Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
Descritores: | LOCAÇÃO DE EQUIPAMENTOS LOCAÇÃO FINANCEIRA FACULDADE DE AQUISIÇÃO PELO LOCATÁRIO CONTRATO ANÁLOGO SUSPENSÃO DO CONTRATO CRÉDITOS SOBRE A INSOLVÊNCIA | ||
Data do Acordão: | 09/07/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DO COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 102.º E 108º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO) | ||
Sumário: | Um contrato de locação de equipamentos que não concede a faculdade de aquisição do bem pelo locatário no termo do contrato, não fica sujeito ao regime especial previsto no artigo 108.º do CIRE para o contrato de locação, ficando, antes, sujeito ao regime geral do artigo 102º do CIRE – suspensão automática do contrato e qualificação dos créditos do locador como créditos sobre a insolvência. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO A…, S.A., instaura a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra a Massa Insolvente de B…, S.A., por apenso ao processo de insolvência onde esta foi declarada, Pedindo: A condenação da Massa Insolvente, Ré, a pagar à Autora, nos termos do artigo 172.º do CIRE, as seguintes quantias: 1) 4.890,55 €, correspondente aos alugueres vencidos desde 01/07/2015 a 27/03/2020 [alugueres de julho de 2015 a março de 2020] e custos de aviso; 2) 1.829,45 €, a título de juros de mora vencidos desde 01/07/2015 até 27/03/2020, calculados à taxa convencionada nos contratos de locação, de 8% acima da taxa de juros para operações comerciais, atualmente correspondente à taxa de 15,00%; 3) as quantias vincendas a liquidar a final, a título de: a) alugueres vincendos, desde 01/04/2020 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados; e b) juros de mora vincendos, desde 28/03/2020 até integral pagamento, sobre a quantia do pedido 1), à taxa convencionada no contrato de locação, de 8% acima da taxa de juros para operações comerciais, atualmente correspondente à taxa de 15,00%. A Ré, Massa Insolvente, apresenta contestação, alegando, em síntese, ter o administrador de Insolvência (AI) sido informado de que os bens locados teriam sido levantados na sequência da denuncia do contrato por parte da insolvente operada no período posterior à aprovação do plano de revitalização e antes da declaração de insolvência, sendo que, de qualquer modo, ainda que assim não fosse, poderia a locadora ter, ela própria, denunciado o contrato face ao conhecimento da insolvência da devedora, incorrendo num abuso de direito ao manter uma relação contatual que bem sabia não ser correspetiva, concluindo pela improcedência da ação e pela sua absolvição da instância. Realizada audiência de julgamento, pelo juiz a quo foi proferida Sentença, de que agora se recorre, a julgar a ação procedente, por provada, condenando, em consequência, a Massa Insolvente, ora Ré, a pagar à Autora, nos termos do art. 172.º do CIRE, as seguintes quantias: 1) 4.890,55 €, correspondente aos alugueres vencidos desde 01/07/2015 a 27/03/2020 [alugueres de julho de 2015 a março de 2020] e custos de aviso; 2) 1.829,45 €, a título de juros de mora vencidos desde 01/07/2015 até 27/03/2020, calculados à taxa convencionada nos contratos de locação, de 8% acima da taxa de juros para operações comerciais, atualmente correspondente à taxa de 15,00%; 3) as quantias vincendas a liquidar a final, a título de: a) alugueres vincendos, desde 01/04/2020 até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, que se entende com a própria entrega dos bens ocorrida em17/12/2020; e b) juros de mora vincendos, desde 28/03/2020 até integral pagamento, sobre a quantia do pedido 1), à taxa convencionada no contrato de locação, de 8% acima da taxa de juros para operações comerciais, atualmente correspondente à taxa de 15,00%. * Inconformado com tal decisão, a Ré, Massa Insolvente, dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões: I. Por sentença entendeu a Mm.ª Juiz do Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz 1 condenar a Recorrente ao pagamento das seguintes quantias: (…). II. Mais considerou a douta sentença que tais quantias constituem dívidas da Massa Insolvente, ordenando o seu pagamento nos termos do artigo 172.