Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1347/15.7T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INSTALAÇÕES DE ENERGIA ELÉCTRICA OU GÁS
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
DANOS
TERCEIROS
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – GUARDA – JC CÍVEL E CRIMINAL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 509º E 510º C. CIVIL.
Sumário: I - No artigo 509º do C. Civil o legislador entendeu inserir um preceito relativo à responsabilidade por danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás, o qual mantém a redacção original e teve como fonte o Anteprojecto elaborado por Vaz Serra que, neste ponto, na linha do regime específico já vigente na lei portuguesa e adoptando as soluções da legislação alemã, consagrou uma responsabilidade parcialmente objetiva para os danos causados pelos dispositivos destinados ao transporte e fornecimento de electricidade e gás, atenta a sua perigosidade.

II - Quanto aos danos resultantes da condução ou entrega da electricidade ou do gás, quem tiver a direção efetiva da respectiva instalação e a utilizar no seu interesse só poderá evitar o dever de indemnizar os danos devidos aos efeitos da electricidade ou do gás se demonstrar que estes resultaram de causa de força maior – art.º 509º, n.º 2 - e no caso de danos provocados pela própria instalação, também se provar que esta, ao tempo do acidente, se encontrava em perfeito estado de conservação - artigo 509º, n.º 1.

III - Na primeira hipótese, ao contrário da segunda, já não estamos perante a possibilidade de demonstração de uma situação que exclui a culpa, como forma de evitar a responsabilização pelos danos causados, mas sim perante a exigência de que se verifique uma situação que exclui o nexo de causalidade para que a responsabilidade seja excluída, o que revela que aqui a culpa não é requisito da responsabilização, sendo irrelevante a sua presença ou ausência, pelo que estamos perante um caso de responsabilidade objetiva.

IV - Existindo um regime especial para a responsabilidade por danos que derivem da condução ou entrega da electricidade ou do gás previsto no art.º 509º do C. Civil é esse o regime aplicável quanto aos prejuízos cujo valor se compreenda nos limites estabelecidos para tal responsabilidade no art.º 510.º do C. Civil.

V - Nessas situações, o regime geral da responsabilidade por danos resultantes de actividades consideradas perigosas, previsto no art.º 493º, n.º 2, do C. Civil, só será aplicável, subsidiariamente, no que toca ao valor dos prejuízos que exceda o limite imposto no art.º 510º do C. Civil.

VI - Para que uma causa seja considerada de força maior, para os efeitos previstos no art.º 509º, n.º 2, do C. Civil, deve ser estranha às instalações destinadas à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás e determinar irresistivelmente que essas instalações provoquem danos a terceiros.

VII – Podemos estar perante um caso de força maior quando os danos são provocados pela queda de um poste ou fio de alta tensão em consequência de ciclone ou temporal, mas não quando essa queda resultou de ventos com rajadas de 70 Km/hora.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora interpôs a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra a Ré EDP, pedindo a sua condenação:

- no pagamento em quantia não inferior a €173.188.04, correspondente aos danos por si sofridos e originados por instalação da Ré e a que esta lhes deu causa no exercício da sua actividade.

Subsidiariamente,

- como responsável pelos riscos próprios da actividade que exerce e que da mesma beneficia, pelos prejuízos que derivam da condução ou entrega de energia eléctrica, como pelos resultantes da própria instalação, devendo ser condenada em quantia não inferior a €173.188.04, correspondente aos danos sofridos pela autora, sendo que, esta quantia se encontrará a coberto do capital segurado pela Ré;

- a condenação da Ré no valor que se vier a apurar, como sendo devido, pelo decurso do tempo, pela falta de produção, desde a data da entrada desta acção em Juízo, até efectivo e integral pagamento dos valores reclamados e no pagamento de juros sobre a quantia em que a Ré for condenada.

Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese:

- No terreno baldio sito na freguesia de V...,  ocorreu um incêndio no dia 10 de Dezembro de 2013, tendo resultado um total de 160 hectares de área ardida, composta por diversos tipos de vegetação.

- Desde que o incêndio foi detectado foi identificada como causa a queda de uma linha eléctrica de média tensão, propriedade da Ré EDP, que estava obsoleta, sem a manutenção que lhe é própria e devida, não se encontrava em estado de conservação adequado, e por acção do vento que se fazia sentir, soltou-se do suporte isolante e depois de “bambolear/balançar”, “andando à solta”, embateu na vegetação  (designadamente em pinheiros) e provocou imediatamente o incêndio, pois que o tempo apresentava-se seco.

- Se não se tivesse soltado a linha do suporte e aí houvesse a devida limpeza no terreno, nada teria acontecido.

- A Ré EDP, alguns dias após o incêndio, mandou substituir as linhas e al­guns postes, e determinado que a área de protecção por baixo das linhas fosse alargada de 12 para 20 metros.

- A área ardida de aproximadamente 160 hectares de pinheiro bravo, es­tava em regime de novedio, com idade média de 8 anos, sendo 57 hectares de área comunitária e sob a administração dos compartes, e 103 hectares de área privada.

- O povoamento de pinheiro bravo ardido que existia no terreno baldio, em consequência do incêndio, era jovem, não permitindo qualquer hipótese de regeneração natural, havendo necessidade de intervenção urgente para potenciar uma rápida recuperação biofísica.

- A perda do povoamento existente na propriedade “ardida” causou um prejuízo para a Autora de quantia não inferior a € 50.616,00 a que acresce quantia não inferior a 11.388,60 euros (513m3 x € 22,2 preço da madeira), deduzida do valor das operações de exploração florestal (corte), rechega e transporte e a este valor acrescerá o que se vier a apurar, pelo decurso do tempo, pela falta de produção, desde a data da entrada da acção em Juízo até efectivo e integral pagamento/reparação dos prejuízos, a liquidar oportunamente.

