Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/10.7TBPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
HERANÇA JACENTE
HERANÇA INDIVISA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.2046, 2047, 2056, 2079, 2091 DO CC, 6, 26, 28, 288, 325, 495 CPC.
Sumário: I. A herança indivisa com titulares determinados não integra o conceito de herança jacente, definido no artigo 2046.º do Código Civil, e previsto na alínea a) do artigo 6.º do Código de Processo Civil.

II. Contrariamente à herança jacente, a herança indivisa com titulares determinados não tem personalidade judiciária, não sendo tal omissão suprível.

III. Na situação de preterição de listisconsórcio necessário activo, em que apenas um dos herdeiros figura como autor, deve o juiz convidá-lo a suprir a ilegitimidade processual, com o chamamento à lide dos restantes herdeiros, através do incidente de intervenção principal provocada, previsto nos artigos 325.º e seguintes do CPC.

IV. Efectuado o chamamento, a sentença irá em qualquer caso, apreciar o direito dos intervenientes/litisconsortes, ainda que, porventura, os mesmos se coloquem em situação de revelia, não assumindo real e efectiva participação processual.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
A “herança indivisa aberta por óbito de J (…)”, representada pelo cônjuge sobrevivo, na qualidade de cabeça de casal, M (…), “que também litiga em seu próprio nome”, veio propor a presente “providência cautelar não especificada”, contra JA (…)e esposa MA (…), alegando em síntese: integram o acervo da herança, dois prédios rústicos identificados na petição; desde há mais de 50 anos, que o falecido J (…) e o seu cônjuge sobrevivo utilizavam para rega a água dum poço sito num prédio dos requeridos “junto à confinância nascente/poente”; os requeridos inviabilizaram a utilização do referido poço, impedindo o acesso à água por parte dos herdeiros do falecido J (…).
Com estes fundamentos, requerem: a) que seja decretado «como providência adequada para se evitar os alegados e fundados prejuízos, que os RR. respeitem o direito de as AA. - ou quem as represente - acederem e usarem livremente a água do poço referido para rega para aproveitamento agrícola dos prédios rústicos inscritos sob os nos. 302. e 297., demolindo a suas exclusivas expensas, o que tiver de ser demolido, v.g. até permitir uma porta como a existente para uso dos RR.» ; b) que sejam condenados os RR. «pelo incumprimento da douta decisão supra pedida, em € 100,00 diários, quantia que se reputa adequada e suficiente para desmotivar uma situação de incumprimento voluntário».
Em 19.05.2010, foi proferido despacho, no qual se conclui:

«[…] No caso concreto, analisado o pedido e a causa de pedir, verifica-se que o presente procedimento cautelar não se enquadra nos poderes de administração da cabeça-de-casal, assim como não se enquadra nas acções para exercício de direitos próprios de cada herdeiro, pelo que, impõe-se a presença em juízo, no lado activo, de todos os herdeiros em representação da herança aberta por óbito de J (…) (arts. 26.º, 28.º, do CPC e 2091.º, n.º 1, do CCiv).

Nos termos do n.º 2, do artigo 265.º, do Código de Processo Civil «O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los».

Assim, estando a herança aberta, mas indivisa, e na medida em que a presente providência e, posteriormente, a acção da qual depende, não se enquadra no âmbito dos poderes de administração do cabeça-de-casal, convido a Requerente a suprir a excepção de legitimidade activa, por preterição do litisconsórcio necessário mediante o incidente processual legalmente previsto.»
Através do requerimento de fls. 20, vieram as requerentes, invocando o disposto no n.º 1 do artigo 326.º do CPC, deduzir «o chamamento para intervenção na causa como associados», de: M (…), J (…) e esposa M (…), e E (…) alegando em síntese: os 1º e 2º intervenientes são os “ únicos filhos vivos do casal” que era constituído por J (…)e M (…); a quarta interveniente é «a única filha de M (…), filho já defunto daquele casal».
Em 26.05.2010, foi proferido despacho, onde se determina:

«[…]Face ao exposto, cite os Requeridos primitivos para, querendo:

A) se pronunciarem sobre o chamamento requerido e;

B) Deduzirem oposição ao presente procedimento cautelar, nos termos dos artigos 385.º, n.º 2 e 3 e 302.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 384.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil, sob legal cominação caso não a apresente (art. 385.º, n.º 4, do citado diploma legal).»
Citados os requeridos deduziram oposição, na qual preconizam o indeferimento da pretensão da requerente..
Em 9.07.2010, foi proferido despacho, que culmina com a seguinte decisão:

«[…] Face ao exposto, e atentas as disposições legais referidas, defiro o incidente de intervenção principal provocada deduzido pela A. e, em consequência:

A) Admito (…) a intervir nos autos como associados da A.;

B) Condeno a A. nas custas do incidente.

