Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1726/20.8T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
VIOLAÇÃO DE NORMAS IMPERATIVAS
NULIDADE DA SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
Data do Acordão: 01/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 12.º, N.ºS 2 E 3, 18.º, 79.º, DA LEI DOS ACIDENTES DE TRABALHO, 294.º DO CÓDIGO CIVIL E 289.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Os direitos ou garantias previstas na LAT constituem um patamar mínimo indisponível, abaixo do qual as partes não podem descer.
II – Tais normas revestem a natureza imperativa, sendo nula a convenção contrária aos direitos e garantias conferidas pela referida Lei, sendo igualmente nulos os atos e contratos que visem a renúncia aos direitos pela mesma Lei atribuídos (nºs 2 e 3 do artº 12 da LAT).

III – Estando em causa na ação saber se o acidente se ficou a dever a atuação culposa do empregador, com a consequente responsabilidade agravada deste (artºs 18º e 79º da LAT), não é lícito às partes acordarem sobre a matéria de facto, considerando como não provada a factualidade donde poderia emergir aquela responsabilidade e de seguida transacionarem sobre o objeto da causa afastando a responsabilidade do empregadora com base na sua atuação culposa.

IV – Ainda que via indireta, a transação assim celebrada é nula por violar normas de caráter imperativo (artº 294º do CC e nº 1 do artº 289º do CPC), o que acarreta a nulidade da sentença homologatória proferida na sua sequência.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Processo 1726/20.8T8FIG.C1

Relator: Felizardo Paiva

Adjuntos: Paula Roberto.

Mário Rodrigues da Silva.


**********

I - Na presente Acão especial de acidente de trabalho em que é sinistrado Autor/Sinistrado: AA e responsáveis "Z... PLC - SUCURSAL EM PORTUGAL" e "F..., S.A.", realizada que foi a tentativa de conciliação a 12/10/2021 não foi alcançado acordo entre as partes por o sinistrado não estar de acordo nem com o resultado da perícia médica nem quanto à responsabilidade do acidente porquanto considerou existir culpa agravada por parte da empregadora.

Nessa sequência, foram os autos remetidos para a fase contenciosa, tendo o sinistrado apresentado em juízo a 11/11/2021 ação para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, com violação de regras de segurança por parte do empregador contra Z... Plc- Sucursal Portugal e F... , S.A,

Em 08/03/2022 foi proferido despacho saneador do qual consta, designadamente:

“Tenho, assim, por assentes os seguintes factos:

I. O sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho no dia 11/12/2019 em ..., quando trabalhava sob autoridade direção e fiscalização de "F..., S.A.”, com sede em ..., ... ..., com a categoria profissional de trefilador, mediante a remuneração anual de €17.430,98 – (€651,57x14+€162,89x14+€24,95x12+€102,74x11+383,25 x12).

II.A responsabilidade emergente do presente acidente encontrava-se integralmente transferida para a seguradora.

III. O acidente consistiu em, quando estava a aplicar spray numas correias, ficou com a mão presa no sistema, vindo a sofrer um esfacelo na mão direita.

Do mesmo resultaram os seguintes períodos de incapacidade temporária:

1. Incapacidade temporária absoluta desde 12/12/2019 até 03/12/2020 (358 dias);---

2. Incapacidade temporária parcial a 40% desde 04/12/2020 até 29/12/2020 (26 dias).-

IV. O Sinistrado encontra-se pago de todas as indemnizações provenientes dos períodos de incapacidade a que esteve sujeito desde a data do acidente até à data da alta definitiva que lhe foi conferida em 29/12/2020.

V. Em transportes para comparência a atos judiciais o sinistrado gastou €25,00.

Importa provar, assim constituindo temas de prova

a) A cinética do acidente, mais especificamente, o comportamento do sinistrado, no manuseio da máquina, nos momentos imediatamente anteriores ao acidente.

b) O comportamento da ré empregadora, ativo e ou omissivo, no sentido de habilitar o sinistrado a utilizar a máquina em apreço e a velar pelo estado de conservação e de segurança da mesma.

c) A verificação da incapacidade.”

Na 1ª sessão de julgamento foi efetuada inspeção judicial ao local e prestado depoimento de parte do representante legal da ré patronal e do sinistrado, tendo o Mº Juiz consignado em ata, para além do mais, a seguinte assentada:

- a ré conhece que ao tempo do acidente as correias da máquina trefiladora não se encontravam protegidas com uma tampa.

