulo de cheque lhe foi furtado e falsificado, facto que o Réu podia e devia constatar. E sendo o cheque cruzado, o Réu tinha a obrigação de identificar a quem entregou os €3.000,00 o que, segundo o Autor, não fez.
Assim, a questão que se suscitava na referida acção, era se o Banco era civilmente responsável, perante o Autor, pelo pagamento do cheque “supra” aludido.
Vejamos as normas relevantes para a decisão de tal questão – retiradas da LUC-:
“(...) Artigo 14º
Formas de transmissão
O cheque estipulado pagável a favor duma determinada pessoa, com ou sem cláusula expressa "à ordem", é transmissível por via de endosso.
O cheque estipulado pagável a favor duma determinada pessoa, com a cláusula "não à ordem" ou outra equivalente, só é transmissível pela forma e com os efeitos duma cessão ordinária. O endosso pode ser feito mesmo a favor do sacador ou de qualquer outro coobrigado.
Essas pessoas podem endossar novamente o cheque.
(...) Artigo 16º
Forma do endosso
O endosso deve ser escrito no cheque ou numa folha ligada a este (anexo).
Deve ser assinado pelo endossante.
O endosso pode não designar o beneficiário ou consistir simplesmente na assinatura do endossante (endosso em branco). Neste último caso o endosso, para ser válido, deve ser escrito no verso do cheque ou na folha anexa.
Artigo 17º
Efeitos do endosso. Endosso em branco
O endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque.
Se o endosso é em branco, o portador pode:
1. Preencher o espaço em branco, quer com o seu nome, quer com o nome de outras pessoas;
2. Endossar o cheque de novo em branco ou a outra pessoa.
3. Transferir o cheque a um terceiro sem preencher o espaço em branco nem o endossar.
Artigo 18º
Responsabilidade do endossante
Salvo a estipulação em contrário o endossante garante o pagamento.
O endossante pode proibir um novo endosso, e neste caso não garante o pagamento às pessoas a quem o cheque for posteriormente endossado.
(...) Artigo 37º
Cheque cruzado. Modalidades do cruzamento.
O sacador ou o portador dum cheque podem cruzá-lo, produzindo assim os efeitos indicados no artigo seguinte.
O cruzamento efectua-se por meio de duas linhas paralelas traçadas na face do cheque e pode ser geral ou especial.
O cruzamento é geral quando consiste apenas nos dois traços paralelos, ou se entre eles está escrita a palavra "banqueiro" ou outra equivalente; é especial quando tem escrito entre os dois traços o nome do banqueiro.
O cruzamento geral pode ser convertido em cruzamento especial, mas este não pode ser convertido em cruzamento geral.
A inutilização do cruzamento ou do nome do banqueiro indicado considera-se como não feito.
Artigo 38º
Pagamento do cheque cruzado
Um cheque com cruzamento geral só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado.
Um cheque com cruzamento especial só pode ser pago pelo sacado ao banqueiro designado, ou, se este é o sacado, ao seu cliente. O banqueiro designado pode, contudo, recorrer a outro banqueiro para liquidar o cheque.
Um banqueiro só pode adquirir um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro.
Não pode cobrá-lo por conta doutras pessoas que não sejam acima indicadas.
Um cheque que contenha vários cruzamentos especiais só poderá ser pago pelo sacado no caso de se tratar de dois cruzamentos, dos quais um para liquidação por uma câmara de compensação.
O sacado ou o banqueiro que deixar de observar as disposições acima referidas é responsável pelo prejuízo que daí possa resultar até uma importância igual ao valor do cheque.
(...)”.
Constata-se do documento junto a fls. 27 que o cheque dos autos n.º … era “à ordem”, pelo que o mesmo podia ser transmitido por endosso. E também podemos constatar que o referido cheque era um cheque cruzado (cfr. canto inferior esquerdo, duas linhas oblíquas paralelas).
Do cotejo das normas que acabámos de citar resulta que um cheque com cruzamento geral (e o cheque em causa nos autos é um cheque com este cruzamento), só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado. Um banqueiro só pode adquirir um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro.
