Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1847/18.7T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: FORÇA PROBATÓRIA PLENA
RELAÇÕES INTER-PARTES
TERCEIROS
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 376º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: I – A força probatória plena estabelecida no artigo 376.º, n.º 2, do Código Civil, apenas se reporta inter-partes, ou seja nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros.
II – A declaração de ter recebido a totalidade do preço de venda do imóvel proferida pela promitente vendedora em aditamento ao contrato promessa de compra e venda celebrado não pode valer, em sede de processo de reclamação de créditos, como confissão oponível quer à Massa Insolvente quer aos Credores da Massa, que não são parte negocial contrária do confitente, mas terceiros.
Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[i]:

I - A)- No Juízo de Execução de Ansião (Juiz 1), nos autos de reclamação de créditos apensos à acção executiva nº 1847/18.7T8PBL instaurada pela C..., S.A. contra A..., mulher, M..., e “C..., Lda.”, vários credores vieram reclamar os seus créditos, entre eles se contando  G... e E..., que reclamaram um crédito sobre os executados A... e mulher, M..., respeitante a dívida destes, enquanto mutuários, para com eles, enquanto mutuantes, resultante de um contrato mútuo com hipoteca voluntária que incidiu sobre imóveis penhorados nos autos, mútuo esse alegadamente celebrado em 17-08-2011, por contrato particular autenticado, mediante o qual foi emprestada, por tais reclamantes, aos referidos executados, a quantia de 40.000,00 euros.

A Exequente impugnou esse crédito alegando, em síntese, desconhecer os factos alegados quanta a ele, sem ter a obrigação de os conhecer.

Para além disso, adiantou, que, considerando que o invocado contrato terá sido celebrado em 17/08/2011 e que se os Executados nunca liquidaram qualquer valor de tal crédito, apenas se poderá concluir que a dívida em questão já se encontra prescrita, nos termos da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil.

Os reclamantes responderam, reafirmando a existência do crédito em causa e pugnando pela improcedência da prescrição.

B) – Por sentença de 9/12/2020 consignaram-se os créditos reclamados que se tinham por verificados e graduaram-se os mesmos segundo as garantias que se lhes reconheceram, deles se excluindo o reclamado por G... e E..., que se julgou não verificado e, por isso, não reconhecido, já que se entendeu o seguinte:

«[…] recaía sobre os credores Reclamantes G... e E... o ónus de alegar e provar, por qualquer meio, os factos constitutivos do direito de crédito que vem reclamar, o que não fizeram, em face do que foi considerado como não provado que G... e mulher E... concederam aos Reclamados um empréstimo de 40 mil euros, que o empréstimo foi integralmente utilizado pelos Reclamados e que os Reclamados não pagaram qualquer quantia. […]».


*

II - Os Reclamantes G... e E... interpuseram recurso dessa sentença, tendo, nas alegações de recurso que ofereceram apresentado as seguintes conclusões:

...

Terminaram requerendo que a decisão recorrida fosse revogada e consequentemente fosse reconhecido o crédito reclamado e a fosse reformulada a sentença de verificação e graduação de créditos, de acordo com a garantia real que invocaram, com procedência das “conclusões” apresentadas.


*
III - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1 - ambos do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, doravante designado com a sigla NCPC, para o distinguir daquele que o precedeu e que se passará a referir como CPC.PC -, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”[ii] e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.

Assim, para além do atinente à omissão de pronúncia invocada, a questão a solucionar consiste em saber se foi acertado não reconhecer o crédito reclamado pelo ora Apelantes e, em caso negativo, isto é, se for de concluir pela existência desse crédito, saber se o mesmo goza da garantia que se invoca e colocá-lo no lugar a que legalmente tem direito em confronto com os restantes créditos reclamados e graduados na sentença impugnada.


*

IV - A) – Na decisão proferida sobre a matéria de facto, consignou-se na sentença recorrida:

a. Factos provados:

i. Nos presentes autos foram penhorados os seguintes prédios:

1. Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 1ª CRPredial de Leiria sob a ficha n.º ... da freguesia de ..., sobre o qual incide:

a. Hipoteca registada pela AP n.º ... de 2014/09/05 (resultante da conversão de penhora em hipoteca no âmbito da ação executiva n.º ..., cfr. averb. Ap ... de 2016/07/14) para garantia do montante máximo, correspondente ao capital de 180.000,00 euros, a favor do credor Reclamante M...;

b. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/04 a favor do Exequente C..., S.A.;

c. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/05 a favor do credor Reclamante C..., S.A. (processo n.º ...);

2. Prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 2ª CRPredial de Leiria sob a ficha n.º ... da freguesia de ..., sobre o qual incide:

a. Hipoteca voluntária registada pela AP n.º ... de 2011/08/24 a favor do credor Reclamante E... e de G..., para garantia do montante máximo de 49.900,00 euros, sendo o capital de 40.000,00 euros, juros à taxa de 7% e despesas de 1.500,00 euros.

b. Hipoteca registada pela AP n.º ... de 2014/09/05 (resultante da conversão de penhora em hipoteca no âmbito da ação executiva n.º ..., cfr. averb. Ap ... de 2016/07/14) para garantia do montante máximo, correspondente ao capital de 180.000,00 euros, a favor do credor Reclamante M...;

c. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/04 a favor do Exequente C..., S.A.;

d. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/05 a favor do credor Reclamante C..., S.A. (processo n.º ...);

3. Prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 2ª CRPredial de Leiria sob a ficha n.º ... da freguesia de ..., sobre o qual incide:

a. Hipoteca voluntária registada pela AP n.º ... de 2011/08/24 a favor do credor Reclamante E... e de G..., para garantia do montante máximo de 49.900,00 euros, sendo o capital de 40.000,00 euros, juros à taxa de 7% e despesas de 1.500,00 euros.

b. Hipoteca registada pela AP n.º ... de 2014/09/05 (resultante da conversão de penhora em hipoteca no âmbito da ação executiva n.º ..., cfr. averb. Ap ... de 2016/07/14) para garantia do montante máximo, correspondente ao capital de 180.000,00 euros, a favor do credor Reclamante M...;

c. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/04 a favor do Exequente C..., S.A.;

d. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/05 a favor do credor Reclamante C..., S.A. (processo n.º ...);

4. Prédio misto inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito sob na 1ª CRPredial de Leiria sob a ficha n.º ... da freguesia de ... sobre o qual incide:

a. Hipoteca registada pela AP n.º ... de 2014/09/05 (resultante da conversão de penhora em hipoteca no âmbito da ação executiva n.º ..., cfr. averb. Ap ... de 2016/07/14) para garantia do montante máximo, correspondente ao capital de 180.000,00 euros, a favor do credor Reclamante M...;

b. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/04 a favor do Exequente C..., S.A.;

5. Fração autónoma designada pela letra D descrita na 2ª CRP de Leiria sob a ficha ... da freguesia de ... e inscrito na matriz sob o artigo ... sobre a qual incide:

a. Penhora registada pela AP n.º ... de 2019/12/04 a favor do Exequente C..., S.A.;

6. Prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na 2ª CRPredial de Leiria sob a ficha n.º ... da freguesia de ..., sobre o qual incide:

...

Crédito reclamado pela Fazenda Nacional representada pelo Ministério Publico

ii. O credor Reclamante Fazenda Nacional é titular dos seguintes créditos de IMI do ano de 2016 (2.ª T):

1. Sobre o prédio referido em a), i), 1) o valor de 0,10 euros;

2. Sobre o prédio referido em a), i), 2) o valor de 42,89 euros;

3. Sobre o prédio referido em a), i), 3) o valor de 19,96 euros;

4. Sobre o prédio referido em a), i), 4) o valor de 5,39 euros e 66,90 euros;

5. Sobre o prédio referido em a), i), 5) o valor de 53,58 euros;

6. Sobre o prédio referido em a), i), 6) o valor de 0,01 euros;

7. Sobre os referidos valores incidem juros.

8. O credor Reclamante Fazenda Nacional é titular dos seguintes créditos de IMI do ano de 2016 (3.ª T):

9. Sobre o prédio referido em a), i), 1) o valor de 0,10 euros;

10. Sobre o prédio referido em a), i), 2) o valor de 42,50 euros;

11. Sobre o prédio referido em a), i), 3) o valor de 19,77 euros;

12. Sobre o prédio referido em a), i), 4) o valor de 5,34 euros e 66,28 euros;

13. Sobre o prédio referido em a), i), 5) o valor de 53,09 euros;

14. Sobre o prédio referido em a), i), 6) o valor de 0,01 euros;

15. Sobre os referidos valores incidem juros.

Crédito reclamado por G... e E...

iii. Por contrato particular autenticado celebrado em 17-08-2011, os Reclamantes G... e mulher E... declararam conceder aos Reclamados um empréstimo no valor de 40.000,00 euros e declararam constituir, para garantia do capital, juros e despesas, as hipotecas referidas em a), i), n.º 2, al. a) e n.º 3, al. a)

Crédito reclamado por M...

