Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9673/15.9T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITO
DEVEDOR
NOTIFICAÇÃO
CITAÇÃO
Data do Acordão: 11/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.577, 583 CC
Sumário: 1 – A notificação ao devedor, a que alude o art. 583º, nº 1, do C.Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra o executado.

2 – Com a citação para a execução, cessa a inoponibilidade da transmissão, por parte do devedor cedido, ao cessionário.

Decisão Texto Integral:      




       Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

B (…), S.A. (atual denominação do “B (…), S.A.”) propôs execução comum para pagamento de quantia certa contra J (…) apresentando como título executivo uma livrança e reclamando o pagamento da quantia total de € 35.461,23, na qual alega, “ab initio”, o  “B (…), S.A.” (que se fundiu com ela Exequente) ter adquirido os créditos em causa à sociedade bancária “B (…)S.A.”, o que teve lugar por contrato de cessão de créditos, donde ser ela Exequente a actual credora do Executado.

Em despacho liminar, o Exmo. Juiz a quo considerou que a Exequente não havia sequer alegado que a cessão de créditos tivesse sido notificada ao Executado por forma a que a cessão pudesse ter produzido efeitos em relação ao devedor Executado (cf. art. 583º, nº1 do C.Civil), pelo que, louvando-se em posição doutrinal e jurisprudencial que citou, mais concretamente, que não se podia considerar que tinha ocorrido a notificação em causa com a mera instauração de ação contra o devedor, posto que à citação nesta não podiam ser atribuídos os efeitos que a lei atribui à notificação da cessão de créditos, concluiu que “não reúne a Exequente os necessários requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumir a qualidade de Exequente em relação aos créditos em causa”, termos em que decidiu Indeferir liminarmente o Processo Executivo.

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Inconformada com tal decisão veio a Exequente recorrer, formulando a concluir as alegações que apresentou, as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            O Exmo. Juiz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, as questões são:

 - decidir se a citação para a presente execução produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor;

- decidir se mesmo em caso de resposta negativa, em vez de ter prolatado o indeferimento liminar da execução, o Exmo. Juiz a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 726º, nº 4 e 6º, nº 2 do C.P.Civil, não deveria ter convidado o Banco Exequente a informar os autos ou a juntar aos autos comprovativo da notificação ao devedor/executado da cessão de créditos nos termos do disposto no artigo 583º do C.Civil.

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – Cumpre então começar por decidir a primeira questão supra enunciada, a qual, conforme flui da decisão recorrida e das alegações recursivas, vem constituindo uma “vexata quaestio” tanto na doutrina como na jurisprudência, pois que quanto à mesma se alinham duas posições:

- segundo a primeira, a citação do executado, no âmbito da execução instaurada contra esse devedor, produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor;

- já nos termos da segunda, exige-se que o devedor seja previamente notificado (judicial ou extrajudicialmente) não se podendo para esse efeito atribuir à citação da acção o valor da notificação, a que alude o art. 583 nº1 do C. Civil.

Que dizer?

De referir que esta mesma questão foi objecto de apreciação por um recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual teve a particularidade de constituir um recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672, nº1 al. c) do n.C.P.Civil interposto pelo recorrente invocando oposição de julgados, a saber, arestos no sentido de cada uma das posições supra enunciadas, sendo que o nosso mais alto tribunal[2] aquilatou, com data venia, pela seguinte forma:

«Na cessão de créditos o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor , a totalidade ou parte do seu crédito, nos termos do art. 577 do C. Civil.

Como se refere no Ac. deste Supremo de 25.05.1999 acessível via www.dgsi.pt” o crédito transferido fica inalterado: apenas se verifica a substituição do credor originário para um novo credor. Cedente e cessionário têm intervenção activa e a terceira pessoa - o devedor - passiva, isto, porque não se exige o seu consentimento”

A cessão opera entre as partes (cedente e cessionário), independentemente da sua notificação ao devedor.

No entanto, em relação ao devedor é necessário que a cessão lhe seja notificada, nos termos preceituados do nº1 do art. 583 do C. Civil.

A razão de ser da exigência do conhecimento da cessão reside como bem nota o Ac. deste Supremo de 6.11.2012, acessível via www.dgsi.pt, “na necessidade da protecção do interesse do devedor pois, que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim que proteger a boa fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjectiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente” .

Como aí se diz também “o desiderato da lei fundamentalmente que o devedor como terceiro relativamente ao contrato de cessão, não seja confrontado como uma situação alterada no sentido do agravamento , por via da transferência do direito de crédito”

Também no Ac deste Supremo de de 3.06.2004 acessível via www.dgsi.pt : A lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido.

O que torna a cessão eficaz relativamente ao devedor é o facto de este a conhecer podendo esse conhecimento revelar-se de várias formas, entre quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Mas tal não significa que o conhecimento não possa chegar ao devedor por outra via, nomeadamente a citação para acção / execução .

Se a eficácia da cessão está ligada ao conhecimento, não se pode dizer que com a citação para a acção / execução o devedor não passe a conhecer que o crédito foi cedido .

Como bem nota o Acórdão de 6.11. 2012 citando Assunção Cristas em anotação ao Acórdão de 3 de Junho de 2004 in Cadernos de Direito Privado nº 14 pag. 63 “ mesmo que se conclua que a citação não é o mesmo que a notificação , ainda será necessário sustentar que ela não produz o conhecimento da transmissão por parte do devedor”

Também como bem nota o Acórdão que estamos a seguir de perto, se o conhecimento do devedor da cessão é o elemento constitutivo da eficácia da cessão relativamente a ele (devedor), é indiferente do ponto do vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento” sendo certo como aí se diz que não se vislumbra “como a citação não possa ser considerado um meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado “ conhecimento”.