A Ré EDP contestou, impugnando os factos alegados pela Autora e ale­gando o seguinte:

- através de técnicos efectuou nos dias 19.12.2008 (Ordem de Manutenção nº 6280976567), 25.02.2010 (Ordem de Manutenção nº 6281239800) e 15.10.2012 (Ordem de Manutenção nº 6281655291) inspecções à rede, nomeadamente ensaios termográficos, não existindo registos de anomalias quer nos condutores quer no isolamento e realizou, ainda, acções de limpeza de faixa de protecção e trabalhos de manutenção e limpeza em cumprimento do DL nº 124/2006, de 28 de Junho (faixa de gestão de combustíveis), de acordo com o Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios do concelho de Seia e o ramal de MT em causa que alimenta o PTD nº 80 R... não está inserido no novo Plano Municipal de Defesa de Floresta Contra Incêndios, nos termos do DL n.º 124/2006, de 28 de Junho, com a redacção conferida pelo DL n.º 17/2009, de 14 de Janeiro.

- a linha eléctrica foi objecto de uma remodelação em 2005 com substitui­ção de condutores e isolamento e que não mandou substituir as linhas e alguns postes alguns dias após o incêndio, sendo que em Janeiro de 2014, através da Ordem de Manutenção nº 6281920076, executou uma intervenção na rede apenas para reposição definitiva da linha solta, afilaçamento de condutores e espiamento de alguns apoios, intervenção de manutenção habitual sempre que ocorre um incêndio e este afecta as redes eléctricas de alta tensão, sendo falso que tenha havido alargamento da faixa de protecção de 12 para 20 metros, atendendo a que a vegetação foi queimada pelo incêndio e, por via disso, não foi efectuada nenhuma limpeza de faixa e a causa provável para a queda da linha eléctrica da Ré EDP terá sido o incêndio e não aquela a causa deste.

- a invocação da responsabilidade objectiva não poderá proceder, aten­dendo a que o dia do incêndio foi caracterizado por condições atmosféricas bastante adversas, nomeadamente ventos muito fortes, com rajadas superiores a 100 Km/h, que afectaram a região de V..., concelho de Seia e a ocorrência de tais fenómenos é exterior ao normal funcionamento da rede eléctrica da ré o que teria sempre de configurar uma causa de força maior, excludente da responsabilidade da distribuidora de energia eléctrica sendo que tal evento – vento de intensidade excepcional - não tinha qualquer hipótese de ser dominado ou evitado pela ré e verificou-se que o condutor caído a cerca de 0,50 metros do solo se desprendeu do isolador devido à ruptura da filaça a qual só poderia ter sido causada pela força do vento conjugada com a força do calor que veio a provocar a dilatação das filaças.

- a sua responsabilidade emergente da sua actividade encontra-se transfe­rida para a seguradora Companhia de Seguros F..., S. A., por contrato de seguro titulado pela Apólice nº..., que cobre o presente sinistro e se o valor do sinistro ultrapassar o limite de 50.000,00 euros será automaticamente accionada a apólice de excesso emitida pela seguradora I..., S.A., nomeadamente, a apólice nº ..., em vigor à data dos factos, para o risco de actividade da segurada EDP Distribuição Energia, S.A. e com cobertura de 100.000,00 €, em excesso de 50.000,00 €, por sinistro e sem limite agregado.

Foram admitidas as intervenções provocadas das seguradoras Companhia de Seguros F..., S.A., e I..., S.A..

A F..., Companhia de Seguros, S.A.[1] contestou, impugnando os fac­tos alegados pela Autora, alegando que no dia 10 de Dezembro de 2013 encon­trava-se válido e eficaz o contrato de seguro titulado pela apólice ..., celebrado entre si e a Ré EDP, no qual acordaram as partes, além do mais o funcio­namento da apólice em “layers” (“Layer A” e “Layer B”), com a seguinte delimitação geral: a cobertura de 100.000,00€ em excesso de 50.000,00€, por sinistro e sem limite agregado; B. Cobertura de 5.000.000,00€ por sinistro e em agregado anual, em excesso de 150.000,00€; e a exclusão, de todas as garantias da apólice, das “respon­sabilidades, sinistros, custos e despesas: [N] d) Directa ou indirectamente causados por actos de Força Maior da natureza”.

Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:

Face ao exposto, julgo totalmente procedente, por provada, a presente acção e, em con­sequência:

a) Condeno a chamada F... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pa­gar à autora CONSELHO DIRECTIVO DA ASSEMBLEIA DE COMPARTES DOS BALDIOS DA FREGUESIA DE V... a quantia global de 100.000,00 (cem mil) euros a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação e até efectivo e integral pagamento;

b) Condeno a ré EDP – DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA, S.A., a pagar à autora CONSELHO DIRECTIVO DA ASSEMBLEIA DE COMPARTES DOS BALDIOS DA FREGUESIA DE V... a quantia global de 73.188,04 euros (setenta e três mil cento e oitenta e oito euros e quatro cêntimos) euros a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação e até efectivo e integral pagamento e na quantia que se vier a apurar desde 8 de Setembro de 2015 (data da entrada da acção) até efectivo e integral pagamento, a título de falta de produção, a determinar na proporção de 5m3 x 57ha/ano ao preço de 22,20 euros por hectare.

c) Condeno a ré e a chamada em custas na proporção do decaimento.

As Rés interpuseram recurso, formulando as seguintes alegações:

EDP – Distribuição de Energia, S. A.:

...

F... – Companhia de Seguros, S. A.:

...

A Autora na resposta às alegações apresentadas pela Recorrente EDP, S. A. coloca, como questão preliminar, o incumprimento por esta do ónus de impugna­ção a que alude o art.º 640º, n.º 1, do C. P. Civil, concluindo pela rejeição desse recurso, posição que torna extensiva ao recurso apresentado pela Ré Seguradora.

Para o caso de se entender não serem de rejeitar os recursos apresentados conclui pela confirmação da decisão proferida.

1. Do objecto do recurso

Ambas as Recorrentes impugnaram parcialmente a decisão sobre a matéria de facto.

A Recorrida, nas contra-alegações, pronunciou-se no sentido do recurso não ser conhecido nessa parte, alegando que as Recorrentes não cumpriram as exigências formais contidas no artigo 640º do C. P. Civil, designadamente a indicação das passagens da gravação em que se fundam os recursos.

Contudo, da análise das alegações apresentadas por ambas as Recorrentes constata-se que estas não deixaram de indicar os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, tendo mencionado as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, acompanhadas da respectiva transcrição dos excertos que consideram relevantes.

