Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/20.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
RESPONSÁVEL CIVIL DESCONHECIDO
REEMBOLSO AO SEGURADOR
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 47.º, N.º 1, E 49.º, N.º 1, AL.ª A), DO DL N.º 291/2007, DE 21/08
Sumário: Ao Fundo de Garantia Automóvel não cabe reembolsar o segurador que haja indemnizado as vítimas de acidente de viação, designadamente por invocada sub-rogação daquele nos direitos do lesado em acidente de viação ocorrido por culpa de condutor de veículo desconhecido.
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 59/20.4T8CBR.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Coimbra - Coimbra - JL Cível - Juiz 2

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Helena Melo

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

..., C..., S.A. – Sucursal em Portugal, com sede na Av. ..., ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o FGA... com sede na Av. ..., ..., pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 20.577,00€, acrescida de juros vincendos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Fundamenta a sua pretensão num acidente de viação ocorrido em 10 de Janeiro de 2013 que envolveu o veículo de matrícula ..-..-TM (em relação ao qual havia assumido a responsabilidade emergente da respectiva circulação), um veículo desconhecido e o peão AA, imputando ao veículo desconhecido a responsabilidade exclusiva pela eclosão do acidente por ter sido ele quem adoptou uma série de condutas contravencionais por via das quais cortou a linha de marcha da condutora do veículo TM, determinando que esta perdesse o controlo do veículo e fosse embater numa paragem de autocarro onde se encontrava AA. Alegando ter pago – por força do contrato de seguro celebrado relativamente ao TM – a quantia global de 20.577,00€ para reparação dos danos sofridos por AA, sustenta que, nos termos do art.º 49.º, n.º 1, alínea a) do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, ficou sub-rogada nos direitos deste contra o FGA... (tendo em conta que o responsável pelo acidente é desconhecido), reclamando, por isso, que este lhe pague aquela quantia.

O Réu contestou, invocando a prescrição do direito da Autora, impugnando os factos alegados pela Autora nos termos e para os efeitos do art.º 574.º do CPC e alegando que, ao assumir o pagamento da indemnização por via de transacção celebrada no âmbito de acção que contra ela foi instaurada pelo lesado, a Autora aceitou, de forma expressa e inequívoca, a responsabilidade da sua segurada na produção do acidente.

Conclui pela improcedência da acção.

A Autora respondeu, sustentando a improcedência da excepção de prescrição.

Foi realizada a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido o despacho saneador onde, além do mais, se julgou improcedente a excepção de prescrição.

Foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver o Réu do pedido.

Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A Recorrente insurge-se quanto à interpretação realizada pela Mmª Juiz do Tribunal a quo dos artigos 47º, nº 1 e 49º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto.

2. Entende a Recorrente que tem legitimidade para demandar o FGA, em virtude do acidente em discussão nos presentes autos ter ocorrido por culpa exclusiva de um condutor cuja identidade não foi possível apurar.

3. O artigo 47º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto dispõe que a reparação dos danos causados por responsável desconhecido é garantida pelo FGA.

4. O DL nº 291/2007, de 21 de Agosto não limita nem exclui o exercício do direito de regresso das seguradoras contra o FGA.

5. A assunção de uma indemnização aos lesados em virtude do comportamento incauto e violador de regras estradais de um condutor não identificado não pode ser assumido como um risco inerente à atividade seguradora.

6. Não se encontra legal ou contratualmente previsto que as seguradoras tenham de assumir os danos provocados por terceiros alheios ao Contrato de Seguro.

7. Nos termos das Condições Gerais e Especiais da Apólice, a Recorrente fica sempre sub-rogada nos direitos do Beneficiário da indemnização relativamente a terceiros responsáveis, não se verificando quaisquer exceções à sub-rogação pela seguradora.

8. Não é pelo facto de o FGA agir como um protetor e garante da vítima que, a contrario, se encontra excluída sub-rogação nos direitos do lesado pela Recorrente contra o FGA.

9. Atendendo ao fundamento da criação do FGA, na ótica da Recorrente, o FGA é responsável perante a seguradora que regularizou o sinistro, em cumprimento do disposto no artigo 47º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto.

