Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
200/18.7T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: POSSE
USUCAPIÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
TAPAGEM OU OBSTRUÇÃO DO LEITO DA SERVIDÃO
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 640.º, 1, A), CPC
ARTIGOS 1251.º; 1257.º, 1; 1259.º, 1; 1260.º; 1262.º; 1263,º, A); 1287.º; 1293.º A 1297.º; 1288.º; 1543.º; 1544.º; 1547.º, 1 E 2; 1548.º; 1550.º E 1564.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I- O incumprimento pelo recorrente do ónus primário de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, determina a imediata rejeição do recurso nessa parte.
II- Pratica atos de posse, suscetíveis de conduzir à aquisição do direito de passagem, quem utiliza uma faixa de terreno, delimitada no solo através de sinais visíveis e permanentes, desde há mais de vinte anos, continuada, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos de outrem.
III- A servidão de passagem exclui, na medida do seu conteúdo, o direito de conteúdo mais vasto (o direito de propriedade), pelo que não podem os proprietários do prédio serviente (no caso os réus) opor, aos titulares da servidão de passagem, o direito de taparem a entrada no caminho fazendeiro e no topo do seu prédio, e de executaram obras, construindo suportes e colocando portões, a servir de vedação à sua propriedade, no local para onde é, e sempre foi, a passagem de carro e a pé dos autores para o seu prédio, impossibilitando a entrada a pé e de qualquer espécie de veículo para a propriedade dos ora autores.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

AA e esposa BB intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra CC e esposa DD, pedindo que seja julgada procedente a ação, e, em consequência:

A. Sejam os autores reconhecidos como legítimos proprietários do prédio descrito em 1º da P.I.

B. Ser declarada constituída por usucapião uma servidão de pé e de carro, a favor do prédio dos autores, descrito no artigo 1º da petição, servidão essa com o comprimento de 50,00m e a largura de 3,00m;

C. Sejam os réus condenados a reconhecer tal servidão, abstendo-se de, por qualquer forma impedir o exercício do direito de servidão por parte dos Autores;

D. Sejam os réus condenados a destruir a estrutura que construíram e a retirar o portão, retirando os respetivos destroços, repondo a servidão na situação anterior a tais obras.

Subsidiariamente, a declaração da constituição de uma servidão de passagem, a pé e de carro, por sobre os prédios dos réus, com uma extensão de aproximadamente 50,00m de comprimento e um leito de, no mínimo, 3,00m de largura.

E. Serem os réus condenados a pagar aos autores o valor de €3.500,00, a título de indemnização pelos danos causados.

Para tanto alegaram em síntese que:

-São proprietários de um prédio rústico, composto por semeadura e pinhal, sito no ..., distrito ..., concelho ..., Freguesia ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...94º do Serviço de Finanças ... e descrito na Conservatória do Registo predial sob o número ...33.sito na Freguesia ....

-Há mais de 20 ou 30 anos, por si e seus antecessores, vêm fruindo daquele prédio, como coisa sua, pagando os respetivos impostos, limpando e roçando o mato, cortando os pinheiros, aí tendo os seus pertences e bens agrícolas, dele aproveitando todas as suas utilidades, colhendo frutos, cortando lenha e cultivando, comportando-se como seus exclusivos donos e senhores, à vista de toda a gente, sem interrupção, de forma continua e permanente, sem oposição de quem quer que seja e de boa-fé, na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem o de outros.

-Pelo que os autores e antepossuidores adquiriram o direito de propriedade sobre o citado prédio através de aquisição originária, por usucapião.

-Aquisição essa, titulada em 30 de setembro de 2010, através de uma escritura de compra e venda.

-Tal prédio confina com o prédio dos réus.

-O prédio propriedade dos autores é um prédio de cultivo com pinhal e eucaliptos, sendo que a passagem a pé e de carro para o mesmo sempre foi feita pelo prédio dos Réus supra descrito, uma vez que o mesmo não tem comunicação com a via pública.

-Para irem da rua pública para o seu prédio, os autores sempre se serviram e passaram a pé, com carros de vacas, carros de mão, tratores, por uma parcela de terreno (caminho) que tem aproximadamente a largura de 3,00m, e o comprimento 50,00m, desde a estrada á entrada do seu prédio.

-Servidão que nasce á face de um caminho fazendeiro, e vai desembocar no prédio dos autores.

-O que sucede por si e antepossuidores há mais de 20, 30, 40, 50 anos, ininterruptamente; à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, convencidos que exercem um direito próprio correspondente à sua atuação (direito de servidão) e que não lesam o direito de quem quer que seja.

-Tal servidão revela-se por sinais visíveis e permanentes desde a terra acalcada, com sulcos com erva no meio e o leito rebatido e rebaixado por onde passam os rodados dos tratores;

-Adquiriram, assim, os autores o direito de servidão a pé e de carro a favor do prédio dos réus, constituída por usucapião.

-Os réus colocaram uma corrente e um portão, tapando a totalidade da passagem, impedindo a entrada a pé e de qualquer espécie de veículo para a propriedade dos ora autores.

