Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/10.1GAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: REINCIDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA, VAGOS - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 75º NºS 1 E 2 CP
Sumário: 1.-Para efeitos de reincidência exige-se a verificação dos seguintes pressupostos:
a) Formais: o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses; a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime.

b) Material: que se mostre que, segundo as circunstâncias do caso, a condenação ou condenações anteriores não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime;

2.- O preenchimento do pressuposto material tem de assentar em factos concretos, não bastando a mera menção ao certificado de registo criminal;

3.- Torna-se necessário explicitar, designadamente da motivação para a prática dos factos, de ausência voluntária de hábitos de trabalho e sobre a personalidade do arguido, que permitam concluir que entre os crimes pelos quais cumpriu prisão e o crime em apreciação, existe uma íntima conexão, nomeadamente a nível de motivos e forma de execução, relevantes do ponto de vista da censura e da culpa, que permita concluir que a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efetiva não serviu de suficiente advertência contra o crime, e não um simples multiocasional na prática de crimes em que intervêm causas fortuitas ou exógenas.

Decisão Texto Integral: Relatório

Pela Comarca do Baixo Vouga, Vagos - Juízo de Média Instância Criminal, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a  julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, ao abrigo do disposto no art.º 16, n.º 3 do CPP, o arguido

A..., actualmente em cumprimento de pena de prisão, no EP de Coimbra,

imputando-se-lhe a prática dos factos descritos na de fls. 90 e ss, pelos quais teria cometido em autoria material, na forma consumada e como reincidente, um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204, n.º 2, al e), com referencia ao art. 202, al. d) e e ) do Código Penal, pela prática.

            Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 26-01-2012, decidiu condenar o arguido A... pela prática, como reincidente, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, n.º 2, al e), com referencia ao art.202.º, d) e e) do Código Penal, na pena de quatro (4) anos de prisão efectiva.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

a) O recorrente foi condenado pela prática, como reincidente, de um crime de furto qualificado, p e p pelo art. 204.º, n.º 2, al. E), com referência ao art. 202 d) e e) do Código Penal.

b) Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, julgou incorrectamente os factos dados como provados 1,2,3,4, 5 e 6, porquanto não foi produzida prova que o recorrente tenha sido o autor dos mesmos.

c) Com efeito, a prova testemunhal produzida não nos permite concluir que o recorrente tenha sido o autor dos factos constantes da acusação, aliás, a única testemunha ouvida em sede de audiência de julgamento, o proprietário do estabelecimento, referiu desconhecer o autor dos factos.

d) O único elo de ligação conducente ao recorrente, resulta do relatório de apreciação técnica constante de fls. 30 dos autos, onde consta que foram encontrados vestígios palmares, na parte exterior da janela, tendo-se concluído que se identificavam com a região hipotenar da mão esquerda do arguido.

e) O aludido relatório não passa de um meio de prova, que entre outros e conjugado com os restantes meios de prova permitirá ao Tribunal formar a sua convicção.

f) O facto de terem sido encontrados vestígios palmares pertencentes ao ora recorrente na janela por onde terão entrado os autores dos factos, não nos permite concluir que tenha sido o recorrente o autor do ilícito criminal, ainda mais, pelo facto de terem sido encontrados na parte exterior da janela.

g) O recorrente não prestou declarações em sede de audiência de julgamento, mas o simples facto de não existir justificação plausível para a existência do vestígio palmar do arguido na janela do estabelecimento comercial, jamais poderá permitir ao Tribunal concluir ter sido ele o autor do crime, ou mesmo que tenha estado no local na noite de 31/01/2010.

h) Da prova produzida em audiência de julgamento, resultaram fundadas dúvidas acerca do cometimento dos factos por parte do recorrente.

i) Impunha-se assim ao tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da douta sentença recorrida, a absolvição do arguido dos factos de que se mostra acusado.

j) Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou:

- O princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127 do CPP.

- O princípio in dubio pro réu, consagrado no art.32.º da CRP.

j) Por outro lado, do texto da douta sentença recorrida, resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.410.º, n.º2, al. a) do C.P.P.

Assim sendo, impõe-se uma decisão diferente da proferida, devendo o arguido, ora recorrente A..., ser absolvido da acusação contra si deduzida.

