Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1430/13.3TBFIG-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
INDEMNIZAÇÃO AOS CREDORES
QUANTO INDEMNIZATÓRIO
Data do Acordão: 12/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – SEC. COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 189º, Nº 2, AL. E), E Nº 4 DO CIRE.
Sumário: I. A Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, veio dar nova redacção ao art.º 189º do CIRE, introduzindo-lhe a al. e) no nº 2, por cujos termos deverá o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, “condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados”.

II. A condenação segundo esta novel al. e) é um verdadeiro imperativo do Tribunal que, uma vez qualificada a insolvência como culposa, não poderá deixar de responsabilizar o culpado.

III. No que respeita ao “quantum” indemnizatório, atento o disposto no nº 4 do preceito, fica aberta a porta à possibilidade do juiz ter em consideração factores que, designadamente em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo, nesta sede podendo/devendo ser ponderados o grau de ilicitude e culpa manifestadas nos factos determinantes da qualificação de insolvência.

IV. No silêncio da lei, e recorrendo ao elemento sistemático, tendo em atenção o princípio “par condito creditorum”, afigura-se que os valores indemnizatórios fixados deverão ser integrados na massa e distribuídos pelos credores cujos créditos, reconhecidos, não hajam obtido satisfação.

Decisão Texto Integral:


I. RELATÓRIO

Declarada a insolvência de T..., SA, requereu J..., credor da insolvente, a abertura do incidente de qualificação e, tendo imputado aos administradores da devedora condutas integradoras da previsão legal do art.º 186.º, n.ºs 2 e 3 do CIRE, propôs a qualificação da insolvência como culposa.

O Sr. AI emitiu parecer nos termos do disposto no art.º 188.º, n.º 3, no sentido de que os administradores da insolvente, com a actuação que descreveu, i. criaram e agravaram passivos e prejuízos com a celebração de negócios ruinosos em seu proveito e no de pessoas (empresas) com eles especialmente relacionadas; ii. fizeram dos bens da devedora uso contrário aos interesses desta, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outras empresas nas quais têm interesse directo ou indirecto; iii. prosseguiram, no seu interesse pessoal ou de terceiros, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com uma grande probabilidade, a uma situação de insolvência; iv. deram sumiço a diversos bens da insolvente. Porque tais condutas preenchem a previsão típica das als. a), b), f) e g) do n.º 2 e ainda da al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, pronunciou-se no sentido da insolvência dever ser qualificada culposa, declaração que, em seu entender, deve afectar todos os administradores.

Em idêntico sentido foi o parecer emitido pelo M.P..

Citados, os requeridos P..., R... e H... deduziram oposição à qualificação proposta.

Para o que ora releva, invocou o requerido P... que em Maio de 2010 foi contactado por M..., o então “proprietário” da insolvente, tendo tomado conhecimento de que esta se encontrava paralisada há cerca de 8 dias, em situação de total ruptura de tesouraria e sem acesso ao crédito, com dívidas à segurança social e aos trabalhadores, apresentando capitais próprios negativos em €115.052,19, em resultado dos resultados transitados no valor negativo de €1.317.716,54.

Não obstante, interessou-se o oponente pela empresa insolvente, dado que gozava ainda de bom nome na praça, atenta a qualidade dos serviços que prestava, tendo aceitado o desafio de a recuperar. Com tal objectivo em mente, adquiriu em Maio de 2010 a totalidade de capital social da insolvente e constituiu um Conselho de Administração, presidido por si próprio, não tendo todavia conseguido implementar o plano de recuperação no imediato, uma vez que lhe foi descoberta doença grave, que obrigou a uma intervenção cirúrgica de urgência e subsequente período de convalescença. Ainda assim, subscreveu e realizou na íntegra um aumento de capital social no valor de €500.000,00 e financiou a empresa, por meio de contratos de suprimento, com uma quantia superior a €100.000,00. Apresentou-se ainda perante os credores, negociando novas formas de pagamento, tendo em alguns casos avalizado as dívidas.