º do CIRE, isto é, antes do pagamento dos créditos da insolvente. III. A Mm.ª Juiz a quo determinou que tais quantias vencidas constituem dívidas da Massa Insolvente por aplicação do artigo 108.º do CIRE. IV. No entanto, a Recorrente entende que este normativo apenas tem aplicabilidade quando estamos perante típicos contratos de locação em que o interesse primordial é o valor económico do bem, sem que intervenham outro tipo de encargos suportados pelo Locador V. E não a locações em que objeto contratual se funda no pagamento das prestações, sem que exista interesse no retorno do gozo do bem VI. Pelo que entende a Recorrente estarmos perante um contrato atípico, no qual se deve aplicar o regime geral instituído no artigo 102.º do CIRE, do qual resulta que o “(…) cumprimento do contrato fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.”. VII. Pelo que, tais quantias não se constituem dívidas da massa insolvente, mas sim de créditos sobre a insolvência, VIII. A opção por tal entendimento não frustra as legitimas expetativas das partes que tem sempre direito a serem ressarcidas dos prejuízos causados pelo incumprimento contratual, conforme prevê a alínea c) do n.º 3 do artigo 102.º do CIRE, IX. Nomeadamente o direito a exigirem, como crédito sobre a insolvência, isto é, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida. X. No entanto, tal obrigava a que a parte reclamasse o seu crédito junto do Sr. Administrador de Insolvência, nos termos do artigo 128.º do CIRE, XI. Ou, decorrido tal prazo, por ação de verificação ulterior de créditos a ser proposta contra a Massa Insolvente, conforme prevê o artigo 146.º do CIRE. XII.O que a Recorrente não logrou fazer. XIII. Pelo que, salvo melhor opinião, a douta sentença proferida pela Mm.ª Juiz do Juízo de Comércio de Coimbra, viola os artigos 50.º e 102.º do CIRE devendo esta ser alterada por douto Acórdão que julgue a ação improcedente e, consequentemente, absolva a Massa Insolvente nos pedidos formulados. * Pela Autora foram apresentadas contra-alegações no sentido da improcedência do recurso. Dispensados os vistos legais ao abrigo do nº4 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. * Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes: 1. Se o contrato em apreço se encontra sujeito ao regime contido no artigo 102º ou ao contido no artigo 108º, do CIRE – natureza do contrato em apreço * A. Matéria de Facto
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida com interesse para as decisões a proferir no presente recurso: * 1. Se o contrato em apreço se encontra sujeito ao regime contido no artigo 102º ou ao contido no artigo 108º, do CIRE
Invocando a existência de um contrato pelo qual procedeu à locação de determinados equipamentos à insolvente, a autora vem pedir, na presente ação, a condenação da massa insolvente no pagamento do valor corresponde os alugueres vencidos desde a declaração de insolvência, ou seja, desde 1 de julho de 2015 a 27 de março de 2020, bem como os alugueres vincendos até à cessação do contrato e restituição dos bens locados, e respetivos juros de mora, a ação veio a ser julgada procedente pela sentença recorrida, com base na consideração de que o contrato de locação em que o locatário seja o insolvente se encontra sujeito, não ao regime geral do artigo 102º CIRE, ou sequer ao regime específico previsto no artigo 104º, mas ao regime previsto no artigo 108º, pelo que, “o contrato em causa não se suspendeu com a declaração da insolvência, constituindo as rendas vencidas e vincendas até à respetiva denúncia, dívidas da massa insolvente, nos termos do art. 51.º, n.º 1, al. f), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” A Apelante insurge-se contra o decidido, argumentando encontrarmo-nos, não perante um típico contrato de locação, mas perante um contrato atípico – o interesse contratual positivo da locadora satisfaz-se com o pagamento das prestações por um bem que foi adquirido por esta exclusivamente por escolha da locatária e cuja restituição se torna irrelevante para a alocadora –, pelo que, não deveria ter sido aplicado o regime do artigo 108º, mas o regime geral quanto aos negócios não cumpridos previsto no artigo 102º do CIRE. O artigo 102º do CIRE estabelece um regime geral para