-Os autores negociaram a venda da madeira do prédio, mas como não conseguiram entrar no mesmo para a cortar, a mesma ardeu toda nos incêndios de outubro de 2017, causando-lhes um prejuízo no valor aproximado de €3.500,00.

Os réus contestaram, impugnando os factos alegados, uma vez que o caminho descrito pelos autores apenas serve o prédio dos réus. O prédio dos réus tem acesso pelo lado oposto.

No decurso da ação faleceu a ré, tendo havido a competente habilitação de herdeiros.

Realizou-se audiência de julgamento e na sequência da qual, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Por tudo o exposto o tribunal julga parcialmente procedente porque provada a presente acção e em consequência disso:

A. Declara que os Autores como legítimos proprietários do prédio descrito em 1. Dos factos provados;

B. Declarada constituída por usucapião uma servidão de pé e de carro, a favor do prédio dos Autores, descrito em 1, dos factos provados, servidão essa com o comprimento de 50,00m e a largura de 3,00m;

C. Condena os réus a reconhecer tal servidão, abstendo-se de, por qualquer forma impedir o exercício do direito de servidão por parte dos Autores;

D. Condena os réus a remover a estrutura que construíram e a retirar o portão, retirando os respectivos destroços, repondo a servidão na situação anterior a tais obras;

Subsidiariamente, a declaração da constituição de uma servidão de passagem, a pé e de carro, por sobre os prédios dos Réus, com uma extensão de aproximadamente 50,00m de comprimento e um leito de, no mínimo, 3,00m de largura.

E. Absolve os réus do restante pedido, formulado pelos autores;

F. Fixa em €7.000,00, o valor da acção.”

Inconformada com o decidido, o réu CC interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. A talho de foice, numa perspetiva muito realista de toda a prova produzida, e, salvo douta melhor opinião, é inconcebível a decisão do aqui tribunal a quo, uma vez que de uma forma transversal, todas as testemunhas apresentadas pelos AA, não vão ao local há mais de 30, 40, 50 e 60 anos, há exceção da testemunha EE, que segundo ela, terá andado na zona, há cerca de 4 ou 5 anos.

2. Reportando-nos à prova produzida, resulta essencialmente das palavras dos AA, que efetivamente houve a abertura de um caminho, confinando ao encarradoiro, há cerca de 40 anos, nos terrenos do próprio para um melhor acesso ao mesmo, sendo que o mesmo é do desconhecimento das testemunhas, maioritariamente, sem nunca o terem visto, face ao espaço temporal que não se deslocam ao local.

(Cfr. DEPOIMENTO DO AUTOR: AA 17-05-2022 09:56:48 às 17-05-2022 10:10:12 (13:25 minutos)

(Cfr. DEPOIMENTO DA AUTORA: BB 17-05-2022 10:11:40 às 17-05-2022 10:26:56 (15:16 minutos.

3. Da primeira testemunha, FF, não se conseguiu apurar mais do que uns trabalhos realizados há cerca de 5 anos atrás, procedendo ao corte de umas giestas, e todas as informações que tem sobre o litígio em causa, foram transmitidas pelos aqui AA, desconhecendo a configuração e localização dos terrenos quer dos AA quer dos RR,

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: FF 17-05-2022 10:28:05 às 17-05-2022 10:31:48 (03:44 minutos)

4. Assim sendo, e apesar de toda a boa vontade da testemunha não se consegue retirar nada de proveitoso quanto à produção da prova necessária para a decisão tomada nos autos.

5. Da segunda testemunha, EE, sobrinha dos AA, também muito criativa nas suas declarações, afirma que herdou uma parcela de terreno no local, sendo que como era emigrante nunca cultivou o terreno, tendo posteriormente, vendida há cerca de 15 anos atrás aos AA, por não ter qualquer interesse e se encontrar deslocada do país.

Desconhece por completo o caminho realizado pelo AA, há cerca 40 anos, tendo apenas conhecimento da existência no local de um caminho de pé, não tendo lá voltado há “mais de 30 e tal anos”, desconhecendo por completo a realidade dos factos atuais.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: EE 17-05-2022 10:32:52 às 17-05-2022 10:43:29 (10:37 minutos)

6. A terceira testemunha, GG, segundo ele, e no auge da sua juventude, há 30 anos atrás, realizou um trabalho de recolha de uma árvore, um castanheiro seco, a pedido dos AA, no local do litígio.

Nas palavras dele, não consegue precisar os limites de toda a extensão das propriedades, por não as conhecer, nem o caminho por onde passou, não sabendo a quem pertenciam, tendo apenas efetuado o caminho indicado pelos AA.