Sem prescindir,

k) Também a questão da reincidência não foi devidamente apreciada.

k) Para um arguido ser considerado “reincidente” é preciso constarem da acusação e provarem-se em audiência os pressupostos de facto previstos no art. 75 do Código Penal, nesse sentido: Ac. STJ de 01-04-2004 (proc. 04B483)

l) Os factos constantes da acusação, não são suficientes para se apurar que o arguido não sentiu a advertência da condenação anterior.

m) A acusação não contém os factos precisos que integram os pressupostos materiais da reincidência, pois não revela em que medida a condenação anterior não foi suficientemente dissuasora para afastar o arguido do crime.

n) Se bastassem os pressupostos formais, que são os que constam da acusação e da douta decisão recorrida ( cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a  6 meses, depois de uma condenação por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, período de 5 anos entre a prática de dois crimes) o arguido seria automaticamente condenado, como reincidente, pela mera junção aos autos de uma certidão.    

O) Consta da douta sentença recorrida como provado o facto no ponto 21. Porém, a condenação e o período de reclusão sofrido não serviram de suficiente advertência ao arguido contra a prática de crimes dolosos.”. No entanto, tal não constitui um “facto” propriamente dito, i.é, uma realidade da vida, mas antes uma conclusão coincidente com os dizeres da própria lei.

p) O Tribunal a quo não indagou da necessidade de aplicação do regime da reincidência, por efeito do desrespeito pela condenação anterior e, assim sendo, parece que considerou a reincidência como de funcionamento automático. 

q) Pelo que subsiste também a insuficiência de matéria de facto para a decisão por não se verificar o pressuposto material da reincidência.

Sem prescindir:

r) Caso se entenda que o arguido não deverá ser absolvido do crime de furto qualificado de que se mostra acusado, a pena aplicada é demasiado severa.

s) Atendendo ao fim educativo que a pena deve ter no sentido de demover o arguido do cometimento de novos crimes, mas também à sua integração e ressocialização, deve ser aplicada ao recorrente pena não privativa da liberdade.

Nestes termos e nos mais de direito, deve dar-se provimento ao presente recurso, com as consequências legais, nos termos mencionados nas conclusões, como é de Direito e Justiça.

 

            O Ministério Público na Comarca do Baixo Vouga respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida.

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

           

       Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação, constante da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1. Na noite de 31/01/2010, a hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se ao Restaurante W..., pertencente ao ofendido B..., sito na  …. , área deste município de Vagos, com o intuito de retirar do seu interior, sem o conhecimento e o consentimento do seu proprietário, objectos com valor que sabia ali poder encontrar.

2. Nessa conformidade, com o auxílio de instrumento não concretamente apurado, partiu um vidro de uma janela lateral do Restaurante, que dá acesso ao interior da cozinha, logrando dessa forma ali entrar.

3. Daí retirou e levou consigo, sem o conhecimento e o consentimento do seu  proprietário, os seguintes objectos:

a) Cerca de 160,00 a € 170,00 em notas e moedas que retirou do interior da máquina registadora;

b) Várias moedas que se encontravam dentro do moedeiro de uma caixa de brindes, de valor não apurado.

4. O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objectos acima mencionados, bem sabendo que não lhe pertenciam, que o seu proprietário não o autorizou a levar tais objectos e que dessa forma actuava contra a vontade deste.

5. Sabia que não tinha autorização para entrar no restaurante acima identificado, pelo que entrou no local quebrando o respectivo vidro da janela que dá acesso à cozinha, logrando assim ter acesso ao seu interior.

6. Ao agir da forma supra descrita, causou um prejuízo ao ofendido no valor de pelo menos € 170,00, referente aos objectos subtraídos.

7. Sabia outrossim ser toda a sua conduta proibida e punida por lei penal.

8. O arguido foi condenado pela prática em 08/06/2002 de vários crimes de furto, dano, roubo e ofensa à integridade física simples, no processo 256/02.4GAVGS deste Tribunal Judicial por acórdão transitado em julgado, em pena de prisão efectiva de 3 anos e 6 meses.