Notifique, sendo os Chamados para, no prazo de dez dias, constituírem advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância (art. 32.º, n.º 1, al. a), 33.º e 678.º, n.º 1, do CPC).»
Face à renúncia à procuração por parte do mandatário inicial das requerentes, veio o novo mandatário constituído nos autos, apresentar procuração da cabeça de casal M (…) (fls. 65), e da interveniente M (…) (fls. 68).
Em 30.07.2010, foi proferida a fls. 70 dos autos, a seguinte sentença:
«Notificados os chamados para, no prazo de dez dias, constituir advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância, não vieram os mesmos cumprir em conformidade com o ordenado (cfr. art. 32.º, n.º 1 al. a), 33.º e 678.º, n.º 1 do CPC). […] assim, absolvo os réus da instância
Através do requerimento de fls. 72, vieram as requerentes invocar a existência de «manifesto lapso», requerendo ao tribunal «que revogue» a sentença, ao abrigo do disposto no artigo 667.º do CPC, pretensão que não foi atendida no despacho de fls. 73, que a condenou em custas do incidente.
Não se conformando com a sentença proferida nos autos, vieram as requerentes interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

1.ª Nos presentes autos foram os réus absolvidos do pedido por não terem os chamados constituído mandatário. Nos termos do art. 328° n.º 2 al. a) do C.P.C., a sentença que vier a ser proferida quanto ao mérito da questão fará caso julgado quanto ao intervenientes principais (chamados), independentemente, de intervirem ou não nos autos. Não se aplicando o disposto no art. 33.º da C.P.C., no qual o juiz a quo se fundamentou, pois os chamados têm um regime processual específico face às partes originárias.

2.ª Tal facto tem como cominação legal a aceitação pelos chamado dos articulados da parte a que se associa se todos os actos e termos já processados e não a absolvição da instância.

Nestes termos, requer a V.Exas. se dignem considerar procedente e provado o recurso, e em consequência considerar sanada a ilegitimidade de parte excepcionada pelos requeridos, e ordenar-se ao M.º juiz a quo que designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os ulteriores termos até final.
 Os requeridos apresentaram contra-alegações, preconizando a improcedência do recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se estão verificados os pressupostos de absolvição da instância dos requeridos.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante provada:
2.1. A presente providência cautelar foi proposta por “herança indivisa aberta por óbito de J (…)”, representada pelo cônjuge sobrevivo, na qualidade de cabeça de casal, M (…), “que também litiga em seu próprio nome”.
2.2. Em 19.05.2010, foi proferido despacho, no qual se conclui:

«[…] No caso concreto, analisado o pedido e a causa de pedir, verifica-se que o presente procedimento cautelar não se enquadra nos poderes de administração da cabeça-de-casal, assim como não se enquadra nas acções para exercício de direitos próprios de cada herdeiro, pelo que, impõe-se a presença em juízo, no lado activo, de todos os herdeiros em representação da herança aberta por óbito de J (…) (arts. 26.º, 28.º, do CPC e 2091.º, n.º 1, do CCiv).

Nos termos do n.º 2, do artigo 265.º, do Código de Processo Civil «O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los».