10. Adotando-se a posição de que as seguradoras não têm legitimidade substantiva para demandar o FGA, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, estamos perante um enriquecimento injustificado do FGA, porquanto impendia sobre o FGA indemnizar diretamente os lesados do acidente em discussão nos presentes autos, em virtude da atuação culposa de um condutor cuja identidade se desconhece, o que não é permitido no nosso ordenamento jurídico.

11. O FGA atua como um mero responsável subsidiário, atuando como responsável principal o condutor responsável.

12. Não sendo possível à Recorrente demandar o condutor responsável por ser desconhecido, o FGA tem de responder pelos montantes despendidos pela Recorrente com a regularização do sinistro.

13. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 47º, nº 1 e 49º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a Douta Sentença recorrida em conformidade com o alegado.

O Réu apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se, por força de alegada sub-rogação nos direitos do lesado em acidente de viação que alega ter ocorrido por culpa do condutor de veículo desconhecido, a Autora/Apelante pode exigir ao FGA... o reembolso do valor da indemnização que pagou ao lesado.


/////

III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. A Autora exerce devidamente autorizada, a indústria de seguros em vários ramos.

2. No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com BB um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº ...51, através do qual, foi transferida para a Autora a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo automóvel com a matrícula ..-..-TM.

3. No dia 10 de Janeiro de 2013, cerca das 9.00 horas, na EN nº ... – Via ... – ocorreu um sinistro em que foram intervenientes o veículo automóvel com a matrícula ..-..-TM, na ocasião conduzido por BB, um veículo automóvel de cor …, desconhecido, e o peão CC.

4. No local, onde ocorreu o sinistro, a via é composta por quatro faixas de rodagem, repartidas por dois sentidos de circulação, duas no sentido .../..., e duas no sentido .../..., delimitadas por um separador central metálico.

5. Cada faixa de rodagem, à data, media sensivelmente 03,50 metros de largura.

6. No local, o limite de velocidade é de 70 Km/hora.

7. Configurando-se a via em recta.

8. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1., o veículo com a matrícula ..-..-TM, circulava no sentido .../..., na faixa de rodagem da direita das duas existentes nesse sentido.

9. Na ocasião do sinistro chovia, encontrando-se o piso molhado.

10. Não obstante era dia e havia boa visibilidade, conseguindo os condutores avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão superior a 50 metros.

11. Circulando como supra descrito, ao chegar junto da saída para ... e ..., a condutora do TM foi surpreendida pelo súbito aparecimento de um veículo de cor … que circulava também no sentido .../..., na via da esquerda das duas existentes nesse sentido.

12. Cujo condutor, ao aproximar-se da saída para ... e ..., saiu repentinamente da via da esquerda, em direcção à via onde circulava o TM, com intuito de seguir pela referida saída.

13. O que fez sem reduzir a velocidade, sem acionar o sinal luminoso de mudança de direcção à direita, e sem se colocar atrás do TM.

14. Antes saído da via da esquerda, fazendo uma diagonal, com o intuito de ultrapassar o TM e seguir pela referida saída.

15. Tendo para tal, transposto a linha longitudinal contínua ali existente e cortado a linha de marcha do TM.

16. Perante tal manobra, a condutora do TM tentou evitar o embate, guinando para a direita, “fugindo” assim do veículo que se aproximava do seu lado esquerdo.

17. Porem, atenta a forma súbita e inesperada como o veículo de cor … se atravessou à sua frente, a condutora do TM, perdeu o controlo do mesmo, entrando em despiste.

18. Indo embater numa paragem de autocarros dos ..., na berma direita da via, onde se encontrava CC.

19. Em consequência do sinistro, a condutora do TM e CC, sofreram ferimentos leves.

20. Tendo posteriormente sido transportados para o CH...

21. Na sequência do sinistro, a condutora do TM intentou contra o ora Réu FGA uma acção declarativa, que correu termos no Julgado de Paz de ..., sob o processo nº …, alegando a culpa exclusiva do condutor do veículo desconhecido na produção do sinistro, e pedindo a condenação do aí réu FGA a pagar-lhe a quantia total de €10.480,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais por si sofridos em consequência do sinistro.

22. Nessa acção foi proferida sentença transitada em julgado, que julgou a mesma parcialmente provada e procedente, condenando o aí réu FGA, a pagar à aí autora, a quantia de € 3.500,00, absolvendo-o do demais peticionado.