9. Esteve em cumprimento dessa pena desde 06/10/2004 até 06/04/2008.

10. Porém, a condenação e o período de reclusão sofrido não serviram de suficiente advertência ao arguido contra a prática de crimes dolosos.

11. O arguido tem os antecedentes criminais constantes do CRC de fls. 119 e ss que se dá por integralmente reproduzido.

Facto não provados

Não se provou que tenha sido retirado do estabelecimento várias garrafas de bebidas alcoólicas de marca e valor não concretamente apurados.

Motivação da matéria de facto

O arguido, dentro do direito que lhe assiste, remeteu-se ao “silencio”.

O tribunal formou a sua convicção com base na prova pericial constante dos autos, e bem assim do depoimento da testemunha B.... Este, proprietário do estabelecimento, confirmou o modo como acederam ao interior do mesmo, e bem assim os objectos que desapareceram, e o respectivo valor.

Não obstante não haver nenhuma testemunha a dizer que viu o arguido, o certo é que tem o tribunal de valorar, quanto á autoria dos factos o teor da prova pericial junta aos autos, a fls. 26 a 30 de onde resulta a existência de vestígios palmares na parte exterior da janela partida, os quais submetidos a apreciação técnica se identificavam com a região hipotenar da mão esquerda do arguido.

É certo que estamos a falar de vestígios palmares encontrados do lado de fora da janela. Só que não era uma janela qualquer, mormente não era uma janela da frente do edifício ou que ficasse junto á estrada e onde qualquer pessoa pudesse passar e até tocar. Estamos a falar de uma janela lateral, que dá acesso á cozinha, a qual por sinal foi partida e por onde entrou a pessoa que dali furtou os vários objectos.

Ademais o ofendido mencionou não conhecer o arguido, o qual não era seu cliente habitual, pelo que inexiste qualquer razão para ali se encontrar um vestígio palmar do mesmo.

Assim, e tendo em conta todo o circunstancialismo envolvente, e na ausência de qualquer justificação valida para a existência do vestígio palmar do arguido, na janela por onde foi perpetrado o assalto, o tribunal conclui pela autoria dos factos por parte do arguido.

O Tribunal teve ainda em conta o CRC que se encontra junto aos autos.

Os factos não provados resultam de não se ter feito prova, por o ofendido ter mencionado que não se recordava se tiraram garrafas ou não.

*
                                                                        *
                                                  
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente arguido A... as questões a decidir são as seguintes:

- se o Tribunal a quo, julgou incorrectamente os factos dados como provados nos pontos n.ºs 1, 2, 3, 4, 5 e 6, tendo violado os princípios da livre apreciação da prova, previsto no art. 127 do C.P.P.,  e in dubio pro reo consagrado no art.32.º da C.R.P.;

- se, por outro lado, do texto da douta sentença recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.410.º, n.º2, al. a) do C.P.P.;

- se a questão da reincidência não foi devidamente apreciada, subsistindo insuficiência de matéria de facto para a decisão por não se verificar o pressuposto material da reincidência; e

- se a pena aplicada é demasiado severa, devendo ser-lhe aplicada uma pena não privativa da liberdade.


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            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

            O recorrente A... sustenta que o Tribunal a quo julgou incorrectamente a prova produzida ao dar como provada a matéria relativa à autoria do furto, uma vez que a única testemunha inquirida, o proprietário do estabelecimento, referiu desconhecer o autor dos factos, e o arguido não quis prestar declarações.

Sendo um vestígio palmar do arguido, no exterior da janela do estabelecimento comercial por onde terão entrado os autores do furto, expresso no relatório de apreciação técnica constante de folhas 30 dos autos, o único elo de ligação do recorrente com os factos, considera que resultaram do julgamento sérias dúvidas acerca do cometimento dos factos por parte do recorrente.

Impondo-se, deste modo uma diversa decisão em matéria de facto, violou o Tribunal a quo os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo  ao dar como provada a matéria dos pontos n.ºs 1 a 6 da sentença recorrida.    

Vejamos.

A modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as seguintes condições, enunciadas no art.431.º do mesmo Código:
  « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
     b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
     c) Se tiver havido renovação de prova.”.
A situação prevista na alínea a), do art.431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta do processo, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento. 
A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P..
Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., ao remeter para o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar: « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devam ser renovadas.».
Acrescenta o n.º 4, deste art.412.º, que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação
Por fim, a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., exige a realização da audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
No presente caso, o recorrente A... para impugnar a autoria do furto que lhe é imputada na acusação pelo Ministério Público, indica entre outra prova, prova testemunhal produzida oralmente na audiência de julgamento, o que afasta a possibilidade de modificação da respectiva matéria de facto ao abrigo da al.a), do art.431.º do C.P.P..
O mesmo recorrente não deu cumprimento mínimo, nem nas conclusões da motivação, nem na motivação, ao disposto no art.412.º, n.º 3 e 4 do C.P.P., uma vez que, apesar de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não indicou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida com especificação, por referência ao consignado na acta, das concretas passagens em que funda a impugnação.
Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al.c) do art.431.º, do C.P.P., se mostra aqui afastada uma vez que não requereu a realização da audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
Deste modo, a modificação da matéria de facto apenas poderá ocorrer através do mecanismo algo restritivo dos vícios a que alude o art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que são aliás de conhecimento oficioso. 
O art.410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

     a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

     b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou 

     c) O erro notório na apreciação da prova.
Dentro os vícios previstos neste preceito vamos concentrar a nossa atenção no erro notório na apreciação da prova, uma vez que o recorrente A..., partindo da fundamentação da matéria de facto da sentença e sua conjugação com as regras da experiência comum, conclui que o Tribunal a quo violou os princípios da livre apreciação da prova  e in dubio pro reo  ao dar como provada a matéria dos pontos n.ºs 1 a 6 da sentença recorrida.
O erro notório na apreciação da prova, a que alude a al.c), n.º2 do art.410.º do C.P.P., consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
No dizer ainda dos Juízes Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, o erro notório na apreciação da prova existe “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando  determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo )  contido no texto da decisão recorrida”. [4]

O principio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal,  estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.»[5].

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[6].

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.

O preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve, pois, ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Ainda no âmbito da apreciação da prova, importa aqui mencionar o princípio in dubio pro reo, que estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.

O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido.[7]

Se na fundamentação da sentença/acórdão oferecida pelo Tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.

Regressando ao caso concreto, e lendo a fundamentação da matéria de facto da sentença, verifica-se que ali se escreveu “ não haver nenhuma testemunha a dizer que viu o arguido” a aceder ou sair do estabelecimento do ofendido e testemunha B....

Esquece o recorrente, porém, que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).

A prova indirecta que “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova[8] , é muito importante em processo penal, designadamente em casos de furto, em que o agente tudo procura fazer para não ser surpreendido no exercício da sua actividade criminosa.

Como nota o Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa.”.[9]

Consta da fundamentação da matéria de facto da sentença que o ofendido e testemunha B..., para além de ter confirmado o modo como acederam ao interior do seu estabelecimento comercial e o valor dos objectos que lhe subtraíram, declarou não conhecer o arguido, não sendo o mesmo seu cliente habitual.

Ora, menciona-se na mesma fundamentação, que resulta da prova pericial junta de folhas 26 a 30 dos autos, a existência de vestígios palmares na parte exterior da janela partida, os quais submetidos a apreciação técnica se identificavam com a região hipotenar da mão esquerda do arguido.

Pese embora os vestígios palmares tenham sido encontrados do lado de fora da janela, anota-se na sentença recorrida, que esta  “não era uma janela qualquer, mormente não era uma janela da frente do edifício ou que ficasse junto á estrada e onde qualquer pessoa pudesse passar e até tocar. Estamos a falar de uma janela lateral, que dá acesso á cozinha, a qual por sinal foi partida e por onde entrou a pessoa que dali furtou os vários objectos.”.

É certo que poderia haver uma justificação para a existência de vestígios palmares do arguido na parte exterior da janela partida por onde o autor da subtracção dos bens penetrou no estabelecimento.

O arguido A... optou pelo silêncio quanto aos factos que lhe são imputados na acusação. È um direito processual que lhe assiste, consagrado nos artigos 61.º, n.º1, al. d), e 343.º, n.º1, do Código de Processo Penal, que se integra no princípio de que ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo (nemo tenetur se detegere).

