Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
313/10.3TACNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: RECUSA DE DEPOIMENTO
TESTEMUNHA
NULIDADE
DEPOIMENTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
DEPOIMENTO FALSO
Data do Acordão: 06/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE (2.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 134.º, N.º 2; ARTIGO 360.º DO CPP
Sumário: I - A nulidade concretizada no artigo 134.º, n.º 2, do CPP, consubstancia uma verdadeira proibição de prova. A violação desta proibição determina a nulidade das provas obtidas, salvo consentimento do titular do direito, isto é, da testemunha que prestou depoimento.

II - Não comete o crime previsto no artigo 360.º do CPP o filho do arguido que, embora sob juramento, presta depoimento (falso) sem que lhe tenha sido feita a advertência descrita no artigo 134.º, n.º 2, do CPP.

Decisão Texto Integral: Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO
1. Nos autos de Instrução com o nº 313/10.3TACNT que correu termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede - instrução que foi declarada aberta após requerimento de abertura de instrução apresentado pela (entretanto constituída) assistente A..., Lda. na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público em relação aos denunciados B...., Lda. e C... no final da fase de inquérito - após a realização de debate instrutório veio a ser proferida decisão instrutória (constante de fls. 39 a 46 destes autos de recurso em separado) que culminou com a não pronúncia do (entretanto constituído) arguido C... (dos imputados, pela assistente, crime de burla e de falsidade depoimento – sendo que em relação a este último a assistente o tinha denominado, impropriamente, crime de falsificação de documento) e com a pronúncia do arguido E... pelos crimes de falsificação de documento e burla qualificada (pronúncia esta que segue de perto o despacho de acusação que o Ministério Público já tinha deduzido contra este último arguido).

2. Inconformada com tal decisão, na parte respeitante à não pronúncia (por qualquer dos crimes) do arguido C..., a assistente interpôs recurso finalizando a motivação com as seguintes, transcritas, conclusões:

“1 - Nos autos à margem referenciados, a ora recorrente requereu a abertura da instrução relativamente ao arguido C..., contudo o Tribunal a quo proferiu despacho de não pronúncia.

2- Ao proferir essa decisão, o Tribunal claudicou na subsunção da Lei ao caso sub judice, pois fez uma errónea interpretação e aplicação da Lei Processual Penal, bem como da Lei Penal Substantiva, mormente no que concerne, por um lado, ao disposto nos arts. 134°, 118º,120º, 126° do C.P.P. e, por outro, no estatuído nos arts. 202° a)., 217°/1, 218°/1a). 26° do C.P, respectivamente.

PORQUANTO,

3- Da fundamentação da decisão instrutória resulta claro que o Tribunal considerou reunidos todos os elementos do tipo no crime de falsificação de depoimento, p. e. p. pelo art. 360° do C.P.

4- Contudo, não pronunciou o arguido C..., porque considerou que a omissão da informação da faculdade de prestar depoimento - pois, in casu, aquando do seu depoimento, C... não foi advertido de que poderia não fazê-lo, atenta a relação de proximidade com o outro arguido E..., seu pai - consubstancia uma proibição de prova.

5- Ora, no seguimento do já subscrito por uma parte substancial da doutrina jurídica, nomeadamente HELENA MOURÃO, a recorrente entende que, no ordenamento jurídico processual penal, somente a violação dos direitos fundamentais elencados no art. 32.°, n.º 8 da CRP - ou de um outro direito que, embora não pertencendo a esse elenco, seja conexo com a dignidade da pessoa humana - pode gerar uma proibição de prova.

6- O que significa dizer que a violação de outros direitos constitucionalmente protegidos que não pertençam a esse elenco, apenas gera uma nulidade do acto violador reconduzível ao sistema geral das nulidades previstas nos arts. 118° e ss. do C.P.P.

7- Assim, in casu, a alegada violação do art. 134.°, n.° 2 do CPP não gera uma proibição de prova e, por inerência, uma nulidade insanável, pois o que se pretende salvaguardar, neste preceito, é a protecção das relações familiares existentes entre as categorias de pessoas elencadas no art. 132° do C.P.P.

8- Pelo que, a omissão da advertência da possibilidade de recusa de depoimento ao arguido C... gera, de facto, uma nulidade desse depoimento, porém tal nulidade encontra-se sanada, pois, nos termos da lei, deveria ter sido arguida pelo interessado, nos termos dos arts. 134°/2, 118°/1, 120º/1,2 e 3 do C.P.P.

9- Por outras palavras, o arguido C... deveria ter arguido a nulidade do depoimento antes de ter terminado ou, no máximo, até ao encerramento do debate instrutório, o que não sucedeu in casu.

10- Pelo que, deverá a nulidade ser considerada sanada e o depoimento valorado como prova e, assim, pronunciar-se o arguido C... pela prática do crime de falsificação de depoimento, p. e. p. no art. 360° do C.P. (a este respeito vide o Ac. do STJ de 02/04/2008, Processo n.° 08P578 e também, assim, o Ac. do STJ de 26/11/2009; Processo n.° 103/01.4TBBRG-G.S1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt)

11- Em conclusão, o Tribunal a quo deveria ter considerado como prova o depoimento prestado por C..., em sede de Inquérito e, em consequência, deveria tê-lo pronunciado pelo crime de falsidade de depoimento, p. e. p. no art. 360° do C.P., por existir prova cabal, nos presentes autos, de que praticou os factos integradores daquele tipo legal de crime.

12- Por outro lado, na decisão instrutória o Tribunal a quo proferiu um despacho de não pronúncia relativamente ao crime de burla, p.e.p. nos art. 202° a). 217°/1 e 218°/1 do C.P..

13- Contudo, pode ler-se na referida decisão “Com efeito, conforme acima exposto, não existem dúvidas que o arguido C... estava presente no momento da celebração do negócio, em 20/02/2009, data em que também foram entregues os cheques à assistente, também na presença do arguido C.... Porém, a declaração de extravio datada de 12/05/2009 referida no artigo 7 da acusação deduzida pelo MP e constante de fls. 172 foi preenchida a assinada pelo arguido E..., algo que o próprio não negou quando prestou declarações a fls. 71 nem é colocado em causa pela assistente.”

14- Na transcrição efectuada supra, torna-se claro que o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação da lei penal substantiva ao caso sub judice, designadamente no que concerne ao estatuído nos arts. 26°, art. 202° a)., 217° e 218º do C.P.

15- Resulta claro, nos presentes autos, que o arguido C... assinou o contrato de compra e venda a prestações, estando presente no momento em que foram entregues os cheques pré-datados à assistente.

16 - A prática destes factos, pelo arguido, reputa-se de essencial ao cometimento do tipo legal do crime de burla uma vez que estes factos determinaram o início dos actos de execução deste tipo legal de crime.

17- Por outro lado, é pouco credível que o arguido C... não tivesse conhecimento da conduta do arguido E...pois, sendo ele gerente de direito e de facto da sociedade “ B..., Lda.”, dificilmente se podia manter alheio às questões de maior relevância na gestão da referida sociedade.

18- Ou seja, é pouco razoável considerar que o arguido C... não teve conhecimento da falsa denúncia apresentada pelo segundo arguido, no que concerne ao extravio dos cheques pré-datados, uma vez que a mesma foi efectuada antes da renúncia à gerência por parte do arguido C....

