Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2604/08.4TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
SIMULAÇÃO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 12/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.4, 193, 288, 470, 494, 498 CPC, 240, 289, 616 CC
Sumário: 1. A articulação na petição inicial de factos integradores de simulação absoluta de uma compra e venda de um imóvel, bem como de factos integradores de impugnação pauliana da mesma compra e venda, sem que seja estabelecido qualquer nexo de subsidiariedade entre tais complexos de factos, integra ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de causas de pedir.

2. A dedução na petição inicial, em simultâneo, de pedidos de declaração de nulidade de certo negócio com fundamento em simulação absoluta, de cancelamento do registo de aquisição do imóvel objecto do negócio arguido de nulo por simulação absoluta, de cancelamento de registos de constituição de hipotecas a favor de entidade bancária sobre o mesmo imóvel e de declaração de ineficácia do mesmo negócio de compra e venda relativamente ao autor, a fim de o poder executar no património dos obrigados à restituição, sem que exista qualquer subsidiariedade entre tais pedidos, integra ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de pedidos.

3. A ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos é insuprível.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 19 de Dezembro de 2008, no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, E (…) instaurou acção declarativa que denominou de impugnação pauliana, distribuída na primeira espécie, contra A (…), M (…), A (…) e P (…).

O autor concluiu a sua petição inicial pedindo a procedência da acção, referindo que “uma vez que é nulo, por simulação e má-fé, o mencionado contrato de compra e venda celebrado entre os três Réus, e é ineficaz em relação ao autor o referido contrato de compra e venda, para efeitos de este o poder executar no património dos obrigados à restituição, nos termos do disposto no artigo 616º. do Código Civil.

Devendo ser considerado celebrado de má-fé por todos os Réus, à excepção do marido da terceira Ré, o contrato de compra e venda (escritura) do mencionado imóvel, declarando-se a sua ineficácia em relação ao Autor na medida necessária à satisfação do seu crédito, a fim do Autor poder executar o património dos Réus.

Devendo ser ordenado o cancelamento do respectivo registo de aquisição a favor da terceira Ré e de outros que eventualmente tenham sido ou venham a ser feitos e que o Autor desconhece.

Devendo também ser ordenado o cancelamento dos registos das hipotecas voluntárias que se encontram inscritas actualmente a favor do Banco E...., S.A., Sociedade Aberta.

O autor fundamenta as suas pretensões alegando, em síntese, que a 10 de Fevereiro de 1998, no âmbito do processo criminal nº 75/96, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, juntamente com (…) celebrou uma transacção judicial nos termos da qual desistiu das queixas que tinha apresentado contra estes últimos, com a condição dos mesmos lhe pagarem a quantia de doze milhões de escudos, tendo (…) e (…) confessado dever essa quantia ao autor, prometendo pagar-lha, acordando que a taxa de juro de mora seria de 8 % ao ano; não obstante ter sido solicitado a (…)e (…)o pagamento daquela quantia, estes nada pagaram ao autor; (…)e (…)são progenitores de (…), sua única filha; a 28 de Junho de 2004, numa altura em que tinham dificuldades financeiras, (…) e (…), conluiados com (…), declararam vender-lhe o único imóvel de que eram donos, com o único propósito de enganar e prejudicar o autor, subtraindo aquele prédio da sua esfera jurídica, não pretendendo os primeiros efectivamente vender, nem a segunda comprar; a segunda ré continua a habitar o imóvel que foi objecto da compra e venda celebrada a 28 de Junho de 2004, comportando-se como se fosse dona do mesmo, estando a diligenciar pela sua venda pelo preço de € 250.000,00; alega ainda que a aludida transmissão se efectivou apenas para (…) e (…)furtarem a propriedade do imóvel que declararam vender à garantia do pagamento do crédito do autor, eximindo-se ao seu pagamento em virtude de tal bem constituir o único património imóvel exequível daqueles, o que fizeram com a conivência de sua filha, que bem sabia da existência da dívida e da situação financeira de seus pais, os quais não tinham mais nenhum imóvel ou património suficiente para pagamento da sua dívida ao autor.

A 30 de Dezembro de 2008, o autor veio requerer a rectificação do valor da acção, referindo que o capital em dívida era afinal de € 17.458,00, sendo os juros em dívida no montante de € 15.249,93.

A pretexto dos réus ainda não terem sido citados para a acção, o autor foi convidado a apresentar nova petição inicial corrigida, convite que o autor acatou a 27 de Janeiro de 2009, mantendo-se inalterado o conteúdo da petição inicial com excepção do segmento ao valores em dívida que foram rectificados, aludindo-se na petição inicial aperfeiçoada ao pagamento parcial do montante que A (...) e M (...)confessaram dever ao autor.

Os réus foram citados para contestar com a legal cominação.

M (…) contestou invocando a prescrição dos juros vencidos até 25 de Dezembro de 2003, alegou que os juros moratórios devem ser contados à taxa anual de 4 % e impugnou os factos alegados pelo autor tendentes a firmar a conclusão de que existiu um acordo entre os pais da ré A (…) e esta para prejudicar o autor, retirando da esfera jurídica dos primeiros o mencionado imóvel, antes tendo agido daquele modo para saldar as dívidas que os vendedores tinham para com uma instituição bancária, que a compra e venda foi efectivamente querida por vendedores e compradora, tendo-se esta endividado para o adquirir, permitindo a compradora que a vendedora continuasse a residir no imóvel, juntamente com ela, que o valor que é pedido actualmente pela venda do imóvel engloba beneficiações efectuadas pela ré A (…) e um terreno que confina com a casa, com a área de dois mil metros quadrados, concluindo pela total improcedência da acção.

A (…) e P (…) contestaram em termos coincidentes com os da contestação de M (…), alegando ainda que a ré (…) não tinha conhecimento do crédito do autor e concluindo pela total improcedência da acção.

O autor replicou pugnando pela improcedência da excepção de prescrição dos juros moratórios alegando que se trata de juros de mora reconhecidos por sentença judicial.

Foi proferido despacho convidando o autor a deduzir incidente de intervenção principal passivo da entidade bancária a que respeitam as inscrições hipotecárias cujo cancelamento foi requerido pelo autor, convite que foi acatado.

