Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2320/23.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
INDEFERIMENTO LIMINAR
DEPOSITÁRIO
ESBULHO
VIOLÊNCIA SOBRE A COISA
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MANGUALDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 590.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL, 1261.º, N.º 2, E 255.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Em caso de esbulho violento o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
II – Preenchem tal requisito da “posse” as situações jurídicas a que a lei confere a tutela possessória - como é o caso do locador, do comodatário e do depositário; o cumprimento dos deveres do depositário (de guarda, zelosa administração e apresentação dos bens que lhe foram confiados) pressupõe que seja ele, e não um terceiro, a possuir a coisa depositada e a ter sobre ela o poder característico da posse.

III – Preenche a violência, ou seja, integrará actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda”); ou seja, preenche igualmente o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral: Processo n.º 2320/23.7T8VIS-C1

 (Juízo de Competência Genérica de Mangualde)

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

AA, melhor id. nos autos, instaurou PROCEDIMENTO CAUTELAR DE RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE contra  BB, divorciada, residente em ..., ... ..., ..., pedindo a sua condenação a reconhecer a posse exclusiva do Requerente como fiel depositário do imóvel melhor id. no artigo 8.º do requerimento inicial; a deixar de praticar atos de uso ou posse sobre o referido imóvel e ao pagamento do montante diário de € 200,00, a título de sanção pecuniária compulsória até ao efetivo reconhecimento da posse exclusiva do Requerente, ou por cada dia de desrespeito pelas medidas decretadas pela providência cautelar requerida e, por último, a inversão do contencioso.

Para tanto, o Requerente alega, em suma, que corre em juízo o processo de partilha de bens comuns de casal, no âmbito do qual foi nomeado cabeça de casal. Continua que, nessa sequência, remeteu uma missiva à Requerida dando conta dos motivos pelos quais passaria a estar impedida de usufruir do referido imóvel e que as fechaduras haviam sido mudadas.

Assevera o Requerente que tramitou por apenso o arrolamento dos bens comuns do casal, no âmbito do qual foi nomeado fiel depositário, tendo a Requerida sido citada e deduzido oposição.

Prossegue o Requerente com a narração de circunstâncias em que a Requerida alegadamente terá entrado no imóvel e os atos aí praticados.

Pelo Juízo de Competência Genérica de Mangualde, após contraditório, foi proferida a seguinte decisão:

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o presente procedimento cautelar.

Custas pelo Requerente, cf. o disposto no art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Registe, notifique e dê a competente baixa.

Mangualde, d.s”.

O Requerente, AA, não se conformando com tal decisão, dela interpõe recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

1º. O requerente é cabeça de casal no inventário interposto depois do divórcio.

2º. O requerente é fiel depositário depois de ter sido nomeado, no procedimento cautelar de arrolamento.

3º. Como tal é a ele quem compete a administração do imóvel em causa, sendo, por isso, seu possuidor, ainda que em nome de uma entidade autónoma formada pelo património do ex-casal (à semelhança do que acontece nas heranças indivisas).

4º. O requerente é, portanto, único legitimo possuidor efetivo do imóvel.

5º. A requerida, ao praticar os atos descritos está a atuar como “por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade” (v.g. art.º 1251º do Código Civil), porquanto se sente no direito de entrar em casa, estroncar uma fechadura, colher os limões, lá dormir com o seu companheiro.

6º. Depois da carta que foi enviada pelo requerente, ao rebentar uma fechadura, a requerida praticou esbulho violento, como considera o Tribunal da Relação de Guimarães numa situação análoga no Ac. onde se dispõe que “Na acção cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;”- 1 Proc.º 69/11.2TBGMR-B.G1; disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/4f1ff5ece9bc4671802579520042980d - , tendo em conta que a requerida colocou novas fechaduras na porta sabendo que impediria o requerente de lá entrar.

7º. Por tudo, e até pelo conflito latente entre RR, a ação da requerida impossibilita  o exercício da posse que está adstrito ao fiel depositário, cabeça de casal, requerente.

8º. Essa coação moral que a requerida exerce sobre o requerente, para além de configurar esbulho (pelo exposto em 7º) também o torna violento, tendo em conta que o requerido tem justo receio das eventuais consequências que possam advir de tais atos.