iv. O Reclamante instaurou contra, para além do mais, os Executados, o processo executivo n.º ... que correu seus termos na Comarca de Leiria, 2.ª Secção de Execução – J1, para pagamento da quantia de 209.711,47 €, acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento.

v. Nos autos de embargos de executado apensos àquele processo, foi lavrada, no dia 04.05.2015, transação, homologada por sentença, nos seguintes termos:

1. Os executados reconhecem dever a quantia exequenda;

2. Os executados obrigam-se solidariamente a pagar ao exe- quente a quantia de 180.000,00 Euros, em 60 prestações mensais, a pagar no escritório do Mandatário de exequente até ao dia 25 de cada mês, com início no mês de janeiro de 2016;

3. Logo que exista atraso no pagamento de três prestações em divida seguidas ou interpoladas em relação aos prazos estabelecidos, o exequente poderá requerer o prosseguimento da execução, e nesse caso exigir a totalidade da divida exequenda com dedução das quantias que, entretanto tenham sido pagas ao abrigo do presente acordo;

4. Face ao presente acordo, requerem a suspensão da presente execução até ao final do mês de janeiro de 2021, com a consequente conversão em hipoteca dos bens penhorados;

5. A conta das despesas e honorários do Agente de Execução relativos ao processo executivo ficam a cargo dos executados.

vi. Os Executados não procederam ao pagamento da nota de honorários devida ao Senhor Agente de Execução no valor de 9.235,93.

vii. A quantia acordada os Reclamados apenas procederam ao pagamento da quantia de 45.264,07 euros.

viii. Até ao capital de 180.000,00 euros o crédito goza das hipotecas referidas em a), i), n.º 1, al. a), n.º 2, al. b), n.º 3, al. b), n.º 4, al. a) e n.º 6, al. a).

Crédito reclamado pela C..., S.A.

ix. O credor reclamante intentou ação executiva contra os Reclamados que corre termos sob o n.º ... e onde reclamada o valor de 45.765,27 euros de capital, juros de 20 de agosto de 2012 a 19 de junho de 2020 de 30.912,28 euros e comissões de 3.051,03 euros.

x. Na referida execução foram concretizadas as penhoras referidas em a), i), n.º 1, al. c), n.º 2, al. d), n.º 3, al. d).

b. Factos não provados:

i. G... e mulher E... concederam aos Reclamados um empréstimo de 40 mil euros.

ii. O empréstimo foi integralmente utilizado pelos Reclamados.

iii. Os Reclamados não pagaram qualquer quantia.

iv. O credor Reclamante M... procedeu ao pagamento da nota de honorários e despesas do senhor Agente de Execução.».


*

B) – Preliminarmente dir-se-á que não ocorre a apontada nulidade de sentença, da omissão de pronúncia quanto à alegada prescrição do crédito dos ora Apelantes, porquanto tendo o Tribunal “a quo” julgado não verificado e, por isso, não reconhecido, tal crédito, porquanto considerou como não provado o empréstimo de onde o mesmo decorreria, ficou, naturalmente, prejudicada a abordagem da questão da prescrição desse mesmo crédito.
A sanção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do NCPC (alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do anterior CPC), para a omissão de pronúncia, tem a ver com a inobservância do que se preceitua no n.º 2 do artº 608º do mesmo Código (nº 2 do artº 660º do pretérito CPC), na parte que impõe ao juiz o dever de - para além de conhecer daquelas questões que é seu mister julgar oficiosamente -, “...resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras...”.
Assim, não enferma de omissão de pronúncia a decisão que não conhece de determinadas questões cuja apreciação se queda prejudicada pela solução que previamente se deu a outra questão.[iii]
Aliás, embora no âmbito das correspondentes normas da pretérita legislação processual civil, foi entendimento constante, quer na doutrina[iv], quer nos Tribunais Superiores[v], que a omissão de pronúncia não se verificava quanto a questões cuja não apreciação fora ditada pela circunstância do respectivo conhecimento estar prejudicado pela solução dada a outras questões. Era o que resultava do trecho “questões que devesse apreciar” constante da alínea d) do n.º 1, do art.º 668º do CPC, em conjugação com o disposto no n.º 2 do art.º 660º.

Improcede, pois, a invocada nulidade de sentença.

Os Apelantes alicerçam a procedência da sua reclamação e, consequentemente, do presente recurso, no entendimento de que estando o mútuo formalizado pelo documento autenticado consubstanciador do mesmo, documento esse que, devido à sua força probatória plena, leva a que gozem da presunção legal do seu direito (art. 350º, nº 1 C. Civil), à Exequente, embora que terceira relativamente ao contrato em causa, para validamente o colocar em causa, não bastava impugnar, por desconhecimento, os factos alegados quanto a esse mútuo, só podendo ilidir a apontada presunção, mediante prova em contrário (350º, nº 2, do CC), mais precisamente, invocando e provando factos fundamentadores da invalidade do negócio jurídico titulado.