Iniciada a 2ª sessão, foi apresentado requerimento pelo sinistrado e seguradora com o seguinte teor:

“Considerando a prova já produzida as partes aceitam que apenas se provam na presente ação os seguintes factos essenciais:

1. O Autor/Sinistrado AA nasceu no dia .../.../1992;

2. No dia 11-12-2019, o Sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho, em ..., enquanto trabalhador da Ré/Empregadora "F...,S.A." no desempenho das funções inerentes à categoria profissional de trefilador.

3. O Autor/Sinistrado auferia a Retribuição Anual Ilíquida de €17.430,98 [(€651,57 x 14) + (€162,89 x 14) + (€24,95 x 12) + (€102,74 x 11) + (€383,25 x12)].

4. À data do acidente, a Ré/Empregadora tinha a responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho transferida para a Ré/Seguradora “Z... Plc - Sucursal em Portugal” através de contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ...16.

5. O acidente consistiu em: quando estava a aplicar spray numas correias ficou com a mão presa no sistema, vindo a sofrer um esfacelo grave na mão direita.

6. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado sofreu as lesões e as sequelas descritas no Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho constante de fls.53 verso a 55 verso.

7. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado convalesceu com os seguintes períodos de Incapacidade Temporária:

- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) entre 12-12-2019 e 03-12-2020 (358 dias);

- Incapacidade Temporária Parcial (ITP), a 40%, entre 04-12-2020 e 29- 12-2020 (26 dias).

8. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado ficou a padecer desequelas que lhe determinam uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de62,8185% (a qual inclui o fator de bonificação de 1,5) com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) a partir da alta clínica ocorrida em 29-12-2020.

9. O Autor/Sinistrado encontra-se pago da indemnização referente a todos os períodos de Incapacidades Temporárias.

10. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado despendeu a quantia de €25,00 em transportes.

Na sequência dos pressupostos de facto anteriormente enunciados, todas as Partes aceitam que, para a reparação do acidente de trabalho em discussão, das normas imperativas vigentes resultam as “infra” descritas indemnizações que as Partes respetivas aceitam pagar e receber:

I) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado uma Pensão Anual e Vitalícia no montante de €10.905,47 [17.430,98 x (0,628185 x 0,2 + 0,5)], desde o dia 30-12-2020, atualizável nos termos legais, para €11.014,52 (1%) a 01-01-2022 e para €11.939,74 (8,4%) a 01-01-2023.

II) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado o Subsídio por Elevada Incapacidade Permanente no montante de €5.110,42 [(435,76 x 1,1 x 12) x (0,628185 x 0,3 + 0,7];

III) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado a quantia de €25,00 a título de despesas de transporte.

IV) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado juros moratórios, à taxa legal civil, desde a data de vencimento de cada uma das prestações referidas em I) e II) e III) até integral pagamento.

V) Os pagamentos referidos serão realizados pela Ré/Seguradora mediante transferência bancária para a conta do Autor/Sinistrado, cujo IBAN o mesmo se compromete a juntar aos autos no prazo de 5 dias.

VI) As custas serão suportadas pelas Partes em partes iguais, entre o Autor/Sinistrado, Ré/Seguradora e Ré/Empregadora, prescindindo todas de custas de parte, e sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar o Autor/Sinistrado”.

Perante tal requerimento o M.mo Juiz proferiu a seguinte DECISÃO:

“Verificada a capacidade das Partes e a legalidade do acordo que antecede, o qual se mostra conforme com as regras imperativas da lei dos acidentes de trabalho, considera-se o mesmo válido e condenam-se as Partes a cumpri-lo nos seus precisos termos.

Fixa-se à ação o valor de €95.974,97 (art.º 120.º/1 CPT).

Custas conforme o acordado”.


***

III – Notificado da sentença homologatória dela veio o MºPº recorrer, recurso este que não foi admitido.

Notificado desta decisão, dela o MºPº veio reclamar nos termos do disposto nos artigos 82º do Código do Processo do Trabalho e 643º do Código do Processo Civil.

Por decisão do relator a reclamação foi deferida e ordenado a subida da apelação.


***

IV – Nas alegações apresentadas o recorrente concluiu:

1-Nos presentes autos, realizada que foi a Tentativa de Conciliação a 12/10/2021 não foi alcançado acordo entre as partes por o sinistrado não estar de acordo com o resultado da perícia médica nem quanto à responsabilidade do acidente porquanto considerou existir culpa agravada por parte da empregadora.

