Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/16.7GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
DECLARAÇÕES AUTO-INCRIMINATÓRIAS
Data do Acordão: 09/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 1.º, N.º 1, AL. E); 61.º, N.º 1, AL. D); 58.º, N.º 5 E 356.º, N.º 7, TODOS DO CPP
Sumário: I – Nos termos da al. e) do n.º 1 do art.º 1.º do CPP, suspeito é todo aquele relativamente ao qual existam indícios de que cometeu ou se prepara para cometer um crime.

A lei não contém qualquer definição de arguido, enquanto sujeito processual, mas, brevitatis causa, pode dizer-se que a diferença entre eles será de grau ou intensidade dos indícios, ainda que, em bom rigor, não seja exactamente assim pois mesmo que existam indícios suficientemente sólidos de que um determinado cidadão praticou ou se prepara para praticar um crime, este não adquire sem mais a qualidade de arguido, pois é a lei do processo que estabelece quem e em que condições passa a arguido.

II – Apenas a partir da constituição de arguido este goza, enquanto sujeito processual, nomeadamente, do direito ao silêncio, previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 61.º do C. Processo Penal, em cujos termos tem o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.

III – Como assim, as declarações eventualmente auto-incriminatórias prestadas pelo arguido quando ainda não tinha tal qualidade processual nem existia inquérito, podem ser probatoriamente valoradas, por não se encontrarem abrangidas pela previsão do n.º 5 do art.º 58.º e do n.º 7 do art.º 356.º do C. Processo Penal.

Só assim não será feita a prova de que o OPC protelou deliberadamente a constituição de arguido de modo a, contornando os limites legais, obter revelações incriminatórias.

Decisão Texto Integral:











Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Local Criminal de Porto de Mós, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, dos arguidos BM e JM, ambos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de furto na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º e 203º, nº 1, todos do C. Penal.

Por sentença de 23 de Outubro de 2018, foram os arguidos condenados, pela prática do imputado crime, o primeiro, na pena de cento e cinquenta dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo a multa global de € 750, e o segundo, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, acompanhada de regime de prova.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido BM, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

(...)

           

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A violação da proibição de valoração de prova;

(...)


*

            Importa ter presente, para a resolução desta questão, o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

               1. No período compreendido entre as 12h20m e as 14h00m do dia 02 de Janeiro de 2016, no âmbito de um plano previamente delineado e acordado entre ambos, em comunhão de esforços e de vontades, os arguidos BM e JM dirigiram-se a uma residência sita na Rua (...), em (...), com intenção de daí retirarem cobre.

2. A cerca de 100 metros do local, os Arguidos estacionaram o veículo em que se faziam transportar, de matrícula (...), marca (...), modelo (...), de cor verde, junto à estrada principal, em alcatrão, e abandonaram o veículo em direção à referida residência, munidos de uma tesoura de cortar ferro, de uma alavanca em ferro, de um ponteiro em ferro, de um alicate universal e de uma marreta com a cabeça de borracha.

3. Aí chegados, ambos os Arguidos dirigiram-se ao telhado de uma garagem anexa à residência, o qual é todo revestido a cobre.

4. Após, utilizando os vários objetos supra referidos, os Arguidos cortaram e arrancaram uma tira em cobre, pertencente à “pingadeira” do telhado da referida garagem.

5. Os Arguidos agitam com o intuito de retirarem e fazerem seu o cobre de que era revestido o telhado da referida garagem, mesmo sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que atuavam contra a vontade do respetivo proprietário.

6. Os Arguidos apenas não lograram o seu desiderato por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente por AM e FJ, a quem pertence a dita residência, terem, no entretanto, chegado junto das imediações da mesma (a residência), o que os impediu de prosseguir nos seus intentos, colocando-se em fuga, tendo, porém, o arguido BM sido intercetado nas imediações da residência, pela testemunha LP e, após, entregue à G.N.R. da Z (...), que foi contactada e acorreu ao local; e o arguido JM, que se havia escondido numas silvas existentes nas traseiras da residência, foi, minutos depois, detido pela dita Patrulha da G.N.R..