Assim, estando a herança aberta, mas indivisa, e na medida em que a presente providência e, posteriormente, a acção da qual depende, não se enquadra no âmbito dos poderes de administração do cabeça-de-casal, convido a Requerente a suprir a excepção de legitimidade activa, por preterição do litisconsórcio necessário mediante o incidente processual legalmente previsto.»
2.3. Através do requerimento de fls. 20, vieram as requerentes, invocando o disposto no n.º 1 do artigo 326.º do CPC, deduzir «o chamamento para intervenção na causa como associados», de: (…), alegando em síntese: os 1.º e 2.º intervenientes são os «únicos filhos vivos do casal» que era constituído por J (…) e M (…); a quarta interveniente é «a única filha de M (…), filho já defunto daquele casal».
2.4. Em 26.05.2010, foi proferido despacho, onde se determina:

«[…]Face ao exposto, cite os Requeridos primitivos para, querendo:

A) se pronunciarem sobre o chamamento requerido e;

B) Deduzirem oposição ao presente procedimento cautelar, nos termos dos artigos 385.º, n.º 2 e 3 e 302.º, n.º 2, aplicável ex vi do artigo 384.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil, sob legal cominação caso não a apresente (art. 385.º, n.º 4, do citado diploma legal).»
2.5. Citados os requeridos deduziram oposição, na qual preconizam o indeferimento da pretensão da requerente.
2.6. Em 9.07.2010, foi proferido despacho, que culmina com a seguinte decisão:

«[…] Face ao exposto, e atentas as disposições legais referidas, defiro o incidente de intervenção principal provocada deduzido pela A. e, em consequência:

A) Admito (…) a intervir nos autos como associados da A.;

B) Condeno a A. nas custas do incidente.

Notifique, sendo os Chamados para, no prazo de dez dias, constituírem advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância (art. 32.º, n.º 1, al. a), 33.º e 678.º, n.º 1, do CPC).»
2.7. Face à renúncia à procuração por parte do mandatário inicial das requerentes, veio o novo mandatário constituído nos autos, apresentar procuração da cabeça de casal (…) (fls. 65), e da interveniente M (…) (fls. 68).
2.8. Em 30.07.2010, foi proferida a fls. 70 dos autos, a seguinte sentença:
«Notificados os chamados para, no prazo de dez dias, constituir advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância, não vieram os mesmos cumprir em conformidade com o ordenado (cfr. art. 32.º, n.º 1 al. a), 33.º e 678.º, n.º 1 do CPC). […] assim, absolvo os réus da instância

3. Fundamentos de direito
3.1. A questão da personalidade judiciária
Salvo o devido respeito, na douta sentença recorrida confundem-se os conceitos de “herança jacente” e “herança indivisa”.
Vejamos.
Nos termos do artigo 2047.º do Código Civil «Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o estado».
Trata-se, na expressão de Oliveira Ascensão[1], de uma situação jurídica sem sujeito, em que os direitos que a integram «estão reservados para um titular futuro».
Após a aceitação pelos sucessores, que pode ser manifestada de forma expressa ou tácita, nos termos do artigo 2056.º do Código Civil, a herança perde o estatuto de “jacente” (art. 2046.º do CC a contrario), passando a ter titular(es) determinado(s), definindo-se no momento anterior à realização da partilha, não como “jacente”, mas como “indivisa”.
Como se refere no acórdão do STJ de 17.04.2007[2], exige imperativamente o artigo 2046.º do CC, para que a herança aberta seja considerada jacente, que ainda não tenha sido aceite.
Na situação a que se reportam os autos, não restam dúvidas de que estamos perante uma “herança indivisa” não “jacente”, na medida em que a mesma foi aceite, desde logo pela esposa do falecido J (…), que veio aos autos na qualidade de cabeça-de-casal, em representação da “herança indivisa” aberta por óbito do marido declarando que «também litiga em seu próprio nome»  
A dicotomia entre “herança jacente” e “herança indivisa”, com titulares determinados, leva-nos à questão do primeiro pressuposto processual de natureza subjectiva: a personalidade judiciária.
Como refere Lopes do Rego[3], a reforma do processo civil, introduzida pelo DL n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro e pelo DL n.º 180/96, de 25 de Setembro, veio precisar com maior rigor as situações de extensão da personalidade judiciária.
Escreve o autor citado:

«No que se reporta à personalidade judiciária da herança, substitui-se a expressão “cujo titular ainda não esteja determinado” pelo termo - mais rigoroso e usado pela própria lei civil – “herança jacente”, seguindo-se, aliás, a posição sustentada por Castro Mendes (Direito Processual Civil, II, pág. 17).

Goza, pois, de personalidade judiciária a herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (art. 2046.º do CC) - e podendo a indeterminação do titular radicar, quer no desconhecimento da existência de sucessíveis, quer no facto de os sucessores não haverem ainda exercido o direito de aceitar ou repudiar a herança.

