Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/11.9T2AVR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INCONSTITUCIONALIDADE
LEI GERAL DO ORÇAMENTO
CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO
PLANO DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DO COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 214º E 215º DO CIRE; 30º, Nº 3 DA LGT E 199º, NºS 1 E 2 DO CPPT; 700º, Nº 3 DO CPC.
Sumário: I – Fora dos casos previstos no artigo 688.º do Código de Processo Civil (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24.8), apresentado requerimento de interposição de recurso de decisão do relator, que não seja de mero expediente, este deverá admiti-lo como requerimento para a conferência prevista no artigo 700.º, n.º 3 daquele código.

II - Face ao aditamento, pela Lei nº 55-A/2010, de 31/12 (Lei Geral do Orçamento para 2011), do nº 3 ao artigo 30º da LGT, deixaram de poder ser, a partir de 01/01/2011, homologados planos de insolvência que afectem os créditos da Segurança Social e os créditos fiscais.

III – A circunstância de um plano de insolvência afectar créditos fiscais reconhecidos no processo concursal, condiciona a homologação judicial desse plano (a homologação prevista no artigo 214º do CIRE), à prévia aceitação pela Administração Fiscal das garantias previstas no plano, quando estas passem pela constituição de hipoteca ou de penhor, nos termos do artigo 199º, nº 2 (por referência ao nº 1) do CPPT.

IV – Actua esta faculdade de rejeição de um plano de insolvência pela Administração Fiscal, em função do nº 3 do artigo 30º da LGT, introduzido pela Lei do Orçamento de Estado de 2011.

V – Assim, a rejeição de um plano de insolvência pela Administração Fiscal através da não aceitação de garantias traduzidas em hipoteca ou penhor, configura, sendo esse plano aprovado, não obstante essa oposição, um fundamento para a não homologação oficiosa desse plano, nos termos do artigo 215º do CIRE.

VI – A interpretação dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT que conduz ao resultado aqui indicado não implica qualquer entendimento inconstitucional dessas normas, não comportando, designadamente, qualquer ofensa do princípio constitucional da igualdade.

VII – A diversidade de tratamento do crédito fiscal, no confronto com outros créditos privilegiados concorrentes à insolvência, obtém justificação em função do interesse público inerente aos impostos, nos termos do artigo 103º, nº 1 da Constituição.

Decisão Texto Integral: Refere-se o recurso de constitucionalidade ora pretendido interpor pela Insolvente/Apelada a uma decisão sumária do ora relator (a decisão sumária de fls. 309/320).

A esta – a uma decisão sumária – reage-se através de reclamação para a conferência (artigo 700º, nº 3 do CPC), não de recurso, mesmo quando se trata de interpor um recurso de constitucionalidade[1]. Assim, deve este recurso, impropriamente interposto de uma decisão singular, ser aqui tratado como requerimento para a conferência, procedendo-se à respectiva convolação [é este o sentido – e tal sentido vincula este Tribunal – da jurisprudência fixada pelo STJ através do Acórdão nº 2/2010, de 22/02/2010 (João Bernardo), proferido no processo nº 103-H/2000.C1.S1[2]].

            Assim, procedendo-se a indicada convolação do sentido do requerimento de interposição de recurso de fls. 329, determina-se a ida do processo à conferência na primeira data disponível (em conferência será apreciada a questão de constitucionalidade agora suscitada e será esse Acórdão que abrirá, se isso mantiver interesse para a Apelante, a via do recurso de constitucionalidade).

            Notifique as partes deste despacho.

            Tribunal da Relação de Coimbra, …


(J. A. Teles Pereira)


***


Acordam em Conferência na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


1. Foi o presente recurso decidido, no sentido da procedência, através da decisão sumária de fls. 309/320. Revogou-se, pois, em função desse atendimento da apelação do Ministério Público, agindo aqui em representação da Fazenda Nacional, a Sentença certificada a fls. 242 e vº que havia homologado, não obstante a oposição do credor Fazenda Nacional, o plano de insolvência respeitante à ora Reclamante (Insolvente, Apelada no recurso) B…, S.A.[3].

Fundou-se o atendimento da pretensão do Apelante expressa neste recurso, na consideração de que a votação de um plano de insolvência por uma maioria de credores formalmente suficiente, nos termos do artigo 212º, nº 1 do CIRE[4], não se sobrepunha ao (não afastava o) requisito da concordância necessária da administração tributária, estando em causa e sendo afectados por esse plano créditos fiscais reconhecidos (aqui a administração tributária não aceitou o plano aprovado pela maioria dos credores por considerar insuficiente a garantia hipotecária a constituir referida aos créditos fiscais).

Fundou-se este entendimento, em primeira linha, no artigo 199º, nºs 1 e 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante CPPT, referindo-se ao Diploma aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro[5]), envolvendo ele, num segundo momento, a consideração de que através da alteração ao artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT – Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro[6]), introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2011 (Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro), alteração consistente na introdução do respectivo nº 3, ficou afastada qualquer possibilidade de consideração do processo concursal como subtraído, por razões de especialidade adjectiva, à incidência do mencionado requisito (previsto na conjugação entre os nºs 1 e 2 do artigo 199º do CPPT e com preenchimento da concreta facti species do nº 2, estando em causa a constituição de uma hipoteca), à incidência do requisito, dizíamos, da concordância da administração tributária com as garantias oferecidas relativamente aos créditos fiscais envolvidos e afectados pelo plano de insolvência no caso dessas garantias corresponderem a hipoteca ou penhor[7].

Note-se que este entendimento, sufragado pela decisão sumária aqui reclamada, significou, como implicitamente foi indicado no respectivo item 2.1.1.1. a fls. 320[8], a existência, relativamente ao plano de insolvência em causa, de fundamento para uma não homologação oficiosa do mesmo, nos termos do artigo 215º do CIRE[9], por falta de preenchimento de um pressuposto legal (a aceitação da garantia hipotecária pela administração tributária). Daí que tenha sido esse o caminho apontado pela decisão sumária ora reclamada ao Senhor Juiz a quo.