os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso, relativamente a “qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte”. A aplicação de tal norma pressupõe o preenchimento cumulativo de três requisitos: i) existência de um contrato bilateral (sinalagmático); ii) não ter havido cumprimento total ou parcial; iii) que tal falta de cumprimento se reporte a ambos os contraentes[1]. Os contratos abrangidos pelo artigo 102º ficam com o seu cumprimento suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento, constituindo os créditos do contraente não insolvente meros créditos sobre a insolvência, caso o administrador opte pela recusa do cumprimento (als. c) e d) do nº3). Contudo, nem todo o negócio bilateral não cumprido (total ou parcialmente) por ambos os contraentes se encontrará sujeito ao regime constante do artigo 102º, uma vez que o CIRE prevê regimes específicos para determinadas situações, nomeadamente, no aqui nos interessa, nos artigos 104º e 108º. Assim, o artigo 104º, sob a epígrafe, “Venda com reserva de propriedade e operações semelhantes” tem em vista, não apenas os contratos de compra e venda com reserva de propriedade, mas, também, os contratos de locação financeira e de locação com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas as rendas pactuadas (o que resulta dos seus ns. 3 e 5). E, aplicando-se o artigo 104º, nº3, se o devedor insolvente é o comprador ou locatário que está na posse da coisa (que, por isso, terá sido entregue), e estando nele pressuposto o regime do artigo 102º e até onde o seu nº1 se aplique, o cumprimento do contrato fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou pela recusa de cumprimento[2]. Por sua vez, os artigos 108º e 109º consagram igualmente um regime específico quanto aos efeitos da declaração de insolvência sobre o “contrato de locação”, o primeiro no caso de insolvência do locatário e o segundo aos casos em que é insolvente o locador. Segundo o nº1 do artigo 108º, a declaração de insolvência do locatário não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja o locatário, mas o administrador pode denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, sendo que, se o não fizer, o direito às rendas que se vençam após a declaração de insolvência constitui crédito sobre a massa. É aqui que reside o ponto fulcral da Apelação: se os créditos reclamados forem integrados no artigo 108º, como foi entendido pela decisão recorrida, a autora terá direito aos montantes por si por esta via peticionados por constituírem créditos sobre a massa, enquanto que, se forem sujeitos ao princípio geral do 102º (com ou sem as especificidades do artigo 108º), constituirão meros créditos sobre a insolvência, acarretando a improcedência da ação. Vejamos, então, o âmbito de aplicação de cada uma das citadas normas e as caraterísticas do contrato em apreço. Tendo o artigo 108º CIRE, como antecedente, no CPEREF, o artigo 169º, constata-se estabelecer-se agora um regime para a locação em geral, enquanto o anterior regulava apenas o contrato de arrendamento. A declaração de insolvência não afeta, em si mesmo, o contrato de locação, em que o insolvente é arrendatário conferindo, tão só, ao administrador da insolvência a possibilidade de lhe por termo mediante denúncia[3]. José de Oliveira Ascensão[4] refere-se a tal situação como de manutenção automática do contrato, só atribuída pelo CIRE em casos de contratos de que resultam relações duradouras (como o caso de insolvência do trabalhador ou do prestador de serviços). A razão de ser para tal regime séride em que, uma vez que o locatário continua a usufruir do gozo do bem, deverá continuar a pagar a respetiva renda ou aluguer, como crédito sobre a massa [art. 51º, nº1, als. e) e f)][5]. Quanto ao locador, o nº4 limita a faculdade de resolução do contrato que lhe caberia, não permitindo a resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas ou alugueres relativos ao período anterior a essa declaração ou na deterioração da situação financeira do locatário. Sendo esse o enquadramento que lhe foi dado na sentença recorrida, sustenta a Apelante/Massa falida que o contrato em apreço não reveste os elementos essenciais de um típico contrato de locação: na típica locação, a prestação