7. A referida tira de cobre foi encontrada a cerca de 20 metros da residência, escondida no meio do mato.

8. Os Arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta para além de censurável, era proibida e punida pela lei penal.

[Apurou-se, ainda, que:]

(...)

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A convicção do Tribunal baseou-se na prova documental oportunamente juntas aos autos, bem assim na pessoal produzida em audiência de discussão e julgamento, concretizando:
i. o aditamento elaborado no seguimento do auto de denúncia pelo Guarda Principal de 44 anos de idade, a exercer funções no Posto da G.N.R. da Z (...) desde há 16 anos, SP, a fls.17-18 dos autos, que, em audiência de discussão em julgamento, relatou a sua ida ao local dos factos, onde, no decorrer das diligências que, ali, desenvolveram (com o seu Colega de Patrulha, infra identificado, JS), “viram que faltava peças do telhado que estava perto do local”, “no pinhal, no meio do mato”, e “ferramentas no chão junto ao anexo” (da residência); e confirmou que identificaram os Arguidos, sendo o BM já seu conhecido “doutras situações”, mais referindo que, ainda no local, “primeiro eles [Arguidos] negaram”, mas depois disseram que ouviram a uns ciganos que havia ali um telhado em cobre e quiseram lá ir ver;
ii. (...)


*

            Da violação da proibição de valoração de prova

            1. Alega o recorrente – conclusões 4 a 15 – que o tribunal recorrido não podia ter fundado a sua convicção quanto ao elemento subjectivo do tipo do crime de furto por cuja prática foi condenado, no depoimento da testemunha SC, guarda principal da GNR, na parte em que reproduziu as conversas consigo havidas no local dos factos, depois de aí ter comparecido, pois que, nesse momento já era [o recorrente] fundado suspeito da prática do crime, encontrando-se, aliás, detido pelos proprietários da casa e pelos seus dois filhos, devendo por isso, ter sido imediatamente constituído arguido e informado dos seus direitos, antes da recolha de quaisquer declarações, pelo que, tendo sido violados os arts. 58º, nº 1, c) 355º e 356º, nºs 1 e 7 do C. Processo Penal, a valoração do depoimento, neste segmento, constitui proibição de prova nos termos do nº 5 do citado art. 58º, com a decorrente nulidade por violação dos princípios constitucionais do direito de defesa e do direito à não auto-incriminação, na vertente do direito ao silêncio.

            Resulta da leitura da motivação de facto da sentença recorrida, supra transcrita, que para a formação da convicção da Mma. Juíza a quo concorreu, também, o depoimento da testemunha SC, guarda principal da GNR, além do mais, na parte em que referiu que, ainda no local, “primeiro eles [Arguidos] negaram”, mas depois disseram que ouviram a uns ciganos que havia ali um telhado em cobre e quiseram lá ir ver

            O que está em causa é pois, a validade probatória da conversa havida entre os arguidos e portanto, entre o recorrente, e o identificado militar da GNR, enquanto OPC e a referência que este terá feito a tal conversa, no decurso do depoimento que prestou na audiência de julgamento.

            Vejamos então as concretas circunstâncias em que teve lugar esta conversa.

            De acordo com o teor do denominado auto de denúncia de fls. 2 a 5, a denunciante AM, pelas 12h20 do dia 2 de Janeiro de 2016, acompanhada dos seus filhos, (...) e do seu marido, FP, deslocou-se à sua residência, de que é proprietária, situada na (...), e ao aí chegar, de carro, avistou um cidadão a mexer no telhado da garagem, este, apercebendo-se da chegada do carro, atirou algo para o chão e fugiu pelo caminho me direcção ao pinhal, os seus dois filhos saíram do carro, o L (...) interceptou o cidadão em fuga e trouxe-o até junto de si, vindo depois a saber tratar-se de BM, depois, a denunciante chamou a GNR e chegada esta ao local, entregaram-lhe o dito cidadão e minutos depois os elementos da GNR detiveram um segundo cidadão, a denunciante verificou que os dois cidadãos haviam já cortado uma tira de cobre pertencente à pingadeira da garagem, sendo o telhado desta todo nesse material, tira que veio a ser encontrada pela GNR já afastada da garagem, tendo causado prejuízos de cerca de € 500.