19- Por outras palavras, as circunstâncias do caso concreto revelam que, com toda a probabilidade, os arguidos acordaram — acordo este que deve reputar-se de, in minime, tácito — no sentido de obterem um enriquecimento ilegítimo, enganando a assistente com as declarações que prestaram no momento da celebração do contrato de compra e venda e dando origem a uma falsa denúncia por extravio de cheques, causando, deste modo, um prejuízo patrimonial elevado à assistente.

20- Assim, no caso sub judice, encontram-se reunidos todos os requisitos necessários para que se possa aplicar as normas da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria material (A este propósito vide Ac, STJ, datado 27-06-1993, Proc. N.° 04364, consultável em www.dgsi.pt.).

21- No caso sub judice, há uma decisão conjunta (a qual pode ser tácita e não tem de ser anterior ao início da prática dos factos que integram o tipo legal de crime), facto que se se induz por várias razões: o arguido C... estava presente no momento da celebração do contrato de compra e venda com a assistente; esse contrato de compra e venda foi assinado pelo próprio C..., enquanto gerente da sociedade B..., Lda.; o arguido C... era gerente, de direito e de facto, quando foi efectuada a falsa denúncia, pelo extravio dos cheques, sendo substancialmente maior a probabilidade deste ter conhecimento efectivo da falsa denúncia e da sua anuência à mesma, do que a probabilidade de desconhecê-la.

22- Portanto, há o domínio funcional do facto por parte dos dois arguidos, no sentido em que cada um teve o domínio do seu contributo para o cometimento do crime de burla, sendo que a omissão dos contributos prestados por cada um dos arguidos não permitiria a consumação do crime de burla.

23- Acresce que, o crime de burla, in casu, resulta de uma execução conjunta por parte dos arguidos C... e E... — sendo certo que, para tal, basta que a actuação de cada um dos arguidos, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável ao cometimento do crime: o primeiro assinou o contrato de compra e venda a prestações com a assistente, esteve presente no momento da entrega dos cheques pré-datados àquela e era gerente da sociedade quando foi feita a denúncia falsa pelo extravio dos cheques, o segundo entregou os cheques e fez a denúncia falsa (vide douto Ac. STJ datado 15- 09-1993, Proc. N.° 04364, consultável em www.dgsi.pt).

24- Este entendimento é corroborado pelo facto do arguido C... ser filho de E..., pois havendo entre eles uma relação de proximidade resultante do grau de parentesco, é normal e provável que o primeiro arguido tivesse conhecimento dos assuntos da sociedade e do que lá se passava, mesmo após a sua renúncia à gerência.

25- Acresce que o arguido C... actuou de forma livre e voluntária, tendo consciência efectiva de que as suas condutas são proibidas e punidas pela Lei Penal, facto que é corroborado pela circunstância do mesmo ter mentido quando foi prestar depoimento sobre esses factos, tal como foi supra exposto.

26- Pelo que, o Tribunal a quo deveria ter pronunciado o arguido C..., pelo crime de burla p. e. p. nos art. 202° a)., 217º e 218° do C.P., em co-autoria material, por se verificarem, in casu, os requisitos desta forma de comparticipação criminosa, tal como se encontram estabelecidos no art. 26°, 2ª parte do C.P.

OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, POR MERA NECESSIDADE DE ARGUMENTAÇÃO,

27- Atentando nos factos praticados pelo arguido C..., expostos supra - nomeadamente a presença na celebração do contrato de compra e venda, a assinatura desse contrato, a entrega dos cheques na sua presença e a gerência de direito e de facto da sociedade B..., Lda., mesmo depois de ter sido efectuada a falsa denúncia pelo segundo arguido — resulta cabal que a conduta do arguido consubstancia, in minime, um auxílio material à prática do crime de burla.

28- E que, ao adoptar essas condutas, o arguido agiu de forma livre, voluntária de consciente, bem sabendo que este comportamento era proibido, sendo punido pela lei penal.

 29- Deste modo, o Tribunal a quo deveria ter pronunciado o arguido C... como cúmplice, no cometimento do crime de burla p.e.p. nos art. 202° a)., 217° e 218° do C.P., por se verificarem, in casu, os requisitos desta forma de comparticipação criminosa, tal como se encontram estabelecidos no art. 27° do C.P. Termos em que, e nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência ser a decisão recorrida revogada por outra decisão instrutória na qual se pronuncie o arguido C..., em conformidade com o exposto. Tudo com as legais consequências.

Assim se fazendo a acostumada,

Justiça!!!!!

                                                     *

3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo (cfr. despacho de fls. 57, destes autos de recurso em separado).

                                                     *

4. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, concluindo por se manifestar no sentido de que “concorda na íntegra com os fundamentos decisão recorrida, pelo que entende que a mesma não merece qualquer reparo, devendo ser mantida, como é de justiça

5. O arguido/recorrido não respondeu ao recurso.

6. O Sr. Juiz a quo limitou-se a mandar instruí-lo e a ordenar a sua remessa a este tribunal, desacompanhado de qualquer sustentação (cfr. despachos que nestes autos de recurso em separado constam a fls. 61 e 68).

7. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 73 a 75, reportando-se para as razões explanadas quer na decisão instrutória, quer na resposta ao recurso evidenciada pelo Ministério Público de primeira instância, seguindo a perspectiva dos Prof.s Paulo Pinto de Albuquerque e Costa Andrade no sentido de que a nulidade de que fala a norma do artigo 134º nº 2 do Código de Processo Penal consubstancia uma verdadeira proibição de prova, e ancorando-se no Acórdão da Relação de Évora de 03.06.2008 (e não de 06.03.2008, como certamente por lapso referiu), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento em nenhuma das pretensões da recorrente/assistente.

8. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.

9. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir..

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, as questões a decidir consistem em saber:

- se as declarações falsas prestadas pelo ora arguido C..., na qualidade de testemunha, perante a GNR, sem a observância da advertência a que alude o nº 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal podem servir como meio de prova para o pronunciar pela prática de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo artigo 360º nº 1 do Código Penal:

- se existem indícios suficientes da prática por este mesmo arguido C..., seja como co-autor material, seja como cúmplice, do crime de burla por que foi acusado e pronunciado o arguido E....

Teçamos, não sem antes tecermos algumas considerações gerais.

Decorre do artigo 288º nº 1 do Código de Processo Penal que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Constitui assim, no Código de Processo Penal, uma actividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.

O artigo 308º, n.º1 do Código de Processo Penal estipula que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.”

Por sua vez o art. 283° n° 2 do Código de Processo Penal preceitua que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança".

A mencionada “possibilidade razoável” de condenação em julgamento envolve um juízo retrospectivo de valoração dos meios de prova recolhidos no processo que fundamentam a acusação; e um juízo de prognose prospectivo sobre os meios de prova que poderão vir a ser produzidas ou examinadas na audiência de julgamento, sabendo-se que a produção de prova em julgamento obedece a princípios diferentes da fase de investigação e instrução, com destaque para a “institucionalização” do contraditório e os princípios da imediação e da concentração nessa fase do julgamento.

O referido juízo retrospectivo sobre as provas recolhidas não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas face ao princípio in dubio pro reo, vigente em termos de apreciação da matéria de facto. Na verdade, nas palavras de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pró reo”.