A 11 de Janeiro de 2010 foi admitida a intervenção principal do lado passivo do Banco E..., SA, efectuando-se a citação do interveniente nos termos previstos no artigo 327º do Código de Processo Civil.

O Banco E..., SA contestou arguindo a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de pedidos e impugnou a generalidade dos factos articulados pelo autor, com excepção dos constantes de documento autêntico, alegou que relativamente a si, a verificar-se a invocada simulação, opera a inoponibilidade prevista no artigo 291º do Código Civil, beneficiando também da protecção conferida pelo artigo 17º do Código do Registo Predial, pugnando pela improcedência da acção, ao menos na parte que lhe diz respeito.

O autor replicou pugnando pela improcedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial reafirmando o seu pedido principal já antes transcrito.

A 15 de Abril de 2010 foi proferido despacho a fixar o valor da causa em € 295.197,00 e julgou-se verificada a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos, sendo todos os réus absolvidos da instância.

Inconformado com a decisão que julgou verificada a ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos, a 19 de Maio de 2010, o autor interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

“1 - Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Douta Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Juízo de Grande Instância Cível de Anadia, da Comarca do Baixo Vouga, que proferiu a seguinte Sentença que a seguir se transcreve:

“Pelo exposto, e ainda, ao abrigo dos arts. 288.º, al. b), 493.º, n.º 2 e 494.º, al. b) do C.P.C., decido:

a) Julgar a arguida excepção dilatória de nulidade de todo o processo procedente, e consequentemente, absolver da instância os Réus (…) e o Interveniente Principal Provocado Passivo Banco E..., S.A.

b) Custas a suportar pelo Autor.”

2 - O Apelante na acção de impugnação pauliana que propôs no Tribunal “ a quo”, terminou a sua petição inicial formulando os seguintes pedidos:

Deve ser julgada procedente e provada a presente acção de impugnação pauliana, uma vez que é nulo, por simulação e má-fé, o mencionado contrato de compra e venda celebrado entre os três Réus, e é ineficaz em relação ao Autor o referido contrato de compra e venda, para efeitos de este o poder executar no património dos obrigados à restituição, nos termos do disposto no artigo 616.º do Código Civil.

Devendo ser considerado celebrado de má-fé por todos os Réus, à excepção do marido da terceira Ré, o contrato de compra e venda (escritura) do mencionado imóvel, declarando-se a sua ineficácia em relação ao Autor na medida necessária à satisfação do seu crédito, a fim do Autor poder executar o património dos Réus.

Devendo ser ordenado o cancelamento do respectivo registo de aquisição a favor da terceira Ré e de outros que  eventualmente tenham sido ou venham a ser feitos e que o Autor desconhece.

Devendo também ser ordenado o cancelamento dos registos das hipotecas voluntárias que se encontram inscritas actualmente a favor do Banco E..., S. A., Sociedade Aberta.

3 - Aceita-se que o Apelante poderá não ter formulado da melhor forma os pedidos contidos na sua Acção, todavia lendo a sua alegação é facilmente perceptível o que se pretende.

4 - Tanto assim é, que os Apelados que a contestaram compreenderam bem o alcance do que pretendia o Apelante com esta Acção.

5 - O que está em causa no presente recurso de apelação é a alegada incompatibilidade substancial dos pedidos formulados pelo Apelante.

6 - Ora e salvo o devido respeito, não se pode concordar de forma alguma com a fundamentação expressa na Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”.

7 - Pois, a alegada incompatibilidade substancial de pedidos na opinião do Apelante não existe.

8 - Aceita-se apenas que a redacção dos pedidos feitos na petição inicial não terá sido feita da melhor forma, o português utilizado talvez não tenha sido o mais explícito ou a qualificação jurídica não terá sido a mais correcta.

9 - Agora o que não se pode aceitar de forma alguma é que exista uma incompatibilidade substancial de pedidos e que com este fundamento tenham sido os Apelados absolvidos da instância.

10 - A Acção que o Apelante propôs no Tribunal “a quo”, foi de Impugnação Pauliana e não de Anulabilidade ou de Nulidade.

11 - Existe Jurisprudência fixada nesta matéria pelo Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão nº 3/2001, de 23-01-2001, publicado no Diário da República, Série I –A, nº 34, de 9 de Fevereiro de 2001, relatado por Moura Cruz, e que ditou o seguinte:

“Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratandose de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1, do art. 616.º, do Código Civil) o Juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como é permitido pelo art.º 664.º do Código de Processo Civil.”

 “Tendo invocado as normas legais da impugnação pauliana e os Réus contestado nessa base, face ao estatuído o citado artigo 664.º do C.P.C., nada impede que, face ao erro na qualificação jurídica dos efeitos pretendidos, o Juiz declare a ineficácia do contrato, em vez da pedida anulação.”

12 - Já anteriormente tinham efectuado essa convolação jurídica os seguintes acórdãos:

Da Relação do Porto, de 12-01-1988, na C. J., Ano XIII, tomo 1, página 184, relatado por Sampaio da Nóvoa (em pedido de declaração de “nulidade” do acto).

Do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-03-1996, no B.M.J. n.º 455, página 498, relatado por Almeida e Silva (em pedido de declaração de “invalidade” do acto).

Do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-10-1997, no site www.dgsi.pt, relatado por Lopes Pinto (em pedido de anulação).

Do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-11-1998, no B.M.J., n.º 481, página 405, relatado por Miranda Gusmão (em pedido de restituição dos bens ao património devedor).

Da Relação de Évora, de 17-06-1999, na C.J., Ano XXIV, tomo 3, página 278, relatado por Santos Martins (em pedido de “anulação” do acto).

13 - Além de que existe doutrina sobre esta temática, João Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, Editora Almedina, Outubro 2004, que a páginas 279 e 280, que refere o seguinte:

“Se o impugnante, como muitas vezes sucede, por deficiente explicitação jurídica, pedir a “nulidade”, “anulação”, “rescisão”, “revogação”, “resolução”, ou “ineficácia” do acto, ou “a restituição do bem ao património do devedor”, deverá o Juiz, na sentença, caso não tenha utilizado o convite à correcção (art.º 508.º, do C.P.C.), convolar o pedido para um dos efeitos

previstos no art.º 616.º, do C.C., desde que a vontade de o obter resulte inequivocamente da redacção da petição inicial, sem que daí se desrespeitem as exigências do princípio do dispositivo constantes do art.º 661.º, do C.P.C. O tribunal não condena em objecto diferente do peticionado, limitando-se a efectuar uma diferente qualificação jurídica do conteúdo do pedido”.