7. De ressalvar a referência há existência efetiva de um outro caminho, (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), desconhecendo se esse dito caminho bate no terreno dos AA, uma vez que não conhece os limites das propriedades, bem como a afirmação de que “não tendo passado por ali há mais de 30 anos”, desconhecendo assim a realidade dos factos, e o contexto das situações em litígio.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: GG 17-05-2022 10:44:23 às 17-05-2022 10:53:09 (08:46 minutos)

8. A quarta testemunha, HH, sobrinho dos AA, que em tempos foi proprietário de uma parcela de terreno no local, nunca o tendo cultivado, herdado pela sogra, tendo posteriormente vendido aos aqui AA, sendo que, não conhece o caminho novo (aberto pelos autores segundo eles há 40 anos), não visita o local nem conhece o estado atual das propriedades, desde do ano de 1975, ano que emigrou para o ..., não tendo mais lá voltado há pelo menos 47 anos.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: HH 17-05-2022 10:54:08 às 17-05-2022 11:10:15 (16:08 minutos)

9. Da quinta testemunha, II, retira-se a existência de um caminho de pé, por conhecimento próprio dos tempos da juventude, não visitando o local há mais de 40 anos, sendo que não conhece a realidade dos factos aqui presentes.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: II 17-05-2022 11:19:02 às 17-05-2022 11:25:33 (6:31 minutos)

10. Da sexta testemunha, JJ, reconhece a existência de um carreiro, na sua juventude, não frequentando o local há 50 ou 60 anos, desconhecendo assim totalmente a realidade dos factos presentes em questão.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: JJ 17-05-2022 11:26:37 às 17-05-2022 11:31:28 (4:51 minutos)

11. Da sétima testemunha, KK, ressalva o facto de a mesma ter um terreno na outra encosta, junto ao rio, e que, por ser mais próximo, atravessada aquelas propriedades, não sabendo quem são os proprietários, nem os limites das propriedades, não indo ao local há mais de 40 anos, desconhecendo assim, toda a matéria de facto e de direito aqui em litígio.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: KK 17-05-2022 11:32:27 às 17-05-2022 11:37:38 (5:11 minutos)

12. De ressalvar, que a mesma refere a existência do outro caminho, (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), designado de castiçal, e que, apesar de ter de atravessar outras propriedades, todas da mesma família, o mesmo se faz chegar ao terreno dos AA.

13. Da oitava e ultima testemunha, LL, resulta o facto da confirmação de um alargamento do caminho no terreno dos RR, custeado ainda pelos próprios pais, com vista a um melhor acesso às propriedades, tendo ajudado a cortar o mato onde se encontram as colmeias, sendo que em momento algum o caminho de acesso às propriedades dos AA, se fazia pelo terrenos dos seus pais, atualmente do RR, seu irmão, referindo que o acesso dos AA e restante família, era pelo outro caminho, (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), uma vez que parte da outra margem pertence a vários familiares entre si.

(Cfr. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA: LL 17-05-2022 14:55:15 às 17-05-2022 15:11:51 (5:11 minutos)

14. Da prova produzida em sede de inspeção ao local, resulta claramente a existência do caminho (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), “com cerca de 4,5 metros de largura, com sinais visíveis de passagem de veículos de tração “tratores”, o qual os Autores e Réus concordam que chega até ao rio”.

15. A presente decisão tomada pelo Tribunal a quo, não procedeu há correta interpretação da prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal e inspeção judicial, violando assim entre outros, os princípios estabelecidos nos nº 4 e 5 do artigo 607º do CPC.

Assim,

Face ao claro e evidente desconhecimento dos factos, das propriedades, dos limites, e dos possíveis direitos em causa reclamados pelos AA, por parte das testemunhas, é para os aqui recorrentes, inconcebível a decisão proferida nos presentes autos, uma vez que em sede de julgamento, não se logrou provar efetivamente a existência de tais servidões, quer legais, quer por usucapião.

Sobressaindo apenas o abuso por parte dos AA, e de terceiros, a passagem e tentativa abusiva de fazer caminho, por terrenos alheios, nomeadamente do aqui recorrente.

Cabia ao AA. provar os factos que alegaram, de acordo com o previsto no nº 1 do artigo 342º do Código Civil, “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

Os AA. não lograram fazer qualquer prova, face ao desconhecimento demonstrado pelas testemunhas.

A sentença do Tribunal a quo violou o disposto no artigo 342º nº 1 do Código Civil e ainda o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.

Termos em que deve o Tribunal a quem revogar a sentença recorrida, dada como não provada, e dando como procedente o presente recurso apresentado pelos RR recorrentes, concluindo pela improcedência da ação.”

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com a formulação das seguintes conclusões:

“1. O recurso interposto pelos réus apelantes é infundado, carecendo de fundamento material e formal.

2. Ainda que na sentença recorrida não fosse julgado procedente o reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião, teria sempre que ser constituída uma servidão legal de passagem.

3. A servidão legal de passagem (art.º 1550º e ss do CC) tem na sua base um direito potestativo, permitindo ao seu titular a constituição de um direito real independentemente da vontade do dono do prédio serviente.

4. O proprietário de um prédio sem comunicação com a via pública não está obrigado a requerer ao tribunal que constitua uma servidão legal de passagem a seu favor.

