Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1725/19.2T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
VENDA DE BENS ADJUDICADOS AO DEVEDOR DE TORNAS
SUFICIÊNCIA E PROPORCIONALIDADE DOS BENS A VENDER POR REFERÊNCIA AO VALOR DAS TORNAS DEVIDAS
IMÓVEL QUE CONSTITUI HABITAÇÃO PRÓPRIA DO DEVEDOR DE TORNAS
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º, 2; 20.º; 62.º E 65.º, 1, DA CRP
ARTIGOS 542.º; 704.º, 4; 733.º, 5; 735.º, 3; 751.º, 4; 785.º, 4; 828.º; 856.º, 4; 861.º, 6; 863.º, 3; 1121.º E 1122.º, DO CPC
Sumário: I - Na execução especial e incidental que decorre da venda dos bens adjudicados ao devedor de tornas para pagamento das mesmas ao seu credor, e a que se reporta o nº 2 do art 1122º CPC – em que não há citação nem nomeação à penhora nem penhora – o legislador não se mostrou indiferente ao principio da suficiência ou da proporcionalidade que rege em matéria de penhora, como resulta da expressão constante dessa norma, «até onde seja necessário para o seu pagamento».
II - Também nesta execução, e em nome da proporcionalidade ou suficiência, os bens a vender devê-lo-ão ser apenas na medida do necessário e suficiente para atingir o montante das tornas e juros devidos, devendo o julgador ter especial atenção relativamente à venda desses bens, quando esteja em causa a habitação própria e permanente do aí executado, à semelhança do que se passa na normal.
III - Na situação dos autos não restava adequadamente ao tribunal recorrido outra solução que não a de ordenar a venda do imóvel, havendo, no entanto, que ter presente, que foi a executada quem, na composição amigável dos quinhões, e nem sequer em função da maior incerteza do valor decorrente de licitações, colocou a sua habitação própria e permanente na situação em que se encontra, estando-se longe de uma situação de privação arbitrária da habitação que ponha em causa o direito à habitação reconhecido no art 65º/1 da CRP .
IV - O risco de na futura venda do imóvel o preço do mesmo se situar abaixo do considerado aquando do acordo de partilha, corre pela devedora de tornas, decorrendo da sua inadimplência.
V- O julgador deve ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, tendendo a exclui-la, quando esteja em causa, essencialmente, uma mera questão de interpretação e aplicação da lei aos factos.
Decisão Texto Integral:

           Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

           I - AA, requereu contra BB, inventário judicial para a partilha dos bens subsequente a divórcio entre ambos, inventário esse, em que desempenhou o cargo de cabeça de casal.

           Os autos prosseguiram com reclamação à relação de bens, sendo que, no dia designado para  a produção de prova  nesse incidente, a cabeça de casal e o interessado acordaram na divisão dos bens,  tendo os móveis relacionados sido divididos entre os dois e o  (único) imóvel relacionado, sido adjudicado, em exclusivo, à cabeça de casal, pelo valor de € 120.000,00,  tendo ficado igualmente acordado que a cabeça de casal  pagaria de tornas ao interessado BB o valor de € 60.000,00, até ao final de Maio, através de depósito ou transferência bancária, acordo que foi  homologado por sentença proferida nesse dia, 16/5/2022.

           Não tendo a cabeça de casal cumprido com o pagamento das tornas, veio o interessado BB  requerer a realização de conferência de  interessados, tendo em vista a adjudicação a si, em exclusivo,  do imóvel relacionado, com o pagamento de € 60.000,00 de tornas à cabeça de casal, requerimento de que, no entanto, veio a desistir antes de apreciado, substituindo-o pelo «da venda dos bens adjudicados à cabeça de casal, designadamente do imóvel relacionado, até onde seja  necessário para se obter o  pagamento ao interessado, do valor de 60.000,00, a titulo das tornas de que  é credor, acrescido do montante dos juros,  vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, sobre o capital em divida, requerimento este, ao abrigo do nº 2 e 3 do art 1122º CPC», calculando os juros desde 1/6/2022, no montante de € 743,01.

           A cabeça de casal opôs-se, referindo  que o imóvel que lhe foi adjudicado poderá  vir a ser vendido por um preço inferior ao avaliado de € 120.000,00 e, se tal suceder, não pode o interessado BB reclamar o pagamento de  € 60.000,00, sob pena de se locupletar à custa dela, entendendo que do produto da venda aquele apenas teria direito a metade do mesmo, pelo que não pode requerer o pagamento da quantia de € 60.000,00 a titulo de tornas, não havendo, por isso, lugar ao pagamento de juros, que, de todo o modo, apenas seriam devidos desde a data do trânsito da sentença, e que calcula em € 600,00.

            Foi então proferida a seguinte decisão:

           «Nos autos foi fixado um valor de tornas a pagar por um interessado ao outro.

            Proferida sentença homologatória da partilha, já transitada em julgado, veio o interessado credor requerer que se proceda à venda do bem imóvel adjudicado à devedora, nos termos do disposto no artº 1122º, nºs 2 e 3 do CPC.

           A isso se opõe a devedora alegando que da venda pode resultar um valor que não lhe permita receber tanto como o valor fixado para as tornas, o que redundaria em enriquecimento sem causa, sendo que o não pagamento adveio de um imprevisto que conta resolver, entretanto.

            Cumpre decidir.

           A possibilidade de venda de bens adjudicados para pagamento de tornas encontra-se expressamente prevista na lei (artº 1122º, nº2 do CPC), donde, tendo a interessada devedora das mesmas omitido o seu pagamento nos termos do disposto importa concluir que o pedido de venda do bem imóvel, terá que ser deferido.

            As circunstâncias concretas da venda e a possibilidade de a mesma redundar em resultado inferior ao valor relacionado não é imputável ao credor ou a qualquer circunstância externa não imputável às partes, mas antes à falta de cumprimento por parte da devedora dos termos da decisão proferida nessa parte, pelo que não se pode ela valer desse motivo para obviar à cobrança do crédito por parte do credor. Caso a mesma, entretanto, pague o valor devido, serão declaradas encerradas as diligências com vista à cobrança coerciva do mesmo.

            Sobre o valor em dívida acrescem juros moratórios legais desde a data fixada ao pagamento omitido, por ser posterior à da sentença homologatória, por força da previsão expressa do nº 3 do artº citado, com as devidas adaptações.

           Com tais fundamentos, determina-se que se proceda à venda do imóvel adjudicado à devedora de tornas, com vista à cobrança do valor fixado para a mesma e juros calculados nos termos expostos, indeferindo-se o que ex adverso era peticionado.

