Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
181/12.0GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
Data do Acordão: 04/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE MANGUALDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 69.º DO CP
Sumário: No caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a lei não prevê qualquer possibilidade de a mesma ser cumprida de forma descontínua, designadamente aos fins-de-semana, nas férias ou durante o horário de trabalho do condenado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

No âmbito do processo sumário n.º 181/12.0GTVIS que corre termos no Tribunal Judicial de Mangualde, 1º Juízo, o arguido A... foi condenado, em 31/10/2012, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na pena de cento e vinte dias de multa, à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a multa global de seiscentos euros, assim como na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de cinco meses, tendo o arguido ficado autorizado a conduzir o veículo de matrícula 24-FL-67. De marca Iveco, durante o horário de trabalho, das 09 às 19 horas.

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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 12/11/2012, o Ministério Público, defendendo o cumprimento da pena acessória de forma seguida e contínua, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:                              

1. O perigo que a condução em estado de embriaguez desencadeia e gera só é prevenível com a efectiva execução, pelo arguido, da pena acessória de proibição de conduzir.

                2. Nos termos do artigo 69.º, do C. Penal, não é possível a condenação do arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com ressalvas, designadamente a possibilidade de condução durante os seus horário/itinerário de serviço, pelo que a interpretação feita pelo Tribunal a quo não é legalmente admissível.

                3. A proibição de conduzir, atendendo às regras de interpretação das normas, bem como à natureza e finalidade, tem que ser executada de forma contínua e sem qualquer ressalva.

                4. A circunstância do arguido, que exerce a profissão de motorista, ser condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, torna ainda mais censurável o seu comportamento.

                5. A sentença recorrida, na medida em que condenou o arguido na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de cinco meses, autorizando-se, no entanto, que o arguido conduza apenas e só no exercício da sua actividade profissional, violou o disposto no artigo 69.º, do C. Penal.

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O arguido não respondeu ao recurso.

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                O recurso foi, em 15/2/2013, admitido.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 27/2/2013, no sentido da procedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

“(…)

Factos provados:

1. No dia 23/10/2012, pelas 21 horas e 49 minutos, quando o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula JC..., foi mandado parar por um militar da GNR em funções de patrulhamento, na Rotunda Acesso CP, na localidade de Cubos, no concelho de Mangualde.

2. Submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o arguido apresentou uma TAS de 2,94 g/l de sangue, detectada pelo teste de alcoolemia que lhe foi efectuado, através do alcoolímetro “Drager”, modelo 7110 MKIII P, número ARPN 0068, devidamente homologado nos termos legais.

                3. O arguido agiu de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que conduzia aquele veículo motorizado sob a influência do álcool, com uma taxa superior à legalmente permitida e que essa conduta era, por isso, proibida e punida por lei.

                4. O arguido confessou os factos, integralmente e sem reservas.          

5. O arguido é motorista de profissão e precisa da carta de condução para trabalhar diariamente.

                6. Aufere um rendimento mensal de 450 euros.

                7. Vive com a mulher e dois filhos.

                8. Demonstrou arrependimento.

                9. Nunca respondeu ou esteve preso.

                (…)

                Fundamentação de direito:

(…)

Pena acessória:

- Deixa-se aqui consignado que, na sentença proferida oralmente (ver fls. 23/27), o Tribunal a quo tomou em consideração, quanto a esta parte da decisão, o requerimento efectuado pelo arguido (fls. 25), aceitando-o como bom, apenas com o fundamento de que o mesmo precisa da carta de condução para exercer diariamente a sua profissão.

(…)”
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III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se a pena acessória aplicada ao arguido é susceptível de permitir e autorizar que o mesmo continue a conduzir no exercício da sua actividade profissional.

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O artigo 69.º, do Código Penal, estabelece que que «É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto nos artigos 291º e 292º».

Entre o leque restrito de penas acessórias estabelecidas no Código Penal, a proibição de condução de veículos com motor assume uma importância prática fundamental na ordem jurídica nacional, de um ponto de vista preventivo, geral e especial, tendo em conta a enorme taxa de criminalidade estradal ou rodoviária que percorre o sistema penal em relação a outros tipos criminais.

Os dados estatísticos e os estudos não o escondem. Segundo o relatório «A Justiça penal, Uma reforma em avaliação», do Observatório Permanente da Justiça, CES/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2009, pg. 195 «Ao longo dos anos (2000-2008) mais de 50% da criminalidade na fase de julgamento distribui-se por 3 tipos de criminalidade agrupada: crimes contra a segurança das comunicações, crimes contra a propriedade e crimes contra a integridade física, maus tratos e infracções de regras de segurança, com clara preponderância do primeiro tipo, cujo peso relativo médio na estrutura da criminalidade nesta fase ultrapassa os 30%» (sublinhado nosso).

O que se quer sublinhar é que a criminalidade rodoviária, seja no âmbito dos crimes relativos à condução sob a influência de álcool, condução perigosa de veículo, condução sem carta, seja em situações com consequências mais graves, como é o caso do homicídio negligente, têm um peso desproporcionado no âmbito do leque de crimes que ocupam o sistema penal e exigem, por isso, uma percepção especifica por parte de quem aplica as leis, nomeadamente em termos de valoração da prevenção.

Na concretização da medida concreta que deve ser estabelecida num determinado caso concreto, face à ampla moldura da pena, o Tribunal deve seguir o critério normativo fixado no Código Penal para a determinação concreta da pena a que se alude no artigo 72º do mesmo Código.