Por essa razão, tendo presente a jurisprudência maioritária do S. T. J. a este respeito, estão ambos os recursos em condições de serem conhecidos na parte em que impugnam a decisão da matéria de facto.

Estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações das Recorrentes, são as seguintes as questões a apreciar:

a) Os factos constantes dos pontos 14., 15., 20., 21., 22., 23., 24., 26., 27., 31., 32., 33., 34., 36., 44., 49., 50., 51., 52., 53., e 55 da decisão recorrida devem ser considerados não provados?

b) Devem considerar-se provados os seguintes factos:

- a Ré EDP realizou a devida manutenção da área que se situa por baixo da linha, não permitindo o crescimento da vegetação debaixo das linhas transporta­doras da distribuição de energia eléctrica;

- a Ré EDP não negligenciou qualquer tipo de acção de conservação, ma­nutenção ou limpeza de gestão de combustíveis como factor potenciador do risco de incêndio;

- a Ré EDP em Outubro de 2013 (dois meses antes do incêndio dos autos), fez uma inspecção termográfica, com recurso a helicóptero, a fim de detectar anomalias e distâncias entre as linhas e árvores, edifícios, medindo, igualmente, a resistência dos condutores e seus diversos componentes, in casu, a filaça que prende o condutor ao isolador, nada de anormal se tendo detectado;

- a Ré EDP realizou acções de limpeza de faixa de protecção, em cumpri­mento do disposto no art.º 28º do Dec. Regulamentar nº 1/92, nos dias 03.12.2010, 09.10.2013 e 31.10.2013 cumprindo, assim, com todos os normativos existentes em matéria de segurança, conservação e limpeza de combustíveis;

- a linha, na altura do incêndio, encontrava-se no devido lugar e com uma altura/distância regulamentar ao solo não superior a 7 metros;

- a Ré EDP remodelou por completo, em 2007, a rede eléctrica em causa nos presentes autos por força de um grande incêndio florestal ocorrido naquela mesma zona em 2005?

c) As Rés não são responsáveis pelos danos sofridos pela Autora em con­sequência do incêndio?

3. Os factos

3.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A Ré EDP pretende que seja modificada a decisão da matéria de facto, jul­gando-se não provados os factos constantes dos pontos 15., 20., 21., 22., 26., 27., 33., 34., e 36., e julgando-se provados os seguintes factos:

- a Ré EDP realizou a devida manutenção da área que se situa por baixo da linha, não permitindo o crescimento da vegetação debaixo das linhas transporta­doras da distribuição de energia eléctrica;

- a Ré EDP não negligenciou qualquer tipo de acção de conservação, ma­nutenção ou limpeza de gestão de combustíveis como factor potenciador do risco de incêndio;

- a Ré EDP em Outubro de 2013 (dois meses antes do incêndio dos autos), fez uma inspecção termográfica, com recurso a helicóptero, a fim de detectar anomalias e distâncias entre as linhas e árvores, edifícios, medindo, igualmente, a resistência dos condutores e seus diversos componentes, in casu, a filaça que prende o condutor ao isolador, nada de anormal se tendo detectado;

- a Ré EDP realizou acções de limpeza de faixa de protecção, em cumpri­mento do disposto no art.º 28º do Dec. Regulamentar nº 1/92, nos dias 03.12.2010, 09.10.2013 e 31.10.2013 cumprindo, assim, com todos os normativos existentes em matéria de segurança, conservação e limpeza de combustíveis;

- a linha, na altura do incêndio, encontrava-se no devido lugar e com uma altura/distância regulamentar ao solo não superior a 7 metros;

- a Ré EDP remodelou por completo, em 2007, a rede eléctrica em causa nos presentes autos por força de um grande incêndio florestal ocorrido naquela mesma zona em 2005.

A Ré F..., Companhia de Seguros, S.A., pretende que se conside­rem não provados os factos constantes dos pontos 14., 15., 20., 21., 22., 23., 24., 26., 27., 31., 32., 33., 34., 44., 49., 50., 51., 52., 53., e 55 da sentença recorrida.

Os factos constantes dos pontos 20.º (1.ª parte), 22.º, 26.º, 27.º, 31.º, 33.º e 34.º, da sentença recorrida, assim como os factos que a Ré EDP pretende aditar à matéria de facto provada, referem-se às condições em que se encontrava a linha eléctrica em causa e às acções levadas a cabo pela Ré EDP no sentido de manter essa linha em condições de funcionamento. Ora, estabelecendo o artigo 509º do C. Civil, quanto aos danos resultantes da condução da electricidade, como são os invocados na presente acção, um caso de responsabilidade objectiva de quem tiver a direcção efectiva da instalação destinada à condução de energia eléctrica, a qual só poderá ser afastada pela prova de uma situação de força maior - n.º 2 -, e situando-se a indemni­zação peticionada dentro dos limites estabelecidos para este tipo de responsabilidade pelo artigo 510º do C. Civil, conforme adiante melhor se explicará, aquando da análise jurídica das questões colocadas no presente recurso, tais factos, relacionados com a existência ou inexistência de culpa por parte da Ré no sinistro ocorrido e estranhos a qualquer situação de força maior, são totalmente irrelevantes para a decisão do presente recurso.