23. Em consequência do sinistro, CC sofreu traumatismo na cabeça, face, ombro esquerdo e coluna cervicodorsolombar.

24. Tendo após o sinistro sido transportado de urgência ao CH...

25. Por via do contrato de seguro supra referido em 2., a Autora suportou todas as despesas hospitalares, clínicas e de tratamento de CC.

26. Tendo despendido, as seguintes quantias:

- € 147,00 que pagou ao CH…, em 04.07.2013;

- € 70,00, que pagou a ... – Clínica ..., em 26.03.2013;

- € 360,00, que pagou a ... – C..., Lda., em 26.03.2013, 03.04.2013, e 29.04.2013.

27. Em consequência das lesões advenientes do sinistro, CC, ficou portador de sequelas determinantes da atribuição de um Défice Funcional Permanente de 5 pontos.

28. CC, intentou contra a ora Autora acção judicial que correu termos na ... – J..., sob o nº 82/16...., alegando a culpa exclusiva da condutora do TM na produção do sinistro, e peticionando a condenação aí ré e ora autora, a pagar-lhe a quantia global de € 68.828,03, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, perda de rendimento, danos futuros, despesas emergentes e dano biológico, por si sofridos em consequência do sinistro.

29. Nessa acção, as aí partes puseram termo ao litígio por transacção, nos termos das seguintes cláusulas:

“CLÁUSULA PRIMEIRA

O autor reduz o pedido para a quantia de € 20.000,00

CLÁUSULA SEGUNDA

A ré vincula-se ao pagamento da predita quantia, a pagar no prazo de 15 dias a contar da presente data, contra o recibo de quitação através de cheque a enviar para o escritório do Ilustre Mandatário do autor.

CLÁUSULA TERCEIRA

As custas em partes iguais prescindindo ambas das de parte”.

30. A referida transacção foi homologada por sentença.

31. Na sequência de tal transacção a Autora pagou a CC, a quantia de € 20.000,00, em 21.03.2017.

*

Não se julgaram provados os seguintes factos:

1.1. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1 dos factos provados, o veículo com a matrícula ..-..-TM, circulava a velocidade não superior a 60 km/hora.

2.2. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 1 dos factos provados, o veículo de cor … não identificado, circulava a velocidade superior a 90 km/hora.


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IV.

A sentença recorrida julgou improcedente a pretensão da Autora (Companhia de Seguros) por ter entendido que não existia sub-rogação da seguradora nos direitos do lesado contra o FGA.

Argumentou, para o efeito e no essencial:

· Que o FGA não é causador do acidente nem responsável civil (fundado em culpa ou risco), sendo mero garante da efectivação da indemnização (por morte ou lesões corporais) devida ao lesado;

· Que a intervenção do FGA é meramente subsidiária e excepcional, tendo como função evitar a total desprotecção da vítima, decorrente, nomeadamente, do não apuramento da identidade do lesante, restringindo-se, por isso, à relação jurídica originária do crédito indemnizatório fundado em responsabilidade civil em que são partes o lesado e o lesante;

· Que, como tal, o FGA responde apenas – e só – perante os lesados ou titulares do direito a indemnização, com a sua responsabilidade a desempenhar a assunção colectiva de danos que, sem ela, ficariam insatisfeitos;

· Que a faculdade (ou direito) de demandar o FGA que integrava a posição jurídica da vítima do acidente de viação é um direito pessoal e inseparável da pessoa dela (como lesada atingida directamente na sua pessoa e indirectamente no seu património) e, como tal, intransmissível;

· Que, nessas circunstâncias, os direitos do lesado que sejam adquiridos, por sub-rogação, pela seguradora não incluem o direito de acionar o FGA para obter o reembolso do que tenha pago.

A Apelante, por seu turno, argumenta:

· Que o artigo 47º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21/08, ao dispor que a reparação dos danos causados por responsável desconhecido é garantida pelo FGA, não limita nem exclui o exercício do direito de regresso das seguradoras contra o FGA;

· Que as seguradoras não têm de assumir os danos provocados por terceiros alheios ao contrato de seguro e tal não pode ser assumido como risco inerente à actividade seguradora;

· Que o FGA actua como responsável subsidiário (actuando como responsável principal o condutor responsável), pelo que, não sendo possível demandar o condutor responsável por ser desconhecido, o FGA tem de responder perante a seguradora que regularizou o sinistro, em cumprimento do disposto no artigo 47º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto;

· Que, ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 47º, nº 1 e 49º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto.