Porém, como assinalam os Cons. Simas Santos e Leal Henriques, não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer, então poderá o silêncio nitidamente desfavorecê-lo.[10]

O arguido A..., optando pelo direito ao silêncio, embora não possa ser desfavorecido juridicamente por essa posição, deixou de apresentar a sua versão dos factos, nomeadamente a razão pela qual se encontravam vestígios palmares seus na parte exterior da janela partida por onde o autor da subtracção dos bens penetrou no estabelecimento.

Perante a prova indirecta obtida em sede de julgamento, o Tribunal da Relação não vislumbra qualquer erro na apreciação da prova, e menos ainda notório, violador das regras da livre apreciação da prova ou do princípio in dubio pro reo, quando o Tribunal a quo consigna na fundamentação da sentença que “ …tendo em conta todo o circunstancialismo envolvente, e na ausência de qualquer justificação valida para a existência do vestígio palmar do arguido, na janela por onde foi perpetrado o assalto, o tribunal conclui pela autoria dos factos por parte do arguido.”.

Improcede assim a primeira questão.


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            A segunda questão a conhecer é se do texto da douta sentença recorrida resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.410.º, n.º2, al. a) do C.P.P..
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º2 do art. 410.º do C.P.P., existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação ( e a medida desta) ou a absolvição ( existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.[11]
Dito ainda noutros termos, a insuficiência relevante para efeitos do disposto no art. 410.º do CPP, consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, e que impede que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura e justa.
O arguido não indica, nem nas conclusões da motivação, nem na motivação, que existe carência de factos para a decisão de direito tomada pelo Tribunal a quo, mas sim uma carência de prova para este haver dado como provada a matéria de facto que consta dos pontos 1 a 6 e que, por isso, esta factualidade deveria ter sido dada como não provada.
O Tribunal recorrido apreciou os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, não tendo o arguido apresentado contestação.
Uma vez que os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, designadamente o preenchimento pelo arguido dos elementos constitutivos do crime de furto qualificado, pelo qual foi condenado, e do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se vislumbram factos que ficaram por apurar, não temos por verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


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       A questão a decidir agora é se a pena aplicada ao arguido não deveria ter sido agravada pela reincidência, uma vez que subsiste insuficiência de matéria de facto para a decisão por não se verificar o pressuposto material da reincidência.

O recorrente defende que não estão preenchidos todos os requisitos desta figura jurídica previstos no art.75.º do Código Penal, sustentando para o efeito e em síntese, o seguinte: os factos constantes da acusação não são suficientes para se apurar que o arguido não sentiu a advertência da condenação anterior; se bastassem os pressupostos formais, que são os que constam da acusação e da sentença recorrida, o arguido seria automaticamente condenado como reincidente pela mera junção aos autos de uma certidão; o ponto n.º 10 dos factos provados da sentença, não constitui um “facto” propriamente dito, mas antes os dizeres da própria lei.

Relativamente à reincidência, consignou-se no acórdão recorrido: « Acresce que o arguido deve ser punido como reincidente, nos termos do art. 75.º e 76.º do CP, na medida em que a prática dos factos em causa nos autos ocorreram menos de cinco anos após a sua condenação no processo 256/02.4GAVGS. Na verdade, decorre dos autos que o arguido foi condenado pela prática em 08/06/2002 de vários crimes de furto, dano, roubo e ofensa à integridade física simples, no processo 256/02.4GAVGS deste Tribunal Judicial por acórdão transitado em julgado, em pena de prisão efectiva de 3 anos e 6 meses, tendo estado em cumprimento dessa pena desde 06/10/2004 até 06/04/2008.

Temos, assim, que a moldura penal abstracta a ter em consideração tem o limite mínimo elevado de um terço, permanecendo inalterado o limite máximo.».

Vejamos.

O art.75.º, n.º 1 do Código Penal estatui que « É punido como reincidente quem, por si ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.». O seu n.º 2 acrescenta que « O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos ; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.».

Os pressupostos formais da reincidência são, assim, o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses; a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime.