1.1. Neste caso – e continuamos a relatar as vicissitudes do processo nesta instância -, pelas razões que se expressaram no despacho de fls. 332, o recurso de constitucionalidade pretendido interpor pela Apelada B… a fls. 329 (recurso inadmissível, já que se referia a uma decisão sumária da qual sempre caberia reclamação prévia para a conferência, nos termos do artigo 700º, nº 3 do CPC[10]), tal recurso, dizíamos, foi oficiosamente convolado[11] para reclamação, entendendo-se esta tematicamente referida a uma questão de inconstitucionalidade material dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º do CPPT.

Para compreensão da situação aqui se transcreve a suscitação da pretendida questão de inconstitucionalidade pela Reclamante:
“[…]
O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro e visa a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 30º, nº 3 da LGT e 199º do CPPT na interpretação que lhes foi fixada pelo Tribunal a quo.
Tais preceitos, na invocada interpretação, padecem de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade consagrado nos artigos 266º, nº 2 e 268º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
Assim, padece de inconstitucionalidade material a interpretação de que o Tribunal a quo atribuiu aos mencionados artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º do CPPT no sentido de que é suficiente, para se aferir da indisponibilidade dos créditos tributários, a mera aceitação ou não pela Administração Fiscal, das garantias envolvidas na afectação desses créditos, sem que para tanto sejam apresentados e/ou justificados os motivos que presidiram a tal não aceitação.
Com efeito, a [Fazenda Nacional] limita-se a invocar para essa não aceitação uma avaliação que a Recorrente desconhece, para considerar a garantia prestada como inidónea e, recusa de forma dogmática, o penhor como garantia, apesar de constar essa possibilidade, de forma expressa, do teor do artigo 199º, nº 1 do CPPT.
[…]
            [transcrição de fls. 329].


II – Fundamentação

2. Destina-se este Acórdão, fundamentalmente, a uma tomada de posição da conferência sobre esta questão: a da invocada inconstitucionalidade material dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT.

Todavia, preambularmente à apreciação desse problema, importa consignar aqui a confirmação por esta conferência do entendimento que subjaz à decisão sumária reclamada quanto à existência de uma opção legislativa clara – sem margem para a construção de outro entendimento –, decorrente da introdução pela Lei do Orçamento de Estado de 2011 do nº 3 do artigo 30º da LGT, opção essa, dizíamos, no sentido de afastar a homologação de planos concursais que afectem créditos fiscais (designadamente procrastinando o pagamento de dívidas fiscais já vencidas), sem a aceitação pela Administração Fiscal das garantias envolvidas nesses planos quanto aos créditos fiscais reconhecidos, designadamente, por força do nº 2 do artigo 199º do CPPT, quando essas garantias se referem, como aqui é o caso, a direitos reais de garantia (hipoteca ou penhor).

Assente este pressuposto – repete-se: o de que a conjugação interpretativa dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT, afasta a possibilidade de homologação judicial de planos de insolvência que, sem o acordo da Administração Fiscal, afectem créditos tributários -, assente isto, dizíamos, importa agora tomar posição sobre a invocada inconstitucionalidade material desses artigos 30º, nº 3 e 199º, nºs 1 e 2, com a mencionada sobreposição interpretativa que aqui assumiu a natureza de ratio decidendi.

É a apreciação desta questão de inconstitucionalidade que, somada aos argumentos já esgrimidos na decisão sumária, formará o entendimento desta Relação, agora com a cobertura da composição alargada correspondente à Conferência, quanto à improcedência do presente recurso.

2.1. A este respeito[12] lembramos que está em causa a especifica natureza dos créditos tributários, associada a um tratamento particular – especial, se preferirmos – destes mesmos créditos, implicitamente convocada pelas normas aqui pretendidas confrontar pela Reclamante.

Entendemos essa especificidade de tratamento dos créditos fiscais – representada por uma faculdade particular, reconhecida à Administração Fiscal, de bloquear a homologação de um plano de insolvência aprovado por uma maioria suficiente de credores[13] –, entendemos essa especificidade de tratamento, enquanto projecção de um dever fundamental de pagar impostos (obviamente de pagar impostos legalmente constituídos), inerente à incontornável natureza de “Estado fiscal” do nosso Estado de direito democrático[14].

É esta particular natureza de deveres fundamentais das imposições fiscais – dos impostos e reflexamente dos créditos fiscais da Administração por estes gerados –, que permite sustentar, em função desse muito relevante interesse público associado à efectivação da receita fiscal[15], um tratamento particularizado, ou mesmo especial, destes créditos, no confronto com outros créditos que não apresentem uma projecção directa tão intensa no interesse geral, como sucede com os impostos.

É neste carácter único dos créditos fiscais que colhemos a justificação para um privilegiamento actuante destes créditos, no quadro da garantia patrimonial e da tutela executiva a esta ligada (quer esta tutela se refira à garantia executiva de um crédito em particular, quer à execução universal do património do devedor que, nos termos do artigo 1º do CIRE, caracteriza o processo de insolvência).

            Vale a respeito da forte individualidade dos créditos fiscais, a teleologia que preside à definição constitucional do próprio “sistema fiscal”, constante do artigo 103º da Constituição[16], no sentido em que a caracterizam, anotando esta disposição, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira:
“[…]
Os impostos são uma das poucas obrigações públicas dos cidadãos constitucionalmente consagradas […]. Como tal, está sujeita a algumas regras equivalentes às dos direitos fundamentais, designadamente os princípios da generalidade e da igualdade, ou seja, de que devem estar sujeitos ao seu pagamento os cidadãos em geral (artigo 12º/1), e em idêntica medida, sem qualquer discriminação indevida (artigo 13º/2). É nisto que consiste o princípio da igualdade tributária […].
O princípio da igualdade em matéria fiscal não é relevante apenas para o caso da imposição fiscal mas também para o caso das isenções e regalias fiscais, que não podem deixar de o respeitar sob pena de privilégio constitucionalmente ilícito.
[…]”[17].