 5. A circunstância de um prédio se encontrar encravado e estarem reunidas as condições para se exigir a constituição, é por si só suficiente para se constituir a servidão por sentença.

6. Na sentença recorrida considerou-se que se mostrava demonstrada a existência de um poder de facto sobre o caminho, mas que mesmo que assim não se entendesse:

“Acresce que, ainda que não se tivesse provado a prática reiterada de actos, de passagem de forma pública, pacifica com a convicção do exercício de um direito, porque resultou que o prédio dos autores não possui acesso á via pública, ou a outro caminho, sempre se iria cair na constituição de servidão legal de passagem, nos termos do art.º 1550º do Código Civil. (…)

7. Ora, relativamente a esta decisão os réus não interpuseram recurso.

8. O M. Juiz fundou, e muito bem, a sua decisão e convicção no conjunto das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento conjugadas com as regras de experiência comum, documentos juntos aos autos e principalmente pela prova por inspeção judicial que se encontra consignada em acta.

“(…) Após tal limite, constata-se a existência ainda de plataforma por onde terá existido um caminho onde vegetam giestas com cerca 3/4 anos.”

9. No que diz respeito ao depoimento de parte dos autores, os mesmos referiram que para irem buscar madeira ao seu prédio sempre passaram pelo terreno dos réus. Negaram que tivessem direito ou passassem pelo caminho indicado pelos réus, tendo sempre passado pelo do .... (Cfr Depoimento do autor AA 17-05-2022 09:56:48 às 17-05-2022 10:10:12 (13:25 MINUTOS) Cfr Depoimento da autora BB 17-05-2022 10:11:40 às 17-05-2022 10:26:56 (15:16 MINUTOS)

10. Do depoimento de FF, resultou que à cerca de 4 ou 5 anos andou a cortar matos para os autores, no prédio dos mesmos e que para chegar a esse prédio passou pelo espaço que hoje se encontra vedado pelos réus, tendo passado pelo caminho..., e depois contornado a vedação. (Cfr Depoimento da testemunha FF 17-05-2022 10:28:05 às 17-05-2022 10:31:48 (3:44 MINUTOS)

11. Do depoimento de EE, resultou que conhecia o espaço desde criança, por ser de seus avós, descreveu, que a passagem por aquele caminho no terreno dos réus era feita todo o ano, em qualquer altura, umas vezes a pé outras com os carros de bois e depois tratores, sendo que os tratores não vão até ao rio, apesar de umas obras que o autor lá realizou. Que sempre acederam pelo caminho.... (Cfr Depoimento da testemunha EE 17-05-2022 10:32:52 às 17-05-2022 10:43:29 (10:37 MINUTOS)

12. A testemunha GG, que relatou ir ao terreno, com um trator, que conduzia, há cerca de 25 anos, carregar um castanheiro, descrevendo o trajeto que realizou, até ao rio.; referiu que passou sem que tenha havido qualquer oposição, pelo caminho.... (Cfr Depoimento da testemunha GG 17-05-2022 10:44:23 às 17-05-2022 10:53:09 (08:46 MINUTOS)

13.  A testemunha HH, referiu que foi proprietário de um terreno na zona, tendo descrito a forma como acedia ao terreno: sempre passou pelo caminho.... Cfr Depoimento da testemunha HH 17-05-2022 10:54:08 às 17-05-2022 11:10:15 (16:08 MINUTOS)

14. II, referiu que na sua juventude trabalhou para os pais da autora, indicando o trajeto que fazia para aceder ao prédio dos autores, pelo caminho..., descrevendo a dificuldade de acesso, devido à inclinação do terreno. (Cfr Depoimento da testemunha II 17-05-2022 11:19:02 às 17-05-2022 11:25:33 (6:31MINUTOS)

15. Do depoimento de KK, resultou para além da confirmação dos que a antecederam, que não é possível passar pelo caminho indicado pelos réus pois são terrenos que se encontram cultivados, não permitindo a passagem com carros sobre os mesmos. (Cfr Depoimento da testemunha KK 17-05-2022 11:32:27 às 17-05-2022 11:37:38 (5:11 MINUTOS)

16. Não nos merece nenhum reparo o juízo feito sobre a prova testemunhal produzida.

17. Para ter verdadeiramente um juízo critico sobre a prova produzida, não nos basta trazer uma parte do depoimento de uma ou duas testemunhas, mas antes de todas elas e demais provas, para termos uma conclusão clara.

18. Não houve qualquer violação na douta sentença dos art.º 607º n.º 4 e 5, 615º, n.º 1, al. c) do CPC, nem tão pouco do art.º 342º do CC.

19. Ao invés, quanto à situação de não encrave e acesso por outro local, cabia aos réus a prova do facto positivo, o que manifestamente não aconteceu

20. Ainda que não se tivesse provado a prática reiterada de actos, de passagem de forma pública, pacifica e com a convicção do exercício de um direito, uma vez que o prédio dos autores não possui acesso á via pública, ou a outro caminho, sempre se iria cair na constituição de servidão legal de passagem, nos termos do art.º 1550º do Código Civil.”

