Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/10.3TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ACTO ADMINISTRATIVO
ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 21º, 43º/1 B DO DL 97/2000 DE 25/5
Sumário: 1. Quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo.

2. A infracção contra-ordenacional ao estipulado no artigo 21º do DL 97/2000 de 25/5 – cfr. Artigo 43º/1 b) consiste na instalação de um ESP (equipamento sob pressão) em infracção do diploma e já não em «funcionamento» ou «utilização» [como aludem as alíneas c) e d) desse artigo 43º, por exemplo].

3. Conforma-se como ilícito instantâneo, embora de efeitos duradouros, consumado e exaurido com a concreta instalação do ESP sem aprovação superior.

4. Nessa medida, instalado o ESP, fica consumado o ilícito contra-ordenacional e tem início o prazo prescricional (arts 5º e 27º do D.L. 433/82, de 27/12), prazo que, atento o montante máximo da coima aplicável, é de 3 anos.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

            1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 53/10.3TBTCS do Tribunal Judicial de Trancoso, em que é recorrente a arguida L…, SA, por sentença datada de 3 de Novembro de 2010, foi DECIDIDO:

«julgar parcialmente procedente o presente recurso de impugnação judicial e, em consequência, decide-se:

a) manter a decisão administrativa  no que concerne à contra-ordenação p. e p. pelos artigos 21.º, e 43.º n.º 1, alínea b), e n.º3 do D.L.  n.º 97/2000 de 25/5, relativa à utilização de equipamentos sob pressão, na qual foi condenada na coima de € 2.000,00, (dois mil euros);

b) revogar a decisão administrativa e absolver a arguida L…, S.A., da prática das seguintes:

· contra-ordenação p. e p. pelos artigos 17.º, n.º1 e 20.º, n.º2 do D.L. n.º 239/97, relativa ao envio dos mapas de resíduos à entidade competente;

· contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º1 e 26.º, n.º 1 do D.L. 267/2002, de 26.11, relativa à falta de licença para o depósito de nafta;

· contra-ordenação p. e p. pelos artigos 3.º, n.º 1, 41.º, e 86.º, n.º 1, alínea p) e n.º 2 alínea a) do D.L. n.º 46/94, relativa à retenção de águas subterrâneas sem a respectiva licença».

            A decisão administrativa foi datada de 15 de Outubro de 2009, tendo condenado a recorrente na coima de € 2000 pela prática da 1ª contra-ordenação acima identificada.

2. Inconformada, a arguida recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1. A recorrente vem condenada no pagamento de uma coima no valor de € 2.000,00, pela prática da infracção p. e p. pelos artigos 21º e 43, nº 1 alínea b) do DL 97/2000, de 25 de Maio, punível com coima entre € 498,80 a € 44.891,81.

2. Esta infracção consubstancia-se na instalação, em condições de poder ser colocado em funcionamento, de um equipamento sob pressão (ESP) sem que a respectiva instalação tenha sido aprovada.

3. O respectivo pedido de aprovação deveria ser precedido da realização de ensaios e provas de pressão e deveria ser instruído com certificado de aprovação da construção e relatório referente à inspecção técnica realizada ao equipamento e à instalação (cfr. artigo 22 nº 3 do citado diploma).

4. Ora, conforme decorre dos documentos de fls. 304, 305 e 339, o aludido EPS foi ensaiado na data de 06.12.2004, pelo que, nesta altura já se encontrava necessariamente instalado.

5. Daqui decorre que, desde a instalação do EPS decorreram, pelo menos, cerca de seis anos.

6. E, assim, nos termos do disposto nos artigos 27, 272-A e 28 do RGCO, o presente procedimento já se encontra prescrito, pois decorreu já o prazo normal de prescrição (três anos) acrescido de metade.

7. O Tribunal a quo julgou não se verificar a suscitada prescrição, porquanto entendeu estarmos perante uma contra-ordenação “permanente”.

Porém,

8. Salvo o devido respeito, para que pudéssemos estar perante uma contra-ordenação permanente seria necessário que tivesse resultado dos, factos provados que a recorrente manteve e mantém o ESP em funcionamento, o que no caso acontece. Pois,

9. Resulta tão só dos factos provados que, na data da inspecção (ocorrida em 25 de Outubro de 2006) a caldeira se encontrava em funcionamento, não tendo sido apurado se depois dessa data continuou ou não em funcionamento.

10.E, assim, forçoso será concluir que estamos perante uma contra-ordenação instantânea.

11. Logo, a decisão recorrida violou, além do mais, o disposto nas normas legais supra citadas, devendo ser substituída por outra que julgue verificada a prescrição do presente procedimento contra-ordenacional.

De todo o modo, acresce que:

12. O DL 97/2000 foi expressamente revogado pelo artigo 3º do DL 90/2010 de 22 de Julho, adoptado no âmbito das medidas executórias do Programa SIMPLEX e que prevê medidas de simplificação ao nível do licenciamento deste tipo de equipamentos, aprovando o Regulamento de Instalação, de Funcionamento, de Reparação e de Alteração de Equipamentos sob Pressão, excluindo uns do respectivo âmbito de aplicação e isentando outros de qualquer licenciamento.