            Do assim denominado auto sumário de entrega de fls. 19 consta que no dia 2 de Janeiro de 2016, pelas 12h30, LP deteve BM, pelos factos descritos nos autos à margem identificados, que entregou à patrulha de ocorrências composta pelo guarda principal SC pelo cabo JS.

            Do aditamento ao NUIPC 01/16.7GAPMS de fls. 17 a 18, elaborado pelo guarda principal SC consta, além do mais, que tendo sido comunicado pelo Posto o furto de metais não preciosos a patrulha deslocou-se para o local onde se encontravam cinco pessoas, sendo que uma retida por duas outras, procederam à sua identificação e a denunciante AM informou o sucedido [nos termos que constam do auto de denúncia], o indivíduo que estava retido, identificado como BM, foi entregue aos elementos da patrulha e negou a acusação sobre o furto da pingadeira de cobre, de seguida foi detectado um outro indivíduo nas imediações, escondido num silvado, que foi identificado como JM e detido, ambos os indivíduos negaram que as ferramentas encontradas no local [uma tesoura de cortar ferro, uma alavanca de ferro, um ponteiro, um alicate universal e uma marreta com cabeça de borracha] lhes pertencessem, o JM disse que tinham ido dar uma volta por ali por terem ouvido a uns ciganos falar de um possível furto de um telhado em cobre durante essa noite e, por curiosidade, quiserem ver o mesmo, o BM disse ter-se deslocado para o local no seu veículo que se encontrava estacionado a cerca de 100 metros, e nenhum dos indivíduos se queixou de qualquer mazela ocorrida durante a retenção/detenção.

            Na audiência de julgamento, a testemunha SC, guarda principal da GNR produziu o seguinte depoimento, na parte em que releva para a questão em apreço:

            - [A perguntas da Digno Procuradora Adjunta] Conhece o arguido BM bem como o co-arguido, do processo; foram chamados ao local por causa de um individuo que tinha sido retido pela proprietária da casa, onde estariam, supostamente, a furtar material; o arguido BM estava a ser retido pelos proprietários e os filhos; o outro individuo estava noutro local onde foi encontrado; sempre negaram que tenham sido os autores do ilícito, diziam que não tinham tirado nada, mais tarde encontraram uma peça do telhado, próxima do local, no pinhal; fizeram a identificação dos dois mas já conhecia o BM de outras situações; eles diziam que estavam ali porque tinham ouvido a uns ciganos, no dia anterior, que havia ali um telhado de cobre e quiseram verificar se havia ou não; não sabe se alguém lhes encomendou o cobre; as ferramentas estavam junto ao anexo mas não sabe se eram deles; não foi mencionado o valor da tira de cobre nem apresentado qualquer documento posteriormente;

- [A perguntas de Ilustre Defensor] Viu o indivíduo a ser retido, as ferramentas e a chapa de cobre.   

2. Aqui chegados.

Nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do art. 58º do C. Processo Penal, é obrigatória a constituição de arguido logo que um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254º a 261º. Os arts. 254º a 261º regulam a detenção no âmbito do processo penal.

Para a questão de que tratamos, interessa a detenção em flagrante delito, prevista no art. 255º do C. Processo Penal.

Existe flagrante delito quando o crime está a ser cometido – flagrante delito propriamente dito –, acabou de ser cometido – quase flagrante delito – ou o agente, logo após o crime foi perseguido por qualquer pessoa e encontrado com sinais ou objectos que revelem claramente que o cometeu ou nele participou – presunção de flagrante delito (art. 256º, nºs 1 e 2 do C. Processo Penal). 

Em caso de flagrante delito por crime punível com pena de prisão qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção (alínea a) do nº 1 do citado art. 255º). Porém, qualquer pessoa pode proceder à detenção se não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil a autoridade judiciária ou a entidade policial (alínea b) do nº 1 do mesmo artigo), mas neste caso, a pessoa que tiver efectuado a detenção entrega imediatamente o detido à autoridade judiciária ou à entidade policial que, por sua vez, deve redigir um auto sumário de entrega e comunicar de imediato a detenção ao Ministério Público (nº 2 do mesmo artigo).