Daí que, saber se a linha propriedade da Ré estava sem a manutenção que lhe é própria e devida (ponto 20.º, 1.ª parte); se foi descurada a manutenção da linha (ponto 22.); se a linha estivesse no devido lugar, na altura certa e com a manutenção devida, não tinha caído do suporte, não teria oscilado e embatido na vegetação (pinheiros) e mato, Não se teria soltado e ateado o incêndio, «aguentado», como é de prever a força do vento, tal como as demais linhas que estão e são manti­das/preparadas e colocadas pela R., por isso, a seu mando, para tanto (pontos 26 e 27); se a ré não realizou a manutenção adequada à linha de média tensão que, ao soltar-se e oscilar sobre a vegetação, ateou o incêndio (ponto 31.); se não realizou, também, a Ré, a devida manutenção da área que se situa por baixo da linha, também, por isso, permitido o crescimento da vegetação debaixo das linhas transportadoras da distribuição de energia eléctrica (ponto 33); se não efectuou, ou mandou efectuar, a Ré, a limpeza da vegetação, bem assim as árvores sob a linha de tensão, linha de sua propriedade, que se encontravam por cortar, apresentando-se com comprimento que poderia contender com a linha, já por si obsoleta e que, ao cair do suporte se tornou oscilante (ponto 34.); se a Ré EDP realizou a devida manutenção da área que se situa por baixo da linha, não permitindo o crescimento da vegetação debaixo das linhas transportadoras da distribuição de energia eléctrica; se a Ré EDP não negligenciou qualquer tipo de acção de conservação, manutenção ou limpeza de gestão de combustíveis como factor potenciador do risco de incêndio; se a Ré EDP em Outubro de 2013 (dois meses antes do incêndio dos autos), fez uma inspecção termográfica, com recurso a helicóptero, a fim de detectar anomalias e distâncias entre as linhas e árvores, edifícios, medindo, igualmente, a resistência dos conduto­res e seus diversos componentes, in casu, a filaça que prende o condutor ao isolador, nada de anormal se tendo detectado; se a Ré EDP realizou acções de limpeza de faixa de protecção, em cumprimento do disposto no artº 28º do Dec. Regulamentar nº 1/92, nos dias 03.12.2010, 09.10.2013 e 31.10.2013 cumprindo, assim, com todos os normativos existentes em matéria de segurança, conservação e limpeza de combustí­veis; se a linha, na altura do incêndio, encontrava-se no devido lugar e com uma altura/distância regulamentar ao solo não superior a 7 metros; e se a Ré EDP remodelou por completo, em 2007, a rede eléctrica em causa nos presentes autos por força de um grande incêndio florestal ocorrido naquela mesma zona em 2005, são factos totalmente irrelevantes para o desfecho dos presentes recursos.

Por estas razões, em nome do princípio da economia processual, não se conhecerá da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, relativamente a todos estes pontos da sentença recorrida e factos cujo aditamento se pretendia.

É o seguinte o conteúdo da restante matéria impugnada que importa apre­ciar:

14. Desde o momento em que o incêndio foi detectado por populações locais, por ele­mentos/trabalhadores da EDP – Distribuição de Energia SA, e, após, por membros da GNR, Corporações de Bombeiros e Serviço Municipal de Protecção Civil de Seia – a causa do mesmo foi identificada: «LINHAS ELÉCTRICAS».

15. O incêndio teve origem na queda de uma linha eléctrica de média tensão, proprie­dade da ré, que atravessa a mancha florestal, na zona em declive do terreno baldio da ..., inscrito na matriz urbana sob o número ... freguesia de V...;

20. A linha propriedade da Ré por acção do vento que se fazia sentir, soltou-se do res­pectivo suporte isolante e depois de “bambolear/balançar”, “andando à solta”, embateu na vegetação  (designadamente em pinheiros) e provocou, imediatamente, o incêndio, pois o tempo apresentava-se seco e com baixa humidade.

21. Se não se tivesse soltado a linha do suporte não tinha deflagrado o incêndio;

23. O início do incêndio ocorreu junto a um poste de média tensão, colocado pela ré, e que atravessa o terreno baldio administrado pelo Conselho Directivo da Assembleia de Compartes dos Baldios da Freguesia de V...;

24. No terreno em causa existiam alguns pequenos pinheiros partidos, devido à oscila­ção da linha que, depois de se soltar do suporte, estava e andou lassa e baixa, em sentido paralelo à mesma, tendo embatido nos pinheiros e no mato e daí resultou/deflagrou, o incêndio;

32. Por força do calor, da oscilação, e da queda da linha e da sua constante tensão eléc­trica, foi originado o incêndio, na zona paralela à linha;

36. As condições meteorológicas verificadas no dia 10 de Dezembro de 2013, ocorrên­cia de ventos, não eram rajadas de ventos de intensidade excepcional, porque se tratou de ventos comuns e correntes, que podem ser fortes ou muito fortes, não podem ser independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição;

44. Existe um bom potencial da zona para a espécie – Pinheiro Bravo – perfeitamente adaptada e que obtém produtividades nunca inferiores a 4 – 6/m3/ha/ano.

49. Na altura do incêndio o povoamento existente na propriedade “ardida” tinha 8 anos de idade, ocupava uma área de 57 hectares e ponderada uma expectativa de produção real na ordem dos 5m3 / há / ano, teremos um volume final de 2.280 m3 (57 ha x 5 m3 x 8 anos = 2.280 m3 x € 37 = 84.360;

50. O preço do pinho à porta de fábrica variava, no final do ano de 2013, data do incên­dio, entre €36 a €38/m3 e a madeira ardida ascende a € 84.360 (oitenta e quatro mil trezentos e sessenta euros);

51. Os custos das operações de exploração florestal (corte, rechega e transporte) são, no limite, para a referida localização, 40% do valor final do material lenhoso, não podendo a autora vender a madeira ardida pelo seu valor de 50.616,00 (cinquenta mil seiscentos e dezasseis euros).

52. Da área total de 57 hectares, cerca de 70% são passíveis de utilização de maquinaria para reparação do terreno e os restantes terão de ser rearborizados totalmente de forma manual

53. Consideram-se 40 hectares a serem alvo de operações mecanizadas e os restantes 17 hectares, a serem trabalhados, exclusivamente, com recurso a mão-de-obra, importando essas operações de rearborização no valor global de 111.183,44 euros;

55. Desde Dezembro de 2013 a Setembro de 2015 (22 meses) (data da entrada da pre­sente acção em Juízo) que a área ardida se encontra improdutiva, importando no valor global de 11.388,60 euros de não produção.

Os factos considerados provados sob os n.º 14, 15, 20, 2.ª parte, 21, 23, 24 e 32 respeitam ao circunstancialismo que provocou o incêndio.

A sentença recorrida considerou provado que este teve a sua origem na queda de uma linha eléctrica de média tensão, propriedade da ré, que atravessa a mancha florestal, na zona em declive do terreno baldio da ..., inscrito na matriz urbana sob o número ... freguesia de V..., a qual, por acção do vento que se fazia sentir, soltou-se do respectivo suporte isolante, e depois de “bambolear/balançar”, “andando à solta”, embateu na vegetação, designadamente em pinheiros, e provocou, imediatamente, o incêndio, pois o tempo apresentava-se seco e com baixa humidade.