Por outro lado, sendo titular de participações de outras empresas que laboram no mesmo sector, tentou maximizar as sinergias entre elas, concedendo à insolvente, em alguns casos, linhas de crédito para poder continuar a manter as suas operações diárias, conseguindo, também por esta via, melhor a situação daquela.

A partir do exercício fiscal e económico de 2011 encabeçou e aplicou o plano de reestruturação e redimensionamento da insolvente que tinha projectado, mas o mesmo foi afectado pelo aumento do preço dos combustíveis e pelo aumento do preço das portagens, com o inerente aumento de custos, que não foi compensado com o aumento das receitas, o que o levou a redimensionar a empresa e cortar nos custos, o que teve como consequência a redução no volume de negócios, ainda que acompanhada de diminuição do passivo. Procedeu também à alienação de parte da frota envelhecida da insolvente, que se encontrava amortizada, tendo estas alienações, realizadas a preços de mercado, contribuído positivamente para os seus resultados, na medida em que lhe permitiram liquidar as suas obrigações perante trabalhadores e credores em geral. Reconhecendo que tinha e tem interesses próprios em alguns dos compradores, sublinhou a inexistência de qualquer favorecimento, posto que os preços praticados foram rigorosamente os de mercado, tendo em atenção o estado das coisas.

Mais alegou ter sempre actuado com honradez, movido pela intenção de recuperar a insolvente, e que, não obstante o falhanço do seu projecto, não teve qualquer benefício, mas apenas prejuízos, decorrentes do capital que investiu e das dívidas pelas quais irá responder enquanto garante.

Sustentou que não criou nem agravou a situação de insolvência, a qual já existia quando iniciou as suas funções, esclarecendo que apenas se apresentou à insolvência em Junho de 2013 porque se os créditos por si detidos e avalizados fossem considerados como aporte de capital próprio, a situação da insolvente seria melhor que aquando do início do processo de reestruturação, rácio que apenas se alterou em 2013.

Refutando ter actuado por qualquer modo em prejuízo da insolvente, concluiu que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.

Respondeu o credor requerente, mantendo quanto alegara inicialmente, mais imputando à requerida R... conduta processual merecedora de sanção, assim requerendo a condenação da mesma como litigante de má-fé no pagamento de multa e indemnização a seu favor.

Dispensada a realização da audiência prévia, foram saneados os autos, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamação das partes.

Teve depois lugar a realização da audiência de julgamento, que culminou com a prolação de sentença na qual, além do mais, tendo-se dado por preenchidas as als. a), d) e f) do n.º 2 e também a al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, foi a insolvência qualificada como culposa e considerado afectado por essa qualificação apenas o requerido P... Em consequência, foi decretada a sua inibição para a administração de patrimónios alheios e para o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 anos, determinando-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo mesmo e condenando-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, mais o condenando finalmente a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças do respectivo património.

Inconformado com a decisão, apelou o requerido P... e, tendo desenvolvido em doutas alegações as razões da sua discordância, formulou a final as seguintes conclusões:

...

Contra alegou o M.P. no sentido de ao recorrente estar vedado colocar em causa matéria que já havia sido, em momento anterior, considerada assente, caso dos factos constantes dos n.ºs 17 a 21, 27, 28 e 29 da sentença apelada, defendendo, quanto ao mais, o acerto da decisão.

Questão prévia

Da admissibilidade dos documentos agora oferecidos

Com as alegações procedeu o apelante ao oferecimento de dois documentos, a saber: certidão emitida pela SS no dia 10 de Fevereiro de 2015, demonstrando ser a dívida a esta entidade inferior ao montante especificado no ponto 17. da sentença apelada, e cópia do despacho saneador e do destinado a identificar o objecto do litígio e enunciar os temas da prova a que alude o art.º 596.º do CPC proferido no apenso de verificação e  graduação de créditos, cuja admissibilidade cabe, assim, decidir previamente.