2-Nessa sequência, o sinistrado apresentou em juízo a 11/11/2021 ação para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, com VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA POR PARTE DO EMPREGADOR Contra Z... Plc- Sucursal Portugal e F..., S.A.

3-A 08/03/2022 foi proferido despacho saneador nos seguintes termos:

“Tenho, assim, por assentes os seguintes factos:

I O sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho no dia 11/12/2019 em ..., quando trabalhava sob autoridade direção e fiscalização de "F..., S.A.”, com sede em ..., ... ..., com a categoria profissional de trefilador, mediante a remuneração anual de €17.430,98 – (€651,57x14+€162,89x14+€24,95x12+€102,74x11+383,25 x 12 ).

II A responsabilidade emergente do presente acidente encontrava-se integralmente transferida para a seguradora.

III O acidente consistiu em, quando estava a aplicar spray numas correias, ficou com a mão presa no sistema, vindo a sofrer um esfacelo na mão direita. Do mesmo resultaram os seguintes períodos de incapacidade temporária:

1. Incapacidade temporária absoluta desde 12/12/2019 até 03/12/2020 (358 dias);

2. Incapacidade temporária parcial a 40% desde 04/12/2020 até 29/12/2020 (26 dias).

IV O Sinistrado encontra-se pago de todas as indemnizações provenientes dos períodos de incapacidade a que esteve sujeito desde a data do acidente até à data da alta definitiva que lhe foi conferida em 29/12/2020.

V. Em transportes para comparência a atos judiciais o sinistrado gastou €25,00.

VI Importa provar, assim constituindo temas de prova

a) A cinética do acidente, mais especificamente, o comportamento do sinistrado, no manuseio da máquina, nos momentos imediatamente anteriores ao acidente.

b) O comportamento da ré empregadora, ativo e ou omissivo, no sentido de habilitar o sinistrado a utilizar a máquina em apreço e a velar pelo estado de conservação e de segurança da mesma (sublinhado nosso).

c) A verificação da incapacidade.”

4- Na 1º sessão de julgamento foi efetuada inspeção judicial ao local e prestado depoimento de parte do representante legal da ré patronal e do sinistrado, tendo o Mº Juiz consignado em ata, para além do mais, a seguinte assentada:

- a ré conhece que ao tempo do acidente as correias da máquina trefiladora não se encontravam protegidas com uma tampa.

5- Iniciada a 2ª sessão, foi apresentado requerimento pelo sinistrado e seguradora com o seguinte teor:

“Considerando a prova já produzida as partes aceitam que apenas se provam na presente ação os seguintes factos essenciais:

1. O Autor/Sinistrado AA nasceu no dia .../.../1992;

2. No dia 11-12-2019, o Sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho, em ..., enquanto trabalhador da Ré/Empregadora "F...,S.A." no desempenho das funções inerentes à categoria profissional de trefilador.

3. O Autor/Sinistrado auferia a Retribuição Anual Ilíquida de €17.430,98 [(€651,57 x 14) + (€162,89 x 14) + (€24,95 x 12) + (€102,74 x 11) + (€383,25 x12)].

4. À data do acidente, a Ré/Empregadora tinha a responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho transferida para a Ré/Seguradora “Z... PLC - SUCURSAL EM PORTUGAL” através de contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ...16

5. O acidente consistiu em: quando estava a aplicar spray numas correias ficou com a mão presa no sistema, vindo a sofrer um esfacelo grave na mão direita.

6. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado sofreu as lesões e as sequelas descritas no Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho constante de fls.53 verso a 55 verso.

7. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado convalesceu com os seguintes períodos de Incapacidade Temporária:

- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) entre 12-12-2019 e 03-12-2020 (358 dias);

- Incapacidade Temporária Parcial (ITP), a 40%, entre 04-12-2020 e 29- 12-2020 (26 dias).

8. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado ficou a padecer de sequelas que lhe determinam uma Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de 62,8185% (a qual inclui o fator de bonificação de 1,5) com Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (IPATH) a partir da alta clínica ocorrida em 29-12-2020.