9º. O recurso aos Tribunais, e a presente providência cautelar é o único meio que fará cessar a conduta da requerida, e apenas a cessação da sua conduta trará, novamente a completude da posse que o requerente exerce.

10º. Já decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça que a violência sobre as coisas transforma o esbulho em violento, quando essa violência coaja o desapossado e o coloque numa situação de incapacidade de reagir perante tal desapossamento.

11º. Provada que está (de direito) a posse do requerente; o esbulho; e a violência no esbulho.

12º. As decisões judiciais não devem promover nem branquear atos de violência que representem limitação ao exercício dos direitos a quem os próprios tribunais conferiram

13º. Com a decisão do Tribunal a quo mostram-se violadas as normas   constantes dos art.º 1, 366, 377, 378, 757, 1082/1/a), 1085/b do Código do Processo Civil e os art.º 255, 1197, 1261, 1261/2, 1279, 1286, 2088 do Código Civil.

Deverá ser a presente providência ser julgada por provada, sendo anulada a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que não contenha as mesmas violações, e que assim se faça a acostumada justiça!

2. Do objecto do recurso

 No requerimento inicial estão vertidos (ou não) os pressupostos - a posse, o esbulho e a violência -  que permitem pedir a restituição provisória da posse?

A 1.ª instância entendeu no seu despacho, que proferiu ancorado na norma do artigo 590.º do Código do Processo Civil – que será o diploma a citar sem menção de origem –, que “não estão verificados, nem são suscetíveis de verificação ulteriormente, mormente através de convite ao aperfeiçoamento, os pressupostos fáctico jurídicos de que depende o decretamento da presente providência cautelar, mesmo através da sua convolação em procedimento cautelar comum”.

Avaliando.

É conhecida a divergência, na doutrina e na jurisprudência, sobre o exacto sentido do conceito de “violência” (no esbulho): a que considera que para haver violência tem a mesma que ser exercida sobre a pessoa do possuidor; e a que considera que basta a violência exercida sobre a coisa, quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral.

No Acórdão do STJ de 09.11.2022, publicado em www.dgsi.pt, escreve-se:

“E também alinhamos pela resposta menos exigente e restritiva, ou seja, que igualmente preenche o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa.

A tal propósito – para justificar em que termos a violência seria relevante – escrevia o Prof. Manuel Rodrigues (in a posse, pág. 365 e ss):

“(…) pode perguntar-se se, em face do direito português, só é de atender à violência contra as pessoas ou também à violência contra as coisas; se só à violência física, ou também à violência moral.

A violência tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas. A história do art. 494.º do CPC de 1876, permite-nos fazer esta afirmação.

O projeto de Seabra não definia violência nem indicava os seus elementos; mas no primeiro projeto da Comissão Revisora, art. 366.º: «quer fosse exercida contra as coisas quer contra as pessoas».

(…)

O pensamento que dominava os redatores do Código era, pois, o que podia haver violência em qualquer dos casos. É certo que aquelas declarações foram depois suprimidas, mas a supressão foi apenas provocada pelo temor das definições.

Também o novo CPC nada diz, sendo de manter o pensamento tradicional.

A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras. (…)

A violência tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças.

Efetivamente, embora o Código não o diga expressamente, não parece poder duvidar-se que a violência moral é suficiente para dar direito à ação de esbulho violento.

Em primeiro lugar, desde muito cedo se considerou a ameaça como suficiente para a violência; em segundo lugar, é o próprio Código Civil que ao definir coação no art. 666.º diz que esta pode consistir em fortes receios (de danos)”

Em função de tais ensinamentos, passou a considerar-se na jurisprudência que mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante - Cfr. Ac. STJ de 03-05-2000 (Relator Lopes Pinto); Ac. STJ de 07-07-1999, in BMJ 489.º/338; e Ac STJ de 12-06-1997 (Relator Herculano Namora).; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência - Cfr. Ac. STJ de 26-05-1998, in BMJ 477.º/506; e Ac STJ de 15-12-1999 (Relator Pais de Sousa)..