Destinando-se os documentos a fazer prova dos factos (vide o art.º 341.º do Código Civil), consoante se destinem à prova dos fundamentos da acção ou da defesa, assim devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, consoante dispõe o n.º 1 do art.º 423.º do CPC. No entanto, logo o n.º 2 do preceito prevê a possibilidade da junção até ao 20.º dia anterior à data em que se realize a audiência final (ficando embora a parte sujeita a condenação em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado respectivo).

Fora do âmbito de aplicação do citado art.º 423.º, só nos casos escolhidos previstos no n.º 1 do art.º 651.º é permitido às partes juntar documentos às alegações. Tais situações excepcionais são, por força da remissão para o art.º 425.º, aquelas em que a junção dos documentos não foi possível até ao encerramento da discussão (por impossibilidade ou superveniência), ou ainda quando a sua apresentação se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

No caso em apreço, e no que se refere ao primeiro documento que acompanha as alegações de recurso, não invocou o recorrente qualquer justificação para a sua apresentação neste momento processual, sendo certo que o obteve em data muito anterior à da realização da audiência. Acresce que, conforme vem sendo uniformemente entendido, a excepção consagrada na segunda parte do n.º 1 do art.º 651.º “pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o “thema decidendum”[1]. Tal é precisamente o que ocorre em relação aos factos visados demonstrar com a referida certidão, do que decorre a manifesta intempestividade do seu oferecimento.

Já quanto à cópia do despacho proferido no apenso da verificação e graduação de créditos, atenta a data da sua prolação -posterior ao encerramento da audiência nestes autos, cumprido se mostra o requisito da superveniência, sendo certo que assume pertinência, termos em que se admite a sua junção.

Atento o exposto, por claramente intempestivo o respectivo oferecimento, não se admite a certidão emitida pela SS, cujo desentranhamento e entrega se ordena, ficando nos autos a cópia do despacho proferido no apenso de verificação e graduação de créditos.

*

Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas pelo apelante à apreciação deste Tribunal:

i. da nulidade da sentença determinada pela violação do princípio do contraditório, por se encontrar a decisão proferida sobre a matéria de facto fundamentada em “prova pericial”, factos e matéria probatória existentes noutros processos, desconhecidos do apelante, que nos mesmos não é parte, bem como do advogado que o representa;

ii. do erro de julgamento no que concerne aos factos enumerados na sentença sob os n.ºs 17., 18., 19., 20., 21., 27., 28., 29., 34., 35., 36., 37., 38., 39., 40., 41. e 42., que deverão ter-se, todos eles, como não provados, e ainda quanto aos constantes da sentença como não provados sob as als. a) e o) que, inversamente, deverão ser dados como assentes;

iii. do erro de interpretação e aplicação das als. a), d) e f) do n.º 2 do art.º 186.º CIRE, as quais deverão ter-se como não preenchidas, também em consequência da modificação da matéria de facto;

iv. do erro de interpretação e aplicação da al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, uma vez que se deve ter por assente que do eventual retardamento na apresentação à insolvência não resultou agravamento da situação para efeitos do n.º 1 do preceito, uma vez que foi liquidada parte substancial do passivo pré-existente;

v. do erro na aplicação da al. e) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE a actos praticados antes da sua entrada em vigor, por violação do disposto no art.º 12.º do CC, e do abuso de direito, consubstanciado na condenação do apelante na satisfação dos créditos não satisfeitos, por violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e justiça.

i. da nulidade da sentença

...

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. de facto

Agora estabilizada a matéria de facto, é a seguinte a factualidade a atender:

...                     

2.2. De direito

iii. da errada interpretação e aplicação das als. a), d) e f) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.