Afastou-se, deste modo, a maior amplitude da personalidade judiciária da herança que constava do n.º 3 do art. 61.º do Ant. 1993, onde se atribuía personalidade à “herança ainda não partilhada ou cujo titular ainda não esteja determinado”: na verdade, se já ocorreu aceitação da herança, o contraditório deve estabelecer-se necessariamente com os herdeiros que já a aceitaram, apesar de ainda se não ter procedido à respectiva liquidação e partilha, sem prejuízo dos casos excepcionais em que a lei substantiva atribui poderes de administração -e, portanto, de representação em juízo ao cabeça-de-casal (arts. 2088.º e 2089.º do CC).

Assim, proposta uma acção referente a um bem inserido em herança já aceite, mas ainda indivisa, deverão ser demandados os herdeiros que já a tiverem aceitado, nos termos do art. 2091.º do CC, e não a própria herança, encarada como património autónomo e representada pelo cabeça-de-casal. Daí que, a nosso ver, deva ser proposta contra os herdeiros já habilitados -e não contra a herança, por estes representada -a acção que vise obter condenação no cumprimento de dívidas do “de cujus”, nos termos do art. 2091.º do CC: na verdade, não sendo, neste caso, jacente a herança, não goza sequer a mesma de personalidade judiciária (cfr., sobre o direito anterior, o Ac. do STJ in BMJ 480, pág. 392).»
Face à redacção da alínea a) do artigo 6.º do CPC, tem-se revelado pacífico na jurisprudência o entendimento de que apenas a herança jacente goza de personalidade judiciária, não extensiva à herança indivisa com titulares determinados, como se ilustra com a transcrição parcial do acórdão desta Relação, de 15.06.2010[4]

«[…] V – Não respeitando a uma herança jacente, mas antes a uma herança meramente indivisa, já aceite expressa ou tacitamente, é aos herdeiros que caberá intervir como parte nas acções em que se debatam interesses da herança, excepcionados os casos em que isso é legalmente atribuído ao cabeça de casal.

VI – Uma herança impartilhada carece de personalidade judiciária para propor acção de reivindicação sobre imóvel dessa herança, já que não se trata de uma herança jacente (artº 2046º CC e 6º, al. a), CPC), não sendo a legitimidade activa assegurada pela intervenção da cabeça de casal – artº 2091º, nº 1, do CC.[…]»
O mesmo entendimento tem tido acolhimento pacífico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como se ilustra com a parcial transcrição do sumário do acórdão de 31.01.2006[5]: «IV- A herança ilíquida e indivisa, cujos herdeiros já se encontram determinados, não tem personalidade jurídica, nem judiciária. (…) V- A lei apenas atribui personalidade judiciária à herança jacente e aos patrimónios autónomos semelhantes.»[6]
Como refere Abrantes Geraldes[7], citando um acórdão do STJ[8]: «a falta de personalidade judiciária não tem remédio», sendo em princípio insanável, salvo em situações muito especiais, nomeadamente a que vem prevista no artigo 8.º do CPC[9].
Sobre a situação concreta a que se reportam os autos, refere o autor citado[10]: «a demanda ou a intervenção activa da “herança jacente”, quando os respectivos interessados se encontrem determinados e tenham aceitado a herança, não é remediável através da intervenção dos herdeiros ou do cabeça de casal»[11].
De todo o exposto, se conclui, que a “herança indivisa aberta por óbito de J (...)”, representada pelo cabeça-de-casal, não tem personalidade judiciária.
Aqui chegados, face ao disposto no artigo 495.º do CPC, considerando que estamos perante uma nulidade de conhecimento oficioso (falta de personalidade judiciária), e porque foi já suscitada a questão e cumprido o contraditório[12], haveria que declarar a absolvição da instância dos requeridos, e consequente extinção (alínea c) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC).
No entanto, a instância “salva-se” por uma razão: no intróito da petição inicial, a herdeira e cabeça-de-casal M (...) ..., declara que intervém como representante da herança indivisa e “que também litiga em seu próprio nome”.
Ou seja: a providência tem duas requerentes: a herança indivisa e uma das herdeiras, assistindo personalidade judiciária à segunda.
Face a todo o exposto, considerando a manifesta falta de personalidade judiciária da herança indivisa, deverá a instância manter-se e prosseguir, apenas relativamente à requerente herdeira e cabeça-de-casal M (…), excluindo-se da mesma a herança indivisa.