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir, atenta a sua ordem lógica, consistem em saber se: 1) a sentença recorrida enferma de nulidade; 2) deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto; 3) e, em consequência, se encontram ou não verificados os fundamentos para o reconhecimento da servidão de passagem peticionada pelos autores.

                  FUNDAMENTOS DE FACTO

                  Na sentença recorrida foi fixada a matéria de facto da seguinte forma:             

                  “Factos provados:
1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do seguinte prédio: rústico, composto por semeadura e pinhal, sito no ..., distrito ..., concelho ..., Freguesia ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...94º do Serviço de Finanças ... e descrito na Conservatória do Registo predial sob o número ...33.
2. O prédio dos Autores confronta de Norte com AA; de sul com MM; de Nascente com o Rio e de Poente com NN. (sendo que as confrontações atuais não estão atualizadas na certidão de teor matricial).
3. Por si e seus antecessores, vêm os Autores fruindo daquele prédio, como coisa sua, pagando os respetivos impostos ao Estado, limpando e roçando o mato, cortando os pinheiros, aí tendo os seus pertences e bens agrícolas, dele aproveitando todas as suas utilidades, colhendo frutos, cortando lenha e cultivando.
4. Há mais de 20 ou 30 anos, comportando-se como seus exclusivos donos e senhores, à vista de toda a gente, sem interrupção, de forma continua e permanente, sem oposição de quem quer que seja e de boa-fé, na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem o de outros,
5. Aquisição essa, titulada em 30 de setembro de 2010, através de uma escritura de compra e venda.
6. Os Réus são proprietários de um prédio rústico sito no ..., distrito ..., concelho ..., Freguesia ..., composto por semeadura e pinhal, pastagem e 180 cepas, com a área total de 3,068000ha, inscrito na matriz predial sob o artigo ...97º do Serviço de Finanças ..., que confina com o prédio dos Autores.
7. O prédio propriedade dos Autores é um prédio de cultivo com pinhal e eucaliptos, sendo que a passagem a pé e de carro para o mesmo sempre foi feita pelo prédio dos Réus supra descrito, uma vez que o mesmo não tem comunicação com a via pública.
8. Para irem da rua pública para o seu prédio, os Autores sempre se serviram e passaram a pé, com carros de vacas, carros de mão, tractores, por uma parcela de terreno (caminho) que tem aproximadamente a largura de 3,00m, e o comprimento 50,00m, desde a estrada à entrada do seu prédio.
9. Tal passagem nasce à face de um caminho fazendeiro, e vai desembocar no prédio dos Autores.
10. O que sucede desde tempos imemoriais, portanto há mais de 20, 30, 40, 50 anos;
11. Ininterruptamente;
12. À vista de toda a gente.
13. Sem qualquer oposição.
14. Convencidos que exercem um direito próprio correspondente à sua actuação (direito de passagem/servidão).
15. E que não lesam o direito de quem quer que seja.
16. O leito de passagem revela-se por sinais visíveis e permanentes desde a terra acalcada, com sulcos com erva no meio e o leito rebatido e rebaixado por onde passam os rodados dos tractores.
17. E isto têm eles feito por si e seu antepossuidores.
18. Os Réus, em data não apurada, mas anterior a 15-10-2017, decidiram tapar a entrada no caminho fazendeiro e no topo do seu prédio, e executaram obras, construindo suportes e colocando portões, tendo até instalado câmaras de filmar, colocaram um portão, a servir de vedação à sua propriedade, no local para onde é, e sempre foi, a passagem de carro e a pé dos Autores para o seu prédio.
19. Os Réus com a corrente e o portão, taparam a totalidade da passagem, sendo impossível a entrada a pé e de qualquer espécie de veículo para a propriedade dos ora Autores.
20. Impedindo assim a entrada e saída de veículos e nomeadamente dos tractores com atrelados ou qualquer outro tipo de atrelado.
21. Tal portão e estruturas de apoio do mesmo, obstruiu a passagem de pessoas e carros para o prédio descrito em 1.
22. O prédio propriedade dos Autores é constituído por pinhal e eucaliptal, sendo que a passagem de pé e carro para o mesmo sempre foi feita pelo local onde os réus colocaram o portão.
23. Os autores residiram durante mais do que 40 anos, em ... e nos ....
24. O prédio dos AA., após deixar a estrema com o prédio dos RR., se desenvolve em escarpa bastante acentuada virada ao rio a nascente sendo manifestamente impossível aceder aí por qualquer veículo de tracção mecânica, à parte do fundo, mais próxima do rio.
25. Os RR. colocaram uma vedação no topo norte do seu prédio, uma vez que aí foram instaladas colmeias de abelhas e houve que proteger o espaço onde se encontravam.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

-Os Autores negociaram a venda da madeira do prédio, mas como não conseguiram entrar no mesmo para a cortar, a mesma ardeu toda nos incêndios de Outubro de 2017.

-A madeira que havia no prédio dos autores tinha um valor aproximado de 3.500,00€.