14 - Acerca da alegada incompatibilidade de pedidos vertidos na petição inicial, se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 06-04-83, cujo relator foi Joaquim Figueiredo, www.dgsi.pt, e cujo sumário se transcreve:

“A ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos incompatíveis apenas se verifica quando o pensamento do autor se torne ininteligível.

A incompatibilidade existente no plano da lei ocasiona, não a ineptidão da petição, mas a improcedência do pedido ou dos pedidos em relação aos quais o autor não tenha direito.”

15 - Diga-se ainda que, o Acórdão n.º 33/00 do Tribunal Constitucional, de 12-01-2000, publicado no Diário da República II em 04-10-2000, não julgou inconstitucional a norma conjugada do artigo 616.º do Código Civil e do artigo 661.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, enquanto interpretadas no sentido de permitirem que uma decisão jurisdicional condene em algo qualitativamente diverso do pedido formulado.

16 - No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2008, proferido no processo n.º 08A966, o sentido em que deve ser entendida a incompatibilidade dos pedidos está muito bem descrito: "A incompatibilidade de pedidos, enquanto vício gerador de ineptidão da petição inicial, só justifica colher tal relevância, determinando a anulação de todo o processo, quando coloque o julgador na impossibilidade de decidir, por confrontado com a ininteligibilidade das razões que determinaram a formulação das pretensões em confronto, irrelevando, para o efeito, o antagonismo que ocorra no plano legal ou do enquadramento jurídico."

17 - O legislador ao referir-se à incompatibilidade substancial quis significar que tal sanção não abarca a mera incompatibilidade processual ou formal exigida pelo art. 470º e cuja consequência será a absolvição da instância no despacho saneador, relativamente ao pedido que não possa ser deduzido na forma processual utilizada pelos Autores, sem prejuízo da possibilidade do juiz convidar o autor a escolher o pedido que queira ver apreciado (art. 470º, nº 1 e 31º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil). Ora, incompatibilidade substancial existe quando, por exemplo, o autor, com base nos mesmos factos, pede a declaração de nulidade do contrato e o cumprimento de uma cláusula do mesmo.

18 - A este propósito importa igualmente citar o Acórdão da Relação do Porto de 12.10.1998, publicado no site da Internet do TRP (http://ww.trp.pt), cujo sumário nº 184 passamos a transcrever:

“I-A cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, para efeito de ineptidão da petição inicial, radica na ininteligibilidade do pensamento do A. e na consequente impossibilidade de decidir qualquer dos pedidos formulados.

II A petição deve considerar-se apta quando os pedidos cumulados não são contraditórios na posição do A. e apenas

padecem de vícios de enquadramento jurídico.

III- Saber se, juridicamente, a A. tem ou não os direitos que se arroga nos pedidos cumulados e qual a extensão do seu eventual direito de indemnização relativamente a cada uma das RR. demandadas, são questões de fundo, ou seja, de procedência ou improcedência dos pedidos correspondentes, as quais transcendem o âmbito do vício da cumulação de pedidos.”

19 - Ora, de todo o exposto, afigura-se pertinente questionar se o Meritíssimo Juiz “a quo”, não deveria ter convidado o Apelante a vir dizer qual dos pedidos pretendia ver apreciados, ou a apresentar um novo articulado da petição inicial?

20 - Na opinião do Apelante, o Meritíssimo Juiz “a quo”, poderia e deveria tê-lo feito, ao abrigo dos artigos 265.º, n.º 2, 508.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do C.P.C.

21 - Pois não se compreende que o não tenha feito, uma vez que formulou ao Apelante um convite, que este aceitou, para que viesse provocar o incidente de intervenção provocada passiva do Banco E..., ao abrigo dos mesmos supra referidos artigos.

22 - Torna-se pertinente questionar porque não formulou o Meritíssimo Juiz “a quo”, um convite ao Apelante, para que este viesse dizer qual dos pedidos pretendia ver apreciados, ou a apresentar um novo articulado da petição inicial?

23 - Esta omissão de convite praticada pelo Meritíssimo Juiz “a quo”, fez com que os Apelados, fossem absolvidos da instância.

24 - Assim, ao agir da forma supra descrita, e salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz “a quo”, apenas deu prevalência à forma, quando deveria ter prevalecido a substância.

25 - Tudo isto em clara violação do artigo 508.º, n.º 3 do C.P.C., como melhor se alcança através da leitura do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28-11-2006, processo n.º 56/06.2TBTBU.C1, cujo relator foi o Sr. Desembargador Freitas Neto, www.dgsi.pt., e que se transcreve:

“Prescreve o n.º 3 do art.º 508.º do C.P.C. que o Juiz pode convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.

Já tem sido entendido (cfr. o Acórdão desta relação de 06/03/2001, in CJ, 2001, 2.º, p. 15) que, diversamente do que  acontece na hipótese prevista no n.º 2, este despacho-convite ao aperfeiçoamento, integrando o chamado de despacho pré-saneador, não constituiria um despacho vinculado, pelo que a sua não observância pelo juiz não geraria uma qualquer nulidade ou

irregularidade processual. Neste quadro, inexistindo ofensa de normas de natureza processual na omissão de tal convite, também esta falta seria insindicável por via de recurso.

Não podemos subscrever tal entendimento.

Tal atitude interpretativa, salvo o devido respeito, colocaria a parte numa situação inaceitável, pois que o  aperfeiçoamento do articulado ficaria apenas dependente, aleatoriamente, da vontade, quiçá da atenção, do tribunal de 1.ª Instância.

Afigura-se mais conforme ao espírito do diploma reformador de 95 (DL 329-A/95 de 12/12) que introduziu tal regra adjectiva, configurar esse poder como um poder-dever do Tribunal, de conhecimento e uso ex officio, acarretando nulidade a sua não observância.

Poder-dever cujo não uso é assim sindicável pela Relação, como instãncia julgadora em matéria de facto (neste sentido cfr. o Ac. Da Relação do Porto de 25/06/98 in CJ, 1998, 3.º - 223).”