Não pode cobrá-lo por conta doutras pessoas que não sejam as acima indicadas. O sacado ou o banqueiro que deixar de observar as disposições acima referidas é responsável pelo prejuízo que daí possa resultar até uma importância igual ao valor do cheque – ver o Artigo 38.º -.
De acordo com as disposições legais citadas, podemos concluir também que um cheque cruzado se destina a ser depositado na conta do seu portador, que o pode ter recebido por uma série ininterrupta de endossos.
Nada impede, também, que o endosso seja feito em branco, ou seja, sem indicação do beneficiário.
E, como supra vimos, nos termos do artigo 35º, o “sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes”.
Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2.03.2004, lido no site www.dgsi.pt, – e aproveitado na decisão em recurso -, “…o facto de o cheque ter sido cruzado não obriga o R a tomar quaisquer outras providências. O cruzamento não proíbe o endosso. Tem, todavia, a vantagem de o cheque só poder ser pago a uma instituição de crédito ou a um cliente do sacado.
Portanto, o Banco apenas estava obrigado a verificar a regularidade formal do endosso e a apresentá-lo a pagamento, conforme mandato do portador, seu cliente, que lho entregou para cobrança.”
Assim, um Banco só é responsável perante o sacador se, ao efectuar o pagamento do cheque, agiu com culpa, ou seja, se os seus funcionários não tomaram as providências que uma pessoa de normal diligência, colocados nas mesmas condições, e perante a observação do título, teria tomado.
Por isso, quando se encarrega da cobrança de um cheque, o Banco deve tomar as precauções necessárias e verificar se o mesmo se encontra devidamente preenchido, designadamente, se tem rasuras ou outras anomalias que possam suscitar dúvidas sobre a sua idoneidade, pois, caso contrário, responde, nos termos gerais, pelos prejuízos causados ao seu verdadeiro titular.
Mais, o cruzamento equivale a uma recomendação de maior cautela, que obriga o estabelecimento a quem é apresentado a ter todo o cuidado na identificação do portador.
Pretende-se evitar que o cheque possa ser recebido por outro que não seja o legítimo possuidor. O portador irregular de um cheque cruzado tem mais dificuldade em levantar o mesmo porque o banco fica obrigado a identificá-lo, e por isso também o sacador pode perseguir mais facilmente o falsário.
Escreve a 1.ª instância:
“ É esta a protecção que resulta do art. 38 da LUCH ao equiparar a aquisição do cheque a um banqueiro com o adquirido a um dos clientes do banco.
Face ao exposto, para que o aqui Autor, pudesse obter ganho de causa na referida acção n.º …, haveria que ficar provado não só que o pagamento tinha sido feito a “não-cliente” do banco sacado, ou a um “não-banqueiro”, mas também, matéria de facto que permitisse dar como verificados os demais pressupostos da responsabilização do Banco “supra” referidos, ou seja, que este, ao efectuar o pagamento do cheque, agiu com culpa, ou seja, que os seus funcionários não tomaram as providências que uma pessoa de normal diligência, colocados nas mesmas condições, e perante a observação do título, teria tomado.
Ora, analisada a matéria de facto provada e não provada constante da sentença proferida no processo n.º …, no nosso entendimento, não logrou fazer-se prova de matéria de facto que permitisse dar como verificados todos os pressupostos da responsabilização do Banco acima referidos, tanto mais, que, para além do mais, e designadamente, logrou provar-se que “O Banco tendo-lhe sido apresentado a pagamento o cheque n.º … procedeu à verificação do mesmo e à conferência de assinatura, por semelhança”, ou seja, logrou provar-se matéria de facto que afasta a conclusão de que o Banco demandado não tomou as precauções necessárias, nem verificou se o aludido cheque se encontrava devidamente preenchido, designadamente, se tinha rasuras ou outras anomalias que pudessem suscitar dúvidas sobre a sua idoneidade.
Assim, face à matéria de facto que foi dada como provada, não vislumbramos que devesse ser aplicada diferente solução jurídica daquela que foi seguida na sentença proferida no Processo n.º ...
