Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/11.9IDCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CRIME FISCAL
MULTA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (1.º JUÍZO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º, N.º 7, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS (RGIT); ARTIGOS 29.º, N.º 5, E 30.º, N.º 3, DA CRP
Sumário: Padece de inconstitucionalidade material a norma do artigo 8.º, n.º 7, do RGIT, por violação do disposto nos artigos 29.º, n.º 5, e 30.º, n.º 3, da CRP da Constituição, quando aplicável a gerente de ente colectivo que, tal como este, foi condenado, a título pessoal, pela prática da mesma infracção tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1 - No âmbito do processo n.º 9/11.9IDCBR-A, foram os arguidos «A..., Lda.» e B..., condenados por sentença de 20.12.2011, a primeira, pela prática de um crime de abuso fiscal simples p. e p. pelos artigos 7.º, nº 1 e 105º, nºs 1, da Lei n.º 15/2001, de 5/6; e o segundo pelo mesmo crime com referência ao artigo 6.º do citado diploma legal, respectivamente nas penas de 300 dias de multa, à razão diária de € 25,00, no montante de € 7 500, e de 350 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, no total de € 3500,00.

2 – Não tendo a Sociedade arguida procedido, no prazo legal, ao pagamento voluntário da multa em que foi condenada e, não se mostrando viável a execução patrimonial, prosseguiram normalmente os autos, mediante promoção do Ministério Público, até que, em 21 de Fevereiro de 2013, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:

«Verificam-se, assim, preenchidos os pressupostos do art. 8º, nº 7, do RGIT, pelo que se declara o arguido, B..., solidariamente responsável pela multa (pena) aplicada à sociedade arguida».

3 -  Inconformado com o assim decidido recorre o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

3.1 – No caso em apreço não tem aplicação o estatuído no art. 8º, nº 1 da RGIT.

3.2 – O devedor subsidiário (ora Recorrente) só pode ser demandado na ausência, total ou parcial, de bens do obrigado principal(sociedade arguida) e desde que demonstre que ele (devedor subsidiário) agiu com culpa (dolo ou negligência) para a insuficiência de bens da sociedade.

3.3 – Este último facto não foi dado como provado na sentença condenatória.

3.4 – Não foi igualmente dado como provado que contra ele foi instaurado um processo de execução fiscal.

3.5 – Da mesma forma que não foi dado como provado que tenha havido qualquer reversão da divida contra o obrigado subsidiário.

3.6 – Não existem elementos no processo, nem tais elementos foram dados como provados, que nos permita concluir que foi por culpa do ora Recorrente – sócio gerente da arguida – que o património da sociedade se tornou insuficiente para o seu pagamento.

3.7 – Assim, as condições e os meios em que a referida responsabilidade pode e deve ser accionada nos termos do art. 8º, nº 1 do RGIT, não se encontram preenchidos no caso.

3.8 – No caso, não tem, igualmente, aplicação o estatuído no art. 8º, nº 7 do RGIT.

3.9 – Esta norma não é de aplicação automática, ao contrário do que parece entender o tribunal  a quo.

3.10 – Por outro lado, entendendo-se que o nº 7 do art. 8º, do RGIT prevê uma responsabilidade solidária de natureza civil, configura a responsabilidade pelo pagamento da multa de quem não é agente de infracção que consubstancia uma violação clara do principio constitucional de intransmissibilidade das penas (art. 30º, nº 3 da CRP).

3.11 – A declaração da responsabilidade subsidiária tributária do arguido para pagamento da multa da sociedade por si gerida – art. 8º - não cabe na competência do tribunal penal, mas sim tributário.

3.12 – A norma do art. 8º, nº 7 é inconstitucional por violação do principio no bis idem e por violação do principio da proporcionalidade na dimensão relativa à exigibilidade/necessidade.

3.13 – Assim, dúvidas não podem haver que a aplicação ao caso em apreço da norma do art. 8º, nº 7, do RGIT é inconstitucional por violação do disposto no art. 29º, nº 5 do CRP, o que, desde já, se requer, para todos os efeitos legais.