As Recorrentes alegam que não foi feita uma prova directa deste facto, pois, ninguém observou o início do incêndio, adiantando que a queda da linha eléctrica poderia não ter sido a causa do incêndio mas sim uma sua consequência.

Se é verdade que não houve nenhuma testemunha que tivesse observado directamente o modo como o incêndio foi provocado, foram várias as testemunhas que observaram que o incêndio se iniciou no local onde caiu a linha eléctrica (...), tendo também sido constatado pelas testemunhas que foram reparar a linha caída que esta desprendeu-se do isolador porque rebentou uma filaça, estando o poste de apoio inclinado (...).

Ora, não tendo sido verificada a existência de qualquer outra causa possí­vel para a deflagração do incêndio, é de presumir, com o grau de probabilidade suficiente, nos termos dos artigos 349º e 351º do C. Civil, que foi a queda da linha eléctrica num local com vegetação que originou o incêndio em julgamento.

A credibilidade de tal presunção é reforçada pelo depoimento autorizado de A..., mestre principal de floresta, que elaborou um relatório sobre o incêndio, tendo apontado o circunstancialismo referido como causa provável do mesmo, o que coincide com a indicação das causas prováveis do incêndio constantes do relatório de fls. 131 e seg. elaborado por ..., Comandante da Protecção Civil de Seia.

E o facto das testemunhas ... terem refe­rido que se verificou um corte da energia quando estavam a assistir ao telejornal das 20 horas, tendo-se dirigido para o exterior onde verificaram a existência de chamas junto ao local onde caiu a linha eléctrica, não abala a força daquela presunção, uma vez que se desconhece com precisão qual o tempo que mediou entre falta de energia eléctrica e o momento da observação do incêndio por aquelas testemunhas e a sua dimensão, assim como se desconhece se a falta de energia foi consequência imediata da queda da linha.

Por estas razões deve manter-se como provado o conteúdo dos pontos 14, 15, 20, 2.ª parte, 21, 23, 24 e 32.

O facto constante do ponto 36 respeita às condições meteorológicas verifi­cadas no dia do incêndio, designadamente a ocorrência de ventos.

Considerou-se provado que não existiram rajadas de vento de intensidade excepcional, tendo ocorrido ventos comuns e correntes, os quais, apesar de poderem ser fortes ou muito fortes, não eram susceptíveis de afectar o funcionamento e utilização de uma rede de distribuição de electricidade em condições normais.

A Ré EDP, alegando que o facto impugnado é conclusivo, questiona a de­ficiente concretização da intensidade dos ventos ocorridos naquela altura e defende que deve considerar-se provado, atento o teor do relatório dos Bombeiros e da GNR que ocorreram rajadas de vento muito forte de 80/100 Km/hora.

Relativamente a este facto constata-se o seguinte:

- consta do relatório elaborado pelo Mestre de Florestal Principal, A..., que, na altura, havia vento muito forte (fls. 36);

- consta do relatório elaborado por ..., Comandante da Protecção Civil de Seia, que na estação meteorológica de Loriga, a qual dista cerca de 8,5 Km do local do incêndio, nesse dia, entre as 20 e as 21 horas, apesar da velocidade média do vento se situar entre os 40km/h e os 60Km/hora se verificaram rajadas de vento de cerca de 70km/hora (fls. 152);

- A..., comandante dos Bombeiros Voluntários de Lo­riga declarou que o vento era de 80Km/hora no local;

- ..., Comandante da Protecção Civil de Seia, declarou que o vento na altura teria uma intensidade de 80 a 100 Km/hora.

Existindo o registo de uma estação meteorológica da intensidade do vento numa zona muito perto do local onde deflagrou o incêndio, devem os dados desse registo prevalecer sobre observações empíricas, devendo, por isso, tal matéria resumir-se aos dados numéricos constantes desse registo.

Assim, deve considerar-se provado apenas que as condições meteorológi­cas verificadas no dia 10 de Dezembro de 2013, na altura em que se iniciou o incêndio, caracterizavam-se pela existência de ventos com uma velocidade média entre os 40km/h e os 60Km/hora, tendo ocorrido rajadas de cerca de 70km/hora.

Os factos constantes dos pontos 44., 49., 50., 51., 52., 53., e 55, respeitam ao valor dos prejuízos que resultaram para a Autora em consequência do incêndio.

As Recorrentes entendem que os dados numéricos constantes dos referidos pontos se basearam apenas no relatório elaborado pela testemunha ..., não se encontrando minimamente demonstrada a sua correspondência com a realidade.

Se é verdade que os dados numéricos constantes dos referidos pontos da matéria de facto considerada provada são os que constam de relatório técnico elaborado, a pedido da Autora, pela testemunha ..., engenheiro técnico florestal, os mesmos foram credivelmente explicados por esta testemunha no seu depoimento e corroborados por ..., também ele engenheiro florestal, tendo estas duas testemunhas demonstrado conhecimentos em matéria florestal que credibilizam suficientemente a prova dos factos constantes dos pontos 44., 49., 50., 51., 52., 53., e 55.

Por esta razão devem os mesmos manterem-se como provados.

3.2. Os factos provados

Os factos provados são os seguintes:

...

4. O direito aplicável

A Autora propôs a presente acção pedindo a condenação da Ré EDP a pa­gar-lhe uma indemnização, invocando ter sofrido prejuízos provocados por um incêndio cuja origem imputa à queda de uma linha eléctrica pertencente àquela Ré.

A sentença recorrida julgou procedente a acção e condenou as Rés a pagar a indemnização peticionada, por ter entendido que se encontravam preenchidas as situações de responsabilidade previstas quer no artigo 493º, n.º 2, quer no artigo 509º, ambos do C. Civil.