do locatário adquire o valor económico do bem, sem que intervenham outro tipo de encargos suportados pelo locador, como o é o pagamento do risco do contrato; o interesse da locadora satisfaz-se com o pagamento das prestações por um bem que foi adquirido por escolha exclusiva da locatária e cuja restituição se torna irrelevante para a locadora, porquanto o amago negocial reside no pagamento das prestações e não no retorno do gozo de um bem que lhe não serve, nem constituiu qualquer utilidade económica futura. Por sua vez, a Apelada/credora defende que as apontadas caraterísticas – a locadora adquirir os bens escolhidos pela locatária; esta se obrigar a pagar os alugueres que amortizem integralmente o preço de aquisição, as despesas de execução do contrato e a margem de lucro estimada, podendo ser renovado por períodos de seis meses, não constituiu qualquer obstáculo à qualificação do contrato como típico contrato de locação ou aluguer de bens móveis. Segundo o artigo 1º do DL 149/95, de 24 de junho, a locação financeira é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o preço acordado, por um preço determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios fixados”. Sendo um contrato bilateral, dele emergem os seguintes elementos constitutivos: - a indicação da coisa a comprar ou a construir (e também do fornecedor) por parte do locatário; - o dever de aquisição da coisa ao fornecedor que incumbe ao locador (envolvendo aqui uma operação triangular); - o dever de (o locador) conceder temporariamente o gozo da coisa previamente escolhida (ou mandada construir) pelo locatário; - a faculdade de aquisição da coisa locada no termo do contrato pelo locatário. Fernando de Gravato Morais[6] distingue, ainda, a locação financeira de amortização integral – em que a soma dos pagamentos a realizar pelo locatário cobre os montantes pagos pelo locador com a aquisição da coisa e outros encargos, assim como o lucro que este obtém, o valor previsto no contrato (que corresponde à soma que não foi objeto de amortização) para o caso de compra do bem pelo locatário é, portanto, muito reduzido – da locação financeira de amortização parcial, em que a importância global a pagar pelo locatário fica, em regra, muito aquém do valor despendido com a aquisição da coisa pelo locador e dos outros custos (ex. despesas com a aquisição); só cobre portanto uma parte desse montante, o valor residual é, nesta hipótese, superior e relevante. Para Rui Pinto Duarte[7] esta ultima modalidade configura uma verdadeira locação, embora acoplada a uma promessa unilateral de venda, enquanto para Diogo Leite de Campos[8] esta modalidade está mais próxima do renting, a ponto de aparecerem confundidas na prática e nos autores. Embora a locação financeira tenha alguns pontos de contacto com a locação ordinária (artigo 1022º CC[9]) – dever temporário de concessão do gozo da coisa, caráter temporário e retribuído do negócio e o facto de a propriedade do objeto pertencer ao locador na vigência do contrato –, dela se afasta nas seguintes características: - a obrigação de proporcionar o gozo da coisa (artigo 1022º CC) tem um conteúdo diverso do dever de conceder o gozo do bem[10] do art. 1º DL 149/95); - a retribuição tem funções diversas numa e noutra hipótese – na locação corresponde à mera contrapartida do gozo da coisa ao passo que no leasing financeiro engloba outras vertentes; as rendas são prestações periódicas na locação e prestações fracionadas no leasing financeiro[11]; - a coisa a adquirir ou a construir é indicada ou é escolhida pelo locatário financeiro; - o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário financeiro, salvo estipulação em contrário, encontrando-se este obrigado a efetuar seguro do bem locado (artigos 15º e 14º do DL nº149/95); - o contrato deve prever a opção de compra pelo locatário financeiro, no final do contrato, por um determinado preço. No caso em apreço, como reconhece a própria autora, o contrato reúne inúmeras características comuns com o de locação financeira: - a locadora obrigou-se a adquirir os bens previamente escolhidos pela locatária; - os alugueres previstos no contrato destinam-se a amortizar integralmente o preço da aquisição, as despesas de execução do