O pressuposto material da reincidência é que se mostre que, segundo as circunstâncias do caso, a condenação ou condenações anteriores não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime. 

No dizer do Prof. Figueiredo Dias, os requisitos da reincidência, que já eram muito apertados em relação do Código Penal de 1886, foram mais restringidos com as alterações ao Código Penal de 1982, introduzidas pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, «... respondendo  assim à evolução actual no sentido de a agravação por reincidência dever ser eliminada.».[12]

Ainda no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, « O critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa, exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e daquela culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias ( v.g., o afecto, a degradação social e económica, a experiência especialmente criminógena da prisão, etc.) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza será muito mais difícil ( se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, se não é a distinção dogmática entre reincidência  homótropa e polítropa que reaparece em toda a sua tradicional dimensão, é em todo o caso a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel[13]

Como advertem os Cons. Simas Santos e Leal Henriques, “ a prática do segundo crime pode não indiciar desrespeito pela condenação anterior, a reiteração criminosa pode ficar a dever-se a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas. Em tal caso não deve haver lugar a agravação, uma vez que não pode afirmar-se uma maior culpa referida ao facto. Por esta via de agravação ope judicis, exclui-se a delinquência pluriocasional do âmbito da reincidência.”.

Dito de outro modo, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da intima conexão entre os crimes não se basta com a simples remissão para o CRC do arguido, exigindo-se uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor».[14]

Neste âmbito defendemos tal como o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, seguindo o entendimento do Prof. Eduardo Correia, que “Este Elemento material deve ser provado com as regras gerais do processo, não havendo qualquer presunção, mesmo ilidível, de que a anterior condenação não serviu ao delinquente de prevenção contra o crime (…).[15]

No caso em apreciação, resulta do ponto n.º 8 dos factos provados que o arguido A..., “foi condenado pela prática em 08/06/2002 de vários crimes de furto, dano, roubo e ofensa à integridade física simples, no processo 256/02.4GAVGS deste Tribunal Judicial por acórdão transitado em julgado, em pena de prisão efectiva de 3 anos e 6 meses.”.

Consultando os antecedentes criminais do arguido constantes do CRC de fls. 119 - para que se remete no ponto n.º 11 da factualidade provada -, verificamos o arguido foi condenado no aludido processo 256/02.4GAVGS, por acórdão de 4-7-2005, transitado em julgado em 19-7-2005.  No ponto n.º 9 dos factos provados, acrescenta-se que o arguido esteve em cumprimento dessa pena desde 06/10/2004 até 06/04/2008 .

Podemos assim concluir que antes de decorridos 5 anos, nos termos a que se alude no n.º2 do art.75.º do Código Penal, o arguido A... voltou a cometer, no presente processo, um crime doloso, de furto qualificado, a que o Tribunal recorrido aplicou pena de prisão efectiva.

A manter-se a condenação em prisão efectiva – que o recorrente contesta na sua última questão objecto de recurso – e superior a 6 meses, temos de concluir que se verificam os pressupostos formais da reincidência atrás descritos.

Passando agora ao conhecimento do pressuposto material da reincidência, verificamos que , para além do que consta do CRC ( nos pontos n.ºs 8 , 9 e 11) o Tribunal a quo deu como provado no ponto n.º 10 o seguinte: “ Porém, a condenação e o período de reclusão não serviram de suficiente advertência ao arguido contra a prática de crimes dolosos.”

Salvo o devido respeito, a matéria deste ponto n.º 10 é uma conclusão de direito, retirada directamente da letra do n.º 1 do art.75.º do Código Penal, e não um facto que o Tribunal de recurso possa apreciar objectivamente.

Da factualidade dada como provada não constam factos dos quais se pode retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado, afastando-se uma eventual situação de delinquência pluriocasional, resultante de factores exógenos como por exemplo de degradação económica do arguido. Não existem factos dados como provados, designadamente a nível da motivação para a prática dos factos, de ausência voluntária de hábitos de trabalho e sobre a personalidade do arguido, que permitam concluir que entre os crimes pelos quais cumpriu prisão até 6-4-2008 , e o crime de furto qualificado aqui em apreciação, existe uma íntima conexão, nomeadamente a nível de motivos e forma de execução, relevantes do ponto de vista da censura e da culpa, que permita concluir que a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efectiva não serviu de suficiente advertência contra o crime, e não um simples multiocasional na prática de crimes em que intervêm causas fortuitas ou exógenas.

