Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2504/20.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: MÁ FÉ
CONCEITO
MULTA
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Data do Acordão: 03/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 542º, Nº 2, AL. A9 DO NCPC; 27º, Nº 4 DO RCP.
Sumário: 1. Litiga de má quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar (art.º 542º, n.º 2, alínea a), do CPC).

2. A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga, atuação que merece censura e condenação.

3. O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça.

4. A multa por litigância de má fé deve ser fixada tendo em conta os critérios legais constantes do n.º 4 do art.º 27º do Regulamento das Custas Judiciais, nomeadamente, a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património

.5. Como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva e, simultaneamente, preventiva, que apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração aquela situação económica, garantindo que tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo.

6. A desistência do pedido não prejudica a apreciação da litigância de má fé.

Decisão Texto Integral:


Apelação 2504/20.0T8CBR.C1

Relator: Fonte Ramos

Adjuntos: Alberto Ruço

                  Vítor Amaral

               Sumário do acórdão:       

1. Litiga de má quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar (art.º 542º, n.º 2, alínea a), do CPC).

2. A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga, actuação que merece censura e condenação.

3. O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça.

4. A multa por litigância de má fé deve ser fixada tendo em conta os critérios legais constantes do n.º 4 do art.º 27º do Regulamento das Custas Judiciais, nomeadamente, a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património.

5. Como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva e, simultaneamente, preventiva, que apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração aquela situação económica, garantindo que tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo.

6. A desistência do pedido não prejudica a apreciação da litigância de má fé.

                                                              

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Na acção declarativa comum (de condenação) movida por T..., S. A., contra Condomínio do Prédio sito na Avenida ..., julgada improcedente por sentença de 11.11.2020 (absolvendo-se o Réu do pedido), com a notificação da sentença, foi a A. igualmente notificada para «querendo, se pronunciar quanto a uma eventual condenação como litigante de má fé por persistir na tentativa de se valer de cláusulas declaradas nulas em acção inibitória».

A A. respondeu por requerimento de 17.11.2020[1].

Por despacho de 23.11.2020, a Mm.ª Juíza a quo, «ao abrigo dos art.ºs 542º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil e 27º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais», condenou a A. «como litigante de má fé, na multa de 30 (trinta) unidades de conta».

Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

....

Remata pedindo a revogação da decisão proferida ou, caso assim não se entenda, a redução da multa para o mínimo legal.

Não houve resposta.

Ante o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, questiona-se, principalmente, se e em que medida é justificada a condenação da A. por litigância de má fé, considerando, inclusive, a alegada “desistência do pedido”.

II. 1. A factualidade relevante é a que resulta do relatório que antecede, e a seguinte:

...

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Nos termos do art.º 542º, n.º 1, do CPC, tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir; segundo o n.º 2, do mesmo art.º, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar [alínea a)] ou tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa [alínea b)].

3. O instituto, mormente na indicada vertente substantiva/material,  não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes acautelando um interesse público de “respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça”, destinando-se a assegurar “a moralidade e eficácia processual”, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça.[2]

As partes deverão litigar com a devida correcção, ou seja, no respeito dos princípios da boa fé e da verdade material e, ainda, na observância dos deveres de probidade e cooperação expressamente previstos nos art.ºs 7º e 8º do CPC, para assim ser obtida, com eficácia e brevidade, a realização do direito e da justiça no caso concreto.

4. A condenação como litigante de má-fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente[3], pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; a afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir.

5. A figura nítida do litigante de má fé ocorre nos casos em que o litigante sabe que não tem razão e, apesar disso, litiga (v. g., pretendendo exigir o que não é devido!); esta actuação merece censura e condenação. O autor faz um pedido a que conscientemente sabe não ter direito - usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça.[4]

Em tais casos, a má fé representa uma modalidade do dolo processual que consiste na utilização maliciosa e abusiva do processo.[5]

6. Na situação em análise, a A. pediu a condenação do Réu a pagar-lhe uma indemnização por alegado “incumprimento contratual”, baseando-se numa cláusula do contrato celebrado entre as partes substancialmente equiparada (de igual ou idêntico conteúdo) a cláusula contratual geral objecto de proibição definitiva por decisão judicial (anterior) transitada em julgado, proferida em acção inibitória que lhe fora movida pelo M.º Público, violando, nomeadamente, o preceituado no art.º 32º, n.º 1, do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais[6], aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25.10 (na redacção conferida pelo DL n.º 220/95, de 31.8) - cf., sobretudo, II. 1. 1), 3), alíneas b), d) e g) e 5), supra.

A A. litigou de má fé, na sua modalidade mais grave (com dolo substancial).

Como bem refere a Mm.ª Juíza a quo, “ao prevalecer-se de uma cláusula declarada nula, (…) em clara violação da decisão judicial, a A. estava bem ciente da falta de fundamento da sua pretensão, bem como de que ia de encontro à proibição que lhe fora imposta” - “deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, e seguramente não ignorava, o que constitui litigância de má fé”.

7. Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (art.º 27º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais/RCP, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26.02, na redacção conferida pela Lei n.º 7/2012, de 13/02). O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4).

Face ao disposto no art.º 27º, n.º 4 do RCP, deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má fé no desenrolar do processo e na correcta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património.

Na verdade, a multa por litigância de má fé, como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correcção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo.[7]

8. Tendo em conta a factualidade apurada, os referidos elementos/factores a ponderar[8] e sabendo-se, ainda, que a multa a aplicar só terá verdadeiro efeito sancionatório e punitivo se adequada à gravidade da actuação do litigante prevaricador e às suas possibilidades patrimoniais [in casu, a situação económica e empresarial da recorrente - cf. II. 1. 6), supra][9], conclui-se que a multa aplicada pela 1ª instância não é excessiva e cumpre as assinaladas funções repressiva e preventiva.