26 - Idêntica opinião teve o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão de 18-09-2003, Processo n.º 0331343, cujo relator foi o Senhor Desembargador Pinto de Almeida, www.dgsi.pt, e cujo sumário se transcreve:

“Embora a afirmação da insuficiência ou imprecisão da alegação da matéria da matéria de facto que justifica o convite de aperfeiçoamento, previsto no artigo 508.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, suponha sempre determinada valoração e ponderação por parte do Juiz, não se está perante uma mera faculdade que este pode ou não cumprir.

Se o Juiz se apercebe de insuficiências ou imprecisões do articulado susceptíveis de conduzir a uma decisão prejudicial à parte que o apresentou, tem o dever de a prevenir, proferindo despacho a convidar a parte a sanar essas deficiências, sendo ilegítimo que, em vez disso, venha, desde logo, a proferir decisão desfavorável com fundamento em tais insuficiências.

Nestas condições, porque a deficiência do articulado compromete o êxito da acção ou da defesa, a omissão do convite ao aperfeiçoamento constitui a nulidade prevista no artigo 201.º, n.º 1 do C.P.C.”

27 - Assim, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, poderia e deveria ter aproveitado o presente processo de duas formas possíveis:

- Ou através da convolação jurídica prevista no artigo 664.º do C.P.C.,

- Ou através da formulação de convite ao Apelante para que este rectificasse a sua petição inicial;

- Ou que viesse convidar o Apelante a vir esclarecer qual dos pedidos pretendia ver apreciados conforme prevê o artigo 508.º, n.º 3 do C.P.C.

28 - Assim sendo, no entendimento do Apelante, a Sentença de que se recorre não terá feito a melhor interpretação da lei processual civil e desta forma violou as normas jurídicas dos artigos 288.º, alínea b), 493.º, n.º 2 e 494.º, alínea b), 508.º, n.º 3, 201.º, n.º 1 e 664.º todos do Código de Processo Civil.

            O recorrente termina as suas alegações pedindo a revogação da decisão sob censura e a sua substituição por outra que o convide a aperfeiçoar a petição inicial.

            Os réus contestantes contra-alegaram defendendo a total improcedência do recurso.

            O recurso interposto pelo autor foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

            Colhidos os vistos legais e inexistindo qualquer questão que obste ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigo 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Existe incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos?

2.2 A existir incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos, é esse vício sanável?

3. Fundamentos de facto resultantes da prova documental autêntica junta aos autos de folhas 20 a 36 e do que foi alegado pelo autor nas petições iniciais de folhas 2 a 16 e 44 a 58


3.1

A 19 de Dezembro de 2008, E (…) instaurou acção declarativa que denominou de impugnação pauliana, distribuída na primeira espécie, contra A (…), M (…). A (…) e P (…).

3.2

O autor conclui a sua petição inicial pedindo a procedência da acção, referindo que “uma vez que é nulo, por simulação e má-fé, o mencionado contrato de compra e venda celebrado entre os três Réus, e é ineficaz em relação ao autor o referido contrato de compra e venda, para efeitos de este o poder executar no património dos obrigados à restituição, nos termos do disposto no artigo 616º. do Código Civil.

Devendo ser considerado celebrado de má-fé por todos os Réus, à excepção do marido da terceira Ré, o contrato de compra e venda (escritura) do mencionado imóvel, declarando-se a sua ineficácia em relação ao Autor na medida necessária à satisfação do seu crédito, a fim do Autor poder executar o património dos Réus.

Devendo ser ordenado o cancelamento do respectivo registo de aquisição a favor da terceira Ré e de outros que eventualmente tenham sido ou venham a ser feitos e que o Autor desconhece.

Devendo também ser ordenado o cancelamento dos registos das hipotecas voluntárias que se encontram inscritas actualmente a favor do Banco E..., S.A., Sociedade Aberta.


3.3

O autor fundamenta as suas pretensões alegando, em síntese, que a 10 de Fevereiro de 1998, no âmbito do processo criminal nº 75/96, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, juntamente com (…) celebrou uma transacção judicial nos termos da qual desistiu das queixas que tinha apresentado contra estes últimos, com a condição dos mesmos lhe pagarem a quantia de doze milhões de escudos, tendo (…) confessado dever essa quantia ao autor, prometendo pagar-lha, acordando que a taxa de juro de mora seria de 8 % ao ano; não obstante ter sido solicitado a (…)e (…)o pagamento daquela quantia, estes nada pagaram ao autor; (…)e (…)são progenitores de (…), sua única filha; a 28 de Junho de 2004, numa altura em que tinham dificuldades financeiras, (…) e (…), conluiados com (…), declararam vender-lhe o único imóvel de que eram donos, com o único propósito de enganar e prejudicar o autor, subtraindo aquele prédio da sua esfera jurídica, não pretendendo os primeiros efectivamente vender, nem a segunda comprar; a segunda ré continua a habitar o imóvel que foi objecto da compra e venda celebrada a 28 de Junho de 2004, comportando-se como se fosse dona do mesmo, estando a diligenciar pela sua venda pelo preço de € 250.000,00; alega ainda que a aludida transmissão se efectivou apenas para (…) e (…) furtarem a propriedade do imóvel que declararam vender à garantia do pagamento do crédito do autor, eximindo-se ao seu pagamento em virtude de tal bem constituir o único património imóvel exequível daqueles, o que fizeram com a conivência de sua filha, que bem sabia da existência da dívida e da situação financeira de seus pais, os quais não tinham mais nenhum imóvel ou património suficiente para pagamento da sua dívida ao autor.

3.4

A 30 de Dezembro de 2008, o autor veio requerer a rectificação do valor da acção, referindo que o capital em dívida era afinal de € 17.458,00, sendo os juros em dívida no montante de € 15.249,93.

3.5

A pretexto dos réus ainda não terem sido citados para a acção, o autor foi convidado a apresentar nova petição inicial corrigida, convite que o autor acatou a 27 de Janeiro de 2009, mantendo-se inalterado o conteúdo da petição inicial com excepção do segmento referente ao valores em dívida que foi rectificado, aludindo-se na petição inicial aperfeiçoada ao pagamento parcial do montante que (…)e (…) confessaram dever ao autor.  