Actua este argumento num quadro interpretativo em que as normas que a ora Reclamante pretende confrontar com a Constituição implicam, no seio do processo concursal, uma evidente diferenciação do peso relativo dos créditos fiscais no confronto com os outros créditos, mesmo que estes últimos assumam a natureza privilegiada daqueles (dos créditos fiscais, nos termos do artigo 47º, nº 4, alínea a) do CIRE), no sentido em que os outros créditos, diversamente dos créditos fiscais, não conferem aos respectivos titulares a possibilidade contramaioritária – chamemos-lhe assim – de bloquear a homologação judicial de um plano de insolvência votado (e aprovado) por uma maioria suficiente, nos termos do artigo 212º, nº 1 do CIRE. Esta faculdade de bloqueio conferida à entidade titular dos créditos fiscais, relativamente à homologação de um plano de insolvência, faculdade que decorre, no entendimento aqui sustentado, da conjugação interpretativa dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT, diverge, pois, do “regime geral” atinente à generalidade dos créditos no processo concursal – mesmo, repete-se, daqueles que se apresentem ao concurso com um estalão de privilegiamento idêntico ao dos créditos fiscais –, no sentido em que todos os outros créditos (rectius, todos os outros credores) não usufruem da possibilidade legal intransponível de bloquear a homologação de um plano de insolvência aprovado por um quórum suficiente de credores: um quórum que corresponda a uma participação ou representação na assembleia de credores de, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito a voto, recolhendo o plano aí votado mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, descontadas as abstenções (parafraseámos o nº 1 do artigo 212º do CIRE).

É esta faculdade implícita de obstar à homologação judicial de uma deliberação da assembleia de credores convocada nos termos do artigo 209º do CIRE, faculdade que é outorgada à administração fiscal pelo artigo 199º, nºs 1 e 2 do CPPT no quadro das garantias específicas dos créditos fiscais, é esta faculdade conferida à administração fiscal, enfim, que não existe, nos termos em que se coloca para esta, relativamente aos restantes credores do insolvente.

Estes podem, obviamente, opor-se ao plano de insolvência proposto à assembleia de credores, votando contra o mesmo, mas se este instrumento reunir, não obstante esse voto desfavorável, o quórum necessário (referimo-nos ao quórum previsto no artigo 212º, nº 1 do CIRE), não deixará o plano de insolvência (só porque ocorreu o voto contra de um credor, seja ou não um credor privilegiado) de poder ser homologado nos termos do artigo 214º do CIRE. É certo, e importa não esquecer, que o juiz do processo poderá ainda atender a reclamações de interessados (desde logo do devedor e de qualquer credor) e não homologar o plano aprovado em assembleia nas situações referidas no artigo 216º do CIRE[18].

Todavia, esta não homologação a solicitação de interessados, actua, nos seus pressupostos, num plano totalmente diferente da não homologação oficiosa prevista no artigo 215º do CIRE[19].

Com efeito, capta-se bem a essência desta diferença quando – e são esses os casos previstos no artigo 215º do CIRE – exista a consideração de um requisito legal (aqui a necessidade de aceitação pela administração fiscal das garantias dos créditos fiscais previstas no plano quando estas se traduzam em hipoteca ou penhor) como obstáculo (legal) intransponível à homologação. É que, não podemos esquecer, em tais casos, como diz o artigo 215º: “[o] juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação […] das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza […]”). Se a homologação é condicionada à aceitação da hipoteca como garantia, a não aceitação desta impede essa homologação: a aceitação passa a funcionar, então, como requisito legal – e a respectiva previsão legal como norma aplicável ao conteúdo do plano de insolvência.

Aliás, a simples circunstância do juiz actuar no quadro do artigo 215º, como aqui se determinou na decisão sumária ora confirmada, e não no quadro assente em pressupostos muito mais fluidos do artigo 216º, demonstra a diferenciação de tratamento da situação do crédito fiscal em função da sobreposição interpretativa dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT, entendidos estes – e repisamos o já anteriormente afirmado – como condicionando a aprovação de um plano que afecte créditos fiscais à aceitação prévia, pela administração tributária, das garantias acrescidas desses créditos necessariamente envolvidas no plano aprovado.

Trata-se aqui, pois, de procurar um sentido constitucionalmente relevante para o estabelecimento desta diferenciação (poderíamos chamar-lhe “ultraprivilegiamento” dos créditos tributários no quadro de um plano de insolvência) relativamente a todos os outros créditos, determinando a compatibilidade dessa diferenciação com o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da Constituição), sendo que, a este respeito e como resulta da anterior exposição, o par de comparação utilizado na aferição da conformidade ao referido princípio envolve os créditos fiscais, por um lado, e convoca, por outro lado, todos os outros créditos concorrentes à insolvência.

Esta comparação refere-se no caso concreto, aliás, à situação do Devedor (é ele quem suscita a questão de inconstitucionalidade aqui apreciada), no sentido em que é esse tratamento especial do crédito fiscal que bloqueia a pretensão, aqui assumida pela Insolvente, de que o plano de insolvência aprovado por uma maioria suficiente de credores seja homologado e implementado, sendo a Devedora B…, neste sentido, afectada pela aplicação dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT aqui determinada à primeira instância.