É exigível pois, quer da parte do Ministério Público, quer da parte do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na demonstração da objectividade do facto, na apreciação do material probatório que a suporta em conformidade com as normas relativas à aquisição e valoração das provas, nos critérios de racionalidade inerentes ao princípio da livre apreciação da prova.

Com efeito, na lição, sempre actual de CASTANHEIRA NEVES (Processo Criminal, Sumários, p. 39) “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

E o juízo retrospectivo que vimos falando incide sobre os meios de prova recolhidos no processo e que fundamentam a acusação. Meios de prova que “não serão, salvo casos excepcionais, reforçados até à audiência de julgamento. A tendência natural será, pelo contrário, no sentido do enfraquecimento dessas provas já que (além da erosão do tempo) irão ser submetidas ao crivo do contraditório e atacadas através do efectivo exercício do direito de defesa, até aí substancialmente afectado” – cf. Jorge Noronha e Silveira, O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma. Almedina, 2004 p. 168.

O mesmo juízo retrospectivo não se compadece com dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, antes exige da parte quer do Ministério Público, quer do Juiz de Instrução, uma convicção segura e acabada sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, um juízo ou convicção equivalente ao de julgamento, na sua estrutura fenomenológica, na objectividade de indagação fáctica e apreciação do material probatório, na conformação normativa pelas mesmas proibições de valoração da prova, na racionalidade lógica e metodológica em que assenta a sua livre apreciação dos elementos de prova coligidos, na parametrização (em prognose, na acusação, e actual, no julgamento) própria de condenação e no grau de convicção (que não se compadece, em ambos os casos, com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida) – cfr. Carlos Adérito Teixeira, «Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, in REVISTA DO CEJ, nº1, p. 161; no mesmo sentido veja-se Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, 2003, p. 92 nota 127; e Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in JORNADAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS, coordenação de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004p. 168 e 169).

E na jurisprudência, a interpretação do conceito do in dubio pro reo no âmbito da instrução é resumidamente efectuada pelo STJ da seguinte forma - «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição” ( vide o Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt)

Pelo que a não formação de uma convicção segura acerca da culpabilidade do arguido, em virtude da prova recolhida suscitar dúvidas insanáveis, razoáveis e objectivas, deve conduzir a uma decisão de não pronúncia, mediante a mobilização do principio in dubio pro reo – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (in www.tribunalconstitucional.pt). Com efeito, entendeu aquele tribunal que: “a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, prevista no artigo 32º, nº2 da Constituição”.

Sendo exigível este grau de certeza na análise das provas recolhidas subjacente à decisão sobre a existência ou não de indícios suficientes coloca-se a questão de saber em que medida isso se compatibiliza com o facto da lei utilizar como critério de decisão a “possibilidade razoável” de condenação.

A “possibilidade razoável” que o nº2 do artigo 283º do Código de Processo Penal  reporta-se ao tal juízo de prognose, que sendo uma previsão assenta necessariamente numa avaliação probabilística. Não se reportando apenas à convicção que a autoridade competente tem de efectuar em relação aos elementos probatórios recolhidos mas ainda à possibilidade de confirmação dessa convicção, em audiência de julgamento, na medida em que a audiência de julgamento obedece a uma racionalidade específica, com os princípios da concentração da prova, da imediação, do exercício pleno do contraditório.

E importa ter sempre presente que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame (neste sentido cfr. Ac do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt).

Por isso mesmo, cabe ao Ministério Público (enquanto detentor do exercício da acção penal) e ao juiz de instrução (quando há lugar a esta fase), avaliar sobre se os indícios são, ou não, suficientes.

Tecidas estas parcas considerações, vejamos agora o que foi dito na decisão instrutória recorrida (na parte em que aqui tem interesse), sendo certo que a mencionada instrução tinha sido requerida pela assistente depois do Ministério Público ter proferido despacho de arquivamento do inquérito em relação ao ora arguido/recorrido ( C...) que, naquela fase processual, nem sequer tinha sido constituído como tal.

“DECISÃO INSTRUTÓRIA

O MINISTÉRIO PÚBLICO procedeu ao arquivamento parcial do inquérito

relativamente aos denunciados B..., Lda. e C..., considerando não haverem indícios suficientes da verificação dos crimes de burla e de falsificação de documentos, com os fundamentos do despacho de arquivamento de fls. 240 e 241, deduzindo acusação contra o arguido E... imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelos arts. 255.º, al. a), 256.º, n.º 1, als. a) e c) do CP e um crime de burla, p. e. p. pelo art. 217.º, n..º 1 do Código Penal, pelos factos constantes da peça acusatória de fls. 242 a 248.

A assistente A..., Lda., inconformada com o despacho de arquivamento parcial proferido pelo Ministério Público, veio requerer a abertura da instrução, nos termos constantes de fls. 284 e segs., pugnando pelo proferimento de despacho de pronúncia contra o denunciado C... pelos factos descritos a fls. 288 a 291, que, segundo a assistente, integram a prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, do Código Penal e um crime de burla p. e p. pelo art. 217.º do Código Penal.

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Foi proferida decisão a declarar aberta a fase processual de instrução.

Foi constituído como arguido C... a fls. 370.

Foram inquiridas as testemunhas arroladas pela assistente.

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Realizou-se debate instrutório, com observância do legal formalismo, findo o qual os intervenientes resumiram as suas posições.

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O Tribunal é competente.

O processo encontra-se isento de nulidades que o invalidem.

Não existem outras questões prévias ou incidentais de que, oficiosamente, cumpra conhecer.

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Dispõe o artigo 286.º, n.º 1, do Código do Processo Penal, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Trata-se de uma fase facultativa, própria do processo comum (artigo 286.º n.º 2 e 3 do CPP), que deve ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, pelo arguido ou pelo assistente nos termos definidos no artigo 287.º n.º 1 do CPP.

Não é, pois, um novo Inquérito, mas antes um momento processual de comprovação. Constitui uma fase dotada de uma audiência rápida e informal, oral e contraditória, destinada a comprovar judicialmente a decisão, neste caso do Ministério Público, de arquivar, e que, portanto, termina por um despacho de pronúncia ou de não pronúncia (neste sentido, Manuel Lopes Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 13.ª edição, Almedina, 2002, pág. 584).

Importa, portanto, apurar se os indícios existentes nos autos, conjugados com os elementos recolhidos no âmbito da instrução, são suficientes para sustentar um despacho de pronúncia.

Fazendo uso das palavras de Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição. Verbo, pág. 129), “no Código Processual vigente, a instrução tem um duplo sentido: fase processual do processo preliminar e actividade de comprovação da acusação em ordem à decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento”.

Deste modo, “a instrução destina-se precisamente a obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, a confirmar ou não a acusação deduzida, para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente” (Germano Marques da Silva, in obra citada, pág. 149).

É óbvio, por um lado, que, tratando-se já aqui de uma fase judicial, a sua estrutura eminentemente acusatória deverá apresentar-se integrada pelo princípio da investigação; não terá por isso o juiz de instrução de limitar-se, em vista da pronúncia, ao material probatório que lhe seja apresentado pela acusação e pela defesa, mas deve antes – se para tanto achar razão – instruir autonomamente o facto em apreciação, com a colaboração dos órgãos de polícia criminal (Figueiredo Dias, in Para uma Reforma Global do Processo Penal Português, pág. 37).