3.6

            Por sentença proferida a 10 de Fevereiro de 1998, transitada em julgado a 06 de Março de 1998, no âmbito do Processo Comum nº 75/1996, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro, foi homologada transacção nos termos da qual (…) e (…)  se confessaram devedores a E (…) da quantia total de doze milhões de escudos, proveniente de um empréstimo titulado não apenas pelos quatro cheques identificados nos quatro processos apensos, mas também de outros cheques que E (…)ainda tem em seu poder, designadamente um cheque de dois mil e quinhentos contos, datado de 31 de Dezembro de 1995 e outro de trezentos e trinta e sete mil e quinhentos escudos, datado de 30 de Outubro de 1995, sendo todos os cheques sacados sobre o Banco I (...).

3.7

            Na transacção referida em 3.6 foi declarado que a quantia de doze milhões de escudos seria paga por (…) e (…), da seguinte forma:

            a) dação em pagamento de um prédio rústico inscrito na matriz rústica da freguesia de ..., concelho de Águeda sob os artigos ... e ..., a que (…) atribuíram o valor de seis milhões de escudos, sendo a escritura pública da dação em pagamento acordada celebrada no prazo de sessenta dias a contar de 10 de Fevereiro de 1998;

            b) dois milhões e quinhentos mil escudos serão pagos na data da celebração da escritura referida na alínea anterior;

            c) os restantes três milhões e quinhentos mil escudos serão pagos no prazo de seis anos, vencendo juros, anualmente, à taxa de 8 %, a contar de 10 de Fevereiro de 1998.


3.8

            A (…) nasceu a 02 de Junho de 1977, é filha de (…) e de (…) tendo casado catolicamente com (…), a 27 de Setembro de 2008.

3.9

            No dia 28 de Junho de 2004, na agência do Banco E... SA, em Aveiro, na presença da Sra. Notária do Segundo Cartório Notarial de Aveiro, mediante escritura pública, (…) e (…) declararam vender a A (…), que declarou comprar para sua habitação própria permanente, pelo preço já recebido de cento e dez mil euros, o prédio urbano composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão e águas furtadas, com logradouro, sito no lugar e freguesia de ..., concelho de Águeda, inscrito na matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o número mil quinhentos e sessenta e oito.

3.10

            No instrumento referido em 3.9 A (…) declarou confessar-se devedora ao Banco E..., SA, Sociedade Aberta da quantia de cento e sete mil seiscentos e noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos que nesse acto recebeu do mesmo banco, por empréstimo concedido ao abrigo do regime geral do crédito à habitação, declarando ainda que para garantia do pagamento da quantia mutuada, acrescida dos juros que forem devidos, das despesas judiciais e extrajudiciais que o mutuante tenha de fazer no caso de ir a juízo para manter ou assegurar o seu crédito e acessórios constituía hipoteca sobre o imóvel comprado no mesmo acto a (…) e (…).

3.11

            Na Conservatória do Registo Predial de Águeda, freguesia de ..., sob o nº .../ ..., está descrito o prédio urbano sito em ..., com a área coberta de duzentos metros quadrados e descoberta de setecentos metros quadrados, composto de cave ampla, rés-do-chão, águas furtadas e logradouro, a confrontar do Norte e Sul com caminho público, do Nascente com ... e do Poente com ..., estando inscrita mediante a apresentação nº ..., de 07 de Junho de 2004[1], sob a inscrição G-2, a aquisição do direito de propriedade a favor de (…) por compra a (…) e (…).

3.12

            Na Conservatória do Registo Predial de Águeda, freguesia de ..., relativamente ao prédio urbano aí descrito sob o nº .../ .. ..., sob a inscrição C-4, resultante da apresentação nº 20, de 07 de Junho de 2004[2], está inscrita hipoteca voluntária a favor do Banco E..., SA, Sociedade Aberta, para garantia do pagamento do capital de € 107.697,72, juro anual à taxa de 2,760 %, acrescido da sobretaxa de 2 % em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de € 4.307,91, sendo o montante máximo assegurado de € 127.384,86.

3.13

            Na Conservatória do Registo Predial de Águeda, freguesia de ..., relativamente ao prédio urbano aí descrito sob o nº .../ ..., sob a inscrição C-5, resultante da apresentação nº 21, de 07 de Junho de 2004[3], está inscrita hipoteca voluntária a favor do Banco E..., SA, Sociedade Aberta, para garantia do pagamento do capital de € 77.500,00, juro anual à taxa de 2,760 %, acrescido da sobretaxa de 2 % em caso de mora, a título de cláusula penal e despesas no montante de € 3.100,00, sendo o montante máximo assegurado de € 91.667,00.

            4. Fundamentos de direito

            4.1 Da incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos

A causa de pedir é definida no nosso direito positivo, para efeitos de caso julgado, como o facto jurídico em que se funda a pretensão deduzida em juízo, sendo essa causa de pedir, nas acções reais, o facto jurídico de que procede o direito real, enquanto nas acções constitutivas e de anulação, a causa de pedir será constituída pelo facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido (artigo 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).

            O pedido constitui o efeito jurídico pretendido, correspondendo aos variados pedidos formulados diversas espécies de acções consoante o seu fim (veja-se o artigo 4º do Código de Processo Civil).

Nos termos do disposto no artigo 193º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, a petição é inepta quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Nesta nova redacção do nº 2, do artigo 193º do Código de Processo Civil aditou-se a referência à contradição de causas de pedir, lacuna que alguma doutrina apontava ao elenco dos fundamentos de ineptidão da petição inicial constantes do nº 2, do artigo 193º do Código de Processo Civil[4].

No despacho sob censura decidiu-se que a petição inicial enfermava de ineptidão em virtude da autora ter deduzido, cumuladamente, causas de pedir e pedidos passíveis de consubstanciar, em simultâneo, a declaração de nulidade, com fundamento em simulação absoluta, da compra e venda de um imóvel celebrada a 28 de Junho de 2004 e a que se referem os factos antes exarados sob o nº 3.9 e a impugnação do mesmo negócio jurídico para garantia do pagamento do crédito de que o autor se afirma titular e de que os vendedores seriam devedores.

A ineptidão da petição inicial derivada da incompatibilidade substancial de causas de pedir ocorre quando, em cumulação real, são invocadas como fundamento dos efeitos jurídicos peticionados causas de pedir cuja verificação simultânea é lógica e juridicamente impossível.