2.1.1. Estando em causa, como vimos, uma diferenciação de regime entre situações (as respeitantes aos diversos créditos em causa na insolvência) que, sendo tratadas diferenciadamente (desigualmente) no quadro interpretativo aqui traçado, suportam, pela sua natureza à partida semelhante, tal par de comparação referido ao mandato constitucional de tratamento igual de situações iguais, estando em causa esta diferenciação, dizíamos, é relevante estabelecer se ela envolve um tratamento divergente, arbitrário, desrazoável e despido de fundamento racional, violador na sua essência da obrigação de tratar em pé de igualdade as situações substancialmente idênticas ou, expressando a mesma ideia numa perspectiva simétrica referida à licitude do tratamento diferenciado, de só tratar em termos distintos situações que aparentem igualdade quando exista um motivo válido, constitucionalmente relevante, para essa diferenciação.

É que – e citamos a formulação de Robert Alexy –, “[…] frequentemente a violação do direito de igualdade definitivo abstracto é evitável de várias formas”, sendo disso exemplo “[…] a alternativa: não realização da intervenção que viola a máxima de igualdade, ou a sua extensão a todos os sujeitos jurídicos essencialmente iguais […]”, já que, “[o] direito prima facie à igualdade de iure implica o direito prima facie à omissão de tratamentos desiguais […]”[20].

Constitui jurisprudência invariável do Tribunal Constitucional sobre a caracterização do princípio da igualdade, expressa num sem número de precedentes fortemente persuasivos, os quais remontam logo ao início do órgão antecessor do Tribunal, a Comissão Constitucional[21], o entendimento – e citamos a título de mero exemplo o Acórdão nº 47/2010 (Maria Lúcia Amaral), referido precisamente a uma situação de benefícios fiscais[22] – segundo o qual “[…] só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem uma adequada justificação em fundamentos razoáveis, perceptíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem”.

Ora, entendendo nestes termos o princípio constitucional da igualdade, temos que a correlação existente entre a conjugação normativa aqui em causa (a dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT), entendida esta com o sentido que interpretativamente aqui fixámos em sede de resolução do caso concreto (expressamos esse sentido nos seguintes termos: no processo concursal, a homologação judicial de um plano de insolvência que afecte créditos fiscais reconhecidos, depende sempre do acordo da administração tributária quanto às garantias a constituir relativamente a esses créditos, estando vedada a homologação judicial de um plano, nos termos do artigo 215º do CIRE, sem esse acordo referido às garantias propostas), as indicadas normas nesta interpretação, dizíamos, envolvendo um (aparente) tratamento desigual[23], assentam, não obstante, numa diferenciação constitucionalmente legítima, em função da forte individualidade dos créditos fiscais, decorrente da referenciação destes – dos impostos – ao interesse geral correspondente à satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, como refere o artigo 103º, nº 1 da Constituição.

Tanto basta para que a apontada diferenciação seja considerada conforme à Constituição, afastando-se a invocação de desconformidade constitucional da Insolvente ora Reclamante.

2.1.2. Note-se, completando a discussão desta questão, tendo em vista a estruturação do argumento de inconstitucionalidade nos exactos termos em que Reclamante o apresentou a esta Relação no requerimento de fls. 329[24], que o controlo dos motivos da recusa de aceitação das garantias envolvidas no plano de insolvência ultrapassa a incidência de uma regra com vocação de generalidade que se possa extrair da interpretação do artigo 199º, nºs 1 e 2 do CPPT[25].

Ao invés, situa-se esse argumento na valoração das vicissitudes do caso concreto e não tanto na exploração do sentido objectivo da norma. Fala esta (o artigo 199º do CPPT), tanto no nº 1 como no nº 2, na prestação de uma “garantia idónea”, estabelecendo-se no nº 2 a necessidade de concordância da administração fiscal quando as garantias dadas se traduzam na constituição de direitos reais de garantia (penhor ou hipoteca), por oposição ao tipo de garantias (garantia bancária, caução, seguro-caução) envolvidas pelo nº 1 do mesmo artigo 199º, sendo que este último tipo de garantias não pressupõem o requisito da concordância da administração fiscal nos exactos termos em que este elemento está presente na construção do nº 2 da norma. Com efeito, prevê este segundo número que a garantia idónea referida no nº 1 possa corresponder à constituição de um direito real de garantia (uma hipoteca ou um penhor), mas faz depender isso de uma faculdade ampla de aceitação ou recusa destas garantias pela administração tributária.

Existe aqui, reconhece-se, uma diferenciação de pressupostos de actuação das garantias oferecidas entre os tipos de garantia do crédito fiscal mencionadas no nº 1 e no nº 2 do artigo 199º, quanto à aceitação de cada uma delas pela entidade titular do crédito.

Porém, esta diversidade tem plena justificação na natureza própria das garantias em causa nas duas situações.

Basta pensar que no primeiro caso (no nº 1 do artigo 199º do CPPT) essas garantias (caução, seguro-caução, garantia bancária) asseguram directamente, pela sua própria natureza, o valor do crédito ao credor, face ao incumprimento[26].

Diversamente, no segundo caso (nas situações previstas no nº 2 do mesmo artigo 199º), envolvendo a constituição de um penhor ou de uma hipoteca, a realização do crédito garantido perde o carácter imediato (rectius, de satisfação directa e imediata do crédito face ao advento do incumprimento), correspondendo a actuação dessas garantias à possibilidade de uma realização mediata do crédito garantido, através do valor de determinado bem imóvel (na hipoteca, v. o artigo 686º do Código Civil) ou móvel (no penhor, v. o artigo 666º do Código Civil), existindo, pois, nestas últimas situações, uma “não indiferença” aos elementos genéticos da garantia que se prefigura quase intuitivamente.

É esta incidência que justifica plenamente o regime particular do nº 2 do artigo 199º. Este, se quisermos encarar as coisas nesses termos, acaba por se justificar face ao conjunto de argumentos já referidos quanto ao princípio da igualdade e, em termos acrescidos (muito mais intensos) face à particular natureza do tipo de garantias envolvidas nos casos previstos no nº 2 do artigo 199º.