3.2. A questão da ilegitimidade activa
Superada a questão da ausência de personalidade judiciária, suscita-se, agora sim, a questão da ilegitimidade activa.
Nos artigos 2079.º e seguintes do Código Civil, definem-se os poderes de administração da herança pelo cabeça-de-casal, estabelecendo o n.º 1 do artigo 2091.º, que, fora a prática de actos ordinários enunciados nos preceitos anteriores desse diploma, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
Assim acontece, designadamente, na acção de reivindicação de bens pertencentes à herança e nas servidões prediais.
Na situação sub judice, analisado o pedido e a causa de pedir, verifica-se que o presente procedimento cautelar não se enquadra nos poderes de administração da cabeça-de-casal, pelo que se impõe a presença activa em juízo, de todos os herdeiros.
Nos termos do n.º 2, do artigo 265.º, do Código de Processo Civil «O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los».
Considerando que são vários os herdeiros, e apenas está presente no procedimento um deles – o cabeça-de-casal – verifica-se a manifesta preterição de litisconsórcio necessário activo.
Como refere Abrantes Geraldes[13], apurando-se a preterição de litisconsórcio necessário activo ou passivo, deve o juiz convidar o interessado na sanação a suprir a ilegitimidade processual, através da intervenção principal provocada.
O despacho proferido pela M.ª Juíza do tribunal a quo revela-se assim pertinente no que respeita à sanação da ilegitimidade activa, uma vez superada a questão da falta de personalidade judiciária da herança indivisa[14], passando os herdeiros chamados a ser associados da herdeira que era requerente inicial (…)), e não da herança indivisa, que não tendo personalidade judiciária, não pode assumir o estatuto de parte.
O convite do tribunal foi cumprido, o incidente de intervenção de terceiros foi admitido por despacho, que transitou em julgado, pelo que se encontra sanada a ilegitimidade activa inicial.
Tal sanação só foi possível porque, a par da herança indivisa (sem personalidade judiciária), o procedimento foi requerido por uma das herdeiras (cabeça de casal) «em seu próprio nome».
Tendo a referida herdeira personalidade judiciária, não tinha no entanto legitimidade processual, para, desacompanhada dos restantes, promover o procedimento.
A instância encontra-se assim regularizada no aspecto subjectivo, e é tempo de passarmos a apreciar a questão da não apresentação das procurações por parte dos herdeiros intervenientes.