            Notifique, sendo o devedor de tornas para em 10 dias juntar aos autos certidão registral actualizada do imóvel em causa, da qual constem todos os ónus e encargos sobre ele incidentes».

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            II – Inconformada, apelou a cabeça de casal, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

           1. O presente recurso tem por objeto o douto despacho do tribunal a quo em que determina a venda do imóvel adjudicado à devedora de tornas com vista à cobrança das tornas em dívida, bem como a matéria de facto e de direito do referido despacho do douto tribunal a quo. 

           2. O douto tribunal a quo determinou a venda do imóvel adjudicado à recorrente, que tinha sido avaliado na partilha em 120.000,00 euros (cento e vinte mil euros), para pagar as trornas ao recorrente no montante de 60.000,00 euros (sessenta mil euros), correspondente a metade do valor do imóvel.

            3. À venda de bens adjudicados ao devedor de tornas enxertada no processo de inventário aplicam-se as regras da venda executiva.

           4. Isto é, a penhora deve começar pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente.

          5. Na verdade, o despacho do douto tribunal deveria ter ordenado a penhora do valor monetário de 15.000,00 euros que foi adjudicada à recorrente, por ser de mais fácil realização.

           6. De seguida devia ter ordenado a penhora dos bens móveis adjudicados à recorrente até ao montante necessário ao pagamento das tornas.

            7. Ora, o despacho do douto tribunal a quo violou o disposto no artº 751º nº1 do C.P.Civil, que consagra o principio da economia.

           8. Nos termos do artº 735º nº 3 do C.P.Civil a penhora não deve ultrapassar os bens necessários para assegurar o pagamento das tornas, e portanto o principio da proporcionalidade implica a proibição do excesso de penhora.

           9. O douto despacho do tribunal a quo viola o disposto no artº 735º nº 3 do C.P.Civil , uma vez que o ato de venda do imóvel é bastante desproporcional face ao valor das tornas em dívida.

           10.O principio da proporcionalidade desdobra-se no sub-principio da necessidade, onde se consagra “ a ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão. (...) a doutrina tenta acrescentar outros elementos conducentes a uma maior operacionalidade prática: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais “poupado” possível quanto à limitação dos direitos fundamentais;

           11.O despacho do douto tribunal a quo viola claramente o principio da proporcionalidade, na vertente da necessidade, previsto no artº 18º nº 2. Da C.R.P.

            12. A interpretação que o douto tribunal a quo faz do artº 1122º nº2 do C.P.C. no sentido de que havendo dívida de tornas pode ser vendido o bem imóvel adjudicado à devedora de tornas, sem que tivesse necessidade de previamente ponderar, se não havia outros bens adjudicados à recorrente, que tornasse menos gravoso, para esta ,o pagamento das tornas ao seu credor, é inconstitucional por violação do artº 18º nº 2 da C.R.P, nomeadamente o principio da proporcionalidade.

           13.Assim, esta interpretação do artº 1122º nº 2 do C.P.C. é inconstitucional por violação do artº 18º nº 2 da C.R.P.,

           14.O artº 1122º nº 2 é inconstitucional por violação do artº 18º nº2 da C.R.P., por não hierarquizar a venda em primeiro lugar dos bens  menos gravosos adjudicados ao devedor para pagamento das tornas em dívida.

           15.Apesar de haver outros bens adjudicados à recorrente que permitiam satisfazer a dívida das tornas, o douto despacho do tribunal a quo ordenou a venda do imóvel que constitui a habitação própria e permanente da recorrente e por isso é ilegal por violação do disposto no artº 751º nº3 do C.P. Civil

           16.O artº 751º nº3 proíbe a venda do imóvel adjudicado na partilha à recorrente, desde que este seja a sua habitação própria e permanente e desde que haja, outros bens que lhe foram adjudicados na partilha, como foi no caso concreto.

            17.Ora o douto despacho do tribunal a quo ordenou a venda do imóvel que constitui a habitação própria e permanente da recorrente e por isso é ilegal por violação do disposto no artº 751º nº3 do C.P. Civil

            18.Em caso de venda do referido imóvel, o recorrido apenas tem direito a metade do produto da venda do referido imóvel, sendo este valor aleatório, porque imprevisivel no momento atual.

            19.Logo, não pode o Recorrido receber a quantia de 60.000,00 euros a titulo de tornas, como determinou o despacho do douto tribunal a quo.

           20.Tal situação configuraria a situação de enriquecimento sem causa, o que constituiria a presente partilha uma ilegalidade, violando assim, o estatuto de igualdade entre os conjuges.

           21.Tal enriquecimento do recorrido seria obtido à custa do empobrecimento da recorrente, pois esta , nesse caso, viria a receber menos do que o recorrido, e não teria qualquer outro meio que possa legalmente a ser indemnizado.

             22.Desta forma, o despacho do douto tribunal a quo violou o disposto no artº 473 do C. Civil.

           23.Assim, se o prédio for vendido a um preço inferior ao que serviu de base na sua avaliação para efeitos de preenchimento do seu quinhão, o recorrido receberá mais do que a recorrente na partilha.

            24. Tal situação deverá dar lugar a uma alteração do mapa de partilha, uma vez que o valor do ativo irá ser alterado o que obrigará a proceder à alteração do montante da quota de cada um dos interessados.

          25.Assim, o despacho do douto tribunal a quo viola o disposto no artº 1120º nº 2 e 3 do C.P. Civil.

           26.A recorrente goza do beneficio de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de qualquer encargo ou custas e da nomeação e pagamento da compensação do Patrono nomeado.

           Termos em que se requer que seja julgado procedente o presente recurso e por via dele ser revogado o douto despacho do douto Tribunal a quo, decidindo-se:

            1) Que o despacho do douto tribunal a quo violou o disposto no artº 751º nº1 do C.P.Civil, que consagra o principio da economia.

            2) Que o douto despacho do tribunal a quo viola o disposto no artº 735º nº 3 do C.P.Civil , uma vez que o ato de venda do imóvel é bastante desproporcional face ao valor das tornas em dívida.

            3) Declarar-se que o artº 1122º nº2 do C.P.C. é inconstitucional por violação do artº 18º nº 2 da C.R.P. na interpretação que o douto tribunal a quo realiza no sentido de que havendo dívida de tornas pode ser vendido o bem imóvel adjudicado à devedora de tornas, sem que tivesse necessidade de previamente ponderar, se não havia outros bens adjudicados à recorrente, que tornasse menos gravoso, para esta, o pagamento das tornas ao seu credor.