E é neste ponto da discussão/divergência que o critério proposto pelo Prof. Lebre de Freitas – segundo o qual “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (in CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed., pág. 78) – se nos afigura inteiramente pertinente; e consentâneo com a ideia de que também a coação moral – tendo presente que também é posse violenta a que foi obtida com coação moral (cfr. 1261.º/2 e 255.º do C. Civil) – preenche a violência, ou seja, integrará atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda” – cfr. art. 255.º/2 do C. Civil).

O Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 27.6.2023 – pesquisável em www.dgsi.pt -  pronunciou-se, também, acerca do sentido a dar à violência pressuposta nos artigos 377.º e 378.º, da seguinte forma:

“ Nem estes preceitos nem o Código Civil quando se refere ao esbulho violento (artigo 1279.º) dão a noção de violência. Como é sabido, na interpretação da lei importa ter em conta a unidade do sistema jurídico (n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil), ou seja, socorrendo-nos das palavras de Manuel de Andrade, “cada texto legal deve estar relacionado com aqueles que lhe estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 28].

Um dos textos que deve ser relacionado com os artigos 377.º e 378.º do CPC, na parte em que se refere à violência, é o n.º 2 do artigo 1261.º do Código Civil, que contém a noção de posse violenta. Segundo este preceito “considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255.º”.

Sabendo-se que a coacção moral consiste na ameaça ilícita de um mal (n.º 1 do artigo 255.º do Código Civil) e que, nos termos do n.º 2 deste preceito “a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda” do destinatário da ameaça, pode afirmar-se que a violência relevante para efeitos de restituição provisória da posse tanto abrange a que tem por alvo as pessoas como a que é exercida contra as coisas.

Porém, neste último caso, a violência só é relevante se, socorrendo-nos das palavras de Orlando Carvalho, “com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor” [Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122, página 293]. Além de Orlando de Carvalho, podem citar-se a favor desta interpretação outros autores como António Santos Abrantes Geraldes, [Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 6. Procedimentos Cautelares Especificados Almedina, página 45] José Alberto Vieira, [Direitos Reais, Coimbra Editora, página 622]. Na jurisprudência podem citar-se a favor desta interpretação, a título exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-05-2014, proferido no processo n.º 84/14.4TBNLS e o acórdão proferido pela mesma Relação em 24-01-2017, no processo n.º 1350/16.0T8GRD, ambos publicados em www.dgsi.pt”.

Sendo, como é sabido, que também preenchem tal requisito da “posse” as situações jurídicas a que a lei confere a tutela possessória - como é o caso do locador, cfr. art. 1037.º/2 do C. Civil; do comodatário, cfr. 1133.º/2 do C. Civil; do depositário, cfr. art. 1188.º/2 do C. Civil.

Neste preciso sentido, como refere o Apelante na sua alegação,  “mobilizamos, para isso, até por nos parecer uma questão pouco disputada na doutrina e na jurisprudência, os termos do Ac. ao proc.º 676/06-2 do Tribunal da Relação de Guimarães, onde o relator António Magalhães sumariou que “- Na pendência do inventário em consequência do divórcio, a administração dos bens comuns pertence ao cabeça de casal e não aos ex-cônjuges em conjunto, como resultaria das regras da compropriedade.; 2- Porém, isso não impede que o interessado que não é cabeça de casal se mantenha na posse de bens comuns, na sequência de acordo celebrado com o cabeça de casal.” [sublinhado nosso], ou até do Ac. ao proc.º 970/2008-7 do Tribunal da Relação de Lisboa, onde a relatora Conceição Saavedra sumariou que “III- Tendo sido restituída a posse do imóvel em questão ao requerente, vista a qualidade que assistirá a este enquanto cabeça-de-casal, administrador dos bens da herança onde se incluirá o imóvel dos autos, e o seu direito a ser encabeçado, na partilha, no correspondente direito de habitação da casa de morada da família, não se encontra fundamento para que no referido imóvel permaneça o requerido contra a vontade do primeiro”. Outros se podiam citar quanto à posição de cabeça de casal;