13.Ora, no caso dos autos, o ESP da recorrente, conforme resulta do documento de fls. 305 e 339, é destinado a conter líquidos do grupo 2, com a pressão máxima admissível (PS) de 10 bar.

14. Pelo que, preenche as condições previstas na sub-alínea iv)-l) da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do citado Regulamento,

15. E, assim, o ESP da recorrente fica excluído do respectivo âmbito de aplicação;

16. Ora, não sendo exigível à recorrente qualquer aprovação da instalação, não poderá a mesma ser sancionada nos termos que lhe são imputados e que determinaram a sua condenação no pagamento de uma coima.

17. Mas ainda que assim não fosse, a verdade é que o nº 3 do artigo 36º do Regulamento prevê que os proprietários dos ESP instalados à data da sua entrada em vigor e que não se encontrem registados ou cuja instalação não se encontre conforme, apresentem um pedido de regularização no prazo de seis meses a contar daquela data.

18. Com efeito, estando ainda a decorrer tal prazo para a recorrente regularizar a situação, não poderá a mesma ser condenada.

19. Só após o decurso desse prazo que vai até 22 de Março de 2011, verificando-se, eventualmente, que a recorrente não fez o pedido de regularização é que poderia ser sancionada com a contra-ordenação prevista na alínea 1) do artigo 29º do invocado Regulamento e punível, nos termos do nº 2 e 4º do mesmo artigo, com coima entre € 1.500,00 a € 2.500,00, em caso de dolo ou com coima entre € 750,00 a € 1.250,00, em caso de tentativa ou de negligência.

20.Ao decidir de modo diferente a decisão recorrida violou, além do mais, as normas legais supra citadas.

Sem prescindir,

21. Acresce que, no recurso de impugnação a recorrente defendeu que a autoridade administrativa ao determinar a medida da coima não obedeceu nem fez uma correcta aplicação dos requisitos estabelecidos no artigo 18º do RGCO.

22. Mais alegou que a coima que lhe foi aplicada se mostra excessivamente gravosa.

23. Porém, a decisão ora recorrida não apreciou esta questão.

24. E, daqui decorre a respectiva nulidade, por força da aplicação do disposto no artigo 379º do CPC, nulidade que se argui com as devidas consequências.

Nestes termos e nos mais de direito, deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência deve revogar-se a decisão proferida».

            3. RESPONDEU o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

            «1. Vem a recorrente afirmar que a instalação do EPS foi efectuada há cerca de
10 anos pelo que na data do auto de notícia a mesma já se encontrava prescrita.

2. Foi levantado auto de notícia relativo à contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 21.° e 43.° n° 1, al. a) do DL. 97/2000, de 25/05, ora a referida contra-ordenação consiste em a recorrente ter instalado um equipamento sob pressão sem licenciamento.

3. Estamos perante uma contra-ordenação permanente. Efectivamente quando se trata de uma situação em que está em causa a utilização de um equipamento sem licenciamento apenas quando ocorra a cessação da utilização ou o licenciamento é que se iniciará a prescrição.

4. De facto, como regime geral das contra-ordenações e coimas regras próprias para a determinação do início da contagem do prazo de prescrição deve aplicar-se o artigo 119.° do Código Penal por via do disposto no artigo 32.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro. Assim conforme já afirmado e de acordo com o disposto no referido artigo, no caso das contra-ordenações permanentes, como é aquela que em que a recorrente foi condenada, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que cessar a consumação (artigo 119.°, n.° 2, alínea a), do Código Penal).”

5. Da decisão recorrida resulta que à data da inspecção a caldeira estava em funcionamento e que a arguida à data não possuía certificados de instalação da mesma.

6. Não era necessário que se provasse que continuou em funcionamento após o levantamento do auto de notícia apenas que no momento em que foi o mesmo levantado ainda estava em funcionamento e não estava ainda licenciada.

7. Assim, não se encontra prescrita a contra-ordenação imputada à arguida e pela qual foi condenada.

8. Vem a recorrente alegar que em virtude da entrada em vigor do DL 90/2010, de 22/07, deixou de ser exigível, ao ESP da recorrente o complexo procedimento de licenciamento antes previsto pelo DL. 97/2000, de 25/05.

9. Todavia, dos autos resulta que a recorrente iniciou, ao abrigo da L. 97/2000, o percurso no sentido de proceder a legalização tendo-se quedado a meio do mesmo.

11. O equipamento da recorrente enquadra-se no DL 90/2010 pois trata-se de um gerador de vapor conforme resulta de fls. 305 dos autos e quanto a estes apenas ficam excluídos do diploma os com PS menor ou igual a 0,5 bar (al. b) do art. 2.° n° 2). No entanto, mesmo que não viesse a enquadrar-se aqui sempre estaria incluído no presente diploma pelo ponto iii) do n° 2 do art. 2 pois efectivamente é aí que se deve incluir uma vez que se destina a conter vapor de água, e esse dispositivo apenas exclui do regime do referido diploma os ESP destinados a conter vapores do grupo 2 quando tenham uma PS menor ou igual a 4 bar, ou seja de potência manifestamente inferior à do equipamento da recorrente cuja PS é de 10 bar.