Para que se entenda melhor, transcrevem-se os trechos da alegação dos Recorrentes que transmitem o seu entendimento quanto à matéria:

«[…] de tal documento consta ainda uma declaração confessória dos aqui Executados – que, na sequência do empréstimo declarado, se confessaram devedores aos aqui credores da quantia de 40.000,00 € – declaração esta que, tendo sido efetuada perante a parte contrária, se encontra dotada de força probatória plena contra o confitente (nº 2 do artigo 358º CC).

E que tal confissão ocorreu – no sentido de que a declaração confessória foi proferida pelos Executados – tem de ter-se por plenamente provado, por constar de documento autenticado.

(…)

atestando o documento uma vontade negocial, a mesma apenas poderá ser posta em causa mediante a invocação de alguma das causas que invalidam as declarações de vontade (simulação ou vícios de vontade – erro, dolo ou coação).

(…)

Tal declaração confessória, porque inserta num documento autêntico só poderá ser impugnada pelo confitente por via da falsidade (questionando-se o facto de a mesma ter sido proferida) ou pela prova da falta ou vícios de vontade (questionando-se a sua veracidade) nº1 do artigo 359º.

(…)

No caso dos autos, temos que o crédito reclamado foi impugnado, não pelos executados , mas pelo exequente, terceiro, não interveniente no negócio, formalizado por documento particular autenticado.

(…)

José lebre de Freitas (in A Confissão, pags. 332 a 335) refere ser a confissão eficaz em face de terceiros com interesse subordinado ao do confitente, seja essa subordinação jurídica (é o caso da fiança, ou da hipoteca constituída por um terceiro, ou de um sub-adquirente) ou prática (é o caso dos terceiros juridicamente indiferentes, como sejam os credores do confitente). Já será ineficaz em face de terceiros com um interesse que seja paralelo ao confitente (relações com multiplicidade de interessados e de conteúdos semelhantes), assim como em face de terceiros titulares dum interesse concorrente com o dele (relações com multiplicidade de interessados com conteúdo único). Reconhece ser seguro que os terceiros com interesse independente e incompatível não devem ser prejudicados pelos efeitos da confissão.

A confissão de dívida constante do documento autêntico junto pelos credores reclamantes faz prova plena contra o confitente, dispensando o beneficiado de se socorrer de qualquer outra prova.

Contudo, e embora tal confissão seja eficaz perante um terceiro, a este é-lhe permitida a impugnação da sua veracidade mediante a mera prova do contrário, nos termos do artigo 347º do Código Civil. […]».

Ora, no caso sub judice, sendo a Exequente terceira relativamente ao contrato de mútuo alegadamente firmado entre os executados A..., mulher, M..., enquanto mutuários e os Reclamantes G... e E..., enquanto mutuantes, discordamos que a declaração confessória daqueles seus putativos devedores, feita no documento particular autenticado onde foi corporizada aquela declaração, valha como prova plena quanto à Exequente, obrigando-a, para que, validamente, impugne tal declaração aposta nesse documento, a alegar e provar, que a mesma não é verdadeira.

Sumariou-se no Acórdão do STJ de 29/10/2019 (Revista nº 1012/15.5T8VRL-AU.G1.S2): «[…] A força probatória plena estabelecida no artigo 376.º, n.º 2, do Código Civil, apenas se reporta inter-partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros.11

V – A declaração de ter recebido a totalidade do preço de venda do imóvel proferida pela promitente vendedora em aditamento ao contrato promessa de compra e venda celebrado não pode valer, em sede de processo de reclamação de créditos, como confissão oponível quer à Massa Insolvente quer aos Credores da Massa, que não são parte negocial contrária do confitente, mas terceiros. […]». (o sublinhado é nosso).

É este entendimento, aqui aplicável, “mutatis mutantis”, que se entende correcto, e que no Acórdão de 29/10/2019 supra citado se explicou assim[vi]:

«[…] Dispõe o artigo 376.º, do Código Civil, que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (n.º1), estatuindo o seu n.º2 que “Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.”.

Relativamente ao alcance deste preceito, particularmente do seu n.º 2, como refere o acórdão deste tribunal de 12-02-2019 (882/14.9TJVNF-H.G1.S), mostra-se nele estabelecido o mesmo princípio que está na base do instituto da confissão.