Os termos do Ac. ao proc.º 9110723 do Tribunal da Relação do Porto, onde o relator Lobo Mesquita sumariou que “II- O cumprimento dos deveres do depositário (de guarda, zelosa administração e apresentação dos bens que lhe foram confiados) pressupõe que seja ele, e não um terceiro, a possuir a coisa depositada e a ter sobre ela o poder característico da posse. A posse do depositário deriva da própria entrega dos bens, que tem de ser efectiva.”, ou até do Ac. ao proc.º 3412/16.4T8CSC.L1-7 do Tribunal da Relação de Lisboa, onde o relator José Capacete fez constar em sumário que “· No procedimento cautelar de arrolamento o depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues, donde resulta que nenhum critério de escolha do depositário é incompatível com a finalidade da providência cautelar de arrolamento, ao qual, na parte desprovida de sobreposição reguladora ou de contrariedade ontológica, são aplicáveis as disposições relativas à penhora.”, e outros se podiam citar quanto à posição de fiel depositário”.

Alega o Apelante:

1º.

A. e R foram casados, sem convenção antenupcial, desde .../.../1991 até .../.../2022, tendo o divórcio sido decretado com efeitos patrimoniais que retroagem ao dia 30.03.2019, decisão já transitada em Julgado.

2º.

O requerente, como interessado direto na partilha dos bens comuns do casal e cônjuge meeiro, tinha legimidade e requereu que se procedesse a inventário judicial e para nele intervir como parte principal (argos 1085, n.º 1/a) e 1082º, al. b, ambos do CPC).

3º.

Tendo em conta que o encargo de cabeça de casal incumbe ao cônjuge mais velho e que este é o requerente, foi nomeado cabeça de casal no dia 10.02.23. conforme consta dos autos.

4º.

Tal facto, foi comunicado à R. por Carta remetida pelo mandatário do A. na qual lhe foram explicadas as razões pelas quais passaria a estar impedida de usufruir do Imóvel, e que as fechaduras haviam sido mudadas precisamente por isso. Doc. 1

5º.

Na verdade, a R. vinha até então fazendo uso do Imóvel juntamente com seu companheiro, em circunstâncias conflituosas que inclusivamente deram já lugar a participações crime.

6º.

Decorre o processo de partilha do património comum, mantendo-se a indivisão.

7º.

Só por si o cargo de cabeça de casal, conferido por sentença judicial transitada, confere ao A. O direito e o dever de administração dos bens comuns, mesmo contra a vontade da R. por previsão do argo 2088º nº 1 do CC

8º.

Acresce que, a 29.03.23, depois de pedido pelo A., foi decretado o arrolamento dos bens elencados no requerimento inicial nomeadamente o Prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, descrita como casa destinada a habitação composta de R/C e 1.º andar, com 4 divisões localizada ao ..., ... ..., descrita com o art.º matricial ... da união de freguesias ... (22) no concelho ... (06) no distrito ... (18) e ainda não descrito na conservatória do registo predial competente, detentor da licença de construção n.º ...91 emida em 1995 pela Camara Municipal ... e respectivo recheio, dos quais o A. ficou fiel depositário, sendo-lhe, portanto, atribuída a posse dos bens.

9º.

A R. tomou conhecimento e posição no Apenso do Arrolamento, bem sabendo que deduziu oposição que, contudo, não foi aceite.

10º.

Sabia e sabe a R. que o A. foi nomeado fiel depositário do Imóvel e dos bens nele existentes, e que a sua relação com o A. não permite qualquer possibilidade de convivência com ele, muito menos de ocuparem a mesma casa.

11º.

No fim de semana de 24 a 26 de Março, a R. esteve em Portugal juntamente com seu companheiro, e entraram ambos no quintal da casa tendo apanhado os limões com os quais terão confecionado um chá, tal como publicaram nas redes sociais. Doc. 2

12º.

Ou seja, nessa altura a R. respeitou as informações conferidas pela troca de correspondência e não entrou na casa. Ter-se-á aproveitado do facto de não ter sido descrito o quintal para entender que não estava abrangido pela proibição.

13º.

Contudo, no dia 05.05.23, enquanto se deslocava da França para Portugal, o A. foi avisado pela sua irmã (que mora na casa ao lado) de que alguém estaria dentro da casa (supra descrita), suspeitando desde logo da ex-mulher. Posto isto o mandatário do A. telefonou para a GNR que se deslocou ao local e tomou conta da ocorrência. Doc. 3

14º.