Importa referir o preceituado no artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que fixa que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Exige-se, assim, da parte do julgador, a formulação de um juízo de probabilidade, de forma a legitimar a sujeição do arguido a julgamento. Para tanto, torna-se necessário que da análise dos elementos constantes dos autos, designadamente, os resultantes das diligências probatórias realizadas, resultem indícios suficientes da prática pelo arguido de factos susceptíveis de o fazer incorrer em responsabilidade criminal.

Por expressa remissão do n.º 2 do artigo 308.º, para o artigo 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Esta “possibilidade razoável” de condenação, como refere o Ac. da R.P. de 20/10/93 (in C.J., tomo IV, pág. 261) tem vindo a ser entendida, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, como uma possibilidade mais positiva do que negativa, isto é, “o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido”. Haverá, pois, indícios suficientes, quando haja uma mais forte probabilidade de condenação do que de absolvição (neste sentido, entre outros: Ac. R.P. de 14/01/98, C.J., tomo I, pág. 229; Ac. R.C. de 04/04/89, B.M.J. nº 386, pág. 528; Ac. S.T.J. de 10/12/92, proferido no proc. nº 427747), ou, como referia Luís Osório, “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado” (in “Comentário ao Código de Processo Penal Português”, vol. IV, pág. 441).

Tecidas estas considerações prévias relativas às finalidades e âmbito da instrução, cumpre apreciar o requerimento de abertura de instrução apresentado e analisar a prova produzida nos autos.

*

No presente caso, no despacho de arquivamento pode ler-se que se “apurou que a atividade de gerência à data (desde Fevereiro a Setembro de 2009), de facto, não era exercida pelo denunciado C... que, aliás, não foi constituído como arguido. Com efeito, atento o teor das declarações prestadas por C... (documentadas pelo auto de fls. 212 e cópia da procuração de fls. 214 e ss.) por coerentes e objectivas, persuadem que sobre ele não impendiam poderes de representação ou de acção por conta e no interesse da sociedade B..., Lda., pelo que os contratos e negócio estabelecido com a sociedade queixosa não terão contado com a sua intervenção.”

C... foi ouvido como testemunha em 23/05/2012 no posto de Montemor-o-Velho da GNR, perante esse órgão de polícia criminal, por delegação de poderes efectuada pelo Ministério Público, tendo declarado, depois de ser advertido do dever de responder com verdade e das consequências penais aplicáveis às falsas declarações, que “à data dos factos em investigação nos presentes autos, o gerente da empresa “ B..., Lda.” era o Sr. E..., conforme cópia da procuração que junta aos auto (…) O aqui declarante mais pretendeu declarar que não realizou o negócio, nem teve conhecimento do mesmo.”

A assistente sustenta no seu requerimento de abertura de instrução que quem celebrou o contrato de compra e venda a prestações no dia 20/02/2009 foi C..., único sócio gerente da sociedade B..., Lda., como se comprova pelo contrato junto aos autos. Pelo que, quando este foi ouvido como testemunha no âmbito destes autos, ao referir que não realizou o negócio, nem teve conhecimento do mesmo, dizendo ainda que o gerente da sociedade B... era o arguido E..., conforme uma procuração que juntou aos autos, cometeu um crime de falsificação p. e p. pelo art. 256.º do Código Penal. Pois o mesmo bem sabia que se deslocou à sede da empresa, local onde assinou o contrato de compra e venda a prestações, tendo também estado presente quando foram emitidos os diversos cheques identificados nesse mesmo contrato, sendo que nessa data era o único sócio-gerente dessa sociedade, não obstante a passagem da procuração.

Da certidão de fls. 16 a 20 decorre que em 20/02/2009, o único gerente da sociedade B..., Lda., era, de facto, C... que iniciou essas funções com a constituição da sociedade em 11/10/2007 e cessou o exercício das mesmas em 20/05/2009, data da renúncia ao cargo de gerente, conforme decorre de fls. 18.

Por outro lado, encontra-se junto aos autos a fls. 6 o contrato de compra e venda a prestações do veículo de matrícula ...NJ referido na acusação deduzida pelo Ministério Público, o qual se encontra assinado pela legal representante da assistente, F..., como vendedora, e pelo próprio arguido C..., na qualidade de gerente da sociedade B..., Lda., como compradora.

Em sede de instrução foi ouvida a legal representante da assistente, F..., que também assinou o referido contrato e que confirmou que o arguido C... se deslocou aos escritórios da assistente, acompanhado do seu pai, o também arguido E... e da sua mãe, tendo o negócio sido acordado entre todos, incluindo o próprio C... que assinou o contrato, bem como o requerimento para registo automóvel junto a fls. 408 e 409. Encontra-se ainda junto aos autos a fls. 410 e 411 uma declaração de reconhecimento presencial de assinatura emitida pelo Advogado Vítor Trindade que atesta que a assinatura de C... no referido requerimento de registo automóvel foi feita na sua presença.

Acresce que as declarações da assistente são corroboradas pelos depoimentos das testemunhas G..., TOC da assistente e H..., filha dos legais representantes da assistente, que afirmaram de forma totalmente coincidente, que presenciaram a ida de C..., acompanhado do pai E..., também arguido, e da mãe, aos escritórios da assistente, para compra do veículo objecto do referido contrato de compra e venda a prestações, data na qual também ocorreu a entrega dos cheques referidos na acusação. Estas testemunhas revelaram conhecimento directo desses factos por os terem presenciado, sendo os seus depoimentos corroborados pelo teor dos documentos acima referidos.

Pelo exposto, da prova produzida nos autos, em conjunto com as regras de experiência comum, podemos concluir que C... ao prestar declarações na qualidade de testemunha, nos termos acima referidos, faltou à verdade ao dizer que não realizou o negócio, nem teve conhecimento do mesmo, dizendo ainda que o gerente da sociedade B... era o arguido E....

Refere a assistente que tais factos integram a prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º do Código Penal. Ora, discordamos em absoluto desta qualificação jurídica porquanto os factos não se subsumem à previsão do referido artigo 256.º do Código Penal pois o auto de inquirição de testemunha de fls. 212 dos autos não é um documento falso para efeitos dessa disposição legal. O que se passou foi que o arguido, na qualidade de testemunha, perante o militar da GNR que presidiu à inquirição, sob delegação de poderes do Ministério Público, competente para receber esse testemunho como meio de prova no presente inquérito, prestou depoimento falso, o que preenche a previsão da norma incriminadora do artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, segundo a qual “quem, como testemunha (...) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova (...) prestar depoimento (...) falso (...), é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias”.

O bem jurídico tutelado por esta norma é o interesse do Estado na realização ou administração da justiça (Assim, ANTÓNIO MEDINA DE SEIÇA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 460, e os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2006, Processo 1991/06-1 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23/01/2007, Processo 7158/2006-5, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.)

Trata-se de um crime de perigo abstracto, não carecendo o preenchimento do respectivo tipo de ilícito, que o testemunho falso afecte efectivamente a obtenção da verdade material por parte do Tribunal ou funcionário competente, nem sequer que ocorra um perigo concreto de tal vir a ocorrer. Com efeito, “o fundamento do ilícito é logo a própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efectiva influência na decisão” (ANTÓNIO MEDINA DE SEIÇA, ob. cit., pág. 462).