Analisemos então a questão.

A Autora – tendo indemnizado o lesado pelos danos que este sofreu em consequência de um acidente de viação cuja culpa imputa ao condutor de um veículo desconhecido – vem reclamar ao FGA o valor que pagou, com fundamento no disposto nos artigos 47.º, n.º 1 e 49.º, n.º 1, alínea a) do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (Dec. Lei n.º 291/2007 de 21/08) e com fundamento numa pretensa sub-rogação nos direitos do lesado.

Começamos por referir que, apesar de ter fundamentado a sua pretensão numa sub-rogação, a Autora não alegou a sua fonte e o seu fundamento legal. Será seguro afirmar que não estará em causa uma sub-rogação efectuada pelo devedor ou pelo credor nos termos previstos nos artigos 589.º e 590.º do CC (nada foi alegado nesse sentido e nenhuma declaração desse tipo consta da transacção onde a Autora se obrigou a pagar ao lesado a indemnização cujo reembolso vem aqui peticionar), tal como não está em causa a situação prevista no art.º 591.º do mesmo diploma. Tal sub-rogação teria que ser, portanto, uma sub-rogação legal por se enquadrar no disposto no art.º 592.º do CC ou por estar expressamente prevista em qualquer outra disposição legal, sendo certo, porém, que nada se alegou nesse sentido. Não está em causa a situação prevista no art.º 136.º do Regime Jurídico do contrato de seguro (Dec. Lei n.º 72/2008 de 16/04); não está em causa uma indemnização por acidente de trabalho em relação à qual a lei consagra – no art.º 17.º, n.º 4, da Lei n.º 98/2009 de 04/09 – o direito de a seguradora que pague a indemnização se sub-rogar nos direitos do lesado contra os responsáveis pelo acidente e a Autora não invocou qualquer outra disposição legal onde assente esse direito. Também não estará em causa – pensamos nós – a situação prevista no art.º 592.º do CC, importando notar que a Autora pagou a indemnização em questão por força de transacção celebrada numa acção que contra ela havia sido instaurada pelo lesado e onde se imputava a culpa do acidente à condutora de um veículo que havia tido intervenção no acidente e que estava seguro na Autora (a Autora pagou, portanto, a indemnização na qualidade de seguradora do veículo a cujo condutor se imputava a culpa no acidente e não na qualidade de garante da obrigação de indemnização que estava a cargo do condutor do outro veículo – desconhecido – que também havia estado envolvido no acidente).

Tudo indica, portanto, que não estaria em causa uma sub-rogação e que o eventual direito que assistisse à Autora de reclamar de outrem – no caso, do FGA – o reembolso do valor que havia pago apenas poderia configurar um direito de regresso (cfr. artigos 497.º, n.º 2, e 507.º do CC).

Em qualquer caso, pensamos que – conforme se considerou e decidiu em 1.ª instância – a Autora (seguradora) não poderia exercer esse direito contra o FGA....

É indiscutível que, conforme previsto no Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (aprovado pelo Dec. Lei n.º 291/2007 de 21/08) – designadamente nos seus artigos 47.º, 48.º e 49.º – o FGA... garante a satisfação das indemnizações resultantes de acidente de viação nas concretas situações que ali se encontram previstas e, mais concretamente, sempre que o responsável pelo acidente é desconhecido ou não beneficia de seguro válido e eficaz.

Importa notar, no entanto, que, como expressamente se diz nas referidas disposições legais, o FGA é um mero garante da obrigação de indemnização a cargo do responsável pelo acidente; não é, contratual ou legalmente, um efectivo responsável pelas consequências do acto danoso e as suas atribuições e obrigações visam apenas garantir e assegurar ao lesado o efectivo ressarcimento dos danos quando o responsável é desconhecido ou quando, apesar de conhecido, não beneficie de seguro que possa assegurar o efectivo pagamento da indemnização.

Conforme se refere no preâmbulo do citado Dec. Lei n.º 291/2007, o FGA... é um dos pilares do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que visa, acima de tudo, a protecção dos lesados de acidentes de viação, ali se aludindo expressamente ao carácter do Fundo como “…de último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel…”. Significa isso, portanto, que a intervenção do Fundo – enquanto entidade que garante e satisfaz a indemnização devida ao lesado nas situações previstas na lei – é subsidiária e excepcional e apenas funciona quando o lesado não tem outra forma de ver assegurada a efectiva satisfação do seu direito indemnizatório, na medida em que não existe qualquer seguro que, para o efeito, possa ser accionado.