Resulta do relatório elaborado pela GNR que a Ré admite ter pedido a ajuda de alguém da sua confiança para estroncar a fechadura e poder entrar no imóvel. Disse ainda que entendia ser seu direito entrar e usar a casa tendo em conta que a casa pertencia aos dois. Invocou poder invadir a casa segundo aconselhamento da sua Advogada.

15º.

Referiu ainda que iriam (ela e o atual companheiro) abandonar o local naquele momento para jantar, mas que iriam voltar, invocando não terem mais nenhum sítio para pernoitar.

16º.

Nessa saída, anterior ou posteriormente, a R. terá levado consigo alguns bens que estavam no interior da casa, não conseguindo o A. apurar de momento quais os bens em concreto que transportou.

17º.

Tudo apesar de o A. estar também no local, provocando o confronto e ameaçando permanecer mesmo contra a vontade do A.

18º.

Depois destes acontecimentos, o A. fez-se acompanhar da GNR ao interior da casa para ver se algum bem arrolado tinha sido retirado, o que não foi possível verificar exaustivamente, e bloqueou por dentro a porta que tinha sido rebentada.

19º.

Corridos tais factos, no dia 08.05.23, antes de o A. ir novamente para França onde atualmente trabalha, regressou ao imóvel e deu-se conta de que um vidro de uma janela no piso térreo tinha sido pardo, e que a porta supra referida já não estava bloqueada, o que indica que a Ré voltou mesmo para pernoitar e usou os bens arrolados existentes no Imóvel e à guarda do A. Doc. 4

20º.

O facto de a R. ter em sua posse a chave do Imóvel, e a possibilidade de ela e seu companheiro entrarem no imóvel a qualquer momento, inibe praticamente o A. de exercer a posse que lhe está conferida por sentença Judicial.

21º.

Mesmo que o A. volte a substituir as fechaduras, a R. seguramente voltará a estroncá-las ou a partir os vidros nem que seja para provocar o A. ou promover o confronto físico com o seu companheiro.

Nas suas palavras, “veio o Tribunal a quo dar a providência como improcedente, tendo em conta que, no entendimento do Tribunal, não se encontram preenchidos os pressupostos fáctico jurídicos de que depende o decretamento da providência cautelar, do que se discorda.

O tribunal fez uma leitura acrítica da realidade, leitura essa em que se baseou apenas nas “letras dos livros” ignorando, totalmente a realidade das relações interpessoais e a complexidade da aplicação da Lei, mas em particular que os direitos e deveres correspondem a situações da vida real e concreta das pessoas a quem as normas se dirigem.

Nesse sentido, acabou, a grosso modo, por entender que o requerente não alega com propriedade a existência da posse, senão a posse exercida em nome alheio, e ainda que não resulta alegado qualquer facto suscetível de ser enquadrado na noção de esbulho enquanto ato de privação da posse.

Com tal decidido o requerente não se pode conformar”.

Por isso, salvo o devido respeito pelo decidido, entendemos que a razão está pelo Apelante. Ouçamo-lo:

“No fundo, tudo isto para dizer que andou mal o tribunal a quo ao considerar que não estavam preenchidos os pressupostos para o decretamento da providencia cautelar porquanto tanto a posição do requerente de cabeça de casal, como a posição de fiel depositário lhe atribuem a posse do imóvel, aliás fazendo cumprir o disposto no art.º 757 do Código de Processo Civil, assim como o art.º 2088 do Código Civil.

Ao Tribunal ainda foi dada a alternativa, e ainda que o requerente estivesse errado quanto à posse que lhe advém por ser cabeça de casal, o que se discorda, mas se admite como possibilidade, não está quanto ao facto de ser fiel depositário.

Ainda que se queira argumentar que a posse não é ato automático através da nomeação como fiel depositário ou como cabeça de casal, o requerente juntou ao processo a carta por este remetida no dia 6 de março de 23 em como comunica à requerida a tomada da posse do imóvel através da mudança das fechaduras, pelo que se considera que houve posse efetiva.