Por seu turno, a ineptidão da petição inicial fundada em incompatibilidade substancial de pedidos verifica-se quando, em cumulação real, são formulados pedidos cujos efeitos jurídicos mutuamente se repelem[5] e desde que tal incompatibilidade derive de razões substanciais e não do mero desrespeito das regras processuais da cumulação de pedidos vertidas no artigo 470º, nº 1, do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 31º, nº 1, do mesmo diploma legal.

A título de exemplo, ocorre incompatibilidade substancial de causas de pedir quando se invocam factos que integram a nulidade de um certo negócio com base em simulação absoluta e, no mesmo acto se pede o cumprimento do mesmo negócio, tal como existe incompatibilidade substancial de pedidos se simultaneamente se pede a resolução de um negócio com fundamento em incumprimento definitivo da outra parte e se pede que a outra parte seja condenada a entregar a coisa que se havia obrigado a entregar por força do negócio cuja resolução foi também peticionada.

Porém, verificando-se essa oposição substancial entre os pedidos, a ineptidão da petição inicial subsiste mesmo que um dos pedidos em oposição fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo (artigo 193º, nº 4, do Código de Processo Civil).

A incompatibilidade substancial de pedidos só existe se houver sido deduzida uma cumulação real de pedidos, não havendo qualquer obstáculo à dedução de pedidos subsidiários substancialmente incompatíveis (veja-se a primeira parte do nº 2, do artigo 469º do Código de Processo Civil)[6].

Também não existe obstáculo à dedução de causas de pedir substancialmente incompatíveis desde que tal se processe em regime de subsidiariedade, isto é, desde que uma causa de pedir seja configurada como causa de pedir principal e a que se acha em relação de incompatibilidade substancial com a principal seja invocada a título subsidiário, devendo ser conhecida apenas no caso da improcedência da causa de pedir principal.

A declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor é um meio de tutela da garantia patrimonial dos credores e pode ser usado quer os actos nulos sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que os credores tenham interesse na declaração de nulidade, não carecendo aquele que invoca a nulidade de demonstrar que o acto produz ou agrava a insolvência do devedor (artigo 605º, nº 1, do Código Civil). Este instituto opera em benefício não só do credor que invoca a nulidade, mas também dos restantes credores (artigo 605º, nº 1, do Código Civil).

A declaração de nulidade de um negócio jurídico tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 289º, nº 1, do Código Civil).

O negócio simulado é nulo (artigo 240º, nº 2, do Código Civil), dizendo-se a simulação absoluta sempre que sob o negócio simulado não exista qualquer outro que as partes tenham querido realizar (veja-se o artigo 241º, nº 1, do Código Civil donde por contraposição se extrai a noção da simulação absoluta[7]).

 A impugnação pauliana é também um instrumento conferido aos credores para tutela da garantia patrimonial de seus créditos. Regra geral, a impugnação pauliana pressupõe a validade do acto sujeito a impugnação, conferindo ao credor que dela lance mão, com sucesso, a restituição dos bens objecto do negócio impugnado na medida do seu interesse, podendo executar esses bens no património do obrigado à restituição (616º, nº 1, do Código Civil). Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido (artigo 616º, nº 4, do Código Civil). Mesmo no caso em que o acto sujeito a impugnação enferme de nulidade (artigo 615º, nº 1, do Código Civil)[8], a procedência da pretensão do credor impugnante tem os efeitos prescritos no artigo 616º, nº 1, do Código Civil e não os efeitos que decorrem da declaração de nulidade pois que o fundamento da pretensão, a causa de pedir é, nessa eventualidade, constituída pelos pressupostos da impugnação pauliana, não sendo declarada a nulidade do negócio[9], tudo se passando como se fosse válido o negócio objecto da impugnação.

A nosso ver, nada obsta à dedução simultânea, em regime de subsidiariedade, de causas de pedir que integrem os pressupostos da declaração de nulidade e da impugnação pauliana, bem como à dedução simultânea, no mesmo regime, do pedido de declaração de nulidade e de impugnação pauliana[10]. Existem interesses de economia processual e do próprio credor que podem justificar esta “engenharia processual”. Para referir apenas dois dos factores relevantes a ponderar nesta sede tenha-se em atenção que a prova de uma simulação negocial é difícil obrigando, em regra[11], a lançar mão de todo um arsenal de elementos de prova indirectos[12] e que a declaração de nulidade beneficia todos os credores (artigo 605º, nº 2, do Código Civil), enquanto a impugnação pauliana apenas opera em benefício do credor que procedentemente a requereu (artigo 616º, nº 4, do Código Civil).

No caso dos autos, o autor alegou, simultaneamente, factos integradores de uma simulação absoluta da compra e venda celebrada por escritura pública a 28 de Junho de 2004 e a que respeitam os factos provados em 3.9 (vejam-se os factos e as razões de direito vertidos nos artigos 8º a 32º, 52º a 54º, 58º e 59º, da petição inicial aperfeiçoada) e factos integradores da impugnação pauliana do mesmo negócio (vejam-se os factos e as razões de direito vazados nos artigos 33º a 51º, 55º a 57º, 60º e 61º, da petição inicial aperfeiçoada).

A nulidade derivada de simulação absoluta, sendo declarada, como já vimos, tem efeito retroactivo, implicando a restituição do que tiver sido prestado (artigo 289º, nº 1, do Código Civil), pelo que, no caso em apreço, determinaria que o imóvel vendido retornasse à esfera jurídica dos vendedores. Pelo contrário, a procedência da impugnação pauliana, relativamente ao mesmo negócio, deixaria intocados os efeitos translativos desse negócio, apenas permitindo ao credor autor na acção em que foi peticionada a impugnação desse negócio, a execução do bem objecto do negócio na esfera jurídica do seu adquirente e em sua exclusiva satisfação (artigo 616º, nº 4, do Código Civil[13]). É assim patente a incompatibilidade destas causas de pedir se deduzidas em cumulação real, pois que os efeitos de uma e outra se repelem mutuamente.

No entanto, no caso dos autos, o autor além da dedução simultânea de causas de pedir que mutuamente se repelem, formulou pedidos que mutuamente se excluem, que não podem ser satisfeitos simultaneamente, sem violação do princípio da não-contradição.

