Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/13.6TAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 287.º E 309.º DO CPP
Sumário: I - O juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação por parte do Ministério Público.

II - No caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, o requerimento do assistente para a abertura de instrução é que define e limita o respectivo processo, o seu objecto, constituindo, substancialmente uma acusação alternativa.

III - Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, estando ferido da nulidade cominada no artigo 309.º.

IV - Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

V - A exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso ao direito e aos tribunais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No encerramento do inquérito registado sob o n.º 42/13.6TAPMS que correu termos pelos Serviços do Ministério Público de Porto de Mós, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

2. Discordando desse despacho, o denunciante A... veio requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução com os fundamentos constantes de fls. 186 a 192 que se dão aqui por reproduzidos.

3. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal, por despacho de 1/10/2014, rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

4. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o assistente A... , retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«A. O MP indeferiu o REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO com o fundamento, entre outros, de que não havia sido referido pelo ASSISTENTE qual o regime provisório de responsabilidades parentais vigentes e a data em que havia sido proferido.

B. argumento desde já se refuta, pois que refere expressamente o requerimento que o regime de regulação das responsabilidades parentais é junto em anexo ao requerimento.

C. Na fase dos autos não deveria sequer ser necessário fazer a junção doregime vigente, pois que no âmbito da queixa-crime os OPC e MP têm o dever, no âmbito da obrigatoriedade da investigação e recolha de prova/indícios do crime denunciado, segundo o princípio do inquisitório e da oficialidade, oficiar junto do Tribunal de Família e Menores competente informação sobre o estado dos autos e certidão, bem como cópia da Ata de Conferência de Pais.

D. Em todo o caso, ainda que não houvesse regulação das responsabilidades parentais pós separação, sempre vigoraria o art.º 1901.º e 1778.º A CC, que nunca excluiriam o art.º 249.º CP.

E. Do REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO revela-se clara a exposição dos factos, veja-se:

o Existência de regulação provisória das responsabilidades parentais;

o Exercício conjunto da responsabilidade parentais, segundo a qual, as questões de particular importância têm de ser tomadas em conjunto, de comum acordo, por ambos os progenitores;

o Regime metade dos períodos de férias do menor;

o A identificação do menor consta já queixa-crime e do regime de responsabilidades parentais anexa ao REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO,

o Reiteradamente, e de forma injustificada, tem impedido quer, os contactos do pai, aqui ASSISTENTE, com o menor, quer impedido as visitas e convivência familiar.

F. O tipo legal de crime previsto no art.º 249.º CP, no seu n.º 1/a) criminaliza o acto de subtrair menor e, na sua al. c) o acto de modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento.

G. O comportamento criminalizado pelo art.º 249.º CP é, além da violação do direito fundamental a convivência familiar, plasmado no art.º 36.º/6CRP, através do incumprimento do “...regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais...”, por meio de recusa na entrega, atraso ou significativa obstaculização das visitas, também, expressamente, o chamado rapto parental.

H. Veja-se que o art.º 36.º/6 CRP, refere expressamente que “...os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial...”.

I. O direito à convivência familiar é o valor jurídico protegido pela norma constitucional e pelas normas de direito dispositivo como elemento fundamental das relações parentais/filiais, constituindo o superior interesse da criança o princípio basilar do direito de família e das crianças pelo qual se deve reger a actuação parental e judicial.

J. Desde a Lei 61/2008, de 31.10, que se privilegiou o acautelamento e salvaguarda do exercício de uma co-parentalidade positiva, com vista ao superior interesse da criança e ao cumprimento do direito a convivência familiar com consagração constitucional.

K. A família entendida como um dos pilares da sociedade e como instituto de interesse público motivou a criminalização da subtracção de menor, quer na sua vertente de rapto parental, objecto de convenções internacionais, tais como a convenção de Haia de 1980, e a Convenção Interamericana.