Permita-se o recorrente fazer apelo, na imensa jurisprudência e Doutrina que suporta a sua pretensão, recomendar as anotações ao Código Civil Anotado do ano de 1999 (antigo, mas atual) quanto ao artigo 2088º 1. I - O pedido de entrega feita a terceiro ou herdeiro não se funda na posse, mas na qualidade de administrador de herança indivisa. II - A tal pedido não é possível opor outra ou melhor posse, mas apenas que tais bens não fazem parte do acervo da herança a dividir. III – E também não procede a oposição baseada na compropriedade sobre certos e determinados bens da herança, pois enquanto não houver partilha a herança constitui património autónomo e não compropriedade (RC, 29-7-1970: JR, 16.º-815).

2. O n.° 1 do artigo abrange ações possessórias de manutenção e de restituição de posse bem como as ações de prevenção e embargos de terceiro (R. Capelo de Sousa, Sucessões, 2.º-72, nota 660).

3. 1- Da articulação do art. 2088.°, n.° 1, com o art. 1286.°, ambos do Cód. Civil, resulta que, em relação ao compossuidor, o cabeça-de-casal, embora não possa recorrer à ação de manutenção de posse, pode, porém, utilizar sempre contra ele, tal como em relação a terceiro, a Acão de restituição de posse. II -- E de reconhecer legitimidade ao autor. como cabeça-de-casal, para solitariamente, deduzir um pedido de restituição de posse (RE, 21-11-1991: BMJ, 411. -675).

b) Ao esbulho (violento):

Também quando à existência de esbulho enquanto ato de privação da posse efetiva, o Tribunal a quo considera que “não resulta alegado qualquer facto suscetível de ser enquadrado na noção de esbulho”, o que para o requerente é surpreendente e de que se discorda. É que a disponibilidade do bem em causa não basta ser empírica – seja lá o que isso for-, como pretende o Tribunal a quo.

A disponibilidade do bem tem de ser efetiva que não pode ser perturbada por atos como ir “roubar” limões, ou estroncar fechaduras. Aliás, basta um simples exercício de lógica para perceber que, por exemplo, enquanto a requerida estava no imóvel onde inclusivamente pernoitou, não poderá, certamente, o requerente aceder ao imóvel, ou não o poderá administrar, ou até fazer uso da sua posse. É que convém recordar, por exemplo, o que resulta do Ac. 0826514 do Tribunal da Relação do Porto, onde o relator João Proença sumariou que “II - Com o arrolamento não se pode pretender prejudicar o gozo e utilização normal que os bens possibilitam; daí que o depositário seja sempre o seu possuidor ou detentor.”.

Ora, causa estranheza que o Tribunal a quo ache que entrar no quintal saltando os portões, rebentar uma fechadura para aceder e pernoitar no imóvel, partir um vidro de uma janela para conseguir entrar mesmo depois de o requerente ter bloqueado a porta por dentro, não seja uma intromissão na posse do requerente.

O facto de a recorrida ser aparentemente também proprietária do Imóvel em nada altera os dados da equação Jurídica:  É que se o proprietário (mesmo que a recorrida seja proprietária) viola a posse legitimamente exercida por outrem, ele próprio pratica esbulho (art.º 1197, do Código Civil).

E no caso, a recorrida tomou expressamente conhecimento do cargo de cabeça de casal do qual foi afastada, a do arrolamento que implicou a nomeação do recorrente como fiel depositário.

Considera o tribunal, de forma aleatória, que os factos invocados não são suficientes para qualificar a violência requerida pelas normas.

Se a requerida recebe visitas e pernoita no imóvel depois de o recorrente a advertir que não poderia fazê-lo por serem incompatíveis com a posse efetiva do recorrente, foi apenas isso…

Se retira limões do quintal, é nada mais que isso,

Se a recorrida partiu um vidro da janela para entrar no Imóvel, não é mais que isso,

Se retirou bens arrolados à guarda do recorrente, este tem que se conformar.

Se um dia a recorrida entrar no Imóvel durante a noite (porque se lembrou de chegar de Férias com o companheiro) e o recorrente estiver dentro dele porque é o fiel depositário do mesmo e cabeça de casal na partilha, e em consequência dos conflitos que já são patentes em processos Judiciais criminais, e houver uma ou mais mortes por decorrência dos mesmos, ao tribunal, que competia evitar conflitos, não lhe restará mais que meter na prisão quem matar ou agredir, e às vitimas restará atribuir uma indemnização.