Não existe qualquer possibilidade de arbítrio na fixação do quantitativo da pena acessória, mas sim um verdadeiro critério normativo tem que presidir à determinação concreta da medida da pena acessória.

Importa, no entanto, constatar que, não se prescindindo da culpa na apreciação dos critérios que servem de base à fixação da pena (porque é uma verdadeira pena, embora acessória), são razões de prevenção geral de intimidação que estão em causa, fundamentalmente, na ratio daquela pena acessória. Ou seja, é desejado, fundamentalmente, evitar-se que alguém que comete os crimes «rodoviários» puníveis nos artigos 291º ou 292º, ou os restantes a que aludem as alíneas b) e c) do artigo 69º, do Código Penal, volte exercer a condução de veículos com motor durante um determinado período.

O artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal (redacção introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho), estatui que «No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo se não encontrar já apreendido no processo.»

O artigo 500.º, n.º3, do C.P.P. repete esta disposição, acrescentando o n.º 4 que «A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.».

Nem estas normas legais, nem qualquer outra, permitem o cumprimento da proibição de conduzir veículos motorizados de forma descontínua, designadamente aos fins-de-semana, nas férias ou durante o horário de trabalho.

 Não existe, em suma, norma legal, no Código Penal ou no Código de Processo Penal, que permita o cumprimento descontínuo da pena acessória ora em causa, pelo que a possibilidade de cumprimento descontínuo da proibição de conduzir, com vista ao alegado exercício e manutenção do trabalho de condutor profissional, não tem razão de ser – ver, neste sentido, Acórdão do TRC, de 16/11/2005, Processo n.º 2735/5, Acórdão do TRC, de 7/4/2010, Processo n.º 139/09.7, ambos relatados pelo Exmo. Desembargador Brízida Martins, Acórdão do TRP, de 5/5/2010, Processo n.º 339/07.4PAESP.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Álvaro Melo, in www.dgsi.pt, na esteira, aliás, do que consta do Acórdão do TC n.º 440/2002, de 29 de Novembro.

Ainda no mesmo sentido, e por ser mais recente, passamos a citar o Acórdão do TRE, de 27/9/2011, Processo n.º 249/11.0PALGS.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Amaro, in www.dgsi.pt:

“(…) Numa outra perspectiva da questão, constata-se que o lema dominante do nosso sistema jurídico-penal, em matéria de cumprimento de penas, é o de que as penas são para ser cumpridas ininterruptamente, a partir do momento em que a respectiva execução tenha início.

Quando assim não sucede, quando esta regra geral não é seguida, existe sempre uma norma a disciplinar como é que, então, se passam as coisas.

É o que acontece, e a título meramente exemplificativo, na execução da prisão por dias livres ou em regime de semi-detenção (execução processualmente regulamentada, por forma exaustiva, nos artigos 487º e 488º do C. P. Penal), e na prestação de trabalho a favor da comunidade (cujo modo de execução no tempo está descrito no artigo 58º, nº 4, do Código Penal).

Aliás, assim não poderia deixar de ser, em obediência ao secular princípio nulla poena sine lege. Com efeito, uma das consequências deste princípio traduz-se, precisamente, na circunstância de estar completamente vedado ao juiz, mesmo que este utilize argumentos da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, criar instrumentos sancionatórios criminais que se não encontrem estritamente previstos em lei anterior.

Ou seja, a definição e o modo de aplicação das penas estão balizados pelo princípio da legalidade. O catálogo das penas (como o dos crimes), e do seu modo de execução, é taxativo e estabelecido, necessariamente, por lei (cfr. o disposto nos artigos 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, e 1º do Código Penal).

Ora, no caso da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a lei não prevê qualquer possibilidade de diferir no tempo, para ocasião mais cómoda para o condenado, o cumprimento do período de inibição, designadamente na modalidade estabelecida na sentença recorrida (de que a inibição seja cumprida fora do horário laboral - necessariamente, portanto, nos fins-de-semana e/ou nas férias).

O normativo contido no artigo 69º do Código Penal não prevê a possibilidade da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor poder ser cumprida em fins-de-semana, nas férias ou em outros dias livres, nem tal possibilidade é aberta por qualquer outra disposição legal.

Pelo contrário, e como antes ficou exposto, as disposições legais relativas ao modo de cumprimento de tal pena acessória apontam, indiscutivelmente, para a necessidade da execução contínua da proibição de condução em análise.

Como bem refere, a este propósito, Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 226, nota nº 8 ao artigo 69º), “a proibição tem um efeito contínuo, como resulta do artigo 500º, nº 4, do CPP e do artigo 138º, nº 4, do CE”.

Mais salienta este autor (mesma obra e local) que, por isso, “a proibição não pode ser limitada a certos períodos do dia, nem a certos veículos (…), nem pode ser diferido o início da respectiva execução” – cfr., neste mesmo sentido, além da jurisprudência citada na anotação agora reproduzida, o Ac. R.P. de 10-12-1997, in CJ, 1997, Tom. V, pág. 239, e o Ac. R.G. de 10-03-2003, in CJ, 2003, Tomo II, pág. 285).

Por conseguinte, a decisão constante da sentença recorrida, na parte em que permite que a pena acessória de proibição de conduzir não seja cumprida durante o horário laboral do arguido, é de alterar, tal como pretendido no recurso interposto.

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                IV. Decisão:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, determinando-se que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor seja executado de forma seguida e contínua.

Sem custas.


José Eduardo Martins -Relator

Maria José Nogueira