Com efeito, a confissão repousa na regra da experiência segundo a qual ninguém afirma um facto contrário ao seu interesse se ele não for verdadeiro, mas a força vinculativa da mesma só regula para as relações entre o confitente e a pessoa a quem é dirigida a confissão (a parte contrária de que fala o art. 352.º do CCivil), posto que esta última saia efetivamente favorecida. Em relação a terceiros não há, por definição, qualquer confissão que se lhes possa opor obrigatoriamente, pois que eles não são a parte contrária do confitente. Quanto aos terceiros apenas se concebe a confissão extrajudicial que lhes seja feita, mas neste caso é a confissão apreciada livremente pelo tribunal, como, de resto, decorre do n.º 3 do art. 358.º do CCivil[4][vii].

Por conseguinte, como considerado no acórdão recorrido, a força probatória plena estabelecida no artigo 376.º, n.º 2, do Código Civil, apenas se reporta inter-partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros.

Refere o acórdão do STJ de 12-02-2019, quanto à eficácia probatória plena inter partes: “Estes (que são todos aqueles que não são partes, sucessores ou representantes das partes no negócio jurídico em que se inserem as declarações), não participaram no ato e por isso não podem ser prejudicados pelas estipulações e declarações de vontade ou de ciência (desfavoráveis ou não) feitas pelos outorgantes, o que aliás está em linha com o princípio da relatividade dos acordos negociais (v. art. 406.º, n.º 2 do CCivil). Na realidade, e como observa Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 524, nota 1), há que distinguir entre a força probatória do documento e a eficácia do ato documentado, que nem sempre se estende a terceiros.”

Transpondo tais considerações para a situação dos autos há que concluir que relativamente ao contrato-promessa celebrado entre os Recorrentes e a sociedade declarada insolvente e, bem assim, o aditamento ao mesmo (onde além do mais esta declara que se considera integralmente paga quanto à totalidade do preço da venda do imóvel), as declarações proferidas pela promitente vendedora não podem valer nestes autos de reclamação de créditos como confissão oponível quer à Massa Insolvente quer aos Credores da Massa, que não são parte negocial contrária do confitente (promitente-vendedora), mas terceiros[5][viii]. […]».

No caso sub judice, por aplicação deste entendimento, teremos de concluir que a Exequente não tinha o ónus de alegar e provar a falta de veracidade das declarações feitas no documento autenticado que corporizou o contrato de mútuo em que não interveio, e, em particular, a declaração confessória que os ora Apelantes invocam, pelo que se tem de considerar que, não se tratando de factos pessoais, ou de que tivesse de ter conhecimento, impugnou validamente o alegado quanto ao mútuo em que os ora Recorrentes alicerçaram a respectiva reclamação.

Não infringiu, assim, a sentença, as normas legais que sustentam ter sido violadas pelo Tribunal “a quo”, v.g., as respeitantes ao direito probatório, pelo que se tem de manter a decisão proferida quanto à matéria de facto e, consequentemente, sufragar a conclusão de que não se provou o empréstimo de onde decorreria o crédito reclamado pelos ora Recorrentes, pelo que o mesmo não poderia ser julgado como reconhecido e, consequentemente, graduado.

A Apelação improcede, pois, confirmando-se a sentença recorrida.


*

V - Em face de tudo o exposto decide-se julgar a Apelação improcedente e confirmar-se a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).

12/10/2021[ix]


(Luiz José Falcão de Magalhães)

(António Domingos Pires Robalo)

(Sílvia Maria Pereira Pires)



[i] Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[ii] Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, vierem a ser citados.
[iii] Cfr. Acórdão do STJ, de 08 de Outubro de 2015, Revista nº 893/08.3TCSNT.L1.S1.
[iv] Cfr. Prof. Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório Vol. III, Almedina, 1993, págs. 142 e 143); Sr. Conselheiro Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, 1972, vol. III, pág. 247).
[v] Cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 17/02/2000, Agravo n.º 1203/99 - 2.ª Secção, com sumário consultável em Consultável em “https://www.stj.pt/?page_id=4471.
[vi] Também se transcreverão as notas de rodapé, embora que, por motivo óbvios, sem a numeração do texto original.
[vii] Acórdão do STJ citado.
[viii] No mesmo sentido cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 18-09-2018 (processo n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1): a força probatória plena (vinculativa) emergente da confissão exarada em documento particular só existe no âmbito da relação entre o declarante e o declaratário, e não também no confronto de terceiros (como, in casu, seria o caso da massa falida e dos credores). Quanto aos terceiros a declaração confessória não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente (v., neste sentido, e para além de toda uma inabarcável jurisprudência, Vaz Serra, RLJ ano 114, p. 178), acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[ix] Processado e revisto pelo Relator.