Da factualidade da acusação e da sentença recorrida constam os pressupostos formais da reincidência, mas não o pressuposto material da reincidência. A mera menção ao C.R.C. é insuficiente para o preenchimento deste último pressuposto.

Pelo exposto, o Tribunal da Relação entende que não se verifica o pressuposto material da reincidência, procedendo consequentemente esta questão.


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            A última questão a decidir respeita à medida da pena aplicada e sua eventual substituição por uma pena não privativa da liberdade.

Para além da reincidência que o recorrente A... defende não se verificar, com a consequente redução em 1/3 do limite mínimo da moldura penal que havia sido agravada na sentença ao abrigo o disposto no art.76.º do Código Penal, limita-se o mesmo a fazer considerações gerais sobre a culpa e as exigência de prevenção, para concluir que a pena de prisão lhe deverá ser suspensa na execução.  

Parece-nos pacífico que a factualidade dada como provada integra todos os elementos constitutivos do crime de furto qualificado imputado ao arguido, punível com prisão de 2 a 8 anos.

É dentro destes limites definidos na lei e de acordo com o critério geral estabelecido no art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, que se deve proceder, em regra, à determinação da medida da pena.

Nos termos deste preceito, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.

A culpabilidade ali referida não se confunde com a intensidade do dolo ou a gravidade da negligência; é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa , censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal.

O facto punível não se esgota na desconformidade com o ordenamento jurídico-penal , com a acção ilícita-típica,  necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “ isto é , que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente , por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário.”[16].

O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena.

De acordo com o art.41.º, n.º1 do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal ( prevenção geral positiva ou de integração).

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, factores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.

Para o mesmo autor, esses factores podem dividir-se em “Factores relativos à execução do facto”, “Factores relativos à personalidade do agente” e “Factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.

Relativamente aos “Factores relativos à execução do facto” esclarece que “Toma-se aqui a “execução do facto” num sentido global e complexo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência” e ainda “os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e os motivos que o determinaram”...Assim, ao nível do tipo-de-ilícito releva logo a totalidade das circunstâncias que caracterizam a gravidade de violação jurídica cometida pelo agente, o dano material ou moral, produzido pela conduta – com todas as consequências típicas que dele advenham - o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, a espécie e o modo de execução do facto...o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo...Nos factores relativos à execução do facto...entram, por outro lado, todas as circunstâncias que respeitam à reparação do dano pelo agente, ou mesmo só os esforços por ele desenvolvidos nesse sentido ou no de uma composição com o lesado; como ainda o comportamento da vítima...os sentimentos, os motivos e os fins do agente manifestados no facto.”

Nos “Factores relativos à personalidade do agente” incluem-se: a) Condições pessoais e económicas do agente; b) Sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado; c) Qualidades da personalidade manifestadas no facto.

Os “Factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto” incluem a conduta anterior ao facto – haverá que ponderar se o ilícito surge como um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito, que poderão atenuar a pena. Como contrapartida haverá igualmente que ponderar a existência de condenações anteriores, que, como contraponto, poderão servir para agravar a medida da pena – e a conduta posterior ao facto – haverá que ponderar se o arguido procedeu ou envidou esforços no sentido de reparar as consequências do crime, e qual o seu comportamento processual.[17]

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa ( art.40.º, n.º 2 do C.P.) , designadamente por razões de prevenção.

Debruçando-nos sobre a situação em apreciação, diremos que é médio o grau de ilicitude do facto e consequências do crime, considerando o valor global dos bens subtraídos. O modo de execução revelou-se relativamente simples.

Agiu com dolo directo.

É de modesta condição social, encontrando-se em cumprimento de pena de prisão.

Se os factores relativos à execução do facto e às condições pessoais do agente não se mostram exacerbados, já os factores relativos à sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado, qualidades da personalidade manifestadas no facto e sua conduta do agente anterior e posterior ao facto, não favorecem a responsabilidade criminal do arguido.