Assim, recorde-se que o autor conclui a sua petição inicial pedindo a procedência da acção, referindo que “uma vez que é nulo, por simulação e má-fé, o mencionado contrato de compra e venda celebrado entre os três Réus, e é ineficaz em relação ao autor o referido contrato de compra e venda, para efeitos de este o poder executar no património dos obrigados à restituição, nos termos do disposto no artigo 616º. do Código Civil.

Devendo ser considerado celebrado de má-fé por todos os Réus, à excepção do marido da terceira Ré, o contrato de compra e venda (escritura) do mencionado imóvel, declarando-se a sua ineficácia em relação ao Autor na medida necessária à satisfação do seu crédito, a fim do Autor poder executar o património dos Réus.

Devendo ser ordenado o cancelamento do respectivo registo de aquisição a favor da terceira Ré e de outros que eventualmente tenham sido ou venham a ser feitos e que o Autor desconhece.

Devendo também ser ordenado o cancelamento dos registos das hipotecas voluntárias que se encontram inscritas actualmente a favor do Banco E..., S.A., Sociedade Aberta.

Se a compra e venda celebrada a 28 de Junho de 2004 enferma de nulidade não pode, simultaneamente, enfermar de ineficácia relativa no que respeita o autor pois que isso seria admitir que o mesmo negócio, simultaneamente, não produzisse e produzisse alguns dos efeitos jurídicos a que tendia.

Por outro lado, a declaração de nulidade implica o reingresso do imóvel alienado na esfera jurídica dos alienantes, enquanto a impugnação pauliana procedente apenas permite ao credor autor da impugnação procedente a execução do bem alienado, na esfera jurídica do adquirente.

Finalmente, operando a declaração de nulidade do negócio, devem ser cancelados os registos fundados nesse título (artigo 13º do Código do Registo Predial), ressalvada a hipótese de protecção de terceiros de boa fé (artigos 243º e 291º, do Código Civil e 17º do Código do Registo Predial). Ao invés, no caso de proceder a impugnação pauliana do mesmo negócio, os registos efectuados com base no negócio impugnado mantêm-se.

Assim, por tudo quanto se acaba de expor, é patente que os pedidos que o autor formulou, em cumulação real, se repelem mutuamente, sendo notório que quer as causas de pedir quer os pedidos que o autor formulou em cumulação real são substancialmente incompatíveis entre si, enfermando a petição inicial de ineptidão, por essa razão.

As causas de pedir que servem de base aos pedidos formulados bem como os pedidos deduzidos pelo autor são claramente inteligíveis, não havendo quaisquer dúvidas na compreensão do seu exacto alcance. O que sucede é que a incompatibilidade que afecta as causas de pedir e os pedidos impede, em rigor, o tribunal de exercer a sua função de cognição do objecto do processo e dos pedidos formulados, dada a impossibilidade de poderem ser apreciados simultaneamente, não podendo o tribunal, sem violação do seu estatuto constitucional de independência e imparcialidade[14], optar por uma das causas de pedir e pelo pedido ou pedidos congruentes com a causa de pedir previamente escolhida.

A jurisprudência dos tribunais superiores, o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 3/2001[15], do Supremo Tribunal de Justiça e a doutrina citadas pelo recorrente nas conclusões décima primeira a décima terceira e décima quinta das suas alegações de recurso são de todo impertinentes para o caso em apreço, pois respeitam a casos em que ocorreu erro na identificação do efeito jurídico correspondente à impugnação pauliana pretendida.

Ora, no caso dos autos não há qualquer erro no efeito jurídico pedido mas antes efeitos jurídicos adequados a cada uma das duas causas de pedir invocadas, sucedendo porém que quer as causas de pedir, quer os pedidos são entre si substancialmente incompatíveis.

A denominação da presente acção como de impugnação pauliana não tem o relevo que o autor lhe pretende dar, porquanto, não obstante essa denominação, denunciadora à primeira vista de uma certa intenção, no articulado da petição inicial o autor alegou factualidade integradora de duas causas de pedir distintas e incompatíveis e, em consonância com tais causas de pedir, formulou também pedidos incompatíveis entre si. Não existe assim qualquer base para dessa denominação concluir que o autor apenas pretende a impugnação pauliana da compra e venda celebrada a 28 de Junho de 2004, já que se se atribuísse à designação da acção o relevo pretendido pelo autor quedaria por explicar a razão da articulação da matéria integradora da simulação negocial bem como a formulação de pedidos consonantes com essa causa de pedir.

O fim prático visado pelo autor que consiste na obtenção do pagamento coercivo do seu crédito pelas forças do imóvel objecto da compra e venda, é passível de ser satisfeito com qualquer das duas causas de pedir invocadas e com os pedidos ajustados a cada uma das causas de pedir.

Não existe qualquer indício que quer as causas de pedir invocadas pelo autor, quer os pedidos por si formulados na petição inicial se achem numa qualquer relação de subsidiariedade, pelo que é forçosa a conclusão de que a petição inicial enferma de ineptidão por incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos.

4.2 Da sanabilidade do vício de ineptidão da petição inicial decorrente da incompatibilidade substancial de causa de pedir e de pedidos

Nos termos do disposto no artigo 265º, nº 2, do Código de Processo Civil, “o juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.”

A ineptidão da petição inicial determina a nulidade de todo o processo (artigo 193º, nº 1, do Código de Processo Civil), constituindo uma excepção dilatória nominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância do réu, quando a instância já esteja perfectibilizada quanto a este (artigos 288º, nº 1, alínea b), 494º, alínea b) e 267º, nº 2, todos do Código de Processo Civil).

De acordo com o previsto no nº 3, do artigo 288º do Código de Processo Civil, “as excepções dilatórias só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do nº 2 do artigo 265º; ainda que subsistam, não terá lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da excepção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.”

A lei processual civil prevê a sanação da ineptidão da petição inicial no caso de ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir[16], sempre que o réu contestar, arguindo essa ineptidão e, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Civil).

Nos restantes casos de ineptidão, este vício é insuprível, pelo que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, o vício existente na petição inicial que ofereceu não era passível de ser sanado mediante a prévia prolação de despacho a convidar ao seu suprimento[17].