Como se refere no Acórdão do STJ de 05/05/2011 (processo n.º 620/1999.C1.S1)[1]…a fonte normativa do dever de indemnizar que o art. 21ºdo DL 522/85 faz recair sobre o FGA, embora tenha como pressuposto e medida a responsabilidade civil do causador do acidente, cuja identidade foi impossível apurar, não se situa no âmbito da figura da responsabilidade civil, constituindo antes objecto de um dever legal de ressarcimento, emergente do propósito de fazer assumir pela colectividade os risco mais gravosos, ligados aos acidentes estradais, nos casos em que foi inviável fazê-los incluir no âmbito do pilar/seguro obrigatório”. E essa ideia – segundo a qual a obrigação do Fundo não radica no instituto da responsabilidade civil extracontratual, legal ou contratual, mas sim no propósito de socializar os riscos associados à circulação rodoviária no sentido de evitar a desprotecção da vítima e de que o Fundo não é causador do acidente nem responsável civil, mas mero garante das indemnizações devidas aos lesados cujo escopo não passa pelo reembolso das seguradoras e que, visando apenas a protecção do lesado, apenas a este pode aproveitar – foi reafirmada pelos Acórdãos do STJ de 14/03/2013 (processo n.º 862/04.2TBPMS.C1.S1), de 30/05/2013 (processo n.º 6330/03.2TVLSB.L1.S1) e de 30/03/2017 (processo n.º 664/04.6TBBGC.P2.G1.S1)[2].

O FGA... não poderá, portanto, ser encarado como um normal responsável civil que, como tal, possa responder perante outros interessados no quadro legal do regime geral da responsabilidade civil e no âmbito de qualquer sub-rogação ou direito de regresso; o FGA... é um mero garante da satisfação da indemnização – ficando sub-rogado nos direitos do lesado, nos termos do art.º 54.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel – que apenas visa assegurar a efectiva protecção do lesado e que, como tal, apenas perante este poderá responder. Ou seja, o Fundo garante, perante o lesado, a responsabilidade do lesante/responsável pelo acidente no que toca à satisfação da indemnização que lhe é devida, mas já não lhe cabe garantir a responsabilidade que o lesante/responsável possa ter em relação a outras pessoas emergente de direito de regresso ou sub-rogação em relação àquela indemnização. Nesse sentido se pronunciou, aliás, o Acórdão do STJ de 30/05/2013 (acima citado), onde se considerou: que o direito de demandar o FGA é um direito pessoal, exclusivo e infungível, da vítima de acidente rodoviário e, como tal, intransmissível; que a intervenção do Fundo se restringe à relação jurídica originária do crédito indemnizatório fundado em responsabilidade civil em que são partes o lesado e o lesante, não se estendendo às relações em que ulteriormente essa relação se vier a desdobrar em consequência de modificações subjectivas da titularidade da posição de qualquer dessas partes e que o Fundo apenas indemniza as vítimas/lesados de acidentes de viação por via dessa mesma qualidade e não está obrigado a reembolsar qualquer outra pessoa que tenha pago ao lesado tal indemnização.

No sentido de fazer valer a sua pretensão, argumenta a Apelante que o citado Dec. Lei nº 291/2007 não limita nem exclui o reembolso às empresas seguradoras que satisfaçam as indemnizações devidas na sequência de um acidente de viação nas situações em que a identidade do causador do acidente é desconhecida, acrescentando que, caso fosse essa a sua intenção, o legislador tê-lo-ia dito expressamente como fez nos artigos 51.º e 52.º em relação às situações que aí se encontram previstas.

Pensamos não ter razão.