 O arguido tem condenações por crimes de condução sem habilitação legal ( duas), um crime de roubo, dois crimes de dano simples e 3 crimes de ofensas à integridade física simples,  e várias por crimes de furto simples e qualificado. Sofreu variadas penas, designadamente de prisão, encontrando-se actualmente no cumprimento de penas.

As razões de prevenção especial são assim prementes.

Elevadas são igualmente as razões de prevenção geral, considerando o facto do crime de furto qualificado ser frequentemente praticado.

Considerando que a moldura penal para o crime de furto qualificado vai de 2 a 8  anos de prisão,  entendemos que uma pena de prisão fixada em 3 anos e 6 meses , é uma pena adequada á culpa e às finalidades da pena.

Determinada a medida concreta da pena de prisão, impõe-se agora decidir se a mesma poderá ser objecto de substituição por medida não privativa da liberdade, que no caso apenas poderá ser suspensão da execução.
Os pressupostos da suspensão da execução da pena vêm enunciados no art.50.º, n.º1 do Código Penal, que estabelece que « O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos  se , atendendo à personalidade do agente , às condições da sua vida , à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste , concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição .».
O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos .

O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o tribunal, atendendo à personalidade do arguido e às circunstâncias do facto, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Quando o tribunal aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, juízo este não necessariamente assente numa certeza, bastando uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização, em liberdade, do arguido.

Todavia, « a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada » - mesmo em caso de « conclusão do tribunal por um prognóstico favorável ( à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização) , se a ela se opuseramas finalidades da punição » ( art.50.º, n.º 1 e 40.º , n.º1 do Código Penal ), nomeadamente  « considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico », pois que « só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto .».[18]

No presente caso, tendo em conta que o arguido vai condenado neste processo numa pena de  3 anos e 6 meses de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.

Já o pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição não o podemos considerar verificado, dados os antecedentes criminais já mencionados, com várias condenações em penas de prisão, nomeadamente por crimes de furto, a ausência de confissão relevante, e falta de arrependimento e particularmente a reparação dos prejuízos causados causados ao ofendido ou propósito sério de os reparar, de onde se pudesse concluir que no futuro não voltará a praticar factos de igual natureza àqueles pelos quais vai aqui condenado.  

Se a prognose sobre o comportamento do arguido à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização, são elevadas, igualmente são elevadas as exigências de prevenção geral no crime em causa, porquanto para além de praticado frequentemente em todo o país, vem sendo praticado com alguma reiteração pelo arguido na Comarca do Baixo Vouga.

O sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência da norma jurídico-penal violada pelo arguido, numa situação como esta, ficaria afectado pela substituição da pena de prisão por suspensão de execução da mesma pena.

Afastada está, assim, a possibilidade de se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e, de assim, o tribunal decretar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e, revogando a douta sentença na parte em que considerou este reincidente, decide-se condenar o mesmo arguido, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.204.º, n.º 2, al e), com referencia ao art.202.º, alíneas d) e e) do Código Penal, na pena de três (3) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva.

             Sem custas.

                                                                         *

Orlando Gonçalves (Relator)

Alice Santos


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] - Cfr. obra citada, 2.º Vol.,  pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).

[5] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. 
[6]  cfr.“Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.

[7] Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 , in C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177  .

[8] cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289. 
[9] Obra citada, pág. 289.
[10] Código de Processo Penal Anotado, II volume, 2000, p. 359.
[11] – neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 ( proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado” ,   2ª ed., pág. 737 a 739.

[12] “Código Penal , Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, edição Ministério da Justiça, 1993, pág.480.

[13] - “ Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, notícias editorial,  páginas 268/269  

[14] cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 26.03.08, proc. 4833/07-3ª, e de 04.12.08; proc. 3774/08-3ª, in www.dgsi.pt.

[15] Cfr. “Comentário do Código Penal”, Unv. Católica Editora, 2008, pág. 241. 

[16] cfr. Prof. Fig. Dias , in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.
 
[17]  in “Direito Penal Português, as consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, pág. 210 e 245 e seguintes.

[18] - Cfr. Prof. Figueiredo Dias , in “Direito Penal Português , as Consequências do Crime”, pág. 344 .