Provou-se a ocorrência da seguinte factualidade:

- No dia 10 de Dezembro de 2013 ocorreu um incêndio que teve origem na queda de uma linha eléctrica de média tensão, propriedade da Ré, que atravessa a mancha florestal, na zona em declive do terreno baldio da ..., inscrito na matriz urbana sob o número ... freguesia de V...;

- Esta linha eléctrica soltou-se do respectivo suporte isolante, e depois de “bambolear/balançar”, “andando à solta”, embateu na vegetação, (designadamente em pinheiros) e provocou, imediatamente, o incêndio, pois o tempo apresentava-se seco e com baixa humidade.

- Em consequência do incêndio, com início no espaço compreendido entre dois postes de linha média tensão, sito em área da Lomba do ..., ardeu uma área de aproximadamente de 160 hectares de Pinheiro Bravo, em regime de novedio, com idade média de 8 anos, sendo 57 hectares de área comunitá­ria e sob a administração dos compartes, e 103 hectares de área privada.

- A Ré explora a actividade que consiste na condução e distribuição de energia eléctrica, usando para tanto, linhas de média tensão, onde se inclui a acima referida

O mundo contemporâneo iniciado com a 2.ª Revolução Industrial de mea­dos do século XIX, marcado pela industrialização e o progresso tecnológico, com o inerente crescimento exponencial de possibilidades de intervenção e modos de actuação na vida social que multiplicaram os riscos sobre os interesses de natureza pessoal e patrimonial tutelados pelo Direito, veio pôr em causa a construção da responsabilidade delitual por danos até aí essencialmente baseada na culpa.

Cedo se verificou que a exigência de um juízo de censura para que se pu­desse exigir uma reparação dos danos provocados por complexas estruturas maquini­zadas permitia que os custos de muitos deles recaíssem injustamente sobre os lesados, pelo que o ordenamento jurídico, na busca de novos reequilíbrios, procurou atenuar e, em alguns casos, mesmo suprimir a relevância da culpa, enquanto pressuposto essencial da responsabilidade civil, ganhando importância, por um lado, a responsa­bilidade pelo risco, e por outro, a imposição de seguros que cobrissem os prejuízos resultantes dos novos riscos.

O Código Civil de 1966 não deixou ainda de configurar o regime geral da responsabilidade civil extracontratual segundo o modelo da responsabilidade subjec­tiva, tendo, contudo, reunido numa subsecção, a título excepcional, situações típicas que denominou de responsabilidade pelo risco.

O art.º 493º do C. Civil, a que, numa primeira linha de argumentação, re­correu a fundamentação da decisão recorrida, situa-se no domínio da responsabili­dade civil por factos ilícitos em que não deixa de estar presente o requisito da culpa – art.º 483º e seg. do C. Civil –, prevendo-se no n.º 1 a responsabilidade por danos causados por coisas e no n.º 2 a responsabilidade por danos causados no exercício de uma actividade perigosa.

Em ambas as situações o legislador, consciente das dificuldades de prova pelos lesados da culpa dos detentores das coisas ou dos agentes das actividades perigosas, da necessidade de incentivar quem tem a guarda das coisas ou o domínio das actividades a adoptar as medidas de segurança que minimizem os riscos que elas comportam para os outros, e da ideia de quem aproveita as suas vantagens deve, em regra, suportar os custos dos prejuízos que delas resultam, adoptou regras especiais quanto à prova da culpa pelo acidente causador de danos.

Assim, relativamente à responsabilidade por danos causados por coisas, imputou-a a quem as tem em seu poder, com o dever de as vigiar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que houvesse culpa sua – art.º 493.º, n.º 1, do C. Civil. Criou-se, deste modo, uma presunção legal de culpa, ilidível pelo “vigilante da coisa danosa”, mediante a prova do contrário, nos termos do art.º 350º, n.º 2, do C. Civil.

Já quanto aos danos resultantes de actividades perigosas, o legislador foi mais severo para o agente da actividade perigosa, porque, apesar de também se ter consignado uma presunção legal de culpa, a possibilidade de ilisão desta presunção é restrita à prova de que foram empregues todas as providências exigidas pelas cir­cunstâncias com o fim de prevenir a ocorrência dos danos causados, pelo que estamos perante uma presunção legal que apesar de relativa, a possibilidade da sua ilisão se encontra significativamente restringida [2].

Mas na sub-secção da responsabilidade pelo risco do Código Civil de 1966, o legislador entendeu inserir um preceito relativo à responsabilidade por danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás, o qual mantém a redacção original e teve como fonte o Anteprojecto elaborado por Vaz Serra [3] que, neste ponto, na linha do regime específico já vigente na lei portuguesa [4] e adoptando as soluções da legislação alemã [5], consagrou uma responsabilidade parcialmente objectiva para os danos causados pelos dispositivos destinados ao transporte e fornecimento de electricidade e gás, atenta a sua perigosidade [6].

Dispõe o art.º 509º do Código Civil:

1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.

2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.

3. Os danos causados por utensílios de uso de energia não são reparáveis nos termos desta disposição.

Assim, quanto aos danos resultantes da condução ou entrega da electrici­dade ou do gás, quem tiver a direcção efectiva da respectiva instalação e a utilizar no seu interesse só poderá evitar o dever de indemnizar os danos devidos aos efeitos da electricidade ou do gás se demonstrar que estes resultaram de causa de força maior – art.º 509º, n.º 2 – e no caso de danos provocados pela própria instalação, se provar que esta, ao tempo do acidente, se encontrava em perfeito estado de conservação – art.º 509º, n.º 1.

Apesar de na redacção final adoptada neste preceito legal não ser tão os­tensiva a diferenciação de regimes dos danos devidos aos efeitos da electricidade ou gás, dos danos causados pelas instalações que conduzem e entregam estas fontes de energia, contrariamente ao que sucedia nos textos do Anteprojecto de Vaz Serra e das 1.ª e 2.ª Revisões Ministeriais [7], tal distinção não deixou de ser consagrada [8], tendo em conta que a especial perigosidade reside na energia eléctrica e no gás e não nas instalações que os conduzem e entregam, seguindo-se a solução constante do § 2.º da Haftpflichtgesetz.