Representa ainda um crime de mera actividade, porquanto o facto ilícito típico se esgota na prestação do falso testemunho, não sendo necessária a verificação de qualquer resultado dele derivado.

São elementos objectivos do tipo de crime legal em referência: a prestação de depoimento falso por parte de quem esteja investido na posição de testemunha; ser o depoimento efectuado perante tribunal ou funcionário competente para o receber como meio de prova; e o depoimento ter sido prestado após o agente ter sido ajuramentado e advertido das consequências penais em que incorre – elemento qualificador, previsto no n.º3 do artigo 360º, do Código Penal.

Por seu turno, o tipo subjectivo exige que o agente actue com dolo em qualquer das modalidades de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, requerendo como elementos subjectivos do tipo: o conhecimento de que o depoimento é falso; e a intenção de prestar esse depoimento falso.

Assim, do acima exposto, resulta que C... ao ser ouvido como testemunha em 23/05/2012, após ter sido advertido de que estava obrigado a falar com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal, declarou, entre outros factos, que “à data dos factos em investigação nos presentes autos, o gerente da empresa “ B..., Lda.” era o Sr. E..., conforme cópia da procuração que junta aos auto (…) O aqui declarante mais pretendeu declarar que não realizou o negócio, nem teve conhecimento do mesmo.”

Ora, do acima exposto resulta claro que o arguido faltou à verdade ao prestar esse depoimento pois teve intervenção directa na celebração do negócio aqui em causa, respeitante ao contrato de compra e venda junto a fls. 6 a 7 dos autos celebrado com a assistente, pois foi o próprio que o assinou em nome e em representação da sociedade B..., Lda., da qual era gerente. Sendo que, não só era gerente de direito, como decorre da informação de registo comercial de fls. 16 e segs, como também, ao ter intervenção directa no referido negócio, resulta indiciado que o mesmo era também o gerente de facto dessa sociedade. Pelo que o mesmo mentiu ao dizer que naquela data o gerente da sociedade era o seu pai E....

Porém, analisado o auto de inquirição do arguido C..., a fls. 212 e 213, datado de 23/05/2012, verifico que o arguido C... declarou ser filho de E..., o qual, naquela data, já tinha sido constituído arguido nos autos.

Assim, era obrigação do militar da GNR que procedeu à inquirição, mediante e informação de que o mesmo era filho de E..., adverti-lo nos termos do disposto no art. 134.º, n.º 1, al. a) do CPP que lhe assistia a faculdade de se recusar a prestar depoimento dada essa relação de parentesco.

Porém, do auto de fls. 212 consta a indicação de que o arguido C... terá dito que não tem qualquer grau familiar com as restantes partes o que é manifestamente estranho uma vez que o mesmo declarou expressamente a sua filiação, declarando que é filho de E.... É sabido que, muitas vezes, em inquirições deste género, os autos de inquirição correspondem a minutas previamente elaboradas, pelo que é possível que o militar da GNR não tenha sequer se apercebido que deveria perguntar à testemunha se ela desejava prestar depoimento tendo em conta que é filho do arguido, informando-o de que lhe assistia a faculdade de recusar a prestação de depoimento.

Nos termos do disposto no art. 134.º, n.º 2, do CPP, a entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no n.º 1 desse preceito legal, nas quais se incluem os descendentes do arguido, da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 362) “esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante da intromissão na vida privada (também assim, Costa Andrade, 1992:77). A violação desta proibição tem o efeito de nulidade das provas obtidas, salvo consentimento do titular do direito, isto é, da testemunha que prestou depoimento (art. 126.º, n.º 3, do CPP)”.

Ora, é manifesto que neste caso concreto, o arguido C..., ao ser ouvido como testemunha, não foi advertido da faculdade de recusar o depoimento, pois, se o tivesse feito, poderia não ter prestado quaisquer declarações, ou seja, não teria, então, faltado à verdade nos termos acima expostos.

Assim, tal facto implica a nulidade desse depoimento, o qual não pode ser usado como meio de prova, pelo que é manifesto que, perante essa nulidade, não existem quaisquer indícios que se afiguram suficientes para proferir despacho de pronúncia por esse crime de falsidade de testemunho, por ser muito maior a probabilidade do arguido C... ser absolvido em relação ao esse crime do que condenado em sede de julgamento.

Pelo que se impõe a sua não pronúncia relativamente ao crime de falsidade de testemunho.

*

A assistente requer igualmente que ao arguido C... seja pronunciado pela prática de um crime de burla p. e p. pelo art. 217.º do Código Penal, à semelhança da acusação que foi formulada contra o seu pai E.... Em relação ao arguido C..., a assistente limita-se a referir que o mesmo estava presente no momento em que os cheques referidos na acusação foram entregues à assistente, na data de celebração do contrato de compra e venda (20/02/2009) referindo que foi o arguido E... que preencheu e entregou esses mesmos cheques. Mais diz a assistente que o arguido C... também sabia, nessa mesma data, que os cheques não seriam pagos, como veio a acontecer, e que, com tal conduta, causaria à assistente os prejuízos referidos no requerimento de abertura de instrução, pois nunca foi seu propósito pagar a totalidade do preço do veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda a prestações.

Porém, não se produziu qualquer prova que nos permita considerar indiciada a prática pelo arguido C... de algum facto que integre a tipicidade do crime de burla.

Com efeito, conforme acima exposto, não existem dúvidas que o arguido C... estava presente no momento da celebração do negócio, em 20/02/2009, data em que também foram entregues os cheques à assistente, também na presença do arguido C.... Porém, a declaração de extravio datada de 12/05/2009 referida no artigo 7 da acusação deduzida pelo MP e constante de fls. 172 foi preenchida a assinada pelo arguido E..., algo que o próprio não negou quando prestou declarações a fls. 71 nem é colocado em causa pela assistente.

De facto, como acima foi dito, na informação de registo comercial consta como data da renúncia à gerência da sociedade B..., Lda., por parte do arguido C..., o dia 20/05/2009, ou seja escassos dias após o preenchimento por parte do arguido E... da declaração de extravio. Pelo que é possível que nessa data de 12/05/2009, o arguido C... não tivesse conhecimento sequer da conduta do seu pai. Na verdade, não se produziu qualquer prova no sentido do arguido C... estar ao corrente da conduta do seu pai no que respeita à apresentação daquela declaração da GNR que conduziu à devolução dos cheques.

Assim, no que respeita ao crime de burla, nunca existiram no presente inquérito quaisquer indícios contra o arguido C..., razão pelo qual o mesmo não foi constituído arguido durante o inquérito pois nunca existiu contra si suspeita fundada da prática de crime, não bastando a apresentação de denúncia para esse efeito.

Assim, é manifesta a maior probabilidade de absolvição do que a probabilidade de condenação relativamente a esse crime, pelo que se impõe a sua não pronúncia em relação à burla.

Relativamente ao arguido E..., as diligências probatórias realizadas na instrução não afastaram os indícios suficientes já existentes na fase de inquérito quanto ao cometimento pelo mesmo dos crimes que lhe foram imputados na acusação. Na verdade as testemunhas ouvidas na fase de instrução acima identificadas referiram claramente que o arguido E... esteve presente no momento da celebração do contrato de compra e venda do veículo automóvel, sabendo de todo o negócio, apesar do contrato ser assinado pelo arguido C....