 4 - Por despacho de fls. 15, foi o recurso admitido e fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5 - Na 1.ª instância, a Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido.

6 - Na Relação pronunciou-se o Exmo. Procurador – Geral Adjunto, concluindo que:            

«O despacho recorrido mais não fez do que declarar o que já resultava da lei. Por outro lado, não houve qualquer ofensa do caso julgado, na medida em que, ao considerar o recorrente solidariamente responsável pelo pagamento da multa em que a arguida sociedade foi condenada e ao determinar a sua notificação para proceder ao respectivo pagamento, não  foi contrariado, nem alterado nada do que foi decidido na sentença condenatória.

De modo algum se pôs em causa o sentido da condenação daquela arguida, não sendo incompatível com a responsabilidade criminal desta, ali definida, o facto de se ter reconhecido, em momento posterior, que o recorrente também é responsável solidário pelo pagamento da multa em que ela foi condenada”.

Assim, a nosso ver, nada obsta, a que o requerimento do M º P º, pedindo a condenação do responsável solidário, nos termos do art. 8 º, n º 7, do RGIT, possa ser feito posteriormente à sentença condenatória, quando se apurar a impossibilidade do pagamento da multa pela Sociedade".

7 - Colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO RECURSO

A questão, a decidir, traduz-se em saber, se a previsão do art. 8º, nº 7, do RGIT -  norma que fundamentou a declaração de responsabilidade solidária do recorrente  pelo pagamento da pena de multa em que a sua representada foi condenada, num quadro em que, também ele Recorrente, enquanto sócio-gerente, foi igualmente condenado -  é materialmente inconstitucional.

III – FUNDAMENTAÇÃO

O tribunal recorrido, depois de reconhecer a inaplicabilidade da responsabilidade subsidiária decorrente do nº 1 do art. 8º Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 15 de Junho, entendeu que a solidariedade resultante do nº 7 do mesmo artigo e diploma, operando como responsabilidade meramente civil e não penal, se impunha no caso.

Donde, não tendo a arguida pago, atempadamente, a multa em que foi condenada por sentença transitada em julgado e, na impossibilidade de execução patrimonial daquela quantia, decidiu a juiz a quo, declarar o Recorrente solidariamente responsável pelo pagamento da multa da sociedade, decisão essa, que o arguido impugna, por meio deste recurso.

A questão não é nova, nem pacifica. Isso mesmo é espelhado nos autos, pela invocação dos vários arestos, em favor das duas orientações plasmadas neste Recurso: a que pugna pela inconstitucionalidade do citado art. 8º, nº 7, sustentada pelo, Recorrente e, a que defende o contrário, como é o caso da decisão recorrida e do Ministério Público.

Quanto a nós, salvo o devido respeito pela opinião contrária, acolhemos os argumentos que apontam a norma como inconstitucional.

Tendo o acórdão desta Relação de 2.10.2013 – acessível em www.dgsi.pt -  decidido um caso, em tudo, semelhante ao nosso, e sufragando, inteiramente, a respectiva, fundamentação, chamamo-lo à colação.

Aí se escreveu:

“Nos termos do n.º 7 do citado artigo 8.º:

«Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso».

Resulta inequívoco ter sido a coberto de tal preceito que o despacho recorrido declarou o arguido/recorrente responsável pela pena de multa aplicada à sociedade, igualmente, arguida no processo, sem embargo de o mesmo, (…) também haver sofrido, a título pessoal, condenação [pelo mesmo crime] em pena de multa.

Sendo este o quadro, aderimos aos fundamentos do já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2013, do qual respigamos:

«Em relação à norma do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT, está em causa uma responsabilidade solidária de «quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária» pelas multas e coimas aplicadas à pessoa colectiva pela prática da infracção, e «independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso».