L. Actualmente, não perspectivada a luz do guardião/detentor da residência, mas à luz do direito a convivência familiar.

M. No caso dos autos, porque reiterado e injustificado o comportamento da progenitora em deslocar geograficamente o menor, em clara violação do exercício conjunto das responsabilidades parentais, tratando-se que questão de particular importância, quer ao obstaculizar e impedir por largo tempo os contactos e convivência familiar, temos verificados os pressupostos objectivos do tipo legal de crime.

N. Quanto aos pressupostos subjectivos, o dolo dirigir-se-á directamente ao progenitor, aqui ASSISTENTE, no intuito de o privar do exercício da parentalidade, subtraindo-lhe o direito a convivência familiar e, em relação ao menor verificar-se-á dolo necessário ou pelo menos eventual, uma vez que a progenitora sabe não ser licito nem legitimo privar os filhos da convivência com qualquer dos seus progenitores e restante família alargada, como resulta do art.º 1778.ºA, 1901.º e 1906.º/1/5/6/7 CC e 249.º CP, e, ainda assim, conformou-se com o resultado.

O. A progenitora agiu de forma arbitrária e sem consentimento do progenitor pai para a deslocação do filho menor para o estrangeiro, e depois privar a convivência paterno-filial, revela claramente desrespeito pela instituição familiar e superior interesse do menor, promovendo a desvinculação afectiva do menor com o pai.

P. Revela ainda agir de forma premeditada visando criar uma situação de facto na vida do menor, levando a que este não mais esteja com o pai ou rejeite o seu contacto.

Q. Estão verificados todos os pressupostos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, bastantes em ordem a submeter o caso a julgamento, sob pena de descredibilizar a justiça e premiar a impunidade.

R. A não subsunção do caso a fase de instrução e julgamento corresponderia uma denegação da justiça, nos termos do art.º 20.º/1/4/5 e art.º 36.º/6CRP.»

5. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência com a consequente manutenção da decisão recorrida.

6. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
7.Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.

8. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II - Fundamentação

1.A decisão recorrida (transcrição):

«Como é consabido, a actividade do juiz em sede de instrução está sempre balizada pelas razões de facto e de direito alegadas no requerimento de abertura.

Ora, se o que se contesta é uma acusação ou a decisão de acusar, o balizamento, o objecto processual, obtém-se do cotejo desta com as razões de discordância do requerente; se o requerente não se conforma com a decisão de arquivar, então incumbe ao requerente produzir no seu libelo introdutório todos os elementos constitutivos da acusação que pretende ver reproduzida num despacho de pronúncia.

Assim, impõe o n.º 2 do artigo 287º do C. P. Penal que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contenha os requisitos exigidos para a acusação nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do mesmo código, isto é, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e a indicação das disposições legais aplicáveis.

O que vale por dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente deve constituir substancialmente uma acusação, com todos os requisitos exigidos para esta, só podendo a decisão instrutória recair sobre os factos indicados, em ordem a subsumi-los nas disposições legais igualmente indicadas. Neste sentido, vejam-se Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, p. 136 e ss.; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª Ed., 1999, p. 544 e, na jurisprudência, os seguintes acórdãos, todos disponíveis na internet em www.dgsi.pt:

DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

- de 22/10/2003 – Relator Silva Flor (e arestos aí citados);

DA RELAÇÃO DE LISBOA

- de 27/01/2004 (Relatora Filomena Lima);

- de 30/03/2004 (Relator Pereira da Rocha);

DA RELAÇÃO DO PORTO

- de 14/01/2004 (Relator Manuel Braz);

- de 14/01/2004 (Relator Marques Salgueiro);

- de 21/01/2004 (Relator Marques Salgueiro);

- de 24/03/2004 (Relator Dias Cabral);

- de 31/03/2004 (Relator Torres Vouga);

- de 05/05/2004 (Relator Pinto Monteiro);

- de 12/05/2004 (Relator Manuel Braz);

- de 26/05/2004 (Relator Fernando Monterroso);

- de 16/06/2004 (Relator Brízida Martins);

- de 23/06/2004 (Relator Pinto Monteiro);

- de 08/07/2004 (Relator Dias Cabral);