Dito por outras palavras, não vislumbramos que a mesma padeça de erro de direito, muito menos, de um qualquer erro crasso, clamoroso, evidente, palmar, intolerável, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.
Por último, também não vislumbramos, que a sentença proferida naqueles autos tenha deixado de se pronunciar sobre as questões que constituíam o “thema decidendum”, que delimitavam o objecto do processo, e que, no caso referido, se circunscreviam, como se disse, à questão de saber se o Banco era civilmente responsável, perante o Autor, pelo pagamento do cheque “supra” aludido.
Pelo contrário, face à matéria de facto alegada e controvertida, igualmente, não se vislumbra que, quanto à decisão dos factos provados e não provados, o Tribunal tenha deixado de se pronunciar sobre qualquer matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, tendo em consideração, o objecto do processo, acima delimitado”.
E, quanto a essa matéria – aquela que a 1.ª instância fixou na acção irrecorrível – esta instância nada pode fazer.
Significa, pois, que atenta a matéria de facto que resulta já assente nos presentes autos, não se encontra, desde logo, preenchido o primeiro pressuposto de que depende a responsabilização civil do Estado, a saber, que tenha sido proferida, por um Tribunal, decisão manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
Se o autor discorda dos fundamentos vertidos na sentença, bem como, da interpretação que a julgadora fez da lei atinente, tal não configura erro judiciário grosseiro, mas simples erro de interpretação da lei – isto na perspectiva do recorrente -, o que em face da inadmissibilidade de recurso ordinário, seria sempre um risco a correr por quem tem de demandar judicialmente outrem.
Por conseguinte, como escreve o recorrido nas suas alegações, “ …não pode o recorrente obter, por via de um processo cujo objecto e causa de pedir é diferente e completamente alheio à questão discutida naquela acção, uma indemnização que ali peticionou, sob pena de, cada vez que um processo não tiver um desfecho favorável a uma das partes, ser o Estado chamado a ressarcir a parte que ficou vencida”.
Nestes termos, na improcedência da instância recursiva, mantemos intocável a decisão proferida na 1.ª instância.

Passemos ao sumário:
1. A norma do artigo 13º, n.º 2 da Lei nº 67/2007, de 31/12 - “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” -, não tem aplicação, desde logo, quando a decisão em crise não admite recurso ordinário, como é o caso das acções sumaríssimas.
2. Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e respetiva valoração jurídica dos factos, na aplicação ao caso concreto, e que constituem o âmago da função jurisdicional, são insindicáveis em termos de erro, a não ser que o mesmo seja intolerável, indesculpável, que procedesse de culpa grave do errante, constituindo uma “aberratio legis”, e assim grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tornasse a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, procedendo de culpa grave do errante.
3. A própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não significa, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada, apenas significando que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo‑se ao primeiro, decidiu de modo diverso.
4. O cruzamento de um cheque equivale a uma recomendação de maior cautela, que obriga o estabelecimento a quem é apresentado a ter todo o cuidado na identificação do portador.
Pretende-se evitar que o cheque possa ser recebido por outro que não seja o legítimo possuidor. O portador irregular de um cheque cruzado tem mais dificuldade em levantar o mesmo porque o banco fica obrigado a identificá-lo, e por isso também o sacador pode perseguir mais facilmente o falsário.
5. Para que o aqui Autor pudesse obter ganho de causa na acção n.º … haveria que ficar provado não só que o pagamento tinha sido feito a “não-cliente” do banco sacado, ou a um “não-banqueiro”, mas também, matéria de facto que permitisse dar como verificados os demais pressupostos da responsabilização do Banco “supra” referidos, ou seja, que este, ao efectuar o pagamento do cheque, agiu com culpa, ou seja, que os seus funcionários não tomaram as providências que uma pessoa de normal diligência, colocados nas mesmas condições, e perante a observação do título, teria tomado.
4.Decisão
Pelo exposto, decidem os Juízes da 3.ª Secção desta Relação Coimbra, na improcedência do recurso, manter a decisão proferida pelo Tribunal da Marinha Grande.
Coimbra, 26 de Novembro de 2013.
(José Avelino Gonçalves - Relator -)
            Regina Rosa)
            Artur Dias)