O art.º 186.º do CIRE[2] dá-nos a definição de insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no n.º 1, que vale indistintamente para qualquer insolvente. Aqui se dispõe que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

À luz do citado normativo, a qualificação da insolvência como culposa pressupõe: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa; e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Esta noção geral que nos é dada pelo n.º 1 carece, todavia, de ser complementada e concretizada com recurso ao n.º 2, por cujos termos a insolvência se considera sempre culposa ante a verificação de algum dos factos enumerados nas diversas alíneas, quando praticados pelos seus administradores, de direito ou de facto. Conforme decorre do uso da expressão “considera-se sempre” o legislador presume, sem possibilidade de prova em contrário (cf. n.º 2 do art.º 350.º do CC) que, verificada uma das situações elencadas, a insolvência é culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor ou dos seus administradores e, bem assim, da existência do um nexo causal entre tal actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência[3].

Finalmente, e por força da presunção, desta feita ilidível, consagrada no n.º 3, verificando-se algum dos factos aqui previstos, dá-se igualmente por verificada a culpa grave dos administradores ou do devedor que não seja pessoa singular, tornando-se no entanto necessário demonstrar que desse comportamento - que a lei presume gravemente culposo - resultou a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se ter a Mm.ª juíza qualificado a insolvência como culposa por aplicação do disposto nas als. a), d) e f) do n.º 2 e al. a) do n.º 3 do CIRE, tendo afastado -cremos que bem - as als. b), c), e), g) e h.

Estão, deste modo, em causa os factos do aqui apelante, administrador da insolvente, ter “ocultado ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”, ter “disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”, ter “feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tinha interesse directo ou indirecto”, e ainda por ter incumprido “o dever de requerer a declaração de insolvência”.

Para tanto, fez a Mm.ª juíza relevar a factualidade vertida sob os n.ºs 27 a 29, 33 a 36 e 39 a 41, a saber, a transmissão de parte significativa dos veículos da insolvente e de todo o seu património imobiliário a empresas de que o accionista maioritário da insolvente era simultaneamente accionista/sócio maioritário ou gerente, e o desaparecimento de peças dos veículos que ficaram em poder da insolvente, e que vieram a ser apreendidos, bem como de máquinas e ferramenta da insolvente”.

Interpretando a al. a) do n.º 2 do preceito, na esteira de jurisprudência desta Relação que citou[4], de modo a que preencha a sua previsão uma qualquer actuação “que, alterando a situação jurídica do bem - v.g., através da venda do imóvel ou móvel sujeito a registo a terceiro, com uma relação próxima directa ou indirecta com o alienante, ou ocultando o preço recebido - impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor”, entendeu a Mm.ª juíza que ao ter transferido “perto de cinquenta dos veículos que integravam a sua frota transportadora e a totalidade do seu património imobiliário, nos três anos que precederam a insolvência, para sociedades com as quais estava relacionada, o que evidentemente impede que estes bens sejam accionados, ou pelo menos dificulta o respectivo accionamento pelos credores da devedora”, a administração da insolvente ocultou parte considerável do património da insolvente.

Tal interpretação, contudo, não nos merece plena concordância.

Estão em causa na sobredita alínea “actuações que, por vários meios - destruição, danificação, inutilização, ocultamento ou desaparecimento dos bens - afectam o património do devedor, no todo ou em parte considerável”[5]. Parece-nos assim que a previsão típica é dirigida a acções materiais, isto é, acções que incidam directa e imediatamente sobre as coisas que integram o património do devedor, em consequência das quais este sofre pelo menos considerável afectação, e não uma actuação dirigida à alteração da situação jurídica do bem[6]. A entender-se de outro modo, qualquer negócio de disposição de bens da devedora, ainda que legítimo, desde que preenchido o requisito da segunda parte da previsão legal implicaria a qualificação da insolvência como culposa, porque dele sempre resultaria dificultado o accionamento desse mesmo bem pelos credores.

Recusando tal interpretação, e sendo o sentido a dar à transcrita alínea aquele que se deixou expresso, apenas o facto vertido no ponto 40 se afigura idóneo ao seu preenchimento.

 Todavia, exige a lei que a conduta culposa do administrador tenha por objecto todo ou parte considerável do património do devedor, o que implica que nos detenhamos na questão do valor a atribuir aos bens desaparecidos. E a verdade é que o elenco factual é completamente omisso a este respeito, não detendo o Tribunal de quaisquer elementos que lhe permitam afirmar que os bens em causa representavam uma parte considerável do património da insolvente, sendo assim de arredar a aplicação da al. a).