            4) Que o artº 1122º nº 2 é inconstitucional por violação do artº 18º nº2 da C.R.P., por não hierarquizar a venda em primeiro lugar dos bens menos gravosos adjudicados ao devedor para pagamento das tornas em dívida.

            5) Que o douto despacho do tribunal a quo é ilegal por violação do artº 751º nº3 do C.P. Civil por ter ordenado a venda do imóvel que constitui a habitação própria e permanente da recorrente, uma vez que a penhora dos outros bens adjudicados à recorrente permitem satisfazer a dívida das tornas.

            6) Que o despacho do douto tribunal a quo violou o disposto no artº 473 do C. Civil, por permitir um enriquecimento sem causa do recorrido, se o prédio for vendido por um valor inferior ao preço avaliado na partilha.

            7) Que o despacho do douto tribunal a quo viola o disposto no artº 1120º nº 2 e 3 do C.P. Civil, uma vez que a ordenação da venda do imóvel vai alterar o valor do ativo para efeitos de mapa de partilha, ignorando o douto tribunal a quo os efeitos da sua decisão.

           O interessado BB ofereceu contra-alegações, que concluiu do seguinte modo:

            1 – Por sentença homologatória da partilha efetuada por acordo nos presentes autos, transitada em julgado em 23/06/2022, foi a Recorrente condenada a pagar ao Recorrido, a título de tornas, o valor de € 60.000,00, até ao final do mês de maio do corrente ano de 2022, através de depósito ou transferência bancária.

           2 – A Recorrente e devedora de tornas nada pagou ao Recorrido, não cumprindo a obrigação assumida e a cujo cumprimento foi condenada por sentença homologatória da partilha transitada em julgado.

          3 - Além de nada ter pagado ao Recorrido, a Recorrente não manifestou qualquer intenção de o vir a fazer por sua iniciativa e vontade, nem, sequer, tão pouco, deu qualquer explicação para o seu comportamento omissivo.

           4 – A Recorrente também não promoveu a liquidação dos impostos a que se encontra sujeita pela partilha e aquisição do imóvel que lhe foi adjudicado por inteiro, pelo valor de € 120.000,00, nem logrou proceder ao registo da aquisição do mesmo, por inteiro, a seu favor, na Conservatória do Registo Predial.

            5 - Além do valor das tornas, a Recorrente é, também, devedora para com o Recorrido, dos juros legais, à taxa de 4%, vencidos desde a data em que expirou o prazo para proceder ao depósito ou transferência bancária para a conta do Interessado dos € 60.000,00 de tornas.

           6 - Em face da falta de pagamento do crédito a título de tornas de que é titular sobre a Recorrente, o Recorrido veio, ao abrigo do disposto no artigo 1122.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.C., incidentalmente, requer ao Tribunal a quo, a promoção da venda, neste mesmo processo, dos bens adjudicados à Recorrida designadamente, do imóvel relacionado, até onde seja necessário para obter o pagamento do valor de € 23 60.000,00, de que é credor a título de tornas, acrescido do montante dos juros, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, sobre o capital em dívida.

            7 - Venda que o Tribunal a quo determinou através do despacho sobre recurso.

           8 - O douto despacho sob recurso não merece qualquer censura, tendo sido proferido de acordo com a Lei e estando bem fundamentado, não podendo ter outro sentido, atento o comportamento processual da Recorrente, descarada e despudoradamente inadimplente.

            9 - Insurge-se a Recorrente contra o despacho sob recurso, com base em quatro fundamentos que burila, de forma criativa, mas, que, além de serem contraditórios entre si, e de não terem qualquer aderência à Lei, nem aos princípios gerais do direito, são, em si mesmos, reveladores de um animus litigante relapsamente eivado de má fé e que visa única e exclusivamente protelar ad eternum e impedir o pagamento das tornas a que, por sentença transitada em julgado, mas que ostensivamente desrespeita, foi condenada.

            10 - Quanto ao pretenso desrespeito da ordem de realização de penhora indicada no artigo 751.º do C.P.C., atento contexto do nascimento do crédito que fundamenta o pedido da venda do bem adjudicado à devedora de tornas, o incidente mobilizado, previsto no artigo 1122.º, n.º 2 do C.P.C. não é uma execução que siga de forma acrítica e automática o regime estabelecido para o processo de execução.

            11 - A ordem de realização de penhora prevista no artigo 751.º do C.P.C. é inaplicável à venda determinada no despacho sob recurso, nos termos do disposto no artigo 1122.º, n.º 2, do C.P.C., desde logo, por razões semânticas, pois o artigo 751.º C.P.C. rege e disciplina a penhora e respetiva ordem de realização, enquanto, do que se trata no caso sub judice não é de uma penhora, mas de uma venda do bem imóvel adjudicado à devedora de tornas para pagamento do crédito de tornas de que o credor é sobre a mesma titular, decorrente da adjudicação desse mesmo bem.

            12 - Ademais, o crédito de € 60.000,00, acrescido de juros, de que o Recorrido é titular sobre a Recorrente, resulta especificamente da adjudicação por inteiro do imóvel à Recorrente, cujo valor total se fixou em sede de mapa de partilha em € 120.000,00.

           13 - É natural, correto e justo que seja esse mesmo bem (imóvel), cuja adjudicação gerou o crédito por parte do Recorrido e a correlativa dívida na esfera da Recorrente, o bem a vender para satisfação do crédito em apreço.

           14 - Ainda que assim não fosse, e seja de aplicar ao incidente dos autos o disposto no artigo 751.º do C.P.C., este artigo deve ser lido e aplicado de forma integral, pois, apesar de o mesmo ter no seu corpo 8 números, a Recorrente, na sua leitura e invocação, quedou-se pelo número 3.

           15 - Ora, os bens da devedora de tornas em causa, atento o disposto no artigo 1122.º, n.º 2, do C.P.C. são apenas os que lhe foram adjudicados e além do imóvel, foram-lhe adjudicados dinheiro, bens móveis e direitos, no valor total de € 20.852,50.

           16 - Dinheiro, crédito e móveis cujo valor é de cerca de um terço do valor do crédito que o Recorrido dispõe sobre a Recorrente e que, não obstante a sua incipiência, a Recorrente, ainda assim, vem defender que deveriam ser os bens móveis a serem vendidos para pagamento da dívida ao Recorrente…

           17 - Em face do disposto no n.º 4 do artigo 751.º do C.P.C., numa leitura forçadamente adaptada ao incidente previsto no artigo 1122.º, n.º 2 do C.P.C., e indo ao encontro da pretensão da Recorrente, ainda assim, se torna evidente que, por um lado, o crédito do Recorrido é superior ao dobro do valor da alçada da 1.ª instância e, por outro lado, que inexistem outros bens, que não o imóvel, que permitam satisfazer o crédito do Recorrido.