12. No entanto, verifica-se que o referido DL 90/2010, no seu art. 38.° mantém em vigor o DL 97/2000 para os casos em que se tenha iniciado o procedimento de licenciamento.

13. Assim, pelo disposto no art. 38.° fica afastado o regime do art. 36.° invocado pela recorrente pois o mesmo foi pensado para outras situações que não as do caso em apreço.

14. Na decisão recorrida foi afirmado e ficou provado que a recorrente percorreu, conforme resulta da decisão ora recorrida, os primeiros e segundo passos no sentido da legalização da sua situação, ou seja obteve certificado de conformidade e requereu o registo do ESP à DRE (19.° n° 1 al. e) e 20.° do DL 97/2000, de 25/05,) apenas não chegou ao terceiro passo, a conclusão do procedimento, a autorização da instalação e funcionamento.

15. Ora, não especificando o legislador que parte do diploma se mantém em vigor parece que se deve entender que todo o regime se mantém em vigor, pelo que é nesse normativo que se deve encontrar a solução do caso concreto, devendo por isso, manter-se a decisão recorrida, e que condenou a recorrente na contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 21.° e 43.° n° 1, al. a) do DL. 97/2000, de 25/05.

16. Afirma a recorrente que no recurso sustentou terem sido incorrectamente ponderados os factores elencados no artigo 18.° do DL 433/82, de 27/10, e que as coimas foram aplicadas de modo gravoso e excessivo mas que a decisão recorrida não se pronunciou sobre esta questão pelo que a sentença recorrida é nula por violação do artigo 379.° n° 1 al. e) do Código de Processo Penal aplicável por força do disposto no artigo 32.° do RGCOC.

17. Todavia, no presente procedimento a recorrente não invocou nem provou factos quanto à sua situação económica dos quais se pudesse retirar que a aplicação das coimas era excessiva ou que a mesma tenha violado o artigo 18.° do RGCO, pois apenas invoca genéricas dificuldades económicas resultantes da actual conjuntura.

18. Mais, resulta da decisão que na determinação da medida da pena foi considerado o grau de culpa da recorrente (uma vez que quanto à sua situação económica esta nada disse), pelo que a decisão recorrida se pronunciou sobre tal facto e, de entender-se, que, ao manter a decisão nos seus precisos termos a Mma. Juíza considerou que a mesma não violou o referido preceito.

Não havendo por isso nulidade por falta de pronúncia.

19. Neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça datado de
15/12/2005, Proc. n° 05P2951, in www.dgsi.pt, no qual é dito que não se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos invocados pela parte em apoio da sua pretensão, sendo questões apenas os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.”

Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e, em consequência, mantendo, na íntegra, a douta decisão recorrida, Vas. Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA».

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 415-416, remetendo para a argumentação do Colega de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (tendo a arguida apresentado a resposta de fls 418-422), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCOC), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCOC, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto[1]).

No fundo, sabemos que não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Note-se que o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

 Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber, assente que apenas está em causa a condenação proferida nos autos – no fundo, a manutenção da decisão administrativa - e já não as revogações da decisão administrativa operadas pela decisão recorrida:

             - se está ou não prescrito o procedimento contra-ordenacional pela contra-ordenação p. e p. pelos artigos 21º e 43º/1, alínea a) e 3 do DL 97/2000 de 25/5;

- caso não esteja, se está hoje, face à entrada em vigor do DL 90/2010, de 22/7, que veio revogar o diploma de 2000, excluído do âmbito da norma «incriminadora» o ESP da recorrente;

- se existe omissão de pronúncia quanto ao exagero da coima aplicada pela autoridade administrativa.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. São estes os FACTOS dados como provados em sede de sentença:
1. A arguida L…, S.A., com sede na Quinta …, ..., dedica-se ao fabrico de queijos.
2. No dia 25 de Outubro de 2006 no âmbito de uma acção inspectiva às instalações referidas em 1., que se encontrava em laboração, verificou-se que existem neste estabelecimento industrial cinco origens de água, respectivamente, três poços, uma lagoa e a rede de abastecimento público.
3. Os poços identificados em 2. têm uma profundidade inferior a 10 metros e as respectivas bombas de extracção têm potências inferiores a 5 cv.
4. A arguida não tem qualquer documento legalmente válido para a lagoa de retenção referida em 2.
5. A arguida produziu, durante o ano de 2005 os seguintes resíduos:
i. 13.02.05: óleos minerais não clorados de motores, transmissões e lubrificação, resultantes das mudanças de óleos das viaturas pertencentes à empresa;
ii. 20.01.01: papel e cartão;
iii. 20.01.39: plásticos, resultantes da inutilização de embalagens do processo de embalagem dos produtos acabados. 
6. A arguida apresentou durante o acto inspectivo o mapa de resíduos industriais relativos à produção daqueles resíduos do ano de 2005.
7. A arguida procedeu, por carta registada de 14.02.2006, ao envio do mapa referido em 6. à CCDR Centro.
8. No estabelecimento referido em 1. existe um depósito de nafta com capacidade de cerca de 30.000 mil litros para alimentação da caldeira associada ao processo produtivo.
9. A arguida apresentou na Câmara Municipal de ... o processo de licenciamento de uma nova unidade industrial, bem como todos os projectos das especialidades que vieram a obter pareceres favoráveis.
10. Posteriormente, em 2008, a arguida licenciou na Câmara Municipal de ... a instalação de um posto de combustíveis líquidos.
11. No estabelecimento referido em 1. , existem duas caldeiras, uma nova e uma antiga proveniente das antigas instalações.
12. À data da inspecção, apenas a primeira caldeira estava em funcionamento; a segunda estava em reparação.
13. As duas caldeiras são equipamentos sob pressão.
14. Em 15.05.2005 foi emitido pela RINAVE certificado de conformidade do ESP n.º 432012;
15. Em 18.05.2005 a Direcção Regional da Economia do Centro informou a L... que “na sequência do pedido de registo do equipamento sob pressão com o n.º de fabrico 432012 construído por LGI, com a pressão máxima admissível de 10 bar e capacidade de 10088 litros, informamos que ao mesmo foi atribuído o n.º de registo n.º 014809/C”.
16. A arguida não possui certificados de aprovação da instalação das caldeiras referidas em 11.
17. Ao utilizar o equipamento sob pressão sem a respectiva autorização de funcionamento por parte da DRE competente, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz, bem sabendo que não o podia fazer sem ter a devida licença.