-Ainda que viessem de férias a Portugal e tenham casa de habitação em ..., os Autores, não mais se deslocaram ao prédio do qual alegam ser proprietários, até porque o mesmo se encontra distanciado da povoação e da sua residência.

-O terreno dos autores encontra-se totalmente abandonado nunca aí tendo os AA. cultivado o que quer que fosse.

-Os pinheiros encontravam-se caídos e velhos, mas não por consequência dos incêndios, mas sim pelo abandono por parte dos AA.

-O acesso dos autores ao seu prédio é feito através de um trato de terreno batido e bem socado pela passagem contínua de pessoas a pé e com tractores, tendo uma largura constante de 3 a 3,20 metros.

-Esse trato de terreno desenvolve-se no sentido poente-nascente em sentido descendente deixando a estrada pública a poente e entrando no prédio de GG e prolonga-se por vários terrenos de cultivo, sendo dois deles propriedade dos aqui AA. inscritos na matriz predial rústica da Freguesia ... sob os artigos ...84 e ...69 indo desembocar nas margens do rio situado a nascente com o qual confronta o prédio dos AA. identificado em 1.

-Este trato de terreno encontra-se calcado e com relvados visíveis e permanentes, sendo inclusive utilizado pelos serviços do Ambiente para a limpeza das margens do rio, tendo sido utilizado para tal há cerca de 2 anos.

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Se a sentença recorrida enferma de nulidade
O recorrente limita-se a alegar que a sentença recorrida violou o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, sem mencionar em que se traduz essa violação.

O vicio previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC refere-se à hipótese de ocorrer uma contradição entre a fundamentação de direito e a decisão.

Lida a sentença recorrida não se vislumbra que a sentença recorrida padeça da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC.


2. Se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto

Ao longo das treze primeiras conclusões do recurso, o recorrente faz considerações genéricas sobre os depoimentos de oito testemunhas, para depois invocar que da prova produzida em sede de inspeção ao local, resulta claramente a existência do caminho (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), “com cerca de 4,5 metros de largura, com sinais visíveis de passagem de veículos de tração “tratores”, o qual os Autores e Réus concordam que chega até ao rio (conclusão 14ª), para depois terminar, dizendo que é inconcebível a decisão proferida nos presentes autos, uma vez que em sede de julgamento, não se logrou provar efetivamente a existência de tais servidões, quer legais, quer por usucapião, pelo que deve o Tribunal a quem revogar a sentença recorrida, dada como não provada, e dando como procedente o presente recurso apresentado pelos RR recorrentes, concluindo pela improcedência da ação.

Conforme é consabido, quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC.

De tal preceito decorre que a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

i) a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

ii) a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

iii) a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

iv) a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Conforme refere Abrantes Geraldes[1] “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.o, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)).

b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a)).

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.).

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda.348 e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

(…)

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”

 “De facto, para modificar a decisão da 1.ª instância, por enfermar de erro de julgamento, necessário se torna, sob pena de rejeição, que se indiquem os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados e a decisão que se entende deveria ter sido proferida, e, bem assim, se especifiquem os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa, alegando o porquê da discordância, explicando em que é que os depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, designadamente afastando os demais meios de prova em que o julgador firmou a sua convicção, ou seja, necessário se torna que o Recorrente delimite efetivamente o objeto do recurso, e fundamente as razões da respetiva discordância”[2].

 “O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, isto porque, os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto, não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, nem a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto”[3].

Cumpre referir que “No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações”[4].

Analisadas as conclusões das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, verificamos que não há qualquer referência, nem sequer de forma sumária, aos concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar[5], pelo que incorreu numa omissão do cumprimento do ónus previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 640º do CPC, o que implica, sem mais, a rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto[6], não sendo consequentemente de apreciar as alusões que efetuou no corpo das alegações à inspeção ao local e aos excertos da prova testemunhal que, no seu entender, consubstanciam o invocado erro de julgamento.

Assim sendo, e atendendo ao incumprimento pelo recorrente do ónus a que alude o artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, rejeitamos o recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

3- Se encontram ou não verificados os fundamentos para o reconhecimento da servidão de passagem peticionada pelos autores

O artigo 1543.º do Código Civil define servidão predial como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.

Esta noção genérica de servidão evidencia o seguinte:

a) a servidão é um encargo, uma restrição ou limitação ao direito de propriedade;

b) o encargo recai sobre um prédio (o onerado ou serviente);

c) o mesmo aproveita exclusivamente a outro prédio (o dominante);

d) os prédios devem pertencer a donos diferentes[7].

Sobre a sua constituição, rege o artigo 1547.º do mesmo Código, cujo n.º 1 dispõe que “as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família”, enquanto o n.º 2 preceitua que “as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos”.

Relativamente à constituição por usucapião, única que aqui interessa considerar, estabelece o art.º 1548.º daquele Código que:

“1. As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.

2. Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanente.”

Por outro lado, dispõe o art.º 1287.º do Código Civil que “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”.

