Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1439/09.1TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA EXECUTIVA
BENS DO INSOLVENTE
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 88º, Nº 1, E 149º, NºS 1, AL. A), E 2, DO CIRE.
Sumário: Conhecida a declaração de insolvência do executado e ainda que se hajam realizado, anteriormente a esta, diligências tendentes ao pagamento do crédito exequendo e/ou dos créditos dos reclamantes (v.g., a venda executiva), não é possível prosseguir tais diligências para efectivar esse pagamento através dos montantes depositados à ordem da execução - designadamente, os provenientes da penhora de créditos, ou da venda de outros direitos ou bens penhorados - e que, em princípio, estariam afectos a tal escopo (artºs 88º, nº 1 e 149º, nº 1, a) e n.º 2, do CIRE).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:

A) - 1 - “I…, Ldª”, através de requerimento inicial de 13/11/2009, intentou, na Vara de Competência Mista de Coimbra, contra “T…, Ldª”, com sede em …, Leiria, execução para pagamento de quantia certa, com base em cheques, visando a cobrança coerciva do montante global de € 38.716,07, acrescido de juros.

2 - Nomeado à penhora, entre outros, o crédito que a executada possuía sobre a firma “C…, S.A.”, foi efectuada, em 15/03/2010, a notificação desta para penhora de tal crédito.

3 - Em 24/03/2010, veio a “C…, S.A.” declarar que a executada tinha sobre si créditos superiores à quantia exequenda, pelo que consideraria penhorada a quantia de € 42.587,67.

4 - Lavrado auto, em 15/04/2010, relativo à penhora do referido crédito que a executada detinha sobre a “C…, S.A.” foi esta notificada, com a advertência constante do disposto no n° 3 do artigo 860°, do CPC, para proceder, no prazo de 10 (dez) dias, ao pagamento do valor de 42.587,67 euros, por depósito na conta cliente com o NIB …, montante esse que veio a ser depositado em 24/05/2010.

5 - Em 31/05/2010 foram enviadas cartas para notificação dos credores, nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 865°, nº 2 e 864º, nº 4, ambos do CPC e do art.º 80° do Código do Procedimento e Processo Tributário.

6 - Por sentença de 02/06/2010, proferida no processo n°2873/10.0TBLRA, do 3°Juizo Cível do Tribunal Judicial de Leiria, transitada em julgado em 13/07/2010, foi declarada a insolvência da ora executada.

7 - Por requerimento de 14/06/2010, dirigido à Exma. Solicitadora de Execução, veio a exequente requerer a adjudicação/pagamento do seu crédito através das importâncias já depositadas.

8 - A Sra. Administradora da Insolvência, também em 14/06/2010, solicitou a transferência dos valores penhorados para a conta bancária destinada a ser utilizada pela massa insolvente

9 - A agente da execução, expondo o circunstancialismo a isso respeitante, solicitou à Mma. Juiz da execução, em face desses pedidos da Exequente e da Srª. Administradora da Insolvência, que ordenasse o que tivesse por conveniente.

10 - Por requerimento de 31/08/2010, a exequente, pronunciando-se quanto à pretensão da Sr.ª Administradora da Insolvência, veio defender que a quantia de € 42.587,67 deixara de fazer parte do património da executada em 24/05/2010. Simultaneamente, requereu que fosse proferido despacho determinando que a quantia de 40.409,32 € lhe fosse entregue a si, exequente, “sua única e legítima titular”.

11 - Por despacho de 07/09/2010 (REF. 684662), a Mma. Juiz da Vara de Competência Mista de Coimbra -1ª Secção, escorando-se na declaração de insolvência da “ T..., Ldª”, além de ter expressar o entendimento de que, asseguradas que fossem as custas, a agente de Execução deveria dar por extinta a execução, indeferiu a entrega à exequente da referida quantia de € 40.409,32.

B) - A Exequente, inconformada com o assim decidido, interpôs recurso desse despacho, tendo terminado as alegações desse recurso - que veio a ser admitido como Apelação, com efeito devolutivo -, com as seguintes conclusões:

Terminou, pedindo que, na procedência do recurso, fosse revogado o despacho impugnado e fosse ordenada a entrega a seu favor da quantia de 40.409,32€.

C) As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do CPC[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[2]).

Assim, a questão a solucionar no presente recurso, consiste em saber se a declaração de insolvência da executada obstava, como concluiu a 1ª Instância, à entrega requerida pela Exequente e que foi recusada no despacho impugnado.

II - Fundamentação:

A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - A) supra.

B) - A argumentação da Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, para indeferir a entrega requerida pela Exequente, estribou-se, essencialmente, na interpretação dos art.ºs 88º e 149º do CIRE[3].