Na verdade, as citadas disposições legais não pretenderam, propriamente, regular ou enunciar as situações de exclusão da obrigação (do Fundo) de reembolso a outras entidades; o que ali se pretendeu regular e o que aí se encontra previsto são os limites e exclusões da responsabilidade do Fundo (ou seja, a delimitação da sua responsabilidade), mas sempre em relação ao lesado, pois que, conforme referido, é apenas em relação a este que ele garante a satisfação da indemnização, fazendo-o, naturalmente, dentro dos limites definidos na lei e, em particular, dentro dos limites que estão definidos nos citados artigos 51.º e 52.º. O legislador não terá sentido necessidade de dizer expressamente que o Fundo não estava obrigado a reembolsar terceiros do valor que estes haviam pago ao lesado com vista à reparação dos danos (por força de sub-rogação ou direito de regresso destes terceiros) na medida em que tal já resultava da natureza e função da obrigação do Fundo estabelecida na lei e que, reafirma-se, apenas opera na esfera de protecção dos lesados que tenham sido vitimas de danos[3], garantindo a efectiva satisfação da indemnização que lhes seja devida. E o disposto no citado art.º 51.º apenas vem reforçar que o âmbito de actuação do Fundo, além de apenas ter lugar quando nenhuma outra solução existe que permita a efectiva reparação dos danos do lesado, apenas se move e apenas opera em relação ao lesado e não relativamente a terceiros que lhe tenham pago a indemnização, quando dele resulta – de modo claro – que o Fundo, além de não responder perante terceiros em casos onde a lei prevê expressamente a sub-rogação destes (os casos em que o acidente também configura um acidente de trabalho ou de serviço ou os casos em que o lesado beneficia da  cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios), nem sequer está obrigado a pagar ao lesado o valor do dano que este tenha direito a receber das entidades e seguradoras responsáveis pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho ou das seguradoras que estejam obrigadas a tal reparação por força de contrato de seguro automóvel de danos próprios, tal como não está obrigado a pagar o valor do dano que não exceda o valor das prestação a que o lesado tenha direito ao abrigo do sistema de protecção da segurança social, cabendo a estas entidades o efectivo pagamento do valor a que estão obrigadas e ficando com direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar (cfr. n.º 4 do citado art.º 51.º).

Diz a Apelante que as seguradoras não têm de assumir os danos provocados por terceiros alheios ao contrato de seguro e que tal não pode ser assumido como risco inerente à actividade seguradora.

Relativamente a essa argumentação, cabe dizer que não estará em causa propriamente um risco inerente à actividade seguradora, mas sim o risco geral que é inerente a qualquer direito. O direito que, eventualmente, assista à Autora/Apelante (seja por via de sub-rogação, seja por via de direito de regresso) é dirigido ao lesante/responsável pelo acidente (é este o obrigado à satisfação do eventual direito da Autora) e a Autora poderá exercer, naturalmente, o seu direito se e quando o responsável for conhecido. Poderá – é certo – não conseguir satisfazer esse direito (seja porque a identidade do lesante não chega a ser conhecida, seja porque o mesmo, apesar de conhecido, não tem meios de satisfazer a obrigação), mas isso é um risco inerente a qualquer direito. Isso não significa, no entanto, que a Autora/Apelante possa obter do Fundo a satisfação do seu direito, porque o Fundo não é o responsável pelo acidente (não é, por isso, o obrigado em relação ao direito da Autora) e não garante a satisfação desse direito; o Fundo garante, perante o lesado e em relação à efectiva satisfação da indemnização que lhe seja devida, a responsabilidade que pertence ao lesante/responsável pelo acidente, mas já não lhe cabe garantir essa responsabilidade perante outras pessoas e em relação à satisfação do direito que estas possam ter por força de sub-rogação ou direito de regresso.

Nesse sentido também se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 28/10/2015 (processo n.º 894/14.2T8VNG.P1)[4] onde se considerou, designadamente, que, para os efeitos indemnizatórios a cargo do Fundo, importa distinguir entre, por um lado, as vítimas de acidentes de viação (pessoas lesadas pelo sinistro automóvel e, como tais, titulares do direito a indemnização) e, por outro lado, aqueles que nenhum dano directo sofreram com o acidente, dele não sendo, por isso, vítimas, mas podendo ser responsáveis em termos indemnizatórios (como as seguradoras chamadas a pagar indemnizações às vítimas) e que ao FGA apenas cabe satisfazer as indemnizações a tais vítimas/lesados, não lhe cabendo reembolsar as seguradoras que hajam indemnizado tais vítimas.

Assim e em função de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a sentença recorrida.


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                       (Helena Melo)                    




[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3.ª edição, pág. 481.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.