            18 – Pelo que não desrespeitou o Tribunal a quo qualquer ordem de realização da penhora, pelo que deve improceder, nesta parte, o recurso apresentado.

           19 - Não se pode deixar passar em claro o facto - também ele revelador da desonesta conduta processual da recorrente -, contido no ponto 13 das suas alegações recursivas, pois a Recorrente, despudoradamente, vem dizer que, antes da venda da casa de habitação, para pagamento do crédito de tornas, no montante de € 60.000,00, acrescido de juros, lhe deveria ter sido penhorado o valor monetário de € 15.000,00, sem que voluntariamente, tenha mobilizado esse dinheiro para abater, de forma parcial, a dívida que tem para com o Recorrido.

           20 - Relativamente à alegada violação do princípio da proporcionalidade, com afloramento no artigo 735.º, n.º 3, do C.P.C, impõe-se referir que, não havendo nos bens adjudicados à devedora de tornas, em sede de inventário, outros bens aptos, por referência ao respetivo valor indicado naquela sede, para satisfação do crédito do Recorrido, nem tendo a Recorrente indicado quaisquer bens suscetíveis de penhora suficientes para pagamento da sua dívida, nem, tão pouco, procedido ao pagamento da mesma, de forma integral ou, ao menos, parcial, revela-se adequado, proporcionado, equilibrado e justo que se proceda à venda do imóvel adjudicado à Recorrente, para pagamento das tornas de que a mesma é devedora, ainda que, neste momento, o imóvel possa ter um valor superior ao valor do crédito (continuamente em crescimento, em face dos juros que se vão vencendo…) cuja satisfação a respetiva venda visa satisfazer.

            21 - Quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação do artigo 1122.º, n.º 2, levada a cabo pelo Tribunal a quo, ao determinar a venda do imóvel adjudicado à devedora para pagamento das tornas decorrentes dessa mesma adjudicação, não se pode deixar de evidenciar que o que a Recorrente pretendeu, ao alvitrar a violação do princípio da proporcionalidade, quer da interpretação da norma feita pelo Tribunal a quo, quer do próprio artigo 1122.º, n.º 2 do C.P.C., foi ensaiar uma pseudo-inconstitucionalidade, cuja falta de fundamento não ignora, mas cuja alegação visa, tão só, abrir caminho a um subsequente recurso para o Tribunal Constitucional e, por essa via, protelar ainda mais o pagamento do crédito de que é devedora ao Recorrido, postergando, até ao limite do aceitável, o cumprimento da sentença transitada em julgado que sobre si impende.

           22 - Quanto ao hipotético enriquecimento sem causa do Recorrido, no caso de, sendo o produto da venda do imóvel adjudicado à Recorrente afeto ao pagamento do crédito do Recorrido, poder restar para Recorrente um valor inferior ao crédito que foi pago ao Recorrido, a Recorrente, ou se contradiz e confunde e, portanto, labora em erro, ou, então e mais grave, pretende fazer confundir os destinatários do recurso que apresenta.

           23 - Se os bens foram adjudicados à Recorrente por sentença transitada em julgado, como foram, e como a mesma reconhece ao indicar que a penhora, rectius, venda, devia começar pelos outros bens que lhe foram adjudicados, que não a casa, como se compreende como pode agora a Recorrente vir defender que, se a casa vier a ser vendida por um valor inferior a € 120.000,00, ficaria prejudicada, ao pagar as tornas em cujo pagamento foi condenada.

           24 - A moradia foi adjudicada à Recorrente por inteiro e o Recorrido, em face da sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, é titular apenas e tão só, de um crédito a título de tornas.

           25 - O facto de imóvel adjudicado à Recorrente valorizar ou desvalorizar em sede de venda judicial corre pelo seu próprio risco e resulta, tão só, da sua conduta inadimplente, sendo que a devedora pode, a todo o tempo, por fim à venda, através do pagamento da dívida de tornas em cujo pagamento foi condenada.

           26 - O inverso do alegado pela Recorrente também é possível, ou seja, vir a moradia a ser vendida por um valor bastante superior a € 120.000,00 e, dessa forma, vir a receber mais do que as tornas de que é devedora ao Recorrido.

            27 - No caso de o imóvel vir a ser vendido por valor inferior a € 120.000,00, tal facto não consubstancia um enriquecimento sem causa por parte do Recorrido, mas sim e tão só, um empobrecimento por banda da Recorrente, que tem como causa a sua conduta processual, traduzida no não pagamento do valor de tornas em cujo pagamento se obrigou e em que foi condenada por sentença judicial transitada em julgado.

           28 – Argui-se, nesta sede, a litigância de má-fé da Recorrida, porquanto esta bem sabe ser devedora do Recorrido, a título de tornas, da quantia de € 60.000,00 acrescida de juros vencidos e vincendos, encontrando-se tal dívida titulada por sentença judicial transitada em julgado.

           29 – E porque, não obstante ser devedora para com o Recorrido desse montante e de não o pagar, além de incumprir o determinado por sentença judicial transitada em julgado, pelos argumentos que esgrimiu no presente recurso, patentes nas respetivas alegações de recurso e conclusões, cuja falta de fundamento, aliás, nem pode ignorar, dúvidas não podem restar de que, ao recorrer com tais fundamentos, fez a mesma do meio processual “recurso” um uso manifestamente reprovável.

           30 - E fê-lo com o fito exclusivo de protelar o transito em julgado do despacho que determinou a venda do imóvel e de, por essa via, atrasar até ao limite o pagamento do crédito de tornas, continuando a usufruir da moradia que lhe foi adjudicada por inteiro, sem proceder ao pagamento do correlativo ao Recorrido.

           31 - Alega a recorrente, de má-fé, um desrespeito de uma ordem de realização de penhora quando bem sabe que não nos encontramos perante uma penhora e que o imóvel cuja venda foi determinada é o único bem que permite satisfazer por inteiro o crédito de tornas do Recorrido.

           32 - Caso existissem outros bens que pudessem satisfazer o crédito do Recorrido, a verdade é que a Recorrente não os mobilizou para pagamento da sua dívida, apesar de, despudoradamente e de má-fé, chegar ao cúmulo de referir que se devia começar a penhora pelos € 15.000,00 que lhe foram adjudicados.