2.2. São estes os Factos não provados:
a) Ao proceder à retenção de águas subterrâneas sem a respectiva licença, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz;
b) Ao não proceder ao envio atempado à entidade competente dos mapas de resíduos, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz.
c) Ao manter os tanques de armazenagem com derivados do petróleo (nafta) sem a respectiva licença, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz;

2.3. Motivou, assim, o tribunal recorrido a sua convicção em matéria factual:
«Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados acima transcritos, o Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o art. 127.º do C.P.P., respeitando os critérios da experiência comum e da lógica.

Deste modo, o tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, concretamente, nas testemunhas JP..., RG..., ML... e MJ… .

Com efeito, e no que concerne aos factos dados como provados 1 a 4, o tribunal baseou-se no auto de noticia de fls. 6 a 8.

Para prova dos factos elencados nos n.º 5 a 7, o tribunal ateve-se no depoimento da testemunha ML..., escriturária da arguida que confirmou ter enviado o mapa de registo dos resíduos respeitante ao ano de 2005, no dia 14.02.2006, o que é comprovado pelos documentos juntos a fls. 294 a 297, e 303.

No que diz respeito aos factos dados como provados nos pontos 8 a 10 o tribunal baseou-se no documento da Câmara Municipal de ..., junto a fls. 336.

Com efeito tal documento apesar que expressamente consignar que “não ter sido possível localizar o projecto de licenciamento inicial, designadamente a arquitectura, e a respectiva planta de localização”, é convicção da Câmara Municipal de ... que o depósito de armazenamento com nafta encontrava-se “previsto no referido projecto por ser essencial à laboração da unidade industrial”.

Assim sendo, e pese embora não ter sido feita prova cabal no sentido de que a arguida possui licenciamento emitido pela Câmara Municipal de ..., para o armazenamento da nafta, o certo é que em caso de dúvida, esta não pode prejudicar a arguida, sendo, consequentemente, de lançar mão do princípio in dubio pro reo.

Relativamente aos factos 11 a 16, o tribunal baseou-se no auto de notícia de fls. 6 a 8, no certificado de conformidade junto a fls. 304 e 305, no documento junto a fls. 339 e no depoimento da testemunha MJ… que confirmou os factos supra descritos, esclarecendo que o documento de conformidade apresentado pela arguida não tem a virtualidade de consubstanciar a licença exigida por lei. Segundo alegou, tal documento trata-se tão-só de um certificado que atesta que a caldeira pode ser utilizada para o fim a que se destina, mas não substitui a licença de aprovação de instalação.

 No que respeita aos factos dados como não provado, tal teve por base ou a total ausência de prova que permitisse ao Tribunal decidir diferentemente quanto à matéria aí vertida, ou por o mesmo ser contrário aos factos dados como provados.
Assim, a única conclusão óbvia e lógica a tirar é a de considerar os mesmos como não provados».

            3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCOC (Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas – DL n.º 433/82 de 27/10, actualizado pelo DL n.º 356/89 de 17/10 e Lei n.º 109/2001 de 24/12), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 410º/2 e 3 do CPP).

            3.2. Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal.

Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa.

Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra ordenação).

Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional.

As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social.

No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.

3.3. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.

«Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.ºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).

Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt).

No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.).

Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas.

O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC).

No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que:

«O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.

Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.

A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».

O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.

O DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A)».

A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).

Assim sendo, o DL n.º 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

Assim mesmo dispõe o artigo 32.º:

«Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal».
Note-se que o regime original do DL 433/82 veio a ser revisto pelos DL 356/89 de 17/10 e 244/95 de 14/9 (já aqui aludido) e pela Lei n.º 109/2001 de 24/9.

3.4. Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social.

Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias.

A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, n.º 10, da CRP e art. 50º do RGCOC).

Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC.

Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa.

Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas do artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP.

Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações.

Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo[2]).

Decidiu o Acórdão do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito:

«O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41.º, n.º 1).

Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas».

Quanto às sanções contra-ordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Oliveira Mendes):

«Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33).

Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exm.º Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida.

Tal como decorre do texto legal – art.18º, n.º 1, do RGCC –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contra-ordenação».

Na linha do preceituado pelo artigo 18º, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».

3.5. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso.

A 1ª questão a resolver é saber se está ou não prescrito o procedimento contra-ordenacional pela única contra-ordenação alvo de condenação nos autos.

O prazo da prescrição do procedimento contra-ordenacional, no nosso caso, é de 3 anos, tendo em conta a moldura abstracta da coima (cfr. artigo 43º/1 b) do DL 97/2000 de 25/5, diploma vigente à data da autuação – coima de € 498,80 a € 44.891,81) e o teor do artigo 27º, alínea b) do RGCOC.

Tal prazo conta-se desde «o dia em que o facto se tiver consumado» (artigo 119º/1 do CP, aqui aplicável subsidiariamente por força do já citado artigo 32º do RGCOC).

Ora, qual é o dia da consumação para estes efeitos?

3.6. A infracção contra-ordenacional por que a recorrente foi condenado consiste na instalação de um ESP (equipamento sob pressão) em infracção ao estipulado no artigo 21º do DL 97/2000 de 25/5 – cfr. Artigo 43º/1 b) do diploma.

Tal artigo 21º normatiza que a instalação fixa de ESP está sujeita a aprovação a realizar pela DRE.

São, de facto, três os passos a encetar nesta sede:

1.º o proprietário obtém o certificado de aprovação ou conformidade, (como vem referido no artigo 19.º, n.º1, alínea c);

2.º o proprietário requer à DRE o registo do ESP, para o que tem que ter o certificado de conformidade, (cfr. artigo 20.º);

3.º e finalmente, o proprietário obtém a aprovação da instalação fixa do ESP, (artigo 21.º e ss).

A recorrente, como se viu, apenas percorreu os 1.º e 2.º passos, acabados de descrever, faltando o terceiro, que é o que está em causa.

Mas o que é que existe na lei como contra-ordenação?

É certo que o artigo 21º também diz que o ESP «não pode ser utilizado, ou de qualquer forma, posto em funcionamento, sem que a respectiva instalação tenha sido aprovada».

Contudo, a norma sancionatória apenas fala em «instalação» e já não em «funcionamento» ou «utilização» [como aludem as alíneas c) e d) desse artigo 43º, por exemplo].

Nessa medida, instalado o ESP, fica consumado o ilícito contra-ordenacional e tem início o prazo prescricional (arts 5º e 27º do D.L. 433/82, de 27/12), prazo que, atento o montante máximo da coima aplicável, é de 3 anos, já o vimos.

De facto, não podemos concordar com a tese do tribunal recorrido, segundo a qual nos encontramos perante uma «contra-ordenação permanente», o que projectaria o início da contagem desse prazo para a cessação da conduta ilícita.

Na categoria dos ilícitos duradouros ou permanentes enquadram-se as infracções em que a realização de acto ou a produção de evento com prolongamento no tempo do estado antijurídico típico por efeito de constante renovação da resolução criminosa do agente, o qual tem a faculdade de lhe por termo a qualquer altura.

Na senda de Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1983), «este tipo de ilícitos estrutura-se em duas fases distintas:

- uma primeira, que se analisa na produção de um estado antijurídico, e que nada tem de distinto em relação às demais infracções;

- uma segunda, esta específica e a conferir justificação material ao diferente regime, mormente no domínio da contagem do prazo prescricional, como emerge do artº 119º, nº2, al. a) do CP, correspondente à manutenção desse evento e que consiste no cumprimento do comando (tácito) que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesses jurídicos, em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz».

Deste modo, no crime permanente, haverá, pelo menos, uma acção e uma omissão, estruturalmente indivisíveis e que a lei integra numa só figura criminosa.

«Encontramos na esfera criminal exemplos desse tipo de ilícitos nos crimes de sequestro, associação criminosa e de introdução em lugar vedado ao público, sendo o seu figurino perfeitamente compatíveis com o ordenamento contra-ordenacional» (cfr. Acórdão desta Relação de 4/6/2008, Pº 2631/07.9TBPBL).

Aqui chegados, há que dizer que esta tipologia de infracções não se confunde com a dos ilícitos instantâneos com efeitos duradouros pois, nestes, inexiste o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa, tendo como exemplos expressivos o furto ou a bigamia.

Neste caso, a conduta típica não é a da manutenção da utilização do ESP mas sim a da sua instalação, sem que resulte da lei específico dever de a remover e muito menos a constante renovação da resolução por parte do agente.

A este propósito, leia-se também a eloquente doutrina exposta no Acórdão desta Relação, datado de 13/1/2010 (Pº 1180/09.5TBFIG.C1):

«(…) Luís Osório, duma forma simples mas elucidativa (ainda que não muito precisa), distingue assim entre crimes instantâneos e crimes permanentes:

Os crimes serão instantâneos ou permanentes “conforme se prolonga ou não, depois de produzidos, a mesma actividade que os produziu” - Cfr. “Notas ao Código Penal Português”, vol. I.