Aliás, o próprio arguido C... juntou aos autos uma procuração notarial outorgada em 07/11/2008 a fls. 214 e segs., segundo a qual o arguido E... tinha poderes para contratar em nome da sociedade B... e para fazer pagamentos, movimentar contas bancárias, sacar, endossar e assinar cheques. Sendo que, de facto, foi o próprio arguido E... que assinou os cheques referidos na acusação, para além de ter assinado a declaração de extravio na GNR nos termos acima expostos. Acresce que o arguido E... confessou a fls. 71 verso ter emitido o cheque, referindo que queria ir ao encontro do denunciante para proceder ao pagamento da dívida, não se opondo a aplicação de pena em processo sumaríssimo, o que apenas reforça o juízo indiciário de que o mesmo cometeu os crimes descritos na acusação. Sendo certo que, tal como foi relatado pela legal representante da assistente e pelas restantes testemunhas ouvidas em instrução, a dívida nunca foi paga por aquele arguido E....

Assim, pelo acima exposto, não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que existem indícios suficientes que o arguido E... cometeu os crimes que lhe foram imputados na acusação.

Porém, relativamente ao crime de burla imputado ao arguido E..., de acordo com a acusação e requerimento de abertura de instrução, o prejuízo patrimonial sofrido pela assistente pode ser quantificado no valor dos dois cheques referidos nessas peças processuais no valor total de € 5200,00, o que configura um valor elevado nos termos previstos no art. 202.º, al. a) do CP. Assim, os factos descritos na acusação e no requerimento de abertura de instrução, para além do crime de falsificação de documento, integram a prática por parte do arguido E..., de um crime de burla qualificado previsto e punido pelos artigos 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, e 218º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.

*

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos arts. 307º e 308º do C.P.P., decido:

1. Não pronunciar o arguido C...pela prática dos factos imputados no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente;

2. Para julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular, pronuncio o arguido:

E..., filho de (...) e de (...), empresário, natural da freguesia de (...), concelho de Montemor-o-Velho, nascido em 05/07/1960, casado, residente na Rua (...), (...), Montemor-o-Velho.

Pela prática dos seguintes factos:

(…)

Face ao exposto, o arguido E... incorreu na prática, em autoria material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de falsificação ou contrafacção de documento, previsto e punido pelos arts. 255.º, al. a), e 256.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e um crime de burla qualificada previsto e punido pelos artigos 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, e 218º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.

(…)”

É esta, pois, a parte mais relevante do despacho recorrido que concluiu pela não pronúncia do arguido C....

1- A primeira questão suscitada no recurso consiste em saber se as declarações falsas prestadas pelo ora arguido C..., na qualidade de testemunha, perante a GNR, sem a observância da advertência a que alude o nº 2 do artigo 134º do Código de Processo Penal podem servir como meio de prova para o pronunciar pela prática de um crime de falsidade de depoimento p. e p. pelo artigo 360º nº 1 do Código Penal.

Desde já nos adiantando, concordamos inteiramente com os fundamentos expostos na decisão recorrida, pois consideramos que o arguido C...não poderá ser pronunciado por tal crime, porque a tal acontecer estaríamos a apoiar-nos em prova proibida.

Pelo que é dito na decisão recorrida e resulta dos parcos elementos que instruem estes autos de recurso em separado, quando em 23.05.2012, na qualidade de testemunha, foi ouvido no Posto Territorial de Montemor-o-Velho da GNR, pelo guarda D..., já seu pai (o arguido E...) tinha sido constituído arguido nos autos.

E nessa inquirição (a que alude fls. 21 frente e verso destes autos de recurso em separado, a qual corresponderá a fls. 212 frente e verso do processo principal) depois de se ter identificado como filho de E..., não consta assinalada qualquer advertência a que se podia recusar a prestar declarações.

Ora, dispõe o artigo 134º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportarão as demais disposições citadas sem menção de origem) que tem como epígrafe “Recusa de depoimento
1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2.º grau,  os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) (…).
2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.”

Ora, tal como foi entendido na decisão recorrida, merecedora da concordância do Exmº Procurador-Geral Adjunto, sufragamos nós também a posição de Paulo Pinto de Albuquerque, o qual, em anotação ao artigo citado refere: “Os parentes e afins do arguido têm o direito a ser advertidos do direito à recusa. A omissão da advertência é uma nulidade. Esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante na intromissão na vida privada (…). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo o consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha, que prestou depoimento (artigo 126º nº 3 do CPP )” (cfr. citado autor, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição actualizada, Universidade católica Editora, 2011, pag. 375).

E já no sentido de que a recolha de um depoimento de uma testemunha que faça parte do elenco daquelas que tenham o direito recusa em depor, sem a advertência desse direito de recusa, constituía proibição de prova se vinha manifestando Manuel Costa Andrade, na sua obra “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992 (cfr. fls. 76 a 78 e 88 a 90).

E em anotação ao artigo 126º do Código de Processo Penal, Paulo Pinto de Albuquerque refere que: “No caso dos artigos 132º nº 2 e 134º, há uma proibição de prova resultante da intromissão na vida privada (também assim Costa Andrade, 1992, 77 e 203). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha que prestou depoimento (artigo. 126º nº 3 do CPP )”- cfr. fls. 343 da obra atrás citada, 4ª Edição).

Sendo certo que não tem havido unanimidade na jurisprudência quanto à questão de saber se tal vício pode ser oficiosamente conhecido, consideramos que sim, aderindo ao entendimento expresso no Acórdão da Relação de Évora, de 03.06.2008 (Desembargador António João Latas) em cujo sumário, que traduz bem o expendido em tal acórdão, a dado passo é dito seguinte:

“2. Apesar de o art. 134º nº2 do CPP se referir expressamente a nulidade, tal não significa, sem mais, que o mesmo se reporta ao regime das nulidades de que trata o art. 118º nº1 e 119º a 123º, do CPP, pois constituindo o art. 134º do CPP norma relativa à produção de prova, coloca-se a questão de saber se não deve antes ser-lhe aplicável o regime das proibições de prova, na medida em que tal regime detém autonomia face ao regime geral das nulidades.

3. No sentido da autonomia das proibições é decisivo no nosso processo penal o teor do art. 118º nº3 do CPP, que expressamente ressalva do regime das nulidades “qua tale” as normas do CPP relativas a proibições de prova, donde decorre que o legislador processual penal não pretendeu reconduzir as proibições de prova ao regime geral das nulidades, reconhecendo-lhe autonomia de forma expressa.

4. Entre nós a consagração das proibições de prova radica em primeira linha na eleição, por parte do legislador, de um conjunto de bens jurídico-penais que, em absoluto (proibições absolutas), ou em termos relativos (proibições relativas), não podem ser lesados pela prossecução das finalidades próprias do processo penal, maxime, a procura da verdade material. No entanto, para além da tutela dos bens jurídico-penais directamente abrangidos pelo art. 32º nº8 da CRP, as proibições de prova podem tutelar outros bens jurídico-penais a que o legislador atribua especial relevância, ainda que radicados em pessoa diferente do arguido, e mesmo princípios fundamentais do processo penal.