Aprofunda a natureza destas garantias – rectius, o oferecimento deste tipo de garantias – uma relevante necessidade de tratar diferenciadamente os créditos tributários, sob pena de ser induzido um enfraquecimento deles.

E aqui, quando se pretendeu garantir os créditos fiscais através de uma segunda hipoteca de eficácia muito duvidosa na efectiva potencialidade de garantir esses créditos, ilustramos muito bem o sentido da exigência do acordo da administração fiscal previsto no artigo 199º, nº 2 do CPPT.

2.1.3. Mas outros elementos interpretativos – todos eles não constitucionalmente indiferentes, face à particular natureza dos créditos fiscais – justificam o caminho seguido nesta instância. Lembramos aqui o efeito de relativização ou enfraquecimento dos créditos tributários, se acaso estes pudessem ser afectados, sem mais, por um acordo dos outros credores, logrando estes alcançar a aprovação de um plano de insolvência nos termos do artigo 212º, nº 1 do CIRE. Sairia o crédito fiscal invariavelmente a perder – estamos seguros –, caso não dispusesse a administração tributária de uma faculdade actuante de bloqueio de acordos (conluios) de outros credores em prejuízo da dívida tributária. Teríamos, invariavelmente, planos de insolvência que induziriam, directa ou indirectamente, “perdões fiscais” mais ou menos explícitos, ou sistemáticas procrastinações da efectiva realização das dívidas de impostos no quadro concursal, com a falsa contrapartida da prestação de garantias sem verdadeira substância (como aqui indisfarçadamente sucederia, a manter-se o entendimento da primeira instância).

Estaríamos, admitindo a possibilidade de formação de maiorias actuantes contra os créditos fiscais, a tolerar situações conducentes a um efeito equivalente ao de uma elisão fiscal induzida a posteriori, operante no quadro de uma insolvência (elisão alcançada, indirectamente, através da própria combinação de aspectos da adjectivação concursal), sendo perfeitamente legítima – constitucionalmente legítima – a criação de mecanismos indutores de um efeito antagónico ou bloqueador dessa propensão do devedor e dos outros credores para lograrem um efeito de descaso ou desvirtuamento dos créditos fiscais. Vale aqui o mesmo tipo de justificação teleológica das chamadas normas fiscais anti-abuso (como sucede, com incidência geral, com o artigo 38º, nº 2 da LGT[27]), podendo até falar-se, por referência ao artigo 199º, nºs 1 e 2 do CPPT, numa norma com um claro pendor anti-abuso tributário[28] de carácter especial (designação alcançada por diferenciação das normas gerais anti-abuso, como sucede com o citado artigo 38º, nº 2 da LGT)[29].

2.2. Vale este conjunto de argumentos, para além da confirmação da decisão sumária de fls. 309/320, pelo desatendimento, em função da manutenção dessa mesma decisão sumária, da questão de inconstitucionalidade suscitada pela Devedora ora Reclamante, quanto aos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT.

É o que se decidirá a culminar este Acórdão, depois de sumariarmos, nos termos do nº 7 do artigo 713º do CPC, os pontos centrais do antecedente percurso expositivo:
(Sumário do relator)
I – A circunstância de um plano de insolvência afectar créditos fiscais reconhecidos no processo concursal, condiciona a homologação judicial desse plano (a homologação prevista no artigo 214º do CIRE), à prévia aceitação pela Administração Fiscal das garantias previstas no plano, quando estas passem pela constituição de hipoteca ou de penhor, nos termos do artigo 199º, nº 2 (por referência ao nº 1) do CPPT;
II – Actua esta faculdade de rejeição de um plano de insolvência pela Administração Fiscal, em função do nº 3 do artigo 30º da LGT, introduzido pela Lei do Orçamento de Estado de 2011;
III – Assim, a rejeição de um plano de insolvência pela Administração Fiscal através da não aceitação de garantias traduzidas em hipoteca ou penhor, configura, sendo esse plano aprovado, não obstante essa oposição, um fundamento para a não homologação oficiosa desse plano, nos termos do artigo 215º do CIRE;
IV – A interpretação dos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT que conduz ao resultado aqui indicado não implica qualquer entendimento inconstitucional dessas normas, não comportando, designadamente, qualquer ofensa do princípio constitucional da igualdade;
V – A diversidade de tratamento do crédito fiscal, no confronto com outros créditos privilegiados concorrentes à insolvência, obtém justificação em função do interesse público inerente aos impostos, nos termos do artigo 103º, nº 1 da Constituição.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, trazidos os autos à Conferência, decide-se:

            A) Desatender a questão de inconstitucionalidade suscitada pela Insolvente B…, S.A. no requerimento de fls. 329, referida essa questão aos artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT;

            B) E confirmar a decisão sumária de fls. 309/320, reafirmando aqui o pronunciamento decisório dela constante[30].

            Custas a cargo da massa insolvente.

J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] É este o sentido do nº 3 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, equiparando a reclamação para a conferência a “recurso ordinário”, equivalendo esta equiparação ao entendimento de que uma decisão sumária não envolve, pela sua natureza de decisão passível de reclamação para a conferência, o preenchimento do requisito do esgotamento dos recursos ordinários previsto no nº 2 do mesmo artigo 70º.
[2] Disponível na base do ITIJ, directamente, em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b24c0bf7619e58ca802576d200409ebb?OpenDocument&Highlight=0,103-H%2F2000.C1.S1%20.
Sumário:
Fora dos casos previstos no artigo 688.º do Código de Processo Civil (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24.8), apresentado requerimento de interposição de recurso de decisão do relator, que não seja de mero expediente, este deverá admiti-lo como requerimento para a conferência prevista no artigo 700.º, n.º 3 daquele código.
[3] Foi o seguinte o pronunciamento decisório singular do ora relator:
“[…]

3. Face ao exposto, na procedência da apelação, revoga-se a Sentença recorrida, recusando-se a homologação do Plano de Insolvência na versão nesta considerada aprovada, com a consequência indicada no antecedente item 2.1.1.1.