A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.

A posse boa para usucapião há-de ter as características de posse verdadeira e própria, não sendo, por isso, usucapíveis direitos que, embora dotados de tutela possessória, se reconduzem a situações de mera detenção. Outros casos há em que a lei, porque não é clara a situação de posse, não admite a usucapião, como acontece com as servidões prediais não aparentes e com os direitos de uso e habitação (art.º 1293.º).

Tal posse há-de ser, pelo menos, pública e pacífica, já que a posse violenta ou tomada a ocultas não merece a tutela do direito, sofrendo antes a sua reprovação: se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art.º 1297.º).

Nos art.ºs 1294.º a 1296.º estão regulados os vários prazos, mais ou menos longos de acordo com a natureza da posse, de usucapião de imóveis. Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art.º 1296.º).

A usucapião retroage à data do início da posse em nome próprio, altura em que se inicia uma posse boa para usucapião (art.º 1288.º).

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como titular desse direito (animus) (art.º 1251.º).

“Em direito português, posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de direito real. Envolve, portanto, um elemento empírico- exercício de poderes de facto- e um elemento psicológico jurídico- em termos de um direito real. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus.”[8].

Segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 144, de 14-5-96[9] «Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa».

Segundo, o artigo 1259º, n 1 “diz-se titulada a posse quando se funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”.

Rege o artigo 1260º, que, no seu nº 1, escreve que “a posse presume- de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”. “Trata-se, por conseguinte, de um conceito puramente psicológico e, logo, puramente fáctico de boa fé, residindo esta na pura ignorância ou ignorância efectiva, de que se lesam direitos alheios.

Tal concepção puramente psicológico-empírica faz, porém, com que a prova da boa ou má fé seja extremamente difícil, pelo que a lei recorre a presunções: no artigo 1260º, 2, determina-se que “a posse titulada presume-se de boa fé, e não titulada de má fé”. Compreende-se este recurso porque, se a existência de título não é suficiente, de per si, para fundamentar a boa fé, constitui, no entanto, um sério indicio de que se julgou adquirir sem prejuízo para outrem. Aflora aqui a já assinalada ideia de posse como “valor de conhecimento”, que a justifica como caminho para uma autêntica dominialidade”[10].

Segundo o artigo 1261º, nº 1 “posse pacífica é a que foi adquirida sem violência, acrescentando o nº 2 que se considera violenta a posse obtida por coação física ou moral, tanto contra as coisas como contra as pessoas”.

De acordo com o artigo 1262º “posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados”. Não é necessário que a posse seja exercida à vista dos interessados, basta que o seja de forma a poder ser deles conhecida.

A posse adquire-se, além do mais, pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito [art.º 1263.º, al. a)]. No caso da servidão de passagem, a posse inicia-se pelo ato de passar por um determinado local, de forma visível e permanente, e exerce-se, continua, enquanto o caminho se mantiver apto a proporcionar as utilidades próprias da servidão (art.ºs 1257.º, n.º 1, 1544.º e 1564.º).

Entre as servidões legais, a lei prevê a servidão legal de passagem no art.º 1550.º, dispondo:

“1. Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.

2. De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.”

Trata-se, neste caso, do exercício de um direito potestativo, que confere ao respetivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste, passando a constituir um encargo normal sobre a propriedade, na medida em que onera todos os proprietários que se encontrem na situação prevista na lei.

No caso dos autos, não foi pedida a constituição de uma servidão legal de passagem, mas o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião.

Vejamos, pois, se ela foi constituída por esta via.

Consta dos factos provados que:

- O prédio propriedade dos autores é um prédio de cultivo com pinhal e eucaliptos, sendo que a passagem a pé e de carro para o mesmo sempre foi feita pelo prédio dos réus supra descrito, uma vez que o mesmo não tem comunicação com a via pública (Facto 7).

-Para irem da rua pública para o seu prédio, os autores sempre se serviram e passaram a pé, com carros de vacas, carros de mão, tratores, por uma parcela de terreno (caminho) que tem aproximadamente a largura de 3,00m, e o comprimento 50,00m, desde a estrada à entrada do seu prédio. (Facto 8).

-Tal passagem nasce à face de um caminho fazendeiro, e vai desembocar no prédio dos autores (facto 9).

-O que sucede desde tempos imemoriais, portanto há mais de 20, 30, 40, 50 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem qualquer oposição, convencidos que exercem um direito próprio correspondente à sua atuação (direito de passagem/servidão) e que não lesam o direito de quem quer que seja (factos 10 a 15).

- E isto têm eles feito por si e seu antepossuidores (facto 17).

-O leito de passagem revela-se por sinais visíveis e permanentes desde a terra acalcada, com sulcos com erva no meio e o leito rebatido e rebaixado por onde passam os rodados dos tratores (facto 16).

Os factos provados revelam inequivocamente a existência de sinais visíveis e permanentes.

E também mostram que os autores/recorridos atuaram no exercício de um direito de servidão através do corpus, traduzido nos atos materiais correspondentes, e com o necessário animus, revelado na convicção de que exerciam um direito próprio.