contrato e a margem de lucro da locadora[12] – tendo um preço de aquisição de 3.907,71 €, o contrato foi celebrado por um período de 60 meses (cinco anos), com uma prestação mensal de 85,58 € (ascendendo as prestações a um total de 5.134,8 €); - a locatária assumiu os riscos de perda acidental, destruição, deterioração ou furto, sendo o risco coberto por um seguro de propriedade, assumindo a locatária os respetivos custos; - quanto à previsão, no contrato em apreço, de, findos os cinco aos iniciais, renovação do contrato por períodos sucessivos de seis meses, caso as partes não comuniquem a respetiva denúncia com uma antecedência prévia de 3 meses sobre a data do respetivo termo, é uma possibilidade que pode igualmente ser acordada na locação financeira (nº7 do Dec. Lei nº 149/95). Contudo, dele se afasta numa nota importante – na inexistência do direito de aquisição do bem por parte do locador, uma vez findo o contrato. Não é um contrato de locação financeira por dele se afastar ao não contemplar uma das suas notas essenciais – a possibilidade de aquisição do bem no final do contrato –, e também não é um comum contrato de locação, sobretudo pelo facto de a remuneração não ser o correspondente do gozo da coisa, mas amortização total dos custos de aquisição do bem locado e com a execução do contrato, bem como do lucro estimado, encontrando-nos perante um contrato atípico. Contudo, o facto de se poder qualificar como um contrato atípico, tal não significa que o mesmo vá recair, sem mais, no regime “geral” previsto no artigo 102º, como pretende a apelante, havendo que aferir, partindo da ponderação de interesses efetuada pelo legislador, de entre o regime previsto no art. 102º, ou o que dos artigos 102º e 104º resulta para o contrato de compra e venda com reserva de propriedade e contratos análogos, ou do regime previsto no artigo 108º para a locação comum, qual o regime que melhor se adaptará ao contrato em apreço, tendo em vista as suas caraterísticas específicas. Desde logo se salienta que o artigo 104º do CIRE, estabelecendo um regime especial (embora assentando do regime “geral” do artigo 102º), para a venda com reserva de propriedade e “operações semelhantes”, nomeadamente, ao contrato de locação financeira e “ao contrato de locação com a clausula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas”, coloca o assento tónico na transferência final da propriedade. Por tal razão, o regime aí previsto não será de aplicar, por analogia, a um contrato em que, partilhando embora inúmeras semelhanças ou pontos em comum com a locação financeira, dela se afasta precisamente ao não facultar a aquisição a final do bem pelo locatário, sendo que o artigo 104º faz depender expressamente a sua aplicabilidade ao contrato de locação da existência de “cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas”. Por se tratar de um contrato de locação “atípico”, sustenta, então, a Apelante a sua sujeição ao regime “geral” do artigo 102º e não ao regime especialmente previsto para o contrato de locação no artigo 108º. Para optarmos pela aplicação de um regime ou outro, haverá que atentar nas diferenças essenciais nas soluções encontradas em cada um deles – o artigo 102º prevê a suspensão do cumprimento do contrato até que o administrador declarar se opta pela sua execução ou recusa o cumprimento; o artigo 108º estabelece a manutenção do contrato até ao momento em que o administrador opte pela sua extinção mediante denúncia – e nas razões pelas quais o legislador fez questão de dele se afastar no contrato de locação. A tal respeito, afirmava Maria do Rosário Epifânio a propósito de igual solução consagrada no artigo 169º do CPEREF, quanto à falência do arrendatário (regime este agora alargado à locação em geral): “A consagração deste regime de continuidade do arrendamento deve-se à natureza do contrato: uma vez que se trata de um contrato duradouro, enquanto o liquidatário judicial não optar pela extinção do contrato, ao arrendatário continua a ser necessariamente a proporcionado o gozo da coisa e, correspondentemente, ao senhorio deve continuar a ser reconhecido o direito ao pagamento das rendas na íntegra. Isto significa, por outras palavras, que a solução de manutenção do contrato (sem qualquer suspensão da sua execução), se e enquanto o liquidatário não optar pela extinção do contrato, não apresenta a sua razão de ser directa ou imediata na tutela do senhorio in bonis (maxime do pagamento integral das rendas após a declaração de insolvência): pelo contrário, ela fundamenta-se antes na necessidade de proteção do interesse da massa falida, id quod plerumque accidit – ou seja, da necessidade de permitir à massa falida a manutenção do gozo dos bens integrantes da massa falida[13]”. E é também na atribuição da faculdade ao Administrador de Insolvência, não de execução ou incumprimento (como no artigo 102º), mas de denúncia do contrato, figura privativa dos contratos duradouros, que se renovam por vontade (real ou presumida) das partes ou por determinação da lei ou que foram celebrados por tempo indefinido[14], que encontraremos o seu campo de aplicação. Como sustenta Pedro Romano Martinez, a denúncia do contrato é exclusiva de contratos com prestações duradouras, aplicando-se exclusivamente a contratos cuja execução se protela no tempo, contratos renováveis automaticamente ou por tempo indeterminado, como é o caso de um contrato de locação ou de agência[15]. Segundo este autor, tais particularidades valem quando, pelo menos uma das prestações se execute de modo prolongado, mas não relativamente a negócios com prestações fracionadas ou divididas nem com prestações de cumprimento temporalmente desfasado Martinez[16]. E, como salienta José de Oliveira Ascensão[17], se há casos em que o negócio não é atingido pela superveniente declaração de insolvência – insolvência do trabalhador (art.113º), prestação de serviço pelo devedor (art. 114º), locação em que o locatário é o insolvente ou em que o insolvente é o locador (art. 108º e 109º) –, apreciando tais situações em globo, afigura-se possível concluir que a manutenção automática só se dá em casos de contratos de que resultam relações duradouras. Ora, no contrato em apreço, embora globalmente considerado de natureza duradoura – a prestação do locador tem carater continuado –, a prestação do insolvente constituiu uma dívida a prestações[18]. Quanto ao tempo da sua realização, distingue a doutrina entre prestações instantâneas – a prestação do devedor esgota-se num só momento –, prestações fracionadas ou repartidas – cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas mas em que o objeto da prestação está previamente fixado, sem dependência da duração da relação contratual (ex., preço pago a prestações) – e prestações duradouras – a prestação protela-se no tempo, tendo a duração temporal da relação creditória influência decisiva na conformação global da prestação (obrigações típicas ou fundamentais do senhorio e do arrendatário, do depositário, da entidade patronal e do trabalhador)[19]. Nas prestações duradouras[20], o tempo influi decisivamente na determinação do seu objeto, especialmente no seu montante, enquanto nas prestações fracionadas o decurso do tempo contende apenas com o modo de execução da prestação, de modo repartido, dividindo-a em dias ou mais prestações que se sucedem por um maior ou menor lapso temporal. Nos contratos de execução duradoura, cujas prestações se protelam no tempo de modo contínuo ou reiterado, como é o caso da locação, ou nos contratos de com prestações de execução prolongada, pelo menos uma das prestações é realizada durante um lapso temporal, não sendo executada de modo instantâneo. No contrato em apreço, embora a sua execução se protele no tempo, a prestação do locatário/insolvente, como já referimos configura uma dívida a prestações (e não uma dívida periódica, como o é a obrigação de renda do arrendatário/locatário comum[21]), estando em causa uma obrigação de restituição: o objeto da prestação foi, desde o início, pré-fixado, não estando dependente da duração da relação contratual. Para que se tratasse de um contrato de aluguer/locação, seria necessário que as partes se limitassem a convencionar a cedência temporária do gozo da coisa a troco de uma remuneração correspondente, segundo a representação e vontade de ambas, ao seu valor de uso – remuneração que, na sua medida exata, ficaria dependente do decurso do tempo, sendo maior ou menor em função da