No circunstancialismo dos autos, em que se registava uma incompatibilidade substancial de causas de pedir e de pedidos, não tinha o tribunal a quo que proferir qualquer convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, pelo que bem andou ao declarar a nulidade de todo o processo e ao absolver da instância os réus e o interveniente principal do lado passivo.

Por tudo quanto precede é manifesta a total improcedência das conclusões do recurso do recorrente, devendo a decisão sob censura ser confirmada.

5. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por E (…) e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida datada de 15 de Abril de 2010; custas do recurso de apelação a cargo do recorrente.


***

Carlos Gil ( Relator )
Fonte Ramos
Carlos Querido


[1] Uma vez que a compra e venda foi celebrada a 28 de Junho de 2004, tudo indica que esta apresentação terá dado origem a uma inscrição provisória por natureza (artigo 92º, nº 1, alínea g), do Código do Registo Predial), posteriormente convertida em definitiva.
[2] Dado que a constituição desta hipoteca apenas foi celebrada a 28 de Junho de 2004, tudo indica que esta apresentação terá dado origem a uma inscrição provisória por natureza (artigo 92º, nº 1, alínea i), do Código do Registo Predial), posteriormente convertida em definitiva.
[3] A ordem e a data desta inscrição levam a crer que, à semelhança do já referido nas notas que antecedem, se terá tratado de uma inscrição provisória por natureza subsequentemente convertida em definitiva.
[4] Sobre esta questão, veja-se, Direito Processual Civil Declaratório, Volume II, Almedina 1982, Artur Anselmo de Castro, página 223.
[5] Por todos veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, (2ª ed. revista e ampliada), Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 131. Ao invés do que afirma este autor, afigura-se-nos que quando os pedidos assentem em causas de pedir inconciliáveis, o caso não será o da incompatibilidade substancial de pedidos mas sim o de contradição de causas de pedir.
[6] Indica como caso típico de subsidiariedade de pedidos o pedido principal de declaração de nulidade com fundamento em simulação e o pedido subsidiário de rescisão do negócio celebrado em prejuízo do credor, com fundamento na impugnação pauliana, o Professor Paulo Cunha in Processo Comum de Declaração, Tomo I, 2ª edição, Braga 1944, páginas 121 e 122.
[7] O Professor Beleza dos Santos, in A Simulação em Direito Civil, I, Coimbra Editora 1921, páginas 261 e 262, referindo-se à simulação negocial afirma que “como ela se emprega para fins diversos e com processos diferentes, reveste formas distintas que, no entanto, são sempre modalidades da simulação absoluta ou da simulação relativa porque em qualquer caso ou se simula não se dissimulando acto algum, e então o acto realizado é mera aparência vazia de qualquer conteúdo (colorem habet substantiam vero nulam), ou se emprega a simulação para com ela se dissimular um acto jurídico real ou qualquer dos seus elementos (colorem habet substantiam vero alteram).
[8] Para a justificação do regime do artigo 615º, nº 1, do Código Civil e os seus efeitos veja-se, Impugnação Pauliana, 2ª edição revista e aumentada, Almedina 2008, João Cura Mariano, páginas 126 a 129.
[9] Sobre o não conhecimento oficioso da nulidade do negócio ainda que tal vício seja patente veja-se, Impugnação Pauliana, 2ª edição revista e aumentada, Almedina 2008, João Cura Mariano, páginas 127 e 128.
[10] Sobre a possibilidade de dedução de pedido principal de declaração de nulidade e pedido subsidiário de impugnação pauliana veja-se a obra citada na nota que antecede, página 127, nota 241.
[11] Dizemos, em regra, porque na nossa prática nunca nos deparámos com as denominadas contra-declarações. Sobre esta figura veja-se a obra antes citada do Professor Beleza dos Santos, II, páginas 162 a 164.
[12] Sobre a prova indirecta da simulação veja-se, de novo a obra e o volume citados na nota que antecede, páginas 164 a 182.
[13] Esta norma tem que ser habilmente interpretada pois não significa a proscrição dos credores do adquirente que tenham já garantia sobre o bem a que respeita a impugnação, devendo antes entender-se que serão observadas as regras legais sobre concurso de credores. O significado precípuo desta previsão é antes o de que os restantes credores do alienante não serão directamente beneficiados pela procedência da impugnação deduzida por outro credor.
[14] Sobre esta dimensão da independência do poder judicial veja-se, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora 2007, Tomo III, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 43 a 45.
[15] Quanto à solução obtida por maioria neste acórdão de uniformização de jurisprudência, pronuncia-se criticamente Paula Costa e Silva in Acto e Processo, o Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra Editora 2003, páginas 574 a 577.
[16] Apesar do nº 3, do artigo 193º, do Código de Processo Civil remeter em bloco para a alínea a) do mesmo artigo, abarcando assim também a falta de causa de pedir e de pedido, cremos que apenas a ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido será suprível por esta via. Verificando-se realmente falta de causa de pedir ou de pedido, não se vê como se possa interpretar a petição inicial no que a estes elementos respeita, além de que sempre ficarão por preencher a causa de pedir e o pedido, não sendo viável, por definição, a ampliação da matéria de facto referente à causa de pedir mediante a apresentação de réplica (artigo 273º, nº 1, do Código de Processo Civil), porquanto, em tais casos nada existe que possa ser ampliado. Quando o vício é o da falta de causa de pedir parece-nos que não há qualquer interpretação possível que supra essa anomalia, sendo essa falta apenas superável por integração. Ressalvado o devido respeito, a espécie jurisprudencial citada no Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, da autoria de José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, na página 349, não é, como aí se escreveu de falta de causa de pedir, nem de falta de pedido, conforme se decidiu no acórdão citado, mas antes um caso em que o pedido foi incorrectamente formulado na narração da petição inicial, não tendo sido deduzido de forma especificada na conclusão da petição inicial. Ora, esse caso, como já há muito se defendia na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 84, páginas 138 e 139, não integra ineptidão da petição inicial, tanto mais que inexiste norma legal a impor a dedução do pedido na conclusão da petição (veja-se o artigo 467º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil), sendo certo, contudo, que é mais perfeita a peça processual em que a formulação do ou dos pedidos surja na conclusão da petição.
[17] Sobre o carácter insuprível da ineptidão da petição inicial veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª ed. revista e ampliada, Almedina 1999, II Volume, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 65 e 66.