9. O Autor/Sinistrado encontra-se pago da indemnização referente a todos os períodos de Incapacidades Temporárias.

10. Em consequência do acidente, o Autor/Sinistrado despendeu a quantia de €25,00 em transportes.

Na sequência dos pressupostos de facto anteriormente enunciados, todas as Partes aceitam que, para a reparação do acidente de trabalho em discussão, das normas imperativas vigentes resultam as “infra” descritas indemnizações que as Partes respetivas aceitam pagar e receber:

I) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado uma Pensão Anual e Vitalícia no montante de €10.905,47 [17.430,98 x (0,628185 x 0,2 + 0,5)], 233 de 1316 12 de 15 desde o dia 30-12-2020, atualizável nos termos legais, para €11.014,52 (1%) a 01-01-2022 e para €11.939,74 (8,4%) a 01-01-2023.

II) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado o Subsídio por Elevada Incapacidade Permanente no montante de €5.110,42 [(435,76 x 1,1 x 12) x (0,628185 x 0,3 + 0,7];

III) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado a quantia de €25,00 a título de despesas de transporte.

IV) A Ré/Seguradora pagará ao Autor/Sinistrado juros moratórios, à taxa legal civil, desde a data de vencimento de cada uma das prestações referidas em I) e II) e III) até integral pagamento.

V) Os pagamentos referidos serão realizados pela Ré/Seguradora mediante transferência bancária para a conta do Autor/Sinistrado, cujo IBAN o mesmo se compromete a juntar aos autos no prazo de 5 dias.

VI) As custas serão suportadas pelas Partes em partes iguais, entre o Autor/Sinistrado, Ré/Seguradora e Ré/Empregadora, prescindindo todas de custas de parte, e sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar o Autor/Sinistrado”.

6-Perante tal requerimento o M.mo Juiz proferiu a seguinte decisão:

Verificada a capacidade das Partes e a legalidade do acordo que antecede, o qual se mostra conforme com as regras imperativas da lei dos acidentes de trabalho, considera-se o mesmo válido e condenam-se as Partes a cumpri-lo nos seus precisos termos.

Fixa-se à ação o valor de €95.974,97 (art.º 120.º/1 CPT).

Custas conforme o acordado”.

7-A decisão proferida pelo Mº Juiz não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

8- E não se pronúncia, como se impunha, pela responsabilidade agravada imputada à empregadora, por violação das regras de segurança, conforme alegada na petição inicial, nomeadamente os nos arts 4º,5º,6º,7º, 9º, 10º, 11, e 14º.

9 - O comportamento da ré empregadora, conforme resulta do despacho de 08/03/2022 constitua tema de prova.

10- Consequentemente, tal decisão ao não se pronunciar sobre tal facto é nula por omissão e por falta de fundamentação.

11 - De acordo com o disposto no art. 78º da Lei 98/2009 de 4 de setembro os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis não estando na disponibilidade do sinistrado eximir a empregadora da eventual responsabilidade agravada.

12- Padecendo a decisão do tribunal a quo de nulidade por omissão de pronúncia, nulidade que expressamente se invoca para os devidos efeitos legais, deverá a mesma ser substituída por Acórdão que determine a baixa dos autos para que o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo se pronuncie expressamente sobre tais questões, especificando os fundamentos de facto e de direito e se pronuncie de forma expressa e fundamentada sobre a violação ou não das regras de segurança por parte da empregadora e responsabilidade agravada desta, nos termos do disposto nos arts 73º, 77º, do CPT, 607º, 615º, nº 1 als. b) e c) e 617º do CPC e art. 78º do CT


+

Contra-alegou a empregadora, concluindo:

(…).


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V.- A matéria de facto a considerar é a narrada no relatório do presente despacho.

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VI – Como são as conclusões das alegações que delimitam o objeto do recurso importa dilucidar e decidir se a transação é nula.

Alega o recorrente que a nulidade da sentença homologatória da transação é nula por estarem verificadas as circunstâncias a que aludem as alíneas als. b) e c) do º 1 do artº 615º do CPC.

Como se sabe, as nulidades previstas no art.º 615º do Código de Processo Civil prendem-se com o cumprimento ou a violação de regras de estrutura, de conteúdo ou dos limites do poder à sombra do qual são decretadas, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção do próprio acórdão, ou seja, a vícios formais do acórdão ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.

No que concerne à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão a que alude a alínea b), ensina-nos Alberto dos Reis que: “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)” - Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pag.140.

O mesmo entendimento tem sido defendido por Doutrina mais recente.

Refere Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pag.297 que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”.

No mesmo sentido diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença” (cfr. “Notas ao Código de Processo Civil”, III, pag.194).