9. In casu, aquando da prolação da sentença, a Mm.ª Juíza não podia de imediato proferir decisão condenatória quanto à litigância de má fé, por carecer de garantir o contraditório (art.º 3º, n.º 3 do CPC), sob pena de nulidade da decisão.

10. Nenhum relevo poderá ser dado à circunstância de se tratar de uma acção não contestada[10] e (ao que tudo indica) à artificiosadesistência do pedido[11], sabendo-se - com os Mestres -,  que “pode haver má fé, tanto substancial como instrumental, por parte do litigante que desiste ou que confessa o pedido. Em qualquer dos casos não há obstáculo a que o juiz possa e deva aplicar as respectivas sanções. Se assim não fosse, no 1º caso (desistência) qualquer pessoa podia, sem perigo, importunar e prejudicar outrem com litígios sabidamente infundados (e até, para mais, com a possibilidade de vir a beneficiar da conhecida ´alea judiciorum`); e de modo análogo (´mutatis mutandis`) quanto ao 2º caso (confissão). Bastava-lhe desistir ou confessar ´in extremis` (assim, por ex., logo depois das respostas desfavoráveis do colectivo)”.[12]

11. É assim totalmente infundada a argumentação de que aquando da prolação do despacho condenatório o poder jurisdicional se mostrava esgotado ou extinto.[13]

12. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

Custas pela A./apelante.


16.3.2021

  


***

[1] Onde refere: «(…) tendo sido notificada da sentença, vem expor e requerer (…) o seguinte: 1. As partes, no decorrer do prazo de contestação, entenderam-se. 2. Apenas por lapso do mandatário, do qual muito se penitencia, ainda não foi posto termo processual ao presente processo. 3. O que agora vem fazer. 4. No entanto, sempre se dirá que, nunca foi intenção da A. litigar de má fé. 5. Certamente que essa seria uma resposta para correr muita tinta, mas é certo que a A. nunca litiga de má fé. 6. Portanto e apenas para que conste, os contratos e seu clausulado foram modificados e a A. não pretende usar, - como não o fez - cláusulas que são nulas. / Termos em que a A. vem DESISTIR DO PEDIDO».

   Requerimento assim apreciado pela Mm.ª Juíza a quo: «(…) nada a determinar, considerando que com a decisão de 11.11.2020, ficou esgotado o poder jurisdicional - art.º 613º, n.º 1 do CPC

[2] Vide Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, págs. 55 e seguinte.
[3] No intuito de moralizar a actividade judiciária, o art.º 542º, n.º 2, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má fé à negligência grave, enquanto que, anteriormente, a condenação como litigante de má fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência de se não ter razão, motivo pelo qual a conduta processual da parte está, hoje, sancionada, civilmente, desde que se evidencie, por manifestações dolosas ou caracterizadoras de negligência grave (lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes) - cf., de entre vários, o acórdão da RG de 10.5.2018-processo 27/15.8T8TMC.G1, publicado no “site” da dgsi.
  Apontando (já) para tal “equiparação”, no domínio do anterior quadro normativo, veja-se o ensinamento de Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 358, nota (2).
[4] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, págs. 262 e 263.
[5] Vide Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 356.

[6] Que assim reza: “1 - As cláusulas contratuais gerais objecto de proibição definitiva por decisão transitada em julgado, ou outras cláusulas que se lhes equiparem substancialmente, não podem ser incluídas em contratos que o demandado venha a celebrar, nem continuar a ser recomendadas. 2 - Aquele que seja parte, juntamente com o demandado vencido na acção inibitória, em contratos onde se incluam cláusulas gerais proibidas, nos termos referidos no número anterior, pode invocar a todo o tempo, em seu benefício, a declaração incidental de nulidade contida na decisão inibitória. 3 - A inobservância do preceituado no n.º 1 tem como consequência a aplicação do artigo 9º.”

[7] Vide Marta Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Dissertação apresentada à FDUC no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, 2014, Coimbra, pág. 69, acessível em https://estudogeral.sib.uc.pt.

[8] Não relevando, pois, o valor da acção, ao contrário do defendido no acórdão da RG de 30.01.2019-processo 100/17.8T8VRM.G1 e, no domínio do anterior regime jurídico, havia sido defendido, entre outros, pelo acórdão da RP de 26.02.2008-processo 0820769, arestos publicados no “site” da dgsi.

   Vide, a propósito, o comentário crítico (desfavorável) ao referido acórdão da RG de 30.01.2019-processo 100/17.8T8VRM.G1, da autoria do Senhor Conselheiro Urbano Dias, publicado no blogue do IPPC (dia 21.7.2020).
[9] Já assim, no domínio do pretérito regime jurídico, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, cit., pág. 269 e Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 360.
[10] Desde logo, em razão da importância a atribuir à prova documental apresentada com a p. i., e que envolvia, além do mais, o teor do contrato celebrado entre as partes e as circunstâncias e a prova concernentes à operada rescisão contratual (cf. fls. 9 e 11 e, ainda, a “nota 2”, supra).
[11] Cf. o requerimento em causa aludido em I. e na “nota 1”, supra.
[12] Vide Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 359.

[13] Veja-se, designadamente, o cit. acórdão da RG de 10.5.2018-processo 27/15.8T8TMC.G1 (no sentido de que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide não obsta ao conhecimento da existência de litigância de má fé, e estabelecendo-se, v. g., a similitude com as situações de desistência do pedido: «A questão tem sido essencialmente analisada ao nível da confissão e desistência do pedido, mas com argumentação que se nos afigura inteiramente transponível para os casos de inutilidade superveniente da lide.»).