Assim, se quanto aos danos resultantes da instalação, a solução não di­verge muito da consagrada no art.º 493º, n.º 2, do C. Civil, uma vez que também aqui a pessoa que tiver a direcção efectiva da instalação apenas pode evitar a sua respon­sabilização, provando que esta se encontrava em perfeito estado de conservação – art.º 509.º, n.º 1, do C. Civil –, o que resulta numa presunção de culpa ilidível pela prova limitada a determinados factos, já quanto aos danos que resultam dos efeitos da electricidade ou do gás, a responsabilização daquele já só poderá ser excluída através da prova que os danos foram devidos a causa de força maior – art.º 509º, n.º 2 [9]. Nesta segunda hipótese já não estamos perante a possibilidade de demonstração de uma situação que exclui a culpa, como forma de evitar a responsabilização pelos danos causados, mas sim perante a exigência de que se verifique uma situação que exclui o nexo de causalidade para que a responsabilidade seja excluída [10], o que revela que aqui a culpa não é requisito da responsabilização, sendo irrelevante a sua presença ou ausência [11], pelo que estamos perante um caso de responsabilidade objectiva

Existindo um regime especial para a responsabilidade por danos que deri­vem da condução ou entrega da electricidade ou do gás previsto no art.º 509º do C. Civil é esse o regime aplicável quanto aos prejuízos cujo valor se compreenda nos limites estabelecidos para tal responsabilidade no art.º 510º do C. Civil. Nessas situações, o regime geral da responsabilidade por danos resultantes de actividades consideradas perigosas, previsto no art.º 493º, n.º 2, do C. Civil, só será aplicável, subsidiariamente, no que toca ao valor dos prejuízos que exceda o limite imposto no art.º 510º do C. Civil.

Consta deste preceito que a indemnização fundada na responsabilidade a que se refere o artigo precedente, quando não haja culpa do responsável, tem, para cada acidente, como limite máximo o estabelecido no n.º 1 do artigo 508.º, salvo se, havendo seguro obrigatório, diploma especial estabelecer um capital mínimo de seguro, caso em que a indemnização tem como limite máximo esse capital.

Apesar da Base XXV, n.º 2, do Anexo II do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto, estabelecer que é obrigatória a contratação de um seguro de responsa­bilidade civil para cobertura dos danos materiais e corporais causados a terceiros emergentes de facto previsto no art.º 509º do C. Civil, devendo o seu montante mínimo ser fixado por portaria do ministro responsável pela área da energia, não se conhece diploma que tenha estabelecido esse limite, pelo que deve ser considerado o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos termos do disposto nos art.º 510º e 508º, n.º 1, do C. Civil, que é de € 600.000,00 para os danos materiais - artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Estando o montante indemnizatório peticionado incluído naquele limite, a existência de uma responsabilidade pelos danos resultantes do acidente aqui em causa deve ser aferida exclusivamente nos termos do art.º 509º do C. Civil.

Como vimos, provou-se que o incêndio que provocou os danos que a Au­tora pretende ver indemnizados teve origem na queda de uma linha eléctrica de média tensão, propriedade da Ré, que atravessa a mancha florestal, na zona em declive do terreno baldio da ..., inscrito na matriz urbana sob o número ... freguesia de V..., uma vez que essa linha eléctrica soltou-se do respectivo suporte isolante, e depois de “bambolear/balançar”, “andando à solta”, embateu na vegetação, designadamente em pinheiros, e provocou, imediatamente, o incêndio.

Tendo o incêndio sido um efeito necessário da energia eléctrica que era conduzida pela linha caída, a qual em contacto com a vegetação contígua provocou a ignição por descarga, estamos perante a primeira hipótese prevista no n.º 1, do art.º 509º, do C. Civil (danos derivados da condução ou entrega de electricidade ou gás), pelo que a responsabilidade da EDP, que detêm a direcção efectiva daquela linha e a utiliza no seu interesse, só podia ser evitada, caso ela demonstrasse que o incêndio resultou de uma causa de força maior, o que afastaria o nexo de causalidade entre os danos ocasionados e a actividade de condução de energia eléctrica.

Na verdade, apesar da Haftpflichtgesetz (§ 2.º) excluir expressamente a possibilidade da responsabilidade de quem detém a direcção efectiva das linhas electricas ser afastada nos casos de força maior, nas situações em que os danos resultam de queda das linhas condutoras da electricidade e de tal solução ter sido importada para o Anteprojecto apresentado por Vaz Serra [12], tendo-se mantido na redacção saída da 1.ª Revisão Ministerial, a mesma foi afastada com a 2.ª Revisão Ministerial [13].

A Ré EDP alega que foram rajadas de vento na ordem dos 100 km/h, con­jugadas com o intenso calor de incêndio pré-existente que provocaram a ruptura da filaça que determinou a queda da linha eléctrica, pelo que na origem do incêndio estão causas exteriores ao funcionamento da rede eléctrica.

A causa de força maior capaz de excluir o nexo de causalidade entre os efeitos da electricidade e o incêndio, conforme explica o art.º 509º, n.º 2, do C. Civil, é toda a causa exterior, independente do funcionamento da coisa, o que abrange como exemplifica Almeida Costa [14], Antunes Varela [15] ou Menezes Leitão [16], a queda de um poste ou fio de alta tensão em consequência de ciclone ou temporal.

Na verdade, para que uma causa seja considerada de força maior, para os efeitos previstos no art.º 509º, n.º 2, do C. Civil, deve ser estranha às instalações destinadas à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás e determinar irresis­tivelmente que essas instalações provoquem danos a terceiros.

Ora, no presente caso, não só não se provou a existência de um qualquer foco de incêndio que tenha antecedido a queda da linha eléctrica, provocando uma onde de calor capaz de contribuir para a ruptura da filaça, como apenas se provou que o vento, na altura em que deflagrou o incêndio, tinha uma velocidade média entre os 40km/h e os 60Km/hora, com rajadas de cerca de 70km/hora.

Apesar das rajadas de vento de cerca de 70K/hora serem consideradas vento muito forte na escala de Beaufort e classificadas com um índice 8 numa escala de 1 a 12, sendo susceptíveis de provocarem a quebra de ramos de árvores, não são um acontecimento invulgar que inevitavelmente determine a queda das linhas eléctricas, pelo que não pode ser qualificado como uma causa de força maior que afasta o nexo de causalidade entre a queda da linha e o incêndio danoso [17].