Já quanto ao tipo de crimes permanentes (a distinção foi originariamente gizada para os crimes, mas aplica-se nos mesmos termos às infracções de natureza contra-ordenacional., no dizer de Eduardo Correia - Cfr. “Direito Criminal”, Vol. I, pag. 309, Ed. de 1971, cuja exposição acompanhámos de perto na redacção deste parágrafo, que cita como exemplo o crime de cárcere privado, actualmente, crime de sequestro,) há que dizer que “são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo” e em que é possível distinguir duas fases: uma primeira fase correspondente à produção de um estado antijurídico, sem nada de característico em relação a qualquer outro crime; e uma outra, típica, correspondente à permanência ou à manutenção do evento, “… que consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz”.

Figueiredo Dias, numa visão mais actual, clarifica os conceitos nestes termos: “O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes, a consumação, anote-se, ocorre logo que se cria o estado anti-jurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação de domicílio (art. 190º-1) são exemplos desta espécie de crimes” - Cfr. “Direito Penal”, Parte Geral, tomo 1, pag. 314.

Os crimes permanentes são, assim, designados por contraposição aos crimes instantâneos, ainda que estes possam ter efeitos permanentes.

A diferença entre os dois tipos de ilícito reside na consumação (ou, com maior propriedade, na relação entre os efeitos do crime e a sua consumação). Assim, por exemplo, no crime de sequestro, “a pluralidade de actos necessários à detenção e encerramento da vítima, à manutenção da privação da sua liberdade e ao impedimento da fuga constitui uma única acção (típica) de sequestro” - Idem, a fls. 984, a propósito da unidade típica de acção.. Enquanto se mantiver a privação da liberdade da vítima subsiste a consumação do crime (a sua consumação material inicia-se com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima) - Cfr. Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, anot. ao art. 158º, pag. 409.

Daí que relativamente aos crimes permanentes, o prazo de prescrição só corra desde o dia em que cessar a consumação [art. 119º, nº 2, al. a), do Código Penal]. Já no crime de furto, que é um crime instantâneo, a consumação ocorre com a pacífica apropriação do bem pelo agente, ainda que subsistam os efeitos do crime (subsiste o desapossamento do proprietário relativamente ao bem furtado).

Trata-se, como refere Maia Gonçalves, de “… infracções em que a reunião dos seus elementos constitutivos (…) se adquire num determinado momento e só as suas consequências se prolongam no tempo, tratando-se, apesar das aparências, de uma verdadeira infracção instantânea que deve reputar-se definitivamente cometida na data da sua realização”. - Cfr. “Código Penal Português”, anot. ao art. 13º, Ed., pag. 63».

Também poderemos citar Germano Marques da Silva (in Direito Penal Português – Parte Geral I – pág.295) - «no crime permanente há uma só acção ou omissão que se protela no tempo (ex.: sequestro – artº158º). O tempus delicti não deixa de continuar a ser o do início da execução, porque desde esse momento que já há crime, mas porque a execução se prolonga todos os momentos são ainda de execução, tanto assim que o prolongamento tem frequentemente consequências ao próprio nível da ilicitude do facto».

Já Maia Gonçalves (in Código Penal Português – Anotado e Comentado, 15ª Ed, pág.404) escreve a propósito:

«Nos crimes permanentes, a execução persiste no tempo, porque há uma voluntária manutenção da situação anti-jurídica até que a execução cesse, ficando então o crime exaurido.

Diferentemente, nos crimes de estado – ou instantâneos - o agente cria uma situação, um estado anti-jurídico, do qual seguidamente se desprende, sem que esteja permanentemente e a todo o momento a persistir na sua resolução (como sucede nos casos de crime permanente)».

Neste, o agente mantém a reiteração do animus criminoso, actuando com o propósito inicial que nunca abandonou (cfr. Ac. do STJ de 07/12/89 – BMJ 400/240).

Voltando ao NOSSO CASO, o que é punível, nos termos da lei, é a instalação de um ESP sem prévia aprovação da DRE.

Por tal motivo, a consumação da infracção deu-se no preciso momento em que o ESP foi instalado, tendo sido, nesse preciso momento que a arguida praticou a infracção[3].

Nessa medida, o tipo contra-ordenacional imputado à arguida conforma-se como ilícito instantâneo, embora de efeitos duradouros, consumado e exaurido com a concreta instalação do ESP sem aprovação superior, assim se contrariando a tese do tribunal recorrido e do MP respondente.

Diferente seria se a infracção fosse a de UTILIZAÇÃO do ESP sem a correspondente aprovação, a qual, a ser contra-ordenação, só ficaria exaurida quando cessasse a utilização concreta do equipamento.

Veja-se, a título de exemplo, uma outra infracção – a contra-ordenação p. e p. pelos artigos 1º, 2º/1, 4º/1 e 26º/1 a) do DL 267/2002 de 26/11, na redacção do DL 195/2008 de 6/10 (diploma que estabelece os procedimentos e define as competências para efeitos de licenciamento e fiscalização de instalações de armazenamento de produtos de petróleo e instalações de postos de abastecimento de combustíveis).

Neste caso, a norma que pune a contra-ordenação é clara – pune também a exploração desse posto sem que haja uma licença municipal válida. E se estamos também a falar de exploração, então a infracção deixa de ser meramente instantânea para assumir a faceta de duradoura.