A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores, pacificamente, tem considerado que a nulidade prevista na alínea b) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/4/1975-BMJ 246º, p.131; Acórdão da Relação de Lisboa de 10/3/1980-BMJ 300º, P.438; Acórdão da Relação do Porto de 8/7/1082-BMJ 319º, p.343; e, mais recentemente, Acórdão da Relação de Coimbra de 6/11/2012, P. 983/11.5TBPBL.C1 e Acórdão da Relação de Évora, de 20/12/2012, P. 5313/11.3YYLSB-A.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).

No caso em análise, basta ler a sentença homologatória para se concluir não enfermar esta do vício em causa.

Na verdade, nela se declara ter sido verificada a capacidade das partes e a legalidade do acordo, “o qual se mostra conforme com as regras imperativas da lei dos acidentes de trabalho

Não se verifica, assim, a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assentou a decisão, pelo que não ocorre a nulidade a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 615º do CPC.

No que se refere à nulidade prevista na alínea c), a fundamentação legalmente exigida visa dar a conhecer as razões de facto e de direito que o tribunal considerou e que originaram uma determinada conclusão que subjaz à decisão.

Daí que os fundamentos constituam as proposições em que assenta o silogismo da decisão.

Por isso, a sentença que enferma de vício lógico que a compromete é nula.

Todavia, este vício não é de frequente verificação. O mesmo só ocorre em situações em que se mostre claro que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág. 141).

Dito de outro modo, para que se verifique tal vício tem de existir uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão tomada, o que manifestamente não se verifica no caso.

Todavia, a sentença homologatória é no nosso entendimento, nula por outros motivos.

Não é permitida transação que importe afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (nº 1 do artº 289º do CPC).

Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caráter imperativo são nulos, nulidade que é do conhecimento oficioso do tribunal (artºs 286º e296º do CC).

Os direitos ou garantias previstas na LAT constituem um patamar mínimo indisponível, abaixo do qual as partes não podem descer.

Como pacificamente é reconhecido, tais normas revestem a natureza imperativa, sendo nula a convenção contrária aos direitos e garantias conferidas pela referida Lei, sendo igualmente nulos os atos e contratos que visem a renúncia aos direitos pela mesma Lei atribuídos (nºs 2 e 3 do artº 12 da LAT).

No caso, a tentativa de conciliação realizada na fase não contenciosa frustrou-se porque, tendo o sinistrado entendido que o evento infortunístico ocorreu devido à inobservância de regras de segurança por parte da empregadora, esta não aceitou tal entendimento.

Na fase contenciosa veio o sinistrado, na petição inicial que apresentou, reafirmar o mesmo entendimento pedindo que a reparação infortunística fosse fixada com base na inobservância daquelas regras por parte da empregadora, ou seja, pediu que a esta reparação obedecesse aos critérios fixados nº 1 do artº18 e nº 3 do artº 79º da LAT.

E os temas de prova foram enunciados pressupondo também essa mesma questão de direito, reconhecendo até a ré que, ao tempo do acidente, as correias da máquina trefiladora não se encontravam protegidas com uma tampa.

Não era, assim, lícito ao sinistrado renunciar através de transação que celebrou fazendo “cair” a questão da responsabilidade agravada por violação de regras sobre segurança com o consequente cálculo da reparação sem aquela agravação da responsabilidade.

A isto não obsta o facto de ter já sido produzida prova pois a fixação da matéria de facto provada, atento a natureza das normas aplicáveis, nas quais naturalmente se incluem as relativas à responsabilidade agravada, compete ao tribunal e não às partes.

A não ser assim, estar-se-ia a deixar entrar pela “janela” aquilo que a lei não permite que entre pela “porta”.

Ainda que por via indireta, traduzida no acordo firmado sobre a matéria de facto, o sinistrado torneou uma norma de caráter imperativo que não lhe permitia transacionar da forma como o fez, renunciando a um direito que a LAT lhe confere de forma imperativa.

Ao contrário do referido na sentença homologatória da transação, salvo melhor opinião, não se mostra celebrada conforme as regras imperativas da lei dos acidentes de trabalho.

O que acarreta sua nulidade nos termos do disposto no artº 294 do CC, nulidade esta da qual esta Relação conhece atento o seu conhecimento oficioso.


***

VI Termos em que, julgando-se a apelação procede, se declara a nulidade, da transação e da subsequente sentença homologatória devendo os autos prosseguir os seus termos.

*

Custas a cargo do reclamado.

*

Sumário[1]:

(…).


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Coimbra, 13 de janeiro de 2024

*

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto Roberto.

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva).



[1] Da responsabilidade do relator