             33 - Alega a Recorrente, de má-fé, uma desproporcionalidade ínsita na decisão da venda do imóvel que lhe foi adjudicado, quando bem sabe que não existem outros bens cuja apreensão ou produto da venda seja apto, sequer, a satisfazer o pagamento de 1/3 do valor das tornas de que é devedora.

           34 - Argui a Recorrente, de má-fé, uma pretensa inconstitucionalidade com o único objetivo de prosseguir o mesmo desígnio processual com que apresentou o presente recurso, traduzido no retardamento do cumprimento da sentença transitada em julgada que a condenou no pagamento de tornas ao Recorrido e, por essa via, causar um claro entorpecimento à ação da Justiça.

             35 - De má-fé, a Recorrente ainda alega que a venda do imóvel e a afetação do produto da respetiva venda ao pagamento do crédito ao Recorrido poderá causar enriquecimento deste sem causa, quando, na verdade, o que está a acontecer é, ao invés, um enriquecimento sem causa da própria recorrente, que usufrui de uma habitação sem a pagar, pretendendo prolongar essa situação, através dos meios processuais que vai mobilizando, sem fundamento, até à exaustão.

            36 - Atento o exposto, deve a recorrente ser condenada como litigante de má-fé, em multa e em indemnização ao Recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d) e 543.º do C.P.C.

            37 - Indemnização esta que deverá ser fixada num quantitativo não inferior a € 2.000,00 (dois mil euros) correspondentes, aos prejuízos que o retardamento do recebimento das tornas está a causar ao Recorrido, que se encontra a residir numa casa de renda, com poucas condições de habitabilidade, e que precisa do dinheiro cujo pagamento a Recorrente se recusa a pagar-lhe, para poder arrendar uma habitação com melhores condições, enquanto a Recorrida se mantém e mobiliza, de forma manifestamente reprovável, meios processais, para continuar a manter-se bem instalada na casa de que o Recorrido era proprietário na proporção de metade, sem nada lhe pagar. O que se requer.        38 - Por tudo quanto se expôs, concorda-se com o decidido neste por parte do Tribunal a quo, ao determinar a venda do imóvel adjudicado à Recorrente para pagamento ao Recorrente das tornas de que lhe é devedora.

 

           Foi ouvida a cabeça de casal a respeito da litigância de má fé que o apelado lhe atribuiu.

            III – A factualidade que releva para o conhecimento do recurso emerge do circunstancialismo processual acima relatado, havendo, no entanto, que a complementar com as seguintes circunstâncias factuais advindas do presente processo e do processo de divórcio que se mostra apenso:  

           - A cabeça de casal intentou acção de divórcio sem consentimento contra o aqui interessado BB, sendo que na respectiva tentativa de conciliação lograram converte-lo em divórcio por mútuo consentimento,  tendo acordado, para tanto, que o uso da casa de morada de família ficaria atribuída à Requerente mulher até à partilha ou venda, estando em causa o imóvel comum, sito nas ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art ... da freguesia ... com o valor patrimonial de € 93.400,00. 

           - Nos presentes autos, atento o acima referido acordo dos interessados, ficaram adjudicadas à cabeça de casal, as seguintes verbas (respeitantes a bens móveis) constantes da relação de bens inicial:

           Verba 1 - Sala: Móvel de bar dividido em quatro partes com prateleiras e bancos altos – 150€

            Verba 2 - Sala: uma mesa centro, uma carpete, um sofá grande, dois pequenos - 150€

           Verba 6 -Quarto 2: Uma cama, duas mesas de cabeceira, uma cómoda grande – 100€

           Verba 7- Quarto 2: Uma cadeira antiga, um espelho, um lavatório antigo e um roupeiro – 100€

            Verba 8 -Quarto 3: Uma cama, uma cómoda com espelho, duas mesas de cabeceira e um espelho - 100€

            Verba 9- Frigorifico – 250€

            Verba 10-  Fogão a Gás- 25€

            Verba 11-Fogão a Lenha – 25€

            Verba 13-  Máquina lavar roupa – 25€

            Verba 14-  Cozinha: Uma mesa e seis cadeiras – 25€

           Verba 15- R/Chão: duas camas solteiro e uma mesa de cabeceira – 50€

           Verba 16-  R/Chão: cama de casal, duas mesas de cabeceira, uma cómoda, um espelho, um roupeiro e uma cadeira – 150€

            Verba 17 -  Sala velharias: Um móvel rustico, quatro móveis em prateleira, recheio das velharias – 850€

           Da reclamação de bens ficaram adjudicadas à cabeça de casal as seguintes verbas:

            Metade da verba 1- Empréstimo que o casal concedeu à filha de ambos, CC, no valor de 7 mil euros, 7000,00

            Verba 5 -Amontoamento de ferro velho € 30,00

            Verba 8 -Roupeiro antigo valor € 5,00

            Metade da Verba 10-  Seis tanques em P.V.C., cada um com a capacidade de 1000 litros € 50,00

            Verba 12- Três tapetes, um candeeiro de teto e um cortinado de janela € 10,00

            Verba 13- Um candeeiro de teto e um cortinado de janela 10,00

           Verba 14- Um roupeiro, uma cama de casal, duas mesinhas de cabeceira, duas cadeiras, uma cómoda com espelho, três tapetes, um candeeiro de teto e um cortinado, € 50,00

           Verba 15- Um roupeiro, um candeeiro de teto, um cortinado e várias cadeiras e mesas ,€ 50,00

            Verba 19 -Quatro toneladas de lenha  € 150,00

            Verba 20 -Três toneladas de lenha  € 100,00

            Metade da Verba 21- Conjunto de louceiros com pratos, copos e panelas € 100,00

          Metade da Verba 22- Conjunto de utensílios e de pequenos aparelhos elétricos de cozinha, € 100,00

            Verba 23 -  Dois cortinados , € 5,00

            Verba 24- Um aspirador, € 10,00´

            Verba 25 -Dois candeeiros de teto, € 10,00

           Verba 26-  Um móvel com máquina de costura incorporada, € 30,00

            Verba 28 -Conjunto de ferros de engomar, € 50,00

             Verba 31- Um candeeiro de teto, € 10,00

            Metade da Verba 34 - Duas máquinas de filmar, € 20,00

            Metade da Verba 35 -Duas máquinas de fotografar, € 15,00

            Verba 36 - Uma televisão, € 10,00

            Verba 37- Um candeeiro de teto, € 5,00

           Metade da Verba 38  -Vários conjuntos roupas de cama,  € 20,00

            Verba 40 -Um candeeiro de teto, € 5,00

            Verba 41 -Três tapetes, € 5,00

            Verba 42 -Duas cadeiras,  € 10,00

            Verba 43 -Um candeeiro de teto, 10,00

            Verba 44 - Três tapetes, € 10,00

            Verba 45 -Um móvel alto de canto,  € 30,00

            Verba 50 -Um conjunto de tapetes, € 20,00

           3 – Foi-lhe adjudicada a importância, sensivelmente de 15.000,00, e a mesma, ao  interessado BB.