Efectivamente, depois de analisar tais preceitos, escreveu a Mma. Juiz: «Na situação em apreço, muito embora o devedor, com o pagamento que efectuou, tenha visto extinta a sua obrigação, efectuou tal pagamento através dos autos de execução (nem poderia ser de modo diferente, na medida em que o credor era o executado). Nessa medida, não se pode afirmar que quando opera o depósito a quantia passa a fazer imediatamente parte do património do exequente. O seu credor era o executado e só seria destinado ao exequente a parte respeitante ao seu crédito (no caso até o excedia). Até que o pagamento tivesse lugar a quantia depositada fazia e faz parte do património do executado, devendo como tal ser entregue à massa insolvente.».

Vejamos.

Visando duplo escopo - a liquidação do património do devedor e a repartição pelos credores deste do produto assim obtido - o processo de insolvência assume-se, essencialmente, como um processo de execução universal[4], subordinado entre outros, ao princípio da “par conditio creditorum”.

E este princípio, que os efeitos processuais da declaração de insolvência, designadamente, têm subjacente, visa, basicamente, como refere Catarina Serra “impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores.”[5].

Por outro lado, de harmonia com o que dispõe o art.º 88.º, n.º 1, do CIRE, “…a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providencias requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência...”.

Esta suspensão a que alude o citado artº 88.º, n.º 1, se reunidas as condições que ele pressupõe, impõe-se “ex lege”, não carecendo de qualquer diligência adicional ou de qualquer outro despacho nesse sentido. É claro que se as acções em causa forem de apensar, por estarem verificados os requisitos para esse efeito exigidos pelo art.º 85.º, n.º 2, cumprirá ao juiz requisitá-las com vista à respectiva remessa e apensação aos autos de insolvência. Mas essa requisição não é, ela própria, pressuposto da suspensão das execuções que se encontram nas referidas condições, consubstanciando, apenas, o acto idóneo a que processos que estão sob a alçada de outro Tribunal ou de outra entidade, sejam remetidos ao Tribunal da insolvência, para a esta serem apensos.

É com tudo o exposto que se deve harmonizar o que se preceitua no n.º 2 do art.º 149º do CIRE, de acordo com o qual «…Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido.».

Reportando-se a alínea a) do n.º 1 do mencionado art.º 149º à apreensão de bens integrantes da massa, ainda que os mesmos tenham sido arrestados, penhorados ou detidos, seja em que processo for, não se vê como não entender o n.º 2 desse mesmo artigo como aplicável, também, à venda que tenha tido lugar em tais processos.

O pagamento a que se reporta o nº 2 deste art.º 149º, quando reportado à acção executiva, é aquele que é efectuado por força dos bens ou direitos apreendidos na execução e que satisfaz (total ou parcialmente), o crédito exequendo, podendo ser feito pela entrega de dinheiro, pela adjudicação dos bens penhorados, pela consignação dos seus rendimentos ou pelo produto da respectiva venda.

Coerentemente com o preceituado nos citados preceitos legais, o art.º 870º do CPC, possibilita, preventivamente, para impedir os pagamentos em execução pendente - obstando, assim, designadamente, a que o produto da venda de bens pertencentes ao devedor seja eximido à apreensão imposta por uma futura declaração de insolvência deste -, que um credor do executado obtenha a suspensão de execução, mostrando, apenas, que contra este foi requerida a insolvência.

Do exposto resulta, pois, que conhecida a declaração de insolvência do executado e ainda que se hajam realizado, anteriormente a esta, diligências tendentes ao pagamento do crédito exequendo e/ou dos créditos dos reclamantes (v.g., a venda executiva), não é possível prosseguir tais diligências para efectivar esse pagamento (art.º 88º, nº 1, do CIRE), pelos montantes dos depósitos que na execução, em princípio, estariam afectos a esse escopo - designadamente, os provenientes da penhora de créditos, ou da venda de outros direitos ou bens penhorados -, montantes esses que integram a massa insolvente, nos termos do art.º 149, nº 2, do CIRE.[6]

O entendimento que se vem expondo está, aliás, em consonância, com jurisprudência proferida sob a égide de legislação pretérita equivalente àquela que ora se analisou (v.g., art.º 1198, n.º 3, do CPC).

Assim, escreveu-se no Acórdão do STJ de 26/11/1980 (in BMJ n.º 301, págs. 384 e ss., em especial, pág. 386): «…sendo a falência um processo de liquidação universal ou de liquidação em beneficio dos credores, no qual, sem consideração pela garantia da penhora, é feita uma graduação geral para os bens da massa falida, apenas se respeitando os direitos reais de garantia (artigo 1233.º n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil), terão de estar em presença todos os elementos activos e passivos da massa, não seria de permitir que liquidações parciais e antecipadas tossem susceptíveis de defraudar os interesses dos credores.