Na nossa situação, a lei não pune a exploração ou a utilização mas a mera instalação sem aprovação.

3.7. Ora, e se assim é, há que indagar pela data da instalação do ESP.

A recorrente, no seu recurso de CO, a fls 214, é clara: « (…) a instalação do depósito em causa foi efectuada, pelo menos, há 10 anos»).

Acontece que tal facto, essencial para a resolução desta questão da prescrição do procedimento contra-ordenacional, foi completamente olvidado pelo tribunal recorrido que decide resolver esta «questão prévia» da prescrição na fase do saneamento da sentença, deixando escrito o seguinte:

«Da  prescrição da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 4.º, n.º1 e 26.º, n.º 1 do D.L. 267/2002, de 26.11, relativa à falta de licença para o depósito de nafta e da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 21.º, e 43.º n.º 1, alínea b) do D.L.  n.º 97/2000, relativa à utilização de equipamentos sob pressão

Além do mais, a arguida invoca que estas contra-ordenações já prescreveram porquanto a instalação do depósito em causa e dos ESP foram efectuados, pelo menos, há cerca de dez anos, pelo que se encontrava prescrita na data do auto de notícia.

Sucede, porém, que não assiste razão à arguida.

Em primeiro lugar, cumpre afirmar que não foi apurada a data concreta de quando a arguida possuía esses equipamentos nas suas instalações, designadamente, se há mais ou menos de dez anos.

Por outro lado, e mesmo que se tivesse apurado tal data, o certo é que estamos perante uma contra-ordenação “permanente”, ou seja, estando em funcionamento/em utilização os referidos equipamentos – tal como estavam -, necessitam das referidas licenças.

Ou seja, enquanto durar a utilização desses equipamentos sem a devida licença, não ocorre qualquer prescrição, porquanto em cada momento em que são utilizados sem a licença, a arguida comete as contra-ordenações em causa, motivo pelo qual improcede a alegada prescrição do procedimento contra-ordenacional. 

                                                                       **

            Inexistem quaisquer outras questões susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa».

Mas se não foi apurada A DATA concreta de tal instalação é porque o tribunal não o quis fazer, sendo certo que fez um julgamento também para esse efeito.

Assim sendo, não se pode concordar com a simplista conclusão em sede de resolução da questão prévia de que «não foi apurada a data concreta» (se não foi, de facto, tal factualidade deveria constar do rol de factos não provados, o que não acontece, in casu).

Como tal, há omissão de pronúncia, por parte do tribunal recorrido, relativamente a uma questão que deveria ter sido apreciada, em sede instrutória.

Neste quadro, a alegação da arguida na impugnação judicial de que o depósito em causa (leia-se ESP) foi efectuada há, pelo menos, 10 anos, envolve a afirmação da consumação da contra-ordenação em causa e sobre ela deveria o Tribunal tomar posição, em termos de a considerar provada ou não provada.

Porém, tal não aconteceu.

Tal ausência de tomada de posição sobre elemento factual crucial para a decisão, e em relação ao qual não se vislumbra indeterminabilidade, mormente por referência ao ano da instalação do(s) ESP em causa, significa que a decisão da impugnação judicial enferma de omissão de pronúncia, nos termos do artº 379º, nº1, al. c) do CPP, cumprindo, como permite o disposto no artº 75º, nº2, al. b) do D.L. 433/82, de 27/12, determinar a sua anulação e a devolução do processo ao tribunal recorrido, para supressão da apontada omissão.

3.8. Mas será este o único vício da sentença recorrida?

Parece-nos que não.

A arguida foi condenada pela prática de uma contra-ordenação prevista em diploma que veio a ser posteriormente revogado por um novo diploma – no caso, o DL 90/2010 de 22/7, em vigor desde 22/9/2010, logo, em data anterior à da prolação da sentença dos autos (3.11.2010).

Tal novo diploma, no seu artigo 3º, vem revogar o diploma de 2000, urgindo que se tome posição, em sede de 1ª instância, sobre a responsabilidade contra-ordenacional da recorrente, face a esta sucessão de leis no tempo (v.g. artigos 2º/2 do CP e 3º/2 do RGCO).

Há, pois, sucessão de normas contra-ordenacionais que não foram atendidas pelo tribunal recorrido (apenas o tendo sido pelo MP respondente, em sede de 1ª instância), existindo, assim, clara omissão de pronúncia, na medida em que se impunha a tal entidade a precisa delimitação legal da situação de facto apresentada e, constatando a sucessão de normas incriminatórias, proceder à aplicação da lex mitior.

Finalmente, olvida o tribunal uma das questões que constituiu argumento do recurso: o exagero da coima concreta aplicada.

De facto, o tribunal recorrido nem sequer discute a dosimetria da coima, limitando-se a dizer:

«(…) Não se tendo precavido e agido com o cuidado que lhe era imposto no sentido de diligenciar por obter a licença em causa, cometeu a contra-ordenação que lhe vem imputada, a título de negligência, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, 43.º, n.º1, alínea b), e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 97/2000.

Pelo exposto, entendemos ser de manter a decisão recorrida no que concerne à contra-ordenação p. e p. pelos artigos 21.º, 43.º, n.º1, alínea b), e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 97/2000».