Custas do recurso a cargo da massa insolvente.
[…]” (transcrição de fls. 320).
[4] Diz este: “[a] proposta de plano de insolvência considera-se aprovada se, estando presentes ou representados na reunião credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito a voto, recolher mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções”.
[5] Vai este na 20ª versão, sendo a última a decorrente da Lei nº 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), e estabelece (o artigo 199º, nºs 1 e 2) o seguinte:

Artigo 199º
Garantias

1 – Caso não se encontre já constituída garantia, com o pedido deverá o executado oferecer garantia idónea, a qual consistirá em garantia bancária, caução, seguro-caução ou qualquer meio susceptível de assegurar os créditos do exequente.

2 – A garantia idónea referida no número anterior poderá consistir, ainda, a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária, em penhor ou hipoteca voluntária, aplicando-se o disposto no artigo 195.º, com as necessárias adaptações.

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[6] Interessa-nos aqui a 24ª versão deste Diploma, a introduzida pelo Lei do Orçamento de Estado para 2011 (Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro), estabelecendo o artigo 30º da LGT o seguinte (destacando-se o nº 3):

Artigo 30º
Objecto da relação jurídica tributária

1 - Integram a relação jurídica tributária:

a) O crédito e a dívida tributários;

b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;

c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;

d) O direito a juros compensatórios;

e) O direito a juros indemnizatórios.

2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.
[7] Foi essencialmente com este sentido que a decisão sumária ora reclamada se abonou no Acórdão desta Relação de 29/11/2011 (Artur Dias), proferido no processo nº 588/08.8TBFND-D.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/f5baba09ee8475ac802579650041bbce.
Sumário:

Face ao aditamento, pela Lei nº 55-A/2010, de 31/12 (Lei Geral do Orçamento para 2011), do nº 3 ao artigo 30º da LGT, deixaram de poder ser, a partir de 01/01/2011, homologados planos de insolvência que afectem os créditos da Segurança Social e os créditos fiscais.
[8] Disse o ora relator neste trecho da decisão sumária:
“[…]

2.1.1.1. Vale isto, enfim, pela consideração da incorrecção da homologação do plano de insolvência pela Sentença apelada, sendo que isto significa – para além, obviamente, dessa não homologação – o retorno do processo concursal a uma fase em que ainda será possível, em vista da possibilidade de homologação de um plano de insolvência, a apresentação de alterações a este que permitam afastar a previsão do artigo 215º do CIRE, designadamente no que toca à aceitação de garantias quanto aos créditos fiscais.
[…]”.
[9] Dispõe este o seguinte, no trecho aqui relevante: “[o] juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza […]”.
[10] Neste sentido, não admitindo recursos referidos a decisões sumárias, v. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 562/2011 e 632/2011 (Maria João Antunes), disponíveis,  directamente, no sítio do Tribunal, respectivamente, nos seguintes endereços:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110562.html; http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110632.html.
[11] Seguindo a jurisprudência fixada do STJ indicada nesse despacho: o Acórdão nº 2/2010, de 22/02/2010 (João Bernardo), proferido no processo nº 103-H/2000.C1.S1.
[12] Afasta-se do quadro de apreciação desta questão de inconstitucionalidade o controlo dos fundamentos invocados pela Administração Fiscal para não aceitação das garantias referidas aos créditos tributários envolvidas no plano de insolvência aprovado e homologado, depois da alteração nele introduzida pelo Administrador da insolvência. É que essa não aceitação do plano foi fundamentada e devidamente explicitada pelo Ministério Público neste recurso (v. pontos 7º a 9º das alegações a fls. 4/6) e, para além disso, o que aqui está em causa é a possibilidade de a Administração Tributária, como resulta inequivocamente do nº 2 do artigo 199º do CPPT, não aceitar pura e simplesmente as garantias hipotecárias ou outras que, relativamente aos créditos fiscais lhe sejam propostas. Foi o que aqui sucedeu, entendendo esta Relação, como se explicitou na decisão sumária, que essa não aceitação constitui, nos termos do nº 3 do artigo 30º da LGT, obstáculo à homologação judicial de um plano de insolvência cujo conteúdo afecte créditos fiscais.
Seja como for, não deixaremos de observar – e este aspecto é correctamente equacionado na motivação do recurso do Ministério Público – que a recusa das garantias envolvidas no plano de insolvência pela Fazenda Nacional se refere aqui à constituição de uma segunda hipoteca (v. artigo 713º do Código Civil), que sempre pressuporia que a satisfação do segundo credor (o credor fiscal) só ocorresse depois de extinta a primeira hipoteca (v. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Coimbra, 2011, p. 198). Ora, estando em causa um crédito garantido pela primeira hipoteca de valor próximo ao valor do bem, percebe-se a inconsistência da garantia oferecida à Administração Fiscal pela pretendida segunda hipoteca. A recusa de aceitação da garantia envolvida pelo plano traduziu-se, pois, numa opção correcta da administração fiscal, referida ao interesse desta em que a garantia a constituir seja uma garantia com um mínimo de apetência a propiciar a realização do crédito. Aliás, não se percebe, por exemplo, face ao interesse da Devedora em implementar um plano que pressuponha a continuidade da empresa, porque razão os seus gerentes e representantes não se envolvem na resolução do problema, do qual são parte, prestando eles garantias pessoais ao crédito fiscal.
[13] Uma maioria suficiente, nos termos do artigo 212º, nº 1 do CIRE. Com efeito, não fora o sentido conferido às normas aqui convocadas concorrentemente ao processo de insolvência (artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º, nºs 1 e 2 do CPPT), a oposição da Fazenda Nacional ao plano de insolvência aprovado pela maioria dos outros credores seria inoperante, mesmo envolvendo esse plano, como aqui sucede, garantias reportadas aos créditos fiscais que a Administração Tributária não aceita por não as considerar suficientes.
[14] Assenta a ideia de “Estado fiscal”, que caracteriza a generalidade dos Estados actuais, na constatação de que o Estado se financia (obtém os meios financeiros de prossecução dos seus fins) através da imposição unilateral de tributos – os impostos – aos cidadãos (v. José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, Coimbra, 1998, pp. 190 e ss.). Neste sentido, podemos referir a imposição fiscal ao “preço” pago pelos cidadãos pela actividade prestacional do Estado, designadamente através da efectiva garantia dos direitos individuais e colectivos, sendo que todos estes envolvem um custo directo ou indirecto e, em função disso, a necessidade de angariação de meios pelo Estado (v. Stephen Holmes, Cass R. Sunstein, The Cost of Rights. Why Liberty Depends on Taxes, Nova York, Londres, 2000, pp. 20/21).
[15] Pois é esta (a receita fiscal) que assegura, quase em exclusivo, a sobrevivência do Estado e permite suportar o complexo prestacional (saúde, educação, segurança, etc.) que este, com maior ou menor amplitude – rectius, melhor ou pior –, assume perante a sociedade. Vale aqui – e citamos José Casalta Nabais – essa verdadeira constatação do óbvio referida ao significado dos impostos: “[…] são um preço: o preço que todos, enquanto integrantes de uma dada comunidade organizada em estado, pagamos por termos a sociedade que temos […]” (“Da sustentabilidade do Estado fiscal”, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, Coord. José Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, Coimbra, 2011, pp. 12/13).
[16] Estabelece este:

Artigo 103º
(Sistema fiscal)
1 – O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
2 – Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

[17] CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, p. 1093.
[18] Estabelece este:
Artigo 216º
Não homologação a solicitação dos interessados
1 – O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
2 – Se o plano de insolvência tiver sido objecto de alterações na própria assembleia, é dispensada a manifestação da oposição por parte de quem não tenha estado presente ou representado.
3 – Cessa o disposto no n.º 1 caso o oponente seja o devedor, um seu sócio, associado ou membro, ou um credor comum ou subordinado, se o plano de insolvência previr, cumulativamente:

a) A extinção integral dos créditos garantidos e privilegiados por conversão em capital da sociedade devedora ou de uma nova sociedade ou sociedades, na proporção dos respectivos valores nominais;
b) A extinção de todos os demais créditos por contrapartida da atribuição de opções de compra conformes com o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 203.º relativamente à totalidade das acções assim emitidas;
c) A concessão ao devedor ou, se for o caso, aos respectivos sócios, associados ou membros, na proporção das respectivas participações, de opções de compra da totalidade das acções emitidas, contanto que o seu exercício determine a caducidade das opções atribuídas aos credores e pressuponha o pagamento do valor nominal dos créditos extintos por contrapartida da atribuição das opções caducadas.
4 – Se, respeitando-se quanto ao mais o previsto no número anterior, a conversão dos créditos em capital da sociedade devedora ou de uma nova sociedade ou sociedades não abranger apenas algum ou alguns dos créditos garantidos e privilegiados, ou for antes relativa à integralidade dos créditos comuns e somente a estes, o pedido de não homologação apresentado pelo devedor, pelos seus sócios, associados ou membros, ou por um credor comum ou subordinado, somente se pode basear na circunstância de o plano de insolvência proporcionar aos titulares dos créditos garantidos ou privilegiados excluídos da conversão, por contrapartida dos mesmos, um valor económico superior ao respectivo montante nominal.

[19] Estabelece este:
Artigo 215º
Não homologação oficiosa
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
[20] Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, p. 392. Remete-se aqui para a caracterização feita pela jurisprudência constitucional alemã, relativamente à actuação do princípio ou máxima de igualdade. Esta, nas sugestivas palavras do Tribunal Constitucional Federal Alemão, é violada, “[…] quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição tem de ser qualificada como arbitrária” já que, “[…] não está vedado todo o tratamento desigual de casos essencialmente iguais, mas, tão-só, o tratamento desigual arbitrário dos casos essencialmente iguais” (ob. cit., pp. 366 e 365, pela ordem das citações aqui seguida).
[21] A primeira decisão da Comissão Constitucional, o Parecer nº 1/76, de 14/12/1976 (Isabel de Magalhães Colaço), tratou, precisamente, de um problema de igualdade – o Parecer está disponível no sítio do Tribunal, na área da Biblioteca, directamente, no endereço:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/files/biblioteca/cc/cc_volume_01.pdf .
[22] Acórdão disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100047.html.
[23] Intercalando a referência à aparência de tratamento desigual, pretendemos frisar que a legitimidade constitucional da diferenciação de regimes entre os créditos fiscais e os outros créditos, sendo justificada cumpre o mandato constitucional de igualdade. Neste sentido essa desigualdade só é aparente
[24] Diz ela a fls. 329:
“[…]

[P]adece de inconstitucionalidade material a interpretação de que o Tribunal a quo atribuiu aos mencionados artigos 30º, nº 3 da LGT e 199º do CPPT no sentido de que é suficiente, para se aferir da indisponibilidade dos créditos tributários, a mera aceitação ou não pela Administração Fiscal, das garantias envolvidas na afectação desses créditos, sem que para tanto sejam apresentados e/ou justificados os motivos que presidiram a tal não aceitação.
[…]”.
[25] Embora, como já indicámos na nota 11 supra, e aqui reafirmamos, a recusa de aceitar a garantia hipotecária aqui proposta pelo plano de insolvência (uma segunda hipoteca) nos apareça como plenamente justificada, bem longe de um comportamento arbitrário.
[26] Basta pensar na garantia bancária autónoma, no sentido em que nesta o garante assume face ao credor o próprio cumprimento da obrigação garantida, face à não satisfação desta pelo devedor. Aqui, nas hipóteses do nº 1 do artigo 199º do CPPT, a administração tributária garante directamente a efectividade do seu crédito (v., quanto à garantia autónoma, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, cit., pp. 119/121).
[27] Estabelece esta:

Artigo 38º
Ineficácia de actos e negócios jurídicos
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2 – São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.
[28] V., sobre a cláusula anti-abuso, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15/02/2011 (José Correia), no processo 04255/10, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço:
https://mail-attachment.googleusercontent.com/attachment/u/0/?ui=2&ik=b0b75831b7&view=att&th=130b2bcb6a9d843c&attid=0.1&disp=safe&realattid=c669476158a12c93_0.1&zw&sadssc=1&authuser=0&sadnir=1&saduie=AG9B_P8eNURxltmdk01PNO2buHbc&sadet=1353078149437&sads=8Rime4OriiEwISCHj6Zf7BV8FHQ.
Sumário (transcrição parcial):
“[…]
I)– As normas anti-abuso encontram a sua raison d´être no comportamento evasivo e fraudatório dos sujeitos passivos em matéria fiscal tem e na necessidade de estabelecer meios de reacção adequados por forma a garantir o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas (cfr. artigo 103º, n°.1, da C.R. Portuguesa).
II) – Isso porque é inerente à racionalidade económica a minimização dos impostos a suportar, podendo utilizar-se várias vias para atingir tal desiderato, embora a fronteira de distinção entre elas nem sempre seja fácil de vislumbrar e nesse sentido são seguidas normalmente as vias da gestão ou planeamento fiscal da evasão ou elisão fiscal e da fraude fiscal.
III) – Assim, através da primeira das apontadas vias, procura-se a minimização dos impostos a pagar de um modo totalmente legítimo e lícito, querido até pelo legislador, ou deixado à liberdade de opção do contribuinte, como sejam os benefícios fiscais e as alternativas fiscais (v.g.a decisão de tributação separada, ou conjunta, em sede de uniões de facto no IRS; a opção pelo regime simplificado ou pela contabilidade organizada para a determinação do lucro tributável em sede de IRC; a opção, ou não, pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades em IRC) pelo que, dentro dos limites da lei e do direito, o sujeito passivo pode escolher as formas menos onerosas de tributação tendo como limite da sua pretensão minimizadora a fraude à lei.
IV) -A evasão ou elisão fiscal, dá-se pela prática de actos ou negócios lícitos mas que a lei fiscal qualifica como não sendo conformes com a substância da realidade económica que lhe está subjacente, assim devendo qualificar-se como anómalos, anormais ou abusivos, sendo também caracterizados como comportamentos extra legem, em contraposição com a via da fraude fiscal, caracterizada como contra legem e dos comportamentos tributários evasivos resulta um sério entrave à concorrência empresarial, uma notória erosão das receitas fiscais, a distorção do princípio da equidade e um claro menosprezo do cumprimento das regras de cidadania, situações que se fundam em causas de carácter político, económico, psicológico e técnico. E as formas utilizadas giram em torno de actos e contratos atípicos ou anormais visando tornear a lei (vg. utilização do regime especial de tributação dos grupos de sociedades – artigo 63 e seg. do C.I.R.C. - através da produção de menos-valias ou da utilização de benefícios fiscais através da transmissão de prejuízos) ou interpretando-a com fins diversos daqueles que o legislador tinha em mente, designadamente aproveitando-se da existência de jurisdições fiscais diferentes para escolher, apenas por motivações de diminuição do imposto a pagar, a localização mais favorável para a residência de pessoas singulares ou colectivas ou para nelas instalar "estruturas" que não desempenham outra função que não seja permitirem essa diminuição.
[…]”.
[29] “As normas especiais anti-abuso (SAAR’s – Special Anti-Abuse Rules) possuem aparentemente em comum com a CGAA (GAAR – General Anti-Abuse Rule), o respectivo âmbito de aplicação e fim: ambas visam transacções reais […], levadas a cabo com maior ou menor artifício, por razões fundamentais de economia fiscal, e que são postas em causa nos seus efeitos fiscais, relativamente aos termos em que se encontravam previstos pelas partes” (Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário Contributos para a sua compreensão, Coimbra, 2009, p. 91).
No sentido em que aqui interpretamos o artigo 199º, nºs 1 e 2 do CPPT, assume este o propósito de impedir, através do normal funcionamento da regra do quórum na aprovação de um plano de insolvência, a possibilidade de relativização do crédito fiscal. Tratando-se este de um efeito algo lateral, não deixa de estar em causa essa teleologia básica de todas as normas anti-abuso: a defesa da tributação contra a procura de efeitos relativizadores desta, decorrentes do accionar de mecanismos jurídicos indirectos.
[30] Que aqui se transcreve:
“[…]

2.1.1.1. Vale isto, enfim, pela consideração da incorrecção da homologação do plano de insolvência pela Sentença apelada, sendo que isto significa – para além, obviamente, dessa não homologação – o retorno do processo concursal a uma fase em que ainda será possível, em vista da possibilidade de homologação de um plano de insolvência, a apresentação de alterações a este que permitam afastar a previsão do artigo 215º do CIRE, designadamente no que toca à aceitação de garantias quanto aos créditos fiscais.

3. Face ao exposto, na procedência da apelação, revoga-se a Sentença recorrida, recusando-se a homologação do Plano de Insolvência na versão nesta considerada aprovada, com a consequência indicada no antecedente item 2.1.1.1.
[…]”.3 – Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.