            IV - As questões a apreciar no recurso, vistas as conclusões das alegações e no respectivo confronto com o despacho impugnado, são as seguintes:

           - se, à venda da casa de habitação própria, que tenha sido adjudicada em processo de inventário ao interessado que se vem a tornar devedor de tornas, se aplica o princípio da economia e da proporcionalidade;

            -se, esses princípios foram violados, uma vez que a venda dos outros bens adjudicados à recorrente permitiria satisfazer a dívida de tornas;

            -se, o art 1122º/2 CPC é inconstitucional, por violação do artº 18º/2 da CRP, na interpretação que o Tribunal a quo realiza, no sentido de que havendo dívida de tornas pode ser vendido o bem imóvel adjudicado à devedora de tornas, sem que tivesse necessidade de previamente ponderar, se não havia outros bens adjudicados à recorrente, que tornasse menos gravoso, para esta, o pagamento das tornas ao seu credor. E se, de todo o modo, esse preceito é inconstitucional, ainda por violação do referido nº 2 do art 18º da CRP, por não hierarquizar a venda em primeiro lugar dos bens menos gravosos adjudicados ao devedor para pagamento das tornas em dívida;

            -se, a circunstância do prédio poder ser vendido por um valor diferente do preço avaliado na partilha implica violação do disposto no art 1120º/2 e 3 do CPC, por poder conduzir à alteração do valor do ativo para efeitos de mapa de partilha e, sendo inferior, conduzir a um enriquecimento sem causa do apelado;

            - se a interposição do presente recurso implicou litigância de má fé por parte da apelante.

 .

            Para a ponderação das questões acima enunciadas, atentemos na origem do crédito de tornas no processo de inventário, tendo em consideração as normas dos arts 1121º e 1122º CPC, na redacção da L 117/2019 de 13/9, aplicáveis aos presentes autos e correspondentes, no anterior, aos arts 1377º e 1378º.

            Dispõe o art 1121º:

           «1 - Os interessados aos quais caibam tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões por bens que não se mostrem adjudicados ou reclamar o pagamento das tornas,

           2 – Se for reclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que tenha de as pagar, para as depositar.»

            Na situação dos autos, a devedora das tornas, aqui apelante, não carecia de ser notificada para depositar as tornas de que se tornou devedora, por se ter comprometido a fazê-lo ate ao fim de Maio, assim tendo sido condenada por sentença homologatória do acordo em causa.         

           Dispõe o nº 2 do art 1122º que, «depois do trânsito em julgado da sentença homologatória e se houver direito a tornas, os requerentes podem pedir que se proceda, no processo, à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o seu pagamento».

           Esta norma em nada inova relativamente à do nº 3 da do art 1378º do anterior CPC, onde se referia que, «Podem também os requerentes pedir que, tornando-se definitiva a decisão de partilha, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas».

           Lopes Cardoso, acentuando que, «… tornas haverá, sempre que alguém licite em mais bens do que tem direito, ou quando, por virtude da composição dos lotes haja excesso da aludida quota», [1].comentava,  a respeito desse nº 3 do art 1378º, estar em causa  «a criação de um novo, privativo e prático, processo executivo, embora especial. Regra geral, o direito definido executa-se com base em título idóneo a esse fim (Cód. Proc. Civil, arts. 45.º e segs., 813.º-a) e 815.º-1), mediante formalismo próprio. No caso considerado, tudo é diferente, pois o credor das tornas limita-se a pedir, em simples requerimento, o que o n.º 3 do art.º 1378.º  lhe consente. Então, formulado tal pedido e transitada que seja a sentença homologatória das partilhas, procede-se à venda, no próprio processo de inventário, dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para pagamento do seu débito ao requerente, isto sem haver necessidade de lhe instaurar qualquer processo executivo, de o citar para o efeito e de nomear bens à penhora».

           Mostra-se consensual que nesta forma de execução – que, indiscutivelmente, o legislador quis incidental, porque se processa no próprio processo de inventário - o credor de tornas só se pode pagar do valor das que lhe são devidas em função dos bens que foram  adjudicados ao devedor no processo de inventário.

                 Embora -  parece - possa, logo, e em alternativa, lançar mão à execução comum, desde que relativamente a outros bens que não aqueles, execução de que inegavelmente se pode servir  quando, não obstante a acima referida execução mais ágil decorrente do disposto no nº 2  do art 1122º, não obtenha nela a totalidade do pagamento a que tem direito.[2]

            A questão que a apelante coloca, é a de saber, se, não obstante se estar perante  uma venda e não uma penhora  - pois que esta forma abreviada de execução não comporta citação, nem nomeação de bens, nem penhora  - o tribunal não deixa de estar adstricto no despacho em que a ordene a ter em consideração, relativamente aos bens que hão-de responder pela divida de tornas-  e, consequentemente, como foi dito, os que foram adjudicados ao devedor das mesmas - os princípios da proporcionalidade e da adequação que regem quanto à penhora, sobretudo, quando, como é o caso, esteja em causa imóvel que constitui residência efectiva do devedor das tornas.

           Questão que é tão mais pertinente, quando, efectivamente, o legislador, em sede de execução normal, mostra claras e legitimas preocupações relativamente à penhora e venda do imóvel que constitua habitação própria permanente do executado.

           Esta habitação, continuando, obviamente, a constituir um bem penhorável, a  partir da L 60/2012 de 9/11 e, após, com a L 117/2019 de 13/9, passou a assumir uma relevância acrescida relativamente aos demais imóveis penhorados, como decorre do disposto, hoje, no art  751º/4 do CPC, a que esta Lei deu nova redacção, dela resultando que quanto maior for o valor da divida maior é o prazo concedido para se penhorarem bens alternativos à  habitação própria permanente do executado que permitam a satisfação integral do credor.

             Também, e como é sabido, a Lei 13/2016 de 23/5, estabeleceu limites no âmbito dos processos de execução fiscal para tutela da habitação própria e permanente do executado estabelecendo restrições à venda executiva desse imóvel.