5. De iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra o cônjuge ou afim até ao 2º grau, em nome de:

Um direito próprio a evitar o conflito pessoal que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar(ou cônjuge) ao cumprir o dever legal de falar com verdade;

Salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.

6. A omissão da advertência prevista no art. 134º nº2 CPP inutiliza a liberdade de não depor conferida pelo legislador à testemunha parente ou afim face à regra geral da obrigação de depor.

7. As proibições de prova (distintas das meras nulidades por preterição de regra de produção de prova) não carecem de ser arguidas, desde logo porque não lhe sendo directamente aplicável o regime das nulidades, não vale quanto a elas a regra do art. 119º do CPP, segundo a qual são insanáveis apenas as nulidades aí previstas ou as que como tal forem cominadas em outras disposições legais.

Do ponto de vista formal não há, pois, regra que faça depender de arguição as proibições de prova, pelo que pode a mesma ser conhecida oficiosamente, independentemente de arguição pelos interessados.

8. - Na falta de consagração de um regime das proibições de prova que regulasse, com autonomia, as diversas questões suscitadas por esta forma de invalidade, entendemos com Costa Andrade e Germano Marques da Silva, que há uma imbricação estreita entre os efeitos das proibições de prova e as nulidades insanáveis, maxime no que respeita à aplicação da regra geral contida no art. 122º do CPP.

(…)”

Embora no acórdão cujo sumário vimos citando tenha sido decidido ordenar a repetição do depoimento das testemunhas em que tinha havido a falta da legalmente exigida advertência de possibilidade de recusarem depoimento (testemunhas essas que sempre mantiveram essa qualidade e tinham deposto em pleno julgamento), no nosso caso não é minimamente viável/possível a repetição do acto.

Com efeito, para além de há muito ter sido passada a fase de inquérito aquela testemunha (aqui nosso arguido) deixou de ter aquela qualidade por entretanto ter adquirido o estatuto de arguido (e como arguido está impedido de depor como testemunha – cfr. artigo 133º nº 1 a) do CPP.

Por isso, tendo aquelas declarações falsas sido obtidas em atropelo da lei, jamais poderá o recorrido/arguido C... ser pronunciado pela prática de um crime de falso testemunho como pretendia a recorrente, apesar de perante o OPC, na qualidade de testemunha, ter prestado declarações falsas.

A acrescer a isto ainda se poderá citar o Ac da Relação do Porto de 15.10.2003 (proc 0313324, Relator Desembargador Fernando Monterroso) em cujo sumário é dito: “Não comete o crime de depoimento falso o pai do arguido que, embora sob juramento, presta tal depoimento sem que lhe tenha sido feita a advertência constante do artigo 134 n.2 do Código de Processo Penal

Daí que, e sem necessidade de mais considerando, improcede a pretensão do recorrente em ver pronunciado o arguido C..., como autor material de um crime de falsidade de depoimento.

Passemos agora à análise da segunda questão que consiste em saber se existem indícios suficientes da prática por este mesmo arguido C..., seja como co-autor material, seja como cúmplice, do crime de burla por que foi acusado e pronunciado o arguido E....

Recordemos o que quanto a esta matéria foi dito na decisão recorrida:

“A assistente requer igualmente que ao arguido C... seja pronunciado pela prática de um crime de burla p. e p. pelo art. 217.º do Código Penal, à semelhança da acusação que foi formulada contra o seu pai E.... Em relação ao arguido C..., a assistente limita-se a referir que o mesmo estava presente no momento em que os cheques referidos na acusação foram entregues à assistente, na data de celebração do contrato de compra e venda (20/02/2009) referindo que foi o arguido E... que preencheu e entregou esses mesmos cheques. Mais diz a assistente que o arguido C... também sabia, nessa mesma data, que os cheques não seriam pagos, como veio a acontecer, e que, com tal conduta, causaria à assistente os prejuízos referidos no requerimento de abertura de instrução, pois nunca foi seu propósito pagar a totalidade do preço do veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda a prestações.

Porém, não se produziu qualquer prova que nos permita considerar indiciada a prática pelo arguido C... de algum facto que integre a tipicidade do crime de burla.

Com efeito, conforme acima exposto, não existem dúvidas que o arguido C... estava presente no momento da celebração do negócio, em 20/02/2009, data em que também foram entregues os cheques à assistente, também na presença do arguido C.... Porém, a declaração de extravio datada de 12/05/2009 referida no artigo 7 da acusação deduzida pelo MP e constante de fls. 172 foi preenchida a assinada pelo arguido E..., algo que o próprio não negou quando prestou declarações a fls. 71 nem é colocado em causa pela assistente.

De facto, como acima foi dito, na informação de registo comercial consta como data da renúncia à gerência da sociedade B..., Lda, por parte do arguido C..., o dia 20/05/2009, ou seja escassos dias após o preenchimento por parte do arguido E... da declaração de extravio. Pelo que é possível que nessa data de 12/05/2009, o arguido C... não tivesse conhecimento sequer da conduta do seu pai. Na verdade, não se produziu qualquer prova no sentido do arguido C... estar ao corrente da conduta do seu pai no que respeita à apresentação daquela declaração da GNR que conduziu à devolução dos cheques.

Assim, no que respeita ao crime de burla, nunca existiram no presente inquérito quaisquer indícios contra o arguido C..., razão pelo qual o mesmo não foi constituído arguido durante o inquérito pois nunca existiu contra si suspeita fundada da prática de crime, não bastando a apresentação de denúncia para esse efeito.

Assim, é manifesta a maior probabilidade de absolvição do que a probabilidade de condenação relativamente a esse crime, pelo que se impõe a sua não pronúncia em relação à burla.

Relativamente ao arguido E..., as diligências probatórias realizadas na instrução não afastaram os indícios suficientes já existentes na fase de inquérito quanto ao cometimento pelo mesmo dos crimes que lhe foram imputados na acusação. Na verdade as testemunhas ouvidas na fase de instrução acima identificadas referiram claramente que o arguido E... esteve presente no momento da celebração do contrato de compra e venda do veículo automóvel, sabendo de todo o negócio, apesar do contrato ser assinado pelo arguido C....

Aliás, o próprio arguido C... juntou aos autos uma procuração notarial outorgada em 07/11/2008 a fls. 214 e segs., segundo a qual o arguido E... tinha poderes para contratar em nome da sociedade B... e para fazer pagamentos, movimentar contas bancárias, sacar, endossar e assinar cheques. Sendo que, de facto, foi o próprio arguido E... que assinou os cheques referidos na acusação, para além de ter assinado a declaração de extravio na GNR nos termos acima expostos. Acresce que o arguido E... confessou a fls. 71 verso ter emitido o cheque, referindo que queria ir ao encontro do denunciante para proceder ao pagamento da dívida, não se opondo a aplicação de pena em processo sumaríssimo, o que apenas reforça o juízo indiciário de que o mesmo cometeu os crimes descritos na acusação. Sendo certo que, tal como foi relatado pela legal representante da assistente e pelas restantes testemunhas ouvidas em instrução, a dívida nunca foi paga por aquele arguido E....

Assim, pelo acima exposto, não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que existem indícios suficientes que o arguido E... cometeu os crimes que lhe foram imputados na acusação.”