Parece ser assim que os direitos efetivos são entendidos pelo Tribunal sindicado.

Portanto, os conceitos de posse e de violência arrestados pelo tribunal a quo, são apenas os que consignem tudo menos o que o recorrente invocou.

Dirimir um conflito, em qualquer ordenamento, é basicamente evitá-los quando evitáveis. O Ordenamento Jurídico que se prese, decide primeiro na medida da prevenção e só depois da repressão.

Qualquer tutela efetiva de direitos passa primeiro pela sua salvaguarda, mormente quanto as partes recorrem à justiça para procurar evitar o conflito (...)

É entendimento do recorrente que a factualidade apresentada se enquadra com todo o rigor na argumentação exposta.

O recorrente tem o justo receio de exercer a sua posse pela previsão do confronto físico com a recorrida, que, obviamente, se apresentada em queixa-crime por ela denunciada irá beneficiar da presunção de que a mulher é sempre a vítima, o que a recorrida bem sabe e do qual sempre tira benefício.

Branquear o comportamento da requerida é apelar ao recurso à autodefesa, proibida pelo art.º 1 do Código de Processo Civil (…)

Assim, admitindo-se, como se referiu, que possa haver coação nos casos em que o esbulho ocorre na ausência do possuidor, seria útil apurar quando (no sentido de qual o momento relevante) e em que circunstâncias é que tal coação ocorre. Por outras palavras, seria útil clarificar em que circunstâncias se poderá afirmar que o “possuidor se mostra coagido a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reagir perante o ato de desapossamento.”

(…)  “Por previsão do argo 757.º do CPC (Entrega efetiva) … Sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do argo anterior, o depositário deve tomar posse efetiva do imóvel. No mesmo sendo… nos termos do argo 760º do CPC incumbe ao depositário judicial o dever de administrar os bens com a diligência e zelo de um bom pai de família e com a obrigação de prestar contas.

O art.º 377 do Código de Processo Penal dispõe que em caso de esbulho violento o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. Como já se disse o A. é o fiel depositário e é, portanto, o possuidor por excelência, ainda que seja uma posse considerada em nome do casal. Ou seja, é o A. quem tem o controlo efectivo e a posse efectiva dos bens, por imposição legal.

Ainda assim, a Ré não se coibiu de praticar atos que ofendiam a sua posse, como partir uma fechadura para a trocar, partir um vidro para poder entrar, e usar e dispor do uso do imóvel. Tanto é que a situação ainda se mantém, porquanto ainda é a R. que tem as chaves da tal porta tendo desde logo avisado que usará o imóvel quando bem entender.

Este esbulho foi, ainda, violento, porque a Ré colocou, ainda, novas fechadura na porta de acesso ao imóvel, e, como escreveu o Relator António Sobrinho num acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães “Na acção cautelar de restuição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;”.

Entende o A., estarem, portanto, verificados os requisitos formais do art.º 377 do Código do Processo Civil. Como também entende o A. que a matéria adquirida no procedimento permitirá ao MM.º Juiz formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado (a posse do A.), assim como que a natureza do procedimento é adequada a resolver a composição definitiva do litígio”

Em conclusão, sem necessidade de mais considerações, o Requerente alegou factualidade que, indiciariamente provada, permitirá, também indiciariamente provados os restantes requisitos, o decretamento da providência de restituição provisória de posse.

Pelo exposto, revogamos a decisão produzida pelo Juízo Genérico de Mangualde, determinando-se que o procedimento cautelar prossiga os seus termos - artigo 378.º/se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.

As conclusões (sumário):

(…).


3.Decisão
Assim, na procedência do recurso, revogamos a decisão proferida pelo Juízo Genérico de Mangualde, determinando-se que o procedimento cautelar prossiga os seus termos legais.
Sem custas.
Coimbra, 12 de Setembro de 2023

(José Avelino Gonçalves - Relator)
(Arlindo Oliveira - 1.º adjunto)
(Emidio Francisco Santos – 2.º adjunto)