            Mesmo na execução comum, efectuada a venda executiva, pode haver lugar à suspensão da entrega ao adquirente do imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado em caso de se suscitarem sérias dificuldades no realojamento do executado, caso em que o AE deverá comunicar antecipadamente o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes  - arts 828º, 861º/6 e 863º/3  do CPC -  prevendo-se ainda a possibilidade da suspensão da venda  no caso de execução de sentença pendente de recurso  - art 704º/4 -  e nos casos de dedução de oposição à execução mediante embargos de executado e de oposição à penhora – art 733º/5, 785º/4 e 856º/4.

            Retomando a questão a decidir, dir-se-á, sem hesitações, que o legislador nesta execução simplificada e agilizada, não se mostra indiferente ao principio da  proporcionalidade relativamente aos bens adjudicados ao devedor de tornas sobre que haja incidir a venda, só esses cuidados e preocupações justificando a expressão, «até onde seja necessário para o seu pagamento», que já constava do nº 3 do art  1378º do anterior CPC.

            O principio da proporcionalidade ou da suficiência em matéria de penhora- que  «tem raiz constitucional no princípio da propriedade privada (art 62º da CRP) que torna excepcional  qualquer oneração ou perda forçada das situações jurídicas activas privadas» [3] - analisa-se na limitação da mesma aos bens necessários ao pagamento da divida exequenda e das despesas previsíveis da execução, estando enunciado na 1ª parte do nº 3 do art 735º, lidando «com uma dupla estimativa: a do valor dos bens e a do valor das despesas de justiça».

            Aqui importa-nos apenas o valor dos bens, este, implicando uma prognose relativamente ao valor que chegará às mãos do credor das tornas, devendo ter-se em consideração para além do valor destas, o dos juros que entretanto se venceram.

           Também aqui, e também em nome da proporcionalidade ou suficiência, os bens a vender deve-lo-ão ser apenas na medida do necessário e suficiente para atingir o montante das tornas e juros devidos.

            Cabendo fazer notar, que, por parte do aqui apelado, credor das tornas, não houve qualquer excesso na forma como requereu a venda que está em causa, pois que a requereu  relativamente «aos bens adjudicados à cabeça de casal, designadamente do imóvel relacionado, até onde seja  necessário para se obter o  pagamento ao interessado, do valor de 60.000,00, a titulo das tornas de que  é credor, acrescido do montante dos juros,  vencidos e vincendos, calculados a taxa legal de 4%, sobre o capital em divida, requerimento este ao abrigo do nº 2 e 3 do art 1122º CPC».

           Sucede que a medida do necessário e suficiente para atingir o montante das tornas devidas,  tal como  sucede com a penhora  relativamente à quantia exequenda e despesas prováveis,  tem que ter adequadamente em consideração «os bens que apresentam maior probabilidade  de realizarem uma quantia pecuniária em menor tempo»[4].

           No CPC actual, em sede de penhora, o legislador optou por determinar de forma genérica que «a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente», estabelecendo no nº 4 do art 751º,  relativamente a imóvel que seja a habitação própria e permanente do executado, que a mesma apenas se admite quando a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor nos prazos  fixados nas respectivas al a) e b), de 30 e 12 meses, ali, tendo em consideração execução de valor igual ou inferior ao dobro da alçada do tribunal da 1ª instância, aqui, de execução de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal da 1ª instância.

           Ora, transpostos estes critérios de suficiência e adequação para o âmbito em que nos movemos – o que, como acima já se referiu, se justifica perante a expressão, «até onde seja necessário para o seu pagamento»- não poderá deixar se concluir que ao tribunal recorrido não restava adequadamente outra solução que não a de ordenar a venda do imóvel.

           Situa o apelado os bens adjudicados à apelante, para além do imóvel -  dinheiro, bens móveis e direitos - no valor total de € 20.852,50 – valor que este Tribunal, verdadeiramente, não atinge.

            De todo o modo, a maior parte desse valor advirá dos 15.000 € resultantes da partilha de dinheiro feita entre si pelos interessados, sendo que a ter alguma seriedade a posição da aqui apelante já a teria entregue ao apelado para abater nos 60.000,00 que lhe deve.

           Se é verdade que em inventário se tende a subvalorizar os móveis é também verdade que em venda judicial estes valem muito pouco.

           Não se vê como poderia o apelado ver-se pago do valor das tornas sem ser através da venda do imóvel, evidência esta, que o Tribunal a quo reflecte, precisamente, ao não equacionar a possibilidade da venda poder ter outro objecto, com o que o mesmo não deixou, implícita e previamente, de ponderar que não havia outros bens adjudicados à recorrente que tornassem menos gravoso, para esta, o pagamento das tornas ao seu credor.

            Tão pouco se pode declarar que o artº 1122º/2 é inconstitucional por violação do art 18º2 da C.R.P., por não hierarquizar a venda em primeiro lugar dos bens menos gravosos adjudicados ao devedor para pagamento das tornas em dívida, pois, como se viu, a referida expressão, «até onde seja necessário para o seu pagamento», transporta para a matéria em apreço as preocupações que residem à suficência e adequação dos bens a penhorar.

           Também as preocupações da apelante relativamente ao preço por que poderá ser vendido o imóvel e a consequência desse preço se poder vir a situar abaixo ou acima do valor pelo qual ambos os interessados o avaliaram em sede de partilha, é questão aqui irrelevante, constituindo o facto desse preço poder ser inferior ao perspectivado de 120.000,00 €, um risco da apelante,  decorrente, como o salienta o apelado, da sua conduta inadimplente. Até porque, a venda do mesmo por valor superior, implicará que seja ela quem resulte enriquecida.

            Como é evidente, essas futuras vicissitudes – revelar-se o preço acima ou abaixo do considerado aquando do acordo de partilha – não podem fazer recuar o processo para fases anteriores, tendo mesmo que correr como risco da devedora de tornas que as deveria ter pago há muito.

            Como se refere no Ac STJ 14/10/2021[5], (embora numa situação de existência de licitações), «a possibilidade do imóvel poder ser vendido acima ou abaixo daquele preço são vicissitudes que não afectam o reconhecimento de, com a homologação da partilha, se ter constituído a favor dos herdeiros um crédito que segue as regras gerais do direito substantivo. Note-se que bem podia ocorrer o contrário, ou seja, o bem ter sido vendido (naquele processo simplificado no inventário) por valor substancialmente superior àquele por que foi licitado. E então, não cremos que o licitante/vendedor se mostrasse tão “generoso” ao ponto de repartir esse “excedente” pelos demais herdeiros!   Licitando, assumiu o risco (ninguém o obrigou a licitar, muito menos por aquele valor). Sibi imputet.»