Ora, nem sequer se discute, como pede a recorrente, se a coima deve ou não ser fixada no seu limite mínimo (cfr. Artigo 13º de fls 219).

E isso configura omissão de pronúncia, na medida em que o tribunal recorrido não apreciou uma concreta questão que lhe foi colocada em sede de recurso de impugnação de Contra-Ordenação (não sendo de aplicar aqui a doutrina do Acórdão citado pelo MP nas sua resposta, já que o tribunal recorrido nem sequer conheceu a questão concreta, não estando nós a falar de meros argumentos).

3.9. Sabemo-lo já e é sempre bom recordar.

Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Ou seja: verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º do CPP), quando o tribunal recorrido, podendo (e devendo) fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.

Aqui chegados, diremos, assim, que o vício detectado não se limita a uma omissão de pronúncia subsumível à letra do artigo 379º/1 c) do CP (ex vi do artigo 41º do RGCO), mas - e falamos da questão da prescrição - erige-se a uma insuficiência para a decisão (no caso, sobre a alegada prescrição) da matéria dada como provada, vício de conhecimento oficioso ínsito no artigo 410º/2 do CPP, aqui também aplicável (de facto, o tribunal incorre em falta ao não dar como «provado» ou «não provado» a data exacta ou aproximada da instalação do-s- ESP em causa, decidindo pela não prescrição sem atender a tal elemento tão essencial[4], face à natureza instantânea da infracção).

Diremos, pois, em conclusão que há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de que se deve conhecer oficiosamente, visto o disposto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, assente que os autos não permitem a decisão e que haverá que retornar não só à fase decisória, tornando-se ainda necessário reconduzir os autos à fase de julgamento – parcial - para apuramento de factos essenciais a uma nova decisão que supra as deficiências da primeira.

Nessa nova decisão[5], o tribunal de 1ª instância cuidará de conhecer:

· da questão da prescrição do procedimento contra-ordenacional, após decisão produção de prova;

· da sucessão das leis contra-ordenacionais no tempo

· e da questão da dosimetria da coima aplicada pela entidade administrativa, no que tange a esta contra-ordenação (a única em causa).

*********************************************************

           

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso interposto e, em consequência decidem:

A. Declarar nula a sentença por omissão de pronúncia, na parte referente à matéria da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 21º e 43º/1 b) e 3 do DL 97/2000 de 25/5;

B. Declarar a existência de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de que se conhece oficiosamente, visto o disposto no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, quanto à data de instalação dos ESP em causa;

C. Determinar, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, o reenvio dos autos para novo julgamento relativamente à questão referida em B, com a subsequente prolação de nova decisão expurgada dos vícios referidos em A. e B. (artigo 426º-A do CPP), decisão essa que conheça:

- da prescrição ou não do procedimento contra-ordenacional em causa;

- da sucessão de leis no tempo;

- da dosimetria da coima aplicada pela autoridade administrativa, caso conclua pela não prescrição e pela não «descriminalização» da conduta.

Sem tributação (artigo 513º/1 do CPP, redacção do DL 34/2008 de 26/2), já que não houve decaimento total.


Paulo Guerra (Relator)
Vieira Marinho


[1] Como já acima se mencionou, o Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação, apenas conhece de direito por força do disposto no art. 75º-1 do DL nº 433/82 de 27/10.
Constituem excepções a esta regra as que constam do art. 410º-2-3 do CPP, aplicável
ex-vi dos arts. 41º-1 e 74º-4 do DL nº 433/82 de 27/10 (actualizado pelo DL nº 244/95 de 14/9). Ora nos termos do art. 410º-2 do CPP "Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova".
[2] Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário.
[3] Seria de todo impensável que se procedesse a uma instalação não aprovada e se esperasse uns bons anos, uma até eternidade, até que a respectiva entidade licenciadora se lembrasse de actuar, punindo só então «fora de tempo» tal falta, e quando, quer a sociedade, quer o agente, já tinham como que esquecido a necessidade de censura.
[4]Quando decidiu em questão prévia, diz que não foi dado como provada a data concreta, mas tal deveria constar do elenco de factos provados ou não provados, devendo apenas decidir dessa questão após a produção de prova em julgamento, e não antes, como o faz a fls 345). No fundo, precisava de prova factual para decidir da prescrição…
[5] O novo julgamento realizado – por juiz que não o que proferiu a 1ª decisão, ou seja, no caso de reenvio do processo para novo julgamento, nunca tem competência o tribunal ou juízo do processo reenviado, sendo antes competente o tribunal de categoria ou composição idêntica ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo - nº 1, ou o outro ou um dos outros juízos (consoante o tribunal tenha dois ou mais juízos da mesma categoria e composição) – nº 2 do artigo 426º-A do CPP - na sequência deste acórdão que, nos termos do artigo 426° do Código de Processo Penal, ordenou o reenvio do processo apenas pode incidir sobre a matéria que integrou o objecto do recurso interposto e não sobre a outra matéria pela qual veio a ser absolvida a arguida, já que a acção em contrário conduziria ao desrespeito do princípio da proibição da “reformatio in pejus” consagrado no artigo 409º do Código de Processo Penal.