Por esta razão justifica-se que a Ré EDP seja responsável, conjuntamente com a Ré seguradora, nos termos julgados pela sentença recorrida, pelos danos provocados à Autora, improcedendo por isso os recursos interpostos.

Decisão

Pelo exposto, julgam-se improcedentes os recursos interpostos, confir­mando-se a decisão recorrida.

Custas dos recursos pelas Recorrentes.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

                  Jaime Ferreira


***

[1] Denominação resultante da fusão por incorporação da I (...) – Companhia de Seguros. S. A. e da alteração da denominação da F (...) , S. A. para F (...) , Companhia de Seguros, S. A.

[2] A restrição é de tal ordem que há quem sustente, apoiando-se em discussão existente no direito italiano a propósito de solução idêntica contida no artigo 2050º do Codice Civile, que estamos perante uma responsabilidade objectiva, como sucede com Rui Ataíde, em Responsabilidade civil por deveres de tráfego, pág. 500 e seg., ed. 2015, Almedina.

[3] No B.M.J. n.º 101, pág. 130 e 148.

[4] O artigo 151.º do Decreto-Lei n.º 43.335, de 19 de Novembro de 1960, já determinava que os concessionários, proprietários ou exploradores de qualquer instalação eléctrica são responsáveis, não só civilmente, nos termos legais, pelos danos causados pela instalação, como criminalmente, pela falta de cumprimento das leis e dos regulamentos vigentes.

   § único. A responsabilidade referida no corpo do artigo será ressalvada nos casos fortuitos ou de força maior e nos casos devidamente comprovados de culpa ou de negligência exclusiva do lesado.

[5] Na altura esta responsabilidade estava prevista na Lei de 15 de Agosto de 1943, em complemento à Haftpflichtgesetz (Lei de responsabilidade do Reich).

  Actualmente encontra-se prevista no § 2.º da Haftpflichtgesetz.

[6] Outros sistemas jurídicos que nos são próximos, como o espanhol, o francês ou o italiano, não criaram um regime específico para este tipo de responsabilidade, estando a mesma incluída na que rege os danos causados no exercício de actividades perigosas, a qual se limita a consagrar uma presunção de culpa do autor dessa actividade.  

[7] Estas versões podem ser consultadas em Rodrigues Bastos, Das obrigações em geral, vol. II, pág. 97-99, ed. do autor de 1972.

[8] Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. I, pág. 525, 4ª ed., Coimbra Editora, Antunes Varela, em Das obrigações em geral, vol. I, pág. 737, 9.ª ed., Almedina, Menezes Cordeiro, em Tratado de direito civil português, vol. II, Direito das obrigações, tomo III, pág. 682, ed. 2010, Almedina, e os Acórdãos:

- do S.T.J. de 25.3.2004, relatado por Ribeiro de Almeida, na C.J. (Ac. do S.T.J.) Ano XII, tomo 1, pág. 149.

- do T. R. P. de 13.9.2012, relatado por Deolinda Varão, acessível em www.dgsi.pt.

- do T. R. P. de 28.10.2008, relatado por Maria da Graça Mira, acessível em www.dgsi.pt.

- do T. R. C., de 23.1.2007, relatado por Jorge Arcanjo, na C.J., Ano XXXII, tomo 1, pág. 8.

- do T. R. P., de 16.10.2006, relatado por Sousa Lameira, na C.J., Ano XXXI, tomo 4, pág. 177.

[9] Esta causa de exclusão da responsabilidade também se aplica, como é óbvio, às hipóteses em que os danos resultam da própria instalação.

[10] Rui Ataíde, em Responsabilidade civil por violação dos deveres no tráfego, pág. 525, ed. de 2015, Almedina, e os seguintes Acórdãos:

- do S.T.J. de 3.10.2002, relatado por Ferreira de Almeida, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano X, tomo 3, pág. 77.

- do T. R. C. de 10 .9. 2013, relatado por Freitas Neto, acessível em www.colectaneadejurisprudência.com.

[11] Daí que não se tenha conhecido do mérito da impugnação da matéria de facto na parte em que incidia sobre factos relativos à existência ou inexistência de culpa.

[12] Vaz Serra (B.M.J. n.º 92, pág. 143) explicava assim esta solução:

    As empresas de electricidade ou gás devem tomar todas as cautelas para que os fios de condução não caiam, pois essa queda é altamente perigosa. Se, não obstante, caírem, em consequência de força maior, isto é., de um acontecimento imprevisível, deverá, mesmo assim, impor-se a responsabilidade? Nessa hipótese, não pode, em rigor, dizer-se que o dano é devido à queda dos fios, mas a outra causa que os fez cair. Certo é, porém, que tais fios são extremamente perigosos; que a sua queda embora devido a força maior, aumenta os riscos a que terceiros estão sujeitos; e que, portanto, é talvez razoável que exista, mesmo então, a responsabilidade. Tanto mais que esses fios podem hoje ser subterrâneos, com o que o risco fica muito reduzido.

[13] Ribeiro de Faria, em Direito das obrigações, vol. II, pág. 109.

    As diferentes versões dos Anteprojectos podem ser consultadas em Rodrigues Bastos, em Das obrigações em geral, vol. II, pág. 171-173, ed. do autor de 1972.

[14] Direito das obrigações, pág. 655, da 12ª ed., Almedina.

[15] Das obrigações em geral, pág. 738, da 9ª ed., Almedina.

[16] Direito das obrigações, pág. 355, da 10ª ed., Almedina.

[17] Neste sentido, os seguintes Acórdãos:

- do S.T.J., de 5-6-1985, relatado por Alves Correia, no B.M.J. n.º 348, pág. 397, relativamente a ventos fortes não ciclónicos;

- do T. R. L., de 17.3.2005, relatado por Ana Paula Boularot, na C. J. Ano XXX, tomo 2, pág. 80, relativamente a rajadas de 90 km/hora;

- do T. R. P. de 28.10.2008, relatado por Maria da Graça Mira, em www.dgsi.pt., relativamente a ventos de 90 Km/hora.

- do T. R. P., de 16 .10.2006, relatado por Sousa Lameira, na C.J., Ano XXXI, tomo 4, pág. 177, relativamente a ventos muito fortes com rajadas.