           Não podendo deixar de se acentuar que na situação dos autos nem sequer se obteve o valor dos € 120.00,00 em virtude de licitações, por vezes bem difíceis de se conterem no valor adequado aos bens, antes foi a apelante que, de caso, decerto, suficientemente pensado colocou a sua habitação própria e permanente na situação em que se encontra.

           Está-se, pois, longe de uma situação de privação arbitrária da habitação que ponha em causa o direito à habitação reconhecido no art 65º/ 1 da CRP .

            Resta decidir o incidente de litigância de má fé.

            Evidentemente que não assiste razão à apelante quando pretende que este Tribunal está impedido de conhecer esta questão por não ter sido «levantada  em 1ª instância». Na verdade, está em causa matéria de conhecimento oficioso do tribunal, implicando que este a pudesse conhecer, ainda que a mesma não tivesse sido, como foi, suscitada pelo apelado nas contra-alegações de recurso, caso entendesse que a atitude processual de qualquer uma das partes no processo justificava o juízo de censura que está ínsito a qualquer das tipificadas formas deste ilícito previstas no art  542º CPC

            A má-fé processual que o apelado atribui à apelante é de ordem substantiva e  instrumental, por, por um lado, respeitar ao próprio fundo da causa, e por outro, respeitar ao  comportamento processual assumido pela mesma, localizando a actuação ilícita da mesma na circunstância de ter recorrido e com os fundamentos com que o fez. Do seu ponto de vista, a apelante formulou recurso manifestamente infundado, tendo-o feito para protelar o pagamento das tornas, actuação que preencheria em simultâneo as als a) e d) do art 542º.

           Mas, desde o momento em que o art. 20º da CRP assegura a todos os cidadãos o direito de acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, dele resultando o direito de ação judicial, impõe-se ao julgador que seja cauteloso no juízo de litigância de má fé, pois, «se admitíssemos que o exercício do direito de ação ou de defesa fosse considerado de má-fé e, como tal, sancionado, por uma qualquer falta de fundamento da pretensão ou oposição, ainda que inconscientemente desculpável, tal seria suscetível de eliminar o próprio direito de acesso aos tribunais. No limite sancionar-se-ia a mera sucumbência, dado que esta se deve, em geral, à falta de fundamento com que se intentou a ação ou se defendeu em juízo».[6]

            A jurisprudência a tem evidenciado que se deve ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, tendendo a exclui-la, entre outras situações [7], quando esteja em causa, essencialmente, uma mera questão de interpretação e aplicação da lei aos factos, «porque a discordância na interpretação da lei e na sua aplicação aos factos é faculdade que não deve ser coarctada em nome de uma certeza jurídica»[8].

            Nas palavras do Ac RP 6/10/2005 [9], «Não se pode coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadram, por mais minoritárias (em termos) jurisprudenciais ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas».

           Entende-se, pois, que a apelante não merece ser condenada como litigante de má fè.

            V-  Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida e absolvendo a apelante do pedido de condenação de má fé que lhe foi dirigido pelo apelado nas contra-alegações do presente recurso.

           Custas pela apelante no que respeita ao recurso e custas pelo apelado no incidente de litigância de má fé.



Coimbra, 13 de Dezembro de 2023

(Maria Teresa Albuquerque)
(Cristina Neves)
(Sílvia Pires)

            (…)


                [1] - «Partilhas Judiciais», Vol. II, pág. 413

         [2] Assim, Ac R G de 28/10/2010, onde se refere : « (...) o recurso à instauração da acção executiva comum para pagamento do crédito de tornas não se mostra excluída depois de o credor ter usado o procedimento simplificado previsto no processo de inventário – e, nessa medida, também não está o credor de tornas impedido de executar, para satisfação do seu crédito (remanescente), todo o património do devedor de tornas, mesmo que não respeite aos bens recebidos no inventário».

               Em sentido contrário, Ac R C de 24/04/2007, www.dgsi.pt ,ao referir: “Em suma, a cobrança coerciva, não só das tornas mas também dos juros devidos pela demora no pagamento das tornas reclamadas, deve ser efectivada nos termos do n.3 do art. 1378º do CPC, só podendo a venda incidir sobre bens adjudicados ao devedor de tornas e realizar-se no processo de inventário. Sempre vedado, pois, ao credor de tornas e juros instaurar uma execução por apenso ao inventário e penhorar outros bens do devedor que advieram a este por título diverso da adjudicação em inventário.”

            No sentido do credor de tornas poder  utilizar o processo normal de  execução para se pagar da divida de tornas desde que em função de bens não objecto de adjudicação no inventário, Ac STJ 23.01.2020 (Maria da Graça Trigo, em cujo sumário se refere : “I. A dívida de tornas constituída no âmbito do inventário, por qualquer herdeiro, designadamente por via de licitações que excederam o respectivo quinhão, ganha autonomia, sendo-lhe aplicáveis as regras gerais da responsabilidade obrigacional, designadamente em matéria de responsabilidade patrimonial do devedor. II. Posto que, na regulação do processo de inventário nos termos do antigo CPC (nº 3 do art. 1378º, correspondente ao actual nº 2 do art. 1122º do CPC, na redacção da L. nº 117/2019, de 13/09), a cobrança dessa dívida pudesse ser feita no âmbito do próprio processo, o uso desse procedimento especial não altera a natureza do crédito de tornas e da correspondente dívida. III. Sem embargo dos casos em que a dívida de tornas seja da responsabilidade de ambos os cônjuges, pelo seu pagamento respondem todos os bens do devedor, incluindo os bens que integram a sua meação nos bens comuns do (casal)”.

                [3] - Rui Pinto, Manual da Execução e do Despejo», Agosto 2013, p.762/563
                [4] - De novo, Rui Pinto, obra citada, p 566
                [5] - Relator, Fernando Baptista de Oliveira, acórdão acessível em www.dgsi.pt

           [6]  - «Reflexões em matéria de litigância de má-fé», Marta Alexandra Frias
                [7]  - Ac R P 6/10/2005, Fernando Batista

            [8] - Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº 116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014, todos publicados in www.dgsi.pt. ; Ac R E 17/6/2021, Francisco Matos;  Ac R L 18-1-2023 Leopoldo Soares
                [9] - Relator, Fernando Baptista