Prevê-se aí uma responsabilidade solidária, que permite que o pagamento das multas e coimas aplicáveis à pessoa colectiva no âmbito do respectivo processo criminal ou contra-ordenacional possa ser directamente exigido ao devedor solidário. A obrigação incide sobre aquele que presta colaboração dolosa, abrangendo qualquer das situações de comparticipação na prática de infracção tributária, e é cumulativa com a própria responsabilidade pessoal que dessa conduta possa resultar para o agente …

Ainda que a norma sindicada consagre uma responsabilidade solidária em relação a multas e coimas aplicadas pela prática de infracção tributária, a questão de constitucionalidade suscitada, por efeito dos contornos do caso concreto, encontra-se confinada unicamente à previsão normativa que impõe ao administrador ou gerente uma obrigação solidária pelo pagamento de multas em que a pessoa colectiva tenha sido condenada em processo penal, e num caso em que o representante da pessoa colectiva foi condenado juntamente com esta por crime fiscal em coautoria material».

Após realçar a diferença entre a situação colocada e aquelas outras respeitantes às normas das als. a) e b) do n.º 1 do citado artigo 8.º  sobre as quais o Tribunal Constitucional já se pronunciou,  prossegue o aresto: «Não é curial, contrariamente ao que se afirma, por vezes na jurisprudência cível, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. O pressuposto da obrigação solidária é a colaboração dolosa na prática do crime tributário, e é essa conduta que torna o gerente responsável solidariamente pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa colectiva…

Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil … ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação directa da pena de multa. Isso porque a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infracção, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa colectiva no interesse de quem agiu.

A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa colectiva.

(…)

Desde que, porém – como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infracção, o que aí está em causa é, não já a transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa colectiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infracção corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito …», para concluir no sentido de que «a responsabilidade sancionatória decorrente dessa disposição está interdita por implicar uma dupla valoração do mesmo facto para efeitos penais» [destaque nosso] e, como tal, pelo julgamento de inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, da norma do artigo 8º, n.º 7, do RGIT quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção fiscal.

Não obstante, ainda que outro fosse o entendimento, acolhendo os fundamentos dos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 297/2013 e 354/2013 – defendendo estar em causa uma transmissão da responsabilidade penal - diferente não seria o juízo, agora, numa nova - mas, atentos os princípios em crise, sempre conexa - dimensão, qual seja por violação do artigo 30º, nº 3 da Constituição, concretamente do princípio da pessoalidade das penas, enquanto proibição de que «a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento».

Como referido no acórdão n.º 297/2013 outros obstáculos surgem ao n.º 7 do artigo 8º do RGIT «tais como o princípio da pessoalidade das penas, dedutível a partir do artigo 30º, n.º 3 da CRP», pois que tendo as sanções penais «uma natureza pessoalíssima, daí fluindo que a medida de tais sanções, assim como a própria moldura sancionatória que as baliza, há-de permitir sob pena de subversão completa daquela natureza, a valoração de factores pessoais do agente e da sua conduta culposa …», natureza, essa, que o artigo 8º, nº 7, do RGIT, «ao determinar a responsabilidade sancionatória de quem tenha colaborado dolosamente na prática da infracção, resultando quer a moldura sancionatória, quer a medida de tal responsabilidade, de critérios estranhos à conduta dos sujeitos aí responsabilizados, ou, pelo menos, de critérios que não permitem de todo respeitar a natureza pessoal e específica já assacada às sanções penais», compromete, sempre resultaria incontornável a inconstitucionalidade do preceito em causa por violação do sobredito princípio”.

Com estes argumentos e sem necessidade de outros considerandos, damos razão ao Recorrente, julgando provido o recurso.

IV - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os juízes na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, desaplicando a norma constante do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT considerada materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 29º, nº 5 da Constituição e - noutra dimensão – do princípio da pessoalidade das penas consagrado no artigo 30º, n.º 3 da CRP, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Sem tributação

Coimbra, 18 de Dezembro de 2013

Alcina da Costa Ribeiro (Relatora)

Cacilda Sena