Finalmente, nos termos do disposto no art. 261º, nº 1 do C. Processo Penal, a entidade que tiver efectuado a detenção ou a quem o detido tiver sido presente deve proceder à sua imediata libertação logo que seja manifesto que a detenção foi efectuada por erro sobre a pessoa ou fora dos casos em que era legalmente admissível ou que se tornou desnecessária.

In casu, e como resulta do que supra se deixou referido designadamente, do auto de denúncia de fls. 2 a 5 e do auto sumário de entrega de fls. 19, a detenção do recorrente foi efectuada em flagrante delito de eventual crime de furto, pelo cidadão L (...), filho da ofendida e testemunha nos autos. E tendo a ofendida, nesta decorrência, comunicado com a GNR, dando conta do sucedido e solicitando a presença deste OPC, quando no local compareceu a patrulha composta pelas testemunhas SC, guarda principal e JS , cabo, foi o recorrente entregue a estes militares pelo cidadão que o deteve.

3. É entendimento do recorrente que a sua entrega, nas descritas circunstâncias, aos militares da GNR, porque sobre si recaíam fundadas suspeitas da prática do crime denunciado, impunha que tivesse sido imediatamente constituído arguido, e só depois e já informado dos seus direitos, ouvido, o que não aconteceu, não podendo por isso e atento o disposto no nº 5 do art. 58º do C. Processo Penal, ser probatoriamente valorada a conversa informal havida com a testemunha SC.

Com ressalva do respeito devido, não cremos que assim deva ser.

a. A lei não contém qualquer definição de arguido, enquanto sujeito processual, podendo, brevitatis causa, dizer-se que terá tal qualidade todo aquele sobre quem existem indícios suficientemente seguros de que cometeu ou se prepara para cometer um crime. Já o suspeito, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 1º do C. Processo Penal, é todo aquele relativamente ao qual existam indícios de que cometeu ou se prepara para cometer um crime.

A diferença entre arguido e suspeito será portanto, de grau ou intensidade dos indícios, ainda que, em bom rigor, não seja exactamente assim pois mesmo que existam indícios suficientemente sólidos de que um determinado cidadão praticou ou se prepara para praticar um crime, este não adquire sem mais a qualidade de arguido, pois é a lei do processo quem estabelece quem e em que condições passa a arguido.

A constituição de arguido é feita mediante comunicação, oral ou escrita, da autoridade judiciária ou de OPC, de que a partir desse momento o visado deve considerar-se arguido num processo penal e, quando necessário, a explicação dos direitos e deveres que integram o respectivo estatuto (art. 58º, nº 2 do C. Processo Penal). Assim, é a partir da constituição de arguido que o suspeito adquire a qualidade de sujeito processual titular dos direitos e deveres do respectivo estatuto, essencialmente previstos no art. 61º do C. Processo Penal.

Entre os direitos que integram o estatuto do arguido conta-se o direito ao silêncio, previsto na alínea d) do nº 1 do art. 61º citado, nos termos da qual, o arguido tem o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.

Porém, como resulta do supra exposto, pressupostos deste direito são a existência do processo, v.g., do inquérito e a constituição de alguém como arguido pois que só a partir deste momento as suas declarações podem ser recolhidas e valoradas enquanto tal, enquanto declarações de arguido, meio de prova tipificado na lei, reduzidas a auto no âmbito do respectivo interrogatório, e reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 357º do C. Processo Penal.

Significa isto que, existindo processo e constituição de arguido, quaisquer declarações prestadas por este a OPC que não constem do respectivo e imprescindível auto de interrogatório, são declarações informais em sentido próprio e como tal, processualmente inexistentes e probatoriamente inaproveitáveis.

Pois bem.