- de 22/09/2004 (Relator António Gama);

- de 03/11/2004 (Relator Borges Martins);

- de 15/12/2004 (Relator Luís Gominho);

- de 05/01/2005 (Relator Coelho Vieira);

- de 12/01/2005 (Relator Brízida Martins);

DA RELAÇÃO DE COIMBRA

- de 05/11/2003 (Relator Serafim Alexandre);

- de 24/11/2004 (Relator Serafim Alexandre);

DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

- de 17/05/2004 (Relator Miguez Garcia);

- de 17/05/2004 (Relator Miguez Garcia);

- de 27/09/2004 (Relator Heitor Gonçalves);

DA RELAÇÃO DE ÉVORA

- de 27/01/2004 (Relator Ribeiro Cardoso);

- de 25/05/2004 (Relator Alberto Borges).

Deste modo, tal como sucede para a acusação em sede de julgamento, a demonstração (aqui apenas indiciária) dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução do assistente, terão que, por si sós, permitir a emissão de uma decisão desfavorável ao arguido (neste caso de pronúncia).

Analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente A... a fls. 186 a 192, verifica-se que não são descritos os factos integradores do tipo legal do crime de subtracção de menor que o assistente imputa a B... . Note-se que o assistente não indica sequer quem é o menor em causa, não o identifica, assim como não descreve conretamente o regime fixado para as responsabilidades parentais do mesmo, não dizendo sequer quando foi proferida tal decisão ou em que processo. Também não descreve factos integradores de conduta dolosa de B... , quando está em causa crime de comissão exclusivamente a título de dolo (artigos 13º e 249º do . Penal).

Em suma, o assistente dispensa-se de formular a “acusação alternativa” que é suposto servir de base a um despacho de pronúncia. Consequentemente, qualquer pronúncia estaria viciada de nulidade, atento o disposto no n.º 1 do artigo 309º do C. P. Penal. O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente não cumpre pois o mínimo imposto pelas disposições conjugadas dos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 287º, n.º 2, do C. P. Penal, restando concluir ser tal requerimento legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento, inexistindo fundamento legal para prévio convite ao aperfeiçoamento do mesmo.

Tal entendimento, já sustentado pela esmagadora maioria da jurisprudência, de que é exemplo a acima citada, veio a ser consagrado como jurisprudência obrigatória através do Acórdão n.º 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR-Iª-Série-A, de 04/11/2005, nos seguintes termos:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Termos em que, face ao exposto, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente A... a fls. 186 a 192, por inadmissibilidade legal da instrução, ordenando o oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas.

Notifique.»

                                          *

2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal([1])que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso([2]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso([3]).

No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se deve ser admitido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento – artigo 286.º, n.º 1.

Trata-se de uma fase processual facultativa que está dependente de requerimento.

O artigo 287.º, depois de referir, na alínea b) do seu n.º 1, que a abertura de instrução é requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, explicita que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c).”.

O artigo 283.º, n.º 3 refere que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o arguido neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis – alíneas b) e c).

Assim, embora não esteja sujeito a formalidades especiais (referência que entendemos dirigida às questões de pura forma, como v. g. o uso de fórmulas rituais ou a dedução dos factos por artigos), o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve observar três condições essenciais:

a) sintetizar as razões da discordância da acusação – possibilitando, nesta perspectiva, a fiscalização judicial da actividade do Ministério Público no inquérito;

b) narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias – é ele que vai delimitar o objecto do processo;

c) especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução([4]).

Na verdade, o juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelo que tenha sido deduzida acusação formal ou que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação por parte do Ministério Público.

No caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, o requerimento do assistente para a abertura de instrução é que define e limita o respectivo processo, o seu objecto, constituindo, substancialmente uma acusação alternativa.

Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, estando ferido da nulidade cominada no artigo 309.º.

Tal mais não é de que uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

Como salienta Souto de Moura “[s]e o assistente requer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do MP, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática.

Teríamos um processo já na fase da instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório.”([5]).