“Com o “conhecimento” da transmissão, que se concretiza através da citação para a execução – ficando o cedido ciente da existência da cessão e da impossibilidade de invocar o seu desconhecimento (art. 583 nº2) o direito do cessionário, que até então era inoponível ao devedor cedido, protegido pela ineficácia, passa a gozar da exigibilidade que antes daquela acto a ineficácia relativa condicionava”»

É agora tempo de dizer que esta linha de argumentação merece o nosso integral acolhimento.

Desde logo porque é ela a que, s.m.j., corresponde à melhor interpretação da ratio do preceito em causa, a saber, o dito art. 583 nº1 do C. Civil[3], sendo certo que a interpretação a que se adere salvaguarda por inteiro o âmbito de protecção dessa norma.

Na verdade, para nós resulta como claro e inquestionável que com o dito preceito – o qual tem a epígrafe de “Efeitos em relação ao devedor” – se cuida apenas de garantir que o devedor tenha conhecimento da cessão de créditos no momento em que o pagamento lhe está a ser exigido.

Estando como está em causa a eficácia (em relação ao devedor), obviamente que a validade da cessão de créditos resulta pressuposta.

Isto porque, como negócio jurídico contratual, a cessão de créditos é válida e eficaz entre as partes contraentes (leia-se, “cedente e cessionário”) independentemente da sua eficácia em relação ao devedor, posto que a validade da cessão depende da inexistência de vício formal ou substancial e a sua eficácia entre os contraentes é imediata (a menos que estes tenham estipulado outra coisa).

Sem embargo, a lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido, sendo certo que a lei não impõe como condição para a eficácia a autorização do devedor, impondo tão somente, como regra geral, que ele já saiba que o seu credor cedeu o crédito a outrem.

Com efeito, o conhecimento/comunicação da identidade do cessionário destina-se a evitar que o cumprimento da obrigação seja feito junto do primitivo credor[4]

Ora se assim é, o que torna a cessão eficaz em relação ao devedor é o facto de este a conhecer e esse conhecimento pode revelar-se de várias maneiras entre as quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.

Sucede que se a cessão de créditos se torna eficaz perante o devedor logo que este tome conhecimento dela, nada obsta a que esse conhecimento ocorra com a citação no âmbito de execução instaurada.

Dito de outro modo: a inoponibilidade da cessão ao devedor aqui Executado provocava, enquanto perdurasse, a inexigibilidade da sua dívida para com o cessionário (o aqui Exequente), mas com a citação e o início da eficácia da cessão, a dívida passa a ser imediatamente exigível pelo novo credor, ainda que já na veste de Exequente.

O que tudo serve para dizer que nada impede que os efeitos dessa cessão em relação ao devedor sejam exercidos judicialmente, nomeadamente por via da citação na execução contra ele instaurada, após o que e em consequência de tal, o que lhe era inexigível até àquele momento deixa de o ser, sendo certo que não vislumbramos que legalmente esteja impedido que a eficácia e exigibilidade em causa operem unu actu e em simultâneo.

Assim sendo, procede este argumento recursivo, revogando-se o despacho recorrido que é substituído por outro que ordena a citação do Executado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 726º, nº6 do n.C.P.Civil.

                                                           *

4.2. – Questão de se em vez de ter prolatado o indeferimento liminar da execução, o Exmo. Juiz a quo, ao abrigo do disposto nos artigos 726º, nº 4 e 6º, nº 2 do C.P.Civil, não deveria ter convidado o Banco Exequente a informar os autos ou a juntar aos autos comprovativo da notificação ao devedor/executado da cessão de créditos nos termos do disposto no artigo 583º do C.Civil:

Tendo procedido o recurso nos termos expostos na apreciação e decisão da questão precedente, encontra-se prejudicada a apreciação desta segunda questão recursiva.

Pelo que, “brevitatis causa”, nos dispensamos de o fazer.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A notificação ao devedor, a que alude o art. 583º, nº 1, do C.Civil, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra o executado.

II – Com a citação para a execução, cessa a inoponibilidade da transmissão, por parte do devedor cedido, ao cessionário.

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6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se em consequência, o despacho de indeferimento liminar proferido, que se substitui por outro que, em sede de despacho liminar, ordena a citação do Executado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 726º, nº6 do n.C.P.Civil.

            Sem custas.

                                                                       *

Coimbra, 15 de Novembro de 2016   

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Trata-se do acórdão do STJ de 10.03.2016, proferido no proc. nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] No qual se preceitua o seguinte: «1. A cessão de créditos produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.»
[4]A notificação, enquanto comunicação do facto, visa, tão só, a protecção do devedor de boa fé, que deve manter-se a coberto dos riscos de um negócio a que foi alheio, marcando, a um tempo, os termos inicial e final de utilização dos meios de defesa oponíveis pelo devedor” – citámos o acórdão deste mesmo T.Rel. de Coimbra, de 06.07.2016, no proc. nº 467/11.1TBCNT-A.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, o qual sustenta o mesmo entendimento que aqui se perfilha, historiando a questão com assinalável profundidade, e cujo sumário é o seguinte:
«1. Na cessão de créditos, a notificação do devedor não é facto constitutivo do direito do cessionário nem condição necessária para assegurar a sua legitimidade activa, sendo mera condição de eficácia.
2. A eficácia da cessão pode ser conseguida através da citação do devedor para a acção declarativa ou executiva, assim cessando a inoponibilidade da transmissão pelo cessionário ao devedor.»