Dir-se-á, em reforço, que mesmo a perfilhar o conceito estendido de ocultação acolhido na sentença apelada, no caso vertente não se vê que os bens tenham sido ocultados quando se trata de aquisições reflectidas na contabilidade de ambas as empresas, sendo que em relação aos imóveis permaneceram na titularidade da adquirente, tendo inclusivamente sido dados em garantia de empréstimo bancário então contraído, situações distintas daquelas que deram origem aos arestos invocados.

No que se reporta à al. d), estão em causa (à semelhança do que ocorre com as als. b), e) e g) “…comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros”[7]. Para o efeito da previsão normativa, são actos de disposição tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação dos bens) como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem, formulando no entanto o legislador a exigência adicional de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros.

Emerge dos factos apurados que, efectivamente, por acção e decisão do aqui apelante, a quase totalidade do património da insolvente foi objecto de negócios de compra e venda, surgindo como adquirente em grande parte dos casos outras sociedades nas quais aquele tinha interesse directo. Sendo tal realidade incontornável, a verdade é que já não resultou provado que tais actos de disposição tenham revertido em proveito pessoal do recorrente ou dos terceiros adquirentes, por nada se ter apurado quanto a eventual injustiça do preço, ou que este, ainda que pela via da compensação, não tenha sido satisfeito, tendo ingressado no elenco dos não provados todos os factos a propósito alegados (cf. als. d) a j). Faz-se notar, a propósito, que em relação aos imóveis, foi tentada a sua venda através de agência imobiliária, tendo sido tomada a decisão de os vender à T... apenas depois de se terem frustrado as expectativas de um negócio conveniente, acabando o preço fixado por ser superior à única proposta recebida.

Mas se assim é em relação aos negócios celebrados e que se encontram contabilisticamente reflectidos, já nada justifica a actuação descrita em 39., de que resulta ter o aqui apelante disposto de bens da devedora em seu proveito e das sociedades com objecto similar ou concorrente nas quais detinha interesse directo, preenchendo deste modo a alínea d) do n.º 2 do art.º 186.º. Todavia, já não concordamos com a decisão apelada quando considera que os mesmos factos representam o uso dos bens da devedora contrário aos interesses desta, designadamente para favorecer outras empresas nas quais o Presidente do Conselho de Administração da insolvente tinha interesse directo, hipótese contemplada na alínea f), porquanto, em nosso entender, o acto de disposição consome a mera indevida utilização.

Deste modo, remanesce como conduta idónea à qualificação da presente insolvência como culposa a ordenada remoção das peças dos veículos que vieram a ser apreendidos para a massa insolvente e sua consequente apropriação por banda do apelante e sociedade nas quais detinha interesse directo, idónea ao preenchimento da al. d) do n.º 2 o art.º 186.º.

Apurado que tal acto de disposição ocorreu no período relevante, tanto basta à qualificação da insolvência como culposa.

Resta acrescentar que a qualificação da insolvência com fundamento em qualquer uma das als. do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, e conforme se deixou já expresso, não se encontra condicionada pela prova de que a acção do devedor foi causa da situação de insolvência ou do seu agravamento. A qualificação da insolvência como culposa nos termos desta disposição não só dispensa a prova de que a acção do devedor causou ou agravou a insolvência e/ou de que actuou com dolo ou com culpa grave, como veda ao devedor a prova do contrário. Neste sentido se pronuncia Carneiro da Frada, considerando a propósito que “Tendo lugar alguma das situações previstas, a culpa presume-se, não havendo lugar a prova em contrário e estando portanto precludida a alegação e demonstração de alguma causa de desculpação (…) O n.º 2 do art.º. 186 contempla desta sorte um conjunto de hipóteses em que se estabelece inilidivelmente ter ocorrido uma conduta ilícita e culposa dos administradores. Mas não se trata apenas disso. A referida conduta é tida pelo preceito como causadora ou agravadora de uma insolvência. Só assim é que a insolvência pode ser qualificada como culposa pelo legislador. Temos, portanto, que o art.º 186 n.º 2 também faz presumir iuris et de iure a causalidade da violação ilícita e culposa de determinados deveres em relação à insolvência”[8].