duração, também, maior ou menor, do contrato[22]. Tal como na locação financeira típica[23], a obrigação do locatário/insolvente é fracionada quanto ao seu cumprimento, mas unitária em si mesma – cada uma das prestações a cujo pagamento se obrigou não é mais do que uma parcela ou fração do montante global, previamente definido, a reembolsar ao locador. A sua função não é de remunerar o locador pela concessão temporária do gozo da coisa locada, mas reembolsá-lo da quantia que adiantou com a sua aquisição, acrescida dos juros remuneradores da locadora/financiadora. Estas caraterísticas do contrato em causa, em que se encontra presente a função de financiamento da utilização do bem (o bem, previamente escolhido pelo locatário, é adquirido pelo locador para ser entregue ao locatário, por quem correrá o risco de perda e deterioração da coisa) e que determina o conteúdo das prestações do locador – a prestação de conceder o gozo do bem tem aqui conteúdo diverso da obrigação de proporcionar o gozo da coisa (art. 1022º CC) – e do locatário insolvente – a retribuição não corresponde à mera contrapartida do uso do bem, englobando outras vertentes, cobrindo o preço de aquisição do bem e o lucro financeiro do locador –, afastando-se do contrato de arrendamento/locação geral, leva-nos a não lhe considerar aplicável o regime especialíssimo previsto nos arts. 108º e 109º para o contrato de locação[24]. Considerando alguns autores que a “locação financeira”, tal como se acha consagrada no DL 149/95, contém em si vários contratos – compra e venda entre o vendedor e a empresa de leasing, a concessão do uso do bem ao locatário financeiro, a eventual prorrogação desse contrato, e a eventual aquisição do bem a final pelo locatário –, diremos que o contrato em apreço, no qual as obrigações principais do locador, de adquirir a coisa e de conceder o seu gozo, têm uma única finalidade, a de permitir a concessão, por parte do locador, de um financiamento ao locatário, e no qual apenas se afasta do esquema da pela ausência da faculdade de aquisição do bem pelo locatário por um valor residual, integrará uma “locação financeira” atípica ou um contrato de crédito com caraterísticas específicas em que o locador financia o uso da coisa locada. Concluímos, assim, que o contrato em apreço se encontrava, tal como sustenta a Apelante, sujeito ao princípio geral consagrado no artigo 102º do CIRE, ou seja, declarada a insolvência, o seu cumprimento ficaria suspenso até à declaração do administrador de opção pelo seu cumprimento ou recusa de cumprimento. Em tal caso, se o administrador de insolvência optar pela execução do cumprimento, o crédito do outro contraente é um crédito sobre a massa (artigo 102º, nº4 e 51º, nº1, al. f). Se o administrador da insolvência optar pela recusa do cumprimento, não há lugar à restituição do que foi prestando, ficando o contraente não insolvente com direito, como crédito sobre a insolvência (als. c) e d), do nº3 do artigo 102º): - o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada; - o direito à indemnização pelos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento. Não se fixando prazo para o seu exercício, o seu nº2 atribui ao outro contraente o direito de fixar ao administrador prazo razoável para o exercício da sua opção. No caso em apreço, quanto mais não seja, com a contestação pela massa falida da presente ação, torna-se óbvio que o administrador não pretende cumprir, tendo-se por recusado o cumprimento do contrato[25]. Tratando-se de créditos sobre a insolvência, haveriam os mesmos de ter sido reclamados pela via da reclamação de créditos no processo de insolvência (arts. 128º e ss. CIRE), ou mediante a ação prevista no artigo 146º, a propor contra a massa insolvente, os credores e o devedor. Não integrando as prestações a que a autora tenha direito a natureza de créditos sobre a massa, a ação será de improceder. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em, julgando a apelação procedente, revogar a decisão recorrida, julgando a ação improcedente e absolvendo a Ré do pedido. Custas a suportar pela Apelada. Coimbra, 07 de setembro de 2021
V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC. (…)
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