A este respeito refere Germano Marques da Silva que “o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que se considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público”([6]).

Assim também o tem entendido a jurisprudência, mormente do Supremo Tribunal, ao decidir que “o requerimento para abertura da instrução requerida pelo assistente deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada (ex vi parte final do n.º 2 do art. 287.º e als. b) e c) do n.º 2 do art. 283.º do CPP), o que significa que, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena”([7]).

Aliás, a exigência de que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente contenha, nomeadamente por força das garantias de defesa e da estrutura acusatória do processo, os elementos mencionados nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º leva a que tal menção não possa ser feita por remissão para elementos constantes dos autos.

Com efeito, face à invocação da inconstitucionalidade da norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, o Tribunal Constitucional expendeu, a propósito, as seguintes considerações:

«Esse requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.

A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.

Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos.

A resposta é negativa.

Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»([8]).

No caso vertente, o assistente alega as razões de facto pelas quais discorda do despacho de arquivamento proferido nos autos, mas não especifica, nem explicita, em concreto, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito que imputa à arguida, o lugar da prática dos factos, o tempo, a motivação da arguida.

Aliás, como salienta a decisão recorrida, o assistente não indica sequer quem é a menor em causa, não a identifica, sendo que, como vimos, esta identificação não é passível de ser feita por remissão para elementos constantes dos autos.

Ao requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente falta, portanto, a narração circunstanciada dos factos a imputar à arguida, assim como os elementos subjectivos do tipo legal de crime de subtracção de menor imputado à arguida.

Não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor([9]); ao juiz compete investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento de abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º. – vide artigo 288.º, n.º 4.

Na verdade, à instrução compete comprovar os factos apresentados, analisar condutas e valorizações jurídicas imputadas a fim de submeter o arguido a julgamento, sendo que ao assistente cabia apresentar requerimento tendente à formulação de uma decisão, quando é certo que, no seu requerimento para a abertura de instrução, se limitou a indicar os motivos de discordância do despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento dos autos, sem narrar e imputar factos ilícitos penais que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena.

O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente não tem as características que a acusação devia ter, não se apresenta como uma acusação em sentido material, não respeita as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287.º, n.º 2, por nele faltarem quer a narração lógica e cronológica, ainda que sintética, dos factos constitutivos do crime imputado à arguida, quer a descrição dos elementos subjectivos do tipo de crime em causa.

Uma vez que o assistente no seu requerimento para a abertura de instrução não deu cumprimento às exigências de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º, na remissão para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), tal requerimento tinha forçosamente que ser rejeitado, como consta da decisão recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 3, sem que houvesse lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar ou completar o seu requerimento de abertura de instrução porque o convite é concebido para o processo de partes, como o processo civil, onde se dirimem interesses privados, enquanto o processo penal tem estrutura acusatória onde se prosseguem interesses públicos.

Aliás, de harmonia com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador n.º 7/2005, de 12/5/2005, «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»([10]).

Improcede, portanto, o recurso interposto.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

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Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigo 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III).

                                          *

(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)

                                          *

Coimbra, 18 de Março de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2]- Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ªedição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.
[3]- Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.
[4]- Acórdão da Relação do Porto de 9/12/2004, disponível em www.dgsi.pt/jrtp.
[5]- Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, página 120.
[6]- Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 141.
[7]- Acórdão do STJ de 25/10/2006, Proc. 3526/06-3ª Secção, in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Número 106, Outubro de 2006, página 49; No mesmo sentido ao nível da segunda instância cfr.,entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 15/12/2010 e 6/7/2011, da Relação de Coimbra de 6/7/2011, da Relação de Évora de 12/4/2011 e de 20/9/2011 e desta Relação de 13/3/2006 e de 27/4/2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[8]- Acórdão n.º 358/2004, de 19/5/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[9]- Acórdão da Relação de Lisboa de 20/5/1997, in CJ, Ano XII, Tomo II, página 143.
[10]- Publicado no DR, I Série – A, de 4/11/2005.