Os atos por eles praticados foram no âmbito desse direito, tendo exercido verdadeiros atos de posse e não de mera tolerância.

Os factos provados permitem, assim, concluir que estamos perante uma servidão aparente, como tal, suscetível de ser constituída por usucapião.

E mostrando-se também provado que os autores, desde há mais de 20 anos, vêm acedendo ao seu prédio através do identificado caminho que se desenvolve pelo prédio dos réus, a pé e de carro, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de exercerem um direito próprio e de que não lesavam ninguém, verificados estão todos os requisitos necessários à constituição e ao reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião, nos termos peticionados na ação.

A servidão de passagem exclui, na medida do seu conteúdo, o direito de conteúdo mais vasto (o direito de propriedade), pelo que não podem os proprietários do prédio serviente (no caso os réus) opor, aos titulares da servidão de passagem, o direito de taparem a entrada no caminho fazendeiro e no topo do seu prédio, e de executaram obras, construindo suportes e colocando portões, a servir de vedação à sua propriedade, no local para onde é, e sempre foi, a passagem de carro e a pé dos autores para o seu prédio, impossibilitando a entrada a pé e de qualquer espécie de veículo para a propriedade dos ora autores[11].

Concorda-se assim com a sentença recorrida quando refere que “resulta de forma inequívoca que o prédio identificado em 1, na matéria de facto provada, beneficiou ao longo do tempo, mais do que 50 anos, de passagem pelo prédio do réu, mantendo-se sinais visíveis, não tendo decorrido o período de não uso, que poderia levar à extinção da servidão (usucapio libertatis) pelo que ter-se-á que concluir pela existência de uma servidão constituída por usucapião, existem os sinais visíveis nos prédios relativamente ao leito da passagem e respectivas dimensões “.

(…)

Os actos de colocar postes, correntes, portões em ferro, vedações, no leito da servidão, pelos réus, há não mais do que 20 anos, são impeditivos do uso do direito do prédio dos autores sobre o prédio do réu, constituindo um esbulho, pelo que são actos ilícitos, devendo, por isso, nesta parte ser jugada procedente a acção”.

Por fim, importa referir que se tendo mantido inalterada a decisão de facto, a decisão de direito não poderia ser diferente da proferida. Ou seja, por outras palavras, a procedência da ação estava dependente da alteração da matéria de facto, o que, não aconteceu.

Improcede assim a apelação, com a consequente, manutenção da sentença recorrida.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do apelante- - artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência, a sentença recorrida.

Custas pelo apelante, atendendo ao seu vencimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

                                                                                                    Coimbra, 27 de junho de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original                                                                                                       



([1]) Recursos em Processo Civil, 2022, pp. 200, 201 e 202.
([2]) Ac. do TRE, de 27-10-2022, proc. 2593/18.7T8PTM.E1, relatora Albertina Pedroso, www.dgsi.pt.
([3]) Ac. do STJ, de 09-02-2012, proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1,relator Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt.
([4]) Ac. do STJ, de 09-02-2012, acima citado. Cf. ainda, Acs. do STJ, de 2-02-2022, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, relator Fernando Samões e de 19-12-2018, proc. 2364/11.1TBVCD.P2.S2, relatora Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt.
([5]) No ponto 14 das conclusões de recurso afirma-se que “Da prova produzida em sede de inspeção ao local, resulta claramente a existência do caminho (o defendido pelos aqui recorrentes, como sendo o único caminho legitimo dos AA de acesso à propriedade), “com cerca de 4,5 metros de largura, com sinais visíveis de passagem de veículos de tração “tratores”, o qual os Autores e Réus concordam que chega até ao rio”, sendo certo que se consignou como não provado que “O acesso dos autores ao seu prédio é feito através de um trato de terreno batido e bem socado pela passagem contínua de pessoas a pé e com tractores, tendo uma largura constante de 3 a 3,20 metros” “Esse trato de terreno desenvolve-se no sentido poente-nascente em sentido descendente deixando a estrada pública a poente e entrando no prédio de GG e prolonga-se por vários terrenos de cultivo, sendo dois deles propriedade dos aqui AA. inscritos na matriz predial rústica da Freguesia ... sob os artigos ...84 e ...69 indo desembocar nas margens do rio situado a nascente com o qual confronta o prédio dos AA. identificado em 1”.
([6]) Cf. Ac. do TRE, de 12-05-2022, proc. 17767/19.5YIPRT.E1, relator Manuel Bargado, www.dgsi.pt.

([7]) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., pp. 613 a 617.
([8]) Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, 2ª edição, 2021, p. 268.
([9]) Publicado no D.R. n.º 144, Série II, de 24-6-96.
([10]) Orlando de Carvalho, obra citada, p. 282.
([11]) Cf. neste sentido, Ac. do TRC, de 28-06-2022, proc. 2236/19.1T8PBL.C1, relatora Teresa Albuquerque, www.dgsi.pt.