3.3. A questão da não apresentação das procurações
Recordando a factualidade relevante:
- Em 9.07.2010, foi proferido despacho, no qual foi deferido o incidente de intervenção principal provocada, e admitidos a intervir no processo, como associados da requerente, os restantes herdeiros.
- No mesmo despacho, foi decidido: «Notifique, sendo os Chamados para, no prazo de dez dias, constituírem advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância (art. 32.º, n.º 1, al. a), 33.º e 678.º, n.º 1, do CPC).»
- Apenas a requerente inicial M (…) (fls. 65), e a (…) (fls. 68), juntaram procurações.
- Em 30.07.2010, foi proferida a fls. 70 dos autos, a seguinte sentença: «Notificados os chamados para, no prazo de dez dias, constituir advogado, sob pena de os requeridos serem absolvidos da instância, não vieram os mesmos cumprir em conformidade com o ordenado (cfr. art. 32.º, n.º 1 al. a), 33.º e 678.º, n.º 1 do CPC). […] assim, absolvo os réus da instância
Vejamos o direito aplicável:
Dispõe o n.º 1 do artigo 325.º do CPC: «Qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.»
Nos termos do n.º 1 do artigo 398.º do mesmo diploma legal, admitida a intervenção, o interessado é chamado por meio de citação, recebendo cópia dos articulados já oferecidos, apresentados pelo requerente do chamamento, de acordo com o n.º 2 do mesmo dispositivo legal.
O n.º 3 da mesma norma prevê duas possibilidades, na sequência da intervenção do chamado: i) pode oferecer o seu articulado; ii) ou declarar que faz seus os articulados do autor ou do réu.
De acordo com o disposto no n.º 4 do mesmo artigo, se intervier no processo passado o prazo a que se refere o número anterior, tem de aceitar os articulados da parte a que se associa e todos os actos e termos já processados.
No que concerne ao valor da decisão quanto ao chamado, prevê o artigo 329.º, as seguintes alternativas: i) se o chamado intervier no processo, a sentença apreciará o seu direito e constituirá caso julgado em relação a ele; ii) se não intervier, a sentença só constitui, quanto a ele, caso julgado: a) no caso de o chamado ter, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ao do autor ou do réu (salvo tratando-se de chamamento dirigido pelo autor a eventuais litisconsortes voluntários activos); b) no caso de o chamamento de intervenção de terceiro como réu, ocorrer por dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.
Decorre do regime enunciado, que a sentença produz sempre caso julgado em relação ao chamado – ainda que este não intervenha de qualquer forma no processo (nem sequer apresentando procuração forense) – desde que se trate de litisconsórcio necessário, o que é precisamente o caso dos autos, como vimos.
Lopes do Rego[15] distingue entre «intervenção litisconsorcial provocada» e «intervenção coligatória provocada», para concluir que na primeira situação «a sentença irá em qualquer caso, apreciar o seu direito, - ainda que, porventura, o litisconsorte chamado se coloque em situação de revelia, não assumindo real e efectiva participação processual».
Ora, na situação a que se reportam os autos, porque a intervenção principal provocada se destinava a sanar a preterição do litisconsórcio necessário activo, a decisão final apreciará o direito dos intervenientes (restantes herdeiros), constituindo quanto a eles caso julgado, ainda que não intervenham no processo.
Decorre do exposto, a manifesta irrelevância da junção ou não de procuração, por parte dos chamados, que em nada altera o seu estatuto processual e as consequências, quanto a eles, da sentença a proferir.
Não há assim, salvo o devido respeito, qualquer fundamento legal para o despacho recorrido, que absolveu os réus da instância com base no facto de os chamados não terem correspondido à notificação que lhes foi dirigida, para juntarem aos autos procurações forenses.
Com estes fundamentos, deverá o referido despacho ser revogado, substituindo-se por outro que determine o prosseguimento dos autos.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, ao qual se concede provimento e, em consequência:
a) em declarar a falta de personalidade judiciária da requerente “herança indivisa aberta por óbito de J (…)”, mantendo-se apenas como requerente a herdeira e cabeça-de-casal M (…) (a que se encontram associados os restantes herdeiros através do incidente de intervenção principal provocada); e
b) em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Custas do recurso pelos Apelados.
                                                         *

                                                         


Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Emídio Costa


[1] Direito das Sucessão, Coimbra Editora, pág. 371.
[2] Proferido no Processo n.º 07A702, acessível em http://www.dgsi.pt
[3] Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, página 41.
[4] Proferido no Processo n.º 690/2002.C1, relatado por Falcão de Magalhães, acessível em http://www.dgsi.pt.
[5] Proferido no Processo n.º 05A3992, acessível em http://www.dgsi.pt.
[6] No mesmo sentido, cfr: acórdão do STJ de 15.01.2004, proferido no Proc. n.º 03B4310; acórdãos da Relação do Porto de 9.05.2007, proferido no Proc. n.º 0720560; de 9.06.2009, proferido no Proc. n.º 52/03.1TBMDR-A.P1; acórdão de 30.10.2007, proferido no Proc. n.º 0721996; acórdão desta Relação, de 28.05.2002, proferido no Proc. n.º 381/02, todos , acessíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, Almedina, 1997, pág. 68.
[8] De 14.11.1986, in BMJ361,478.
[9] No mesmo sentido, cfr. Antunes Varela e Outros, manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pág. 116.
[10] Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, Almedina, 1997, pág. 70.
[11] Em bom rigor terminológico, não se poderá chamar “herança jacente” à herança aceite, com titulares determinados, face ao conceito legal consagrado no artigo 2046.º do CC.
[12] Apesar de a excepção dilatória em causa ter sido incorrectamente identificada como falta de legitimidade judiciária.
[13] Obra citada, pág. 72.
[14] Não sendo, no entanto, viável a sanação da falta de personalidade judiciária da herança indivisa, através deste meio processual, como vimos.
[15] Revista do MP, Ano 5.º, Volume 18, pág. 110.