Uma nota final para referir que a norma assim aplicada foi sujeita ao crivo do TC, não tendo sobre ela sido exercida qualquer censura (cf. acórdão n.º 570/2008, de 26 de Novembro de 2008, proferido no processo n.º 217/08, acessível em www.dgsi.pt, link para o Tribunal Constitucional)[9].

Em remate, atendendo aos factos dados como assentes e considerando o supra exposto, a qualificação da insolvência deverá, neste caso, qualificar-se como culposa nos termos da als. d) do n.º 2 do art.º 186.º.

*

iv. da errada interpretação e aplicação da al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE.

Na sentença apelada considerou-se ainda ter o administrador da devedora insolvente, aqui afectado com a declaração, incumprido o dever a que se reporta a al. a) do n.º 3 do preceito.

No que respeita ao consagrado dever de requerer a insolvência que impende sobre o devedor, resulta do disposto no art.º 18.º, n.º. 1, na actual redacção, em conjugação com o art.º 3.º, n.º. 1, que a insolvência há-de ser requerida dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la. Dispõe por seu turno o n.º 3 do preceito que “Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g), do n.º. 1, do art.º 20.º”, estando em causa o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos tipos ali previstos, nos quais se incluem as contribuições e quotizações para a segurança social e dívidas tributárias.

A este respeito, ponderou-se na sentença apelada que desde há vários anos a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, remontando o incumprimento de parte substancial dos seus créditos ao ano de 2009, incumprimento que se estendeu a outros credores nos anos de 2010, 2011, 2012 e 2013. Acrescentou-se que pelo menos desde 2011 deixara de cumprir as suas obrigações para com a segurança social, visto estarem em dívida todas a contribuições vencidas desde Junho desse ano até à data da declaração da insolvência.

E assim tendo como inilidivelmente presumido o conhecimento da situação de insolvência pelo menos desde o início de 2012, o que impunha a apresentação da devedora à insolvência dentro dos 60 dias subsequentes, por ser o prazo em vigor ao tempo - até Março de 2012, portanto -, concluiu pelo retardamento no cumprimento desse dever.

A este respeito, parece incontroverso que à data em que a nova administração iniciou funções já a devedora se encontrava em gravíssimas dificuldades, em situação de insolvência técnica e com a actividade suspensa, conforme evidenciam de forma exuberante os factos 44. a 57. Tal situação nunca chegou a ser revertida, tendo acumulado prejuízos nos anos seguintes, com afectação da situação líquida, que foi sempre negativa, a atingir no final de 2011 o valor de €505.379,94, dada a manifesta superioridade do passivo sobre o activo, reflectido no Balanço relativo ao exercício desse ano (cf. facto 15.) Deste modo, e também porque, apesar dos acordos que iam sendo celebrados, é facto incontornável que a insolvente não procedeu ao pagamento das contribuições para a segurança social pelo menos desde a data assinalada, nenhuma censura merece a conclusão a que se chegou na decisão recorrida.

Não contestando que a sociedade se encontrava há muito em situação de insolvência, nem o momento fixado pela Mm.ª juíza como aquele em que se verificou o incumprimento de dever de apresentação, argumenta o recorrente que nunca actuou com intenção de prejudicar a situação patrimonial e financeira da devedora, nem agravou tal situação, uma vez que foram pagos durante a sua administração 63% do passivo existente, tendo saído reforçadas as garantias de outros credores por via dos avales que prestou.

Tal defesa do apelante obriga à indagação dos efeitos do retardamento na apresentação à falência imputado à nova administração - conduta que a lei presume gravemente