O facto de já se ter procedido a venda dos bens quando a falência foi declarada não altera este regime. O produto do preço dos bens vendidos é um valor a liquidar e a adjudicar aos credores do exequente, não um valor que tivesse passado ao património destes…».

Em sentido semelhante, fazendo apelo, aliás, à doutrina do citado Acórdão do STJ, decidiu a Relação de Évora, no Acórdão de 09/06/1983, publicado na Col. Jur., Ano VIII, Tomo III, pág. 320.

Penhorado um crédito, nos termos do art.º 856º do CPC, cumpre ao devedor que o não conteste, de harmonia com o disposto no art.º 860º, n.º 1, a), do mesmo código, depositar a respectiva importância em instituição de crédito à ordem do agente de execução (ou à ordem da secretaria, nos casos em que as diligências de execução sejam realizadas por oficial de justiça).

Este depósito “à ordem do agente de execução”, embora desonere o devedor do executado, não equivale ao pagamento executivo - ou seja, à satisfação do crédito exequendo por força da entrega de dinheiro ou do produto da venda dos bens penhorados, designadamente -, falta de equivalência esta que mais é evidenciada pela circunstância de, tendo lugar a fase da reclamação de créditos, não só as diligências necessárias para a realização do pagamento apenas poderem ocorrer depois de findo o prazo para a reclamação (873, nº 1), como, também, pelo facto de a satisfação do crédito do exequente, pelo montante que se encontre depositado, só poder efectuada na medida em que ele não seja preterido por outro credor (874 n.º 1).

De tudo o exposto resulta que, penhorado um direito de crédito e tendo sido efectuado o depósito correspondente, nos termos do art.º 860, nº 1, do CPC, este depósito não equivale ao pagamento ao exequente, não havendo qualquer transmissão do montante depositado para o património deste, deixando, em face da declaração da insolvência do executado, de se poder efectuar através desse depósito e no âmbito da execução, o pagamento do exequente (art.ºs 88º, nº 1 e 149º do CIRE).

No caso “sub judice”, estando assente que o montante do crédito penhorado, no valor de € 42.587,67, foi colocado à ordem da agente de execução em 24/05/2010, por depósito, não se havia, ainda, em 24/05/2010, aquando da declaração da insolvência da executada, procedido ao pagamento à exequente, designadamente, pela entrega, por força daquele montante depositado, do valor correspondente à quantia exequenda, obstando essa declaração, face ao preceituado nos citados artºs. 88º, nº 1 e 149º do CIRE, a que fosse deferida a requerida entrega do montante de € 40.409,32.

Decidiu-se com acerto, pois, no despacho recorrido.

Sumário:

Conhecida a declaração de insolvência do executado e ainda que se hajam realizado, anteriormente a esta, diligências tendentes ao pagamento do crédito exequendo e/ou dos créditos dos reclamantes (v.g., a venda executiva), não é possível prosseguir tais diligências para efectivar esse pagamento através dos montantes depositados à ordem da execução - designadamente, os provenientes da penhora de créditos, ou da venda de outros direitos ou bens penhorados - e que, em princípio, estariam afectos a tal escopo (artºs 88º, nº 1 e 149º, nº 1, a) e n.º 2, do CIRE).

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, julgando a apelação improcedente, confirmar o despacho recorrido.

Custas pela Apelante.


Falcão de Magalhães (Relator)
Regina Rosa
Jaime Ferreira


[1] Código de Processo Civil, a considerar na redacção dada pelo DL n.º 226/2008, de 20 de Novembro.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, tal como todos os Acórdãos do STJ ou os respectivos sumários que adiante se citarem sem referência de publicação.
[3] Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03.
[4] Cfr. art.º 1.º do CIRE.
[5] In "O Novo Regime Português da Insolvência - Introdução" 2.ª edição, pág. 45.
[6] Cfr. Acórdão desta Relação de Coimbra (2ª Secção), de 03/02/2010 (apelação nº 1700/08.2TBPBL-C.C1), consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase” e aí sumariado assim: «Vendido, em acção executiva, um bem de um devedor/executado contra quem, posteriormente, vem a ser decretada insolvência, o produto dessa venda, colocado à ordem de um exequente, ainda não afecto ao pagamento dos credores, nem entre eles repartido, deve ser apreendido para integrar a massa insolvente, nos termos do artigo 149º, nº2 do CIRE.».
[7] Processado e revisto pelo Relator.