Manifestando entendimento que o arguido C... deveria ser pronunciado como co-autor ou, no mínimo, como cúmplice do crime de burla por que foi acusado, e pronunciado, o arguido E..., insurge-se a assistente também contra essa não pronúncia essencialmente com os seguintes fundamentos:

- pelo facto de ter sido o arguido C... que assinou o contrato de compra e venda a prestações do veículo, estando o mesmo presente no momento em que foram entregues os cheques pré-datados à assistente para pagamento de tal veículo;

- embora reconheça que a denúncia dos extravios dos cheques tenha sido apresentada pelo arguido E..., considera pouco credível que o arguido C... não tivesse conhecimento dessa conduta pois nessa altura ainda era gerente da sociedade “ B..., Lda.”;

- pelo facto do arguido C... ser filho do arguido E..., havendo entre eles uma relação de proximidade resultante do grau de parentesco, é normal e provável que o arguido C... tivesse conhecimento dos assuntos da sociedade e do que se lá passava, mesmo após a sua renúncia à gerência;

Ou seja, estes fundamentos (que sendo que os 2º e 3º mais não passam do que vaticínios ou hipóteses), só por si, não constituem indícios suficientes para poder dizer, com um mínimo de consistência, que o arguido C... tivesse tido algum grau de participação, juntamente com o arguido E..., na prática, do crime de burla de que este foi acusado, ou se essa participação tivesse sido astuciosamente provocada em conjugação de esforços e/ou intenções com o arguido E... por forma a induzir em erro a assistente e nessa medida causar-lhe prejuízos patrimoniais decorrentes do negócio celebrado e não pontualmente cumprido.

E tal como decorre do já citado AC do STJ de 28.96.2006 in www.dgsi.pt, «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime. Os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição” ( vide o Acórdão de 28/06/2006, in www.dgsi.pt)

E tal como bem é salientado na fundamentação da decisão recorrida “não existem dúvidas que o arguido C... estava presente no momento da celebração do negócio, em 20/02/2009, data em que também foram entregues os cheques à assistente, também na presença do arguido C.... Porém, a declaração de extravio datada de 12/05/2009 referida no artigo 7 da acusação deduzida pelo MP e constante de fls. 172 foi preenchida a assinada pelo arguido E..., algo que o próprio não negou quando prestou declarações a fls. 71 nem é colocado em causa pela assistente.

De facto, como acima foi dito, na informação de registo comercial consta como data da renúncia à gerência da sociedade B..., Lda., por parte do arguido C..., o dia 20/05/2009, ou seja escassos dias após o preenchimento por parte do arguido José da declaração de extravio. Pelo que é possível que nessa data de 12/05/2009, o arguido C... não tivesse conhecimento sequer da conduta do seu pai. Na verdade, não se produziu qualquer prova no sentido do arguido C... estar ao corrente da conduta do seu pai no que respeita à apresentação daquela declaração da GNR que conduziu à devolução dos cheques.”

Concordamos com esta explanação efectuada pelo tribunal a quo, também a propósito da inexistência de indícios quanto à intervenção do arguido C... nos crimes (designadamente o de burla) alegadamente cometidos pelo arguido E....

Estabelece o artigo 425º, n.º 5 do CPP que “Os acórdãos absolutórios enunciados no artigo 400º, n.º 1, al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”.
Muito embora, em termos técnico-jurídicos um acórdão absolutório seja distinto de um despacho de não pronúncia, este último tem o mesmo sentido/efeito de absolutório porquanto, também na não pronúncia não há responsabilização criminal de alguém. Este tem sido o entendimento dos tribunais superiores, nomeadamente do STJ: “um acórdão da Relação que confirma um despacho de não pronúncia da 1.ª instância é um acórdão absolutório” para os efeitos do disposto na al. d), do n.º 1, do art. 400º do CPP. (cfr. Acórdão do S.T.J., de 8 de Julho de 2003, Proc. n.º 2304/03 - 5.ª Secção, Relator o Ex.mo Conselheiro Abranches Martins, aliás este também citado e seguido de perto no Ac da Relação de Lisboa, de 09.04.2013, Proc. 1208/11.9TDLSB.L1, Relator Jorge Gonçalves)
Assim, devendo haver confirmação da decisão recorrida – como acontece no presente caso -, pode a respectiva fundamentação limitar-se a remeter para os fundamentos da decisão impugnada, nos termos do disposto no artigo 425.º, n.º 5, do C.P. Penal.
E a nosso ver, a decisão recorrida, também quanto à questão da inexistência de elementos de facto que pudessem colocar o arguido C... como comparticipante no, pela assistente, imputado crime de burla, mostra-se adequadamente fundamentada, de facto e de direito.
Não deixaremos, porém, de fazer apenas algumas observações complementares.

Mesmo perante aquelas hipóteses ou vaticínios invocados pela assistente, inexistem elementos fácticos que com alguma consistência os possam comprovar. Aliás, o simples facto de haver relações de parentesco entre duas pessoas, isso, só por si não quer dizer que um deles tenha, ou deva ter, ou se presuma que tenha, conhecimento da actuação do outro. Por vezes, no âmbito das relações de parentesco é que se dão as maiores “facadas” ou “golpadas” (vejam-se as muitas situações de conflito que existem e sempre existiram decorrentes de “rasteiras” a nível sentimental, a nível dos negócios, a nível de partilhas, etc, em que o interesse de um tenta ofuscar ou sobrepor-se ao interesse ou aos direitos do outro familiar.

E, como atrás dissemos, importa ter sempre presente que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento para além de constituir sempre um “normal” incómodo, por vezes pode-se traduzir num vexame (neste sentido cfr. Ac do STJ de 28.06.2006, in www.dgsi.pt).

Ou seja, ao contrário do que a recorrente pretende fazer crer, não está suficientemente indiciado que o arguido C..., motu próprio e/ou a título de qualquer forma de comparticipação com o arguido E... tivesse tido qualquer conduta na base da qual existisse uma intenção específica de enganar alguém com intenção de vir a obter para si ou para outrem um enriquecimento ou benefício ilegítimo.

Deste modo, remetendo para os fundamentos da decisão recorrida, com os quais concordamos na íntegra, face aos elementos de prova existentes no processo (colhidos quer na fase de inquérito quer na fase de instrução), não se advinha como possível a formulação de um juízo de probabilidade razoável de condenação pelo também imputado crime de burla, que também haviam sido aventado pela assistente no requerimento de abertura de instrução, como determina o n.º 2 do artigo 283º do CPP.

De tudo isto se conclui que, bem andou, pois, o Sr. Juiz ao proferir despacho de não pronúncia do arguido C... pelos crimes que lhe eram imputados pelo assistente no requerimento de abertura de instrução porque a ser pronunciado pelos (ou por alguns) do crimes enunciados pelo recorrente e a manterem-se os elementos de prova até agora existentes, seria bem provável a absolvição de tal arguido após a realização do julgamento.
Não merece, pois, censura o despacho impugnado e, em consequência, o recurso não poderá ser provido.

III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Condena-se a recorrente em 4 (quatro) UC’s de taxa de justiça (arts. 515º nº 1 b) do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento)

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Coimbra, 25 de Junho de 2014



 (Luís Coimbra - relator)

 (Isabel Silva - adjunta)