Muito frequentemente a investigação criminal inicia-se sem que exista processo portanto, sem que exista inquérito. Com efeito, o art. 249º do C. Processo Penal atribui competência aos OPC para, ainda antes de dada a ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações e praticarem os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova designadamente, para colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime.

Temos por certo que nestas averiguações preliminares cabem a procura e recebimento de informações voluntariamente prestadas por cidadãos que é suposto terem conhecimentos sobre a prática da infracção constatada sem esquecer, mesmo que sejam suspeitos de tal prática. Trata-se, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2013, processo nº 292/11.0JAFAR.E1.S1, in www.dgsi.pt, de uma recolha informal de indícios que não é dirigida contra ninguém, e por isso, as informações então recolhidas pelo OPC são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Porque o direito ao silêncio vale apenas no âmbito do processo, se este ainda não existe e, consequentemente, não existe também arguido, o cidadão que antes de ser constituído arguido, faz declarações, auto-incriminatórias ou não, age no exercício do seu direito de expressão e torna-se responsável pelo afirmado.

Assim, sempre com ressalva do devido respeito por opinião diversa, vimos entendendo que o depoimento prestado em audiência de julgamento por testemunha pertencente a OPC que narra informações, auto-incriminatórias, prestadas pelo arguido quando ainda não tinha esta qualidade processual nem existia inquérito, pode ser probatoriamente valorado, por não se encontrar abrangido pela previsão do nº 5 do art. 58º e do nº 7 do art. 356º do C. Processo Penal (neste sentido, para além do acórdão supra referido, acs. do STJ de 20 de Setembro de 2017, processo nº 596/12.4JABGR.G2.S1 e de 15 de Fevereiro de 2007, processo nº 06P4593 e da R. de Coimbra de 7 de Outubro de 2015, processo nº 174/13.0GAVZL.C1 e de 26 de Junho de 2013, processo nº 220/11.2GBTND.C1 e em sentido contrário, ac. da R. de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2015, processo nº 53/13.1GDFND.C1, todos in www.dgsi.pt). Só assim não será, feita a prova de que o OPC protelou deliberadamente a constituição de arguido de modo a, contornando os limites legais, obter revelações incriminatórias.

b. É certo que, in casu, o recorrente se encontrava detido por um particular, no circunstancialismo descrito – ainda não existia inquérito nem arguido constituído – e que a intervenção da testemunha SC se ficou a dever à solicitação pelo captor e/ou sua mãe, a ofendida, da comparência do OPC, a fim de lhe poder ser entregue o detido.

Ora, a detenção em flagrante delito, de um cidadão por outro cidadão particular constitui sempre um acto grave que pode fazer incorrer este último em responsabilidade criminal e civil, se não estiverem, de facto, verificados os pressupostos legais da detenção.

Sendo relativamente rara a ocorrência da detenção em flagrante delito por particulares, compreende-se que o OPC quando, nos termos do disposto no nº 2 do art. 255º do C. Processo Penal, recebe o detido, averigúe, ainda que sumariamente, as condições em que o particular procedeu à detenção, desde logo para poder elaborar o respectivo auto sumário de entrega, o que normalmente fará, pedindo informações ao captor e ao detido e poder aferir, em função delas, a manifesta ilegalidade da detenção, caso em que deverá de imediato, conforme dispõe o art. 261º, nº 1 do C. Processo Penal, proceder à libertação do detido.

Se neste circunstancialismo, o recorrente, detido por um particular por eventual cometimento de crime de furto, e o co-arguido, negaram a prática do crime e justificaram a presença no local com o facto de na véspera terem ouvido uns ciganos dizer que ali existia um telhado de cobre e quiseram verificar se tal era verdade, a reprodução em audiência de julgamento desta negação e justificação pela testemunha e a subsequente valoração do depoimento pelo tribunal, neste segmento, não viola o disposto no nº 5 do art. 58º e no nº 7 do art. 356º do C. Processo Penal.  

Em conclusão, o tribunal a quo não violou a proibição de prova prevista no nº 5 do art. 58º do C. Processo Penal.


*

(...)

III. DECISÃO



Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (arts. 513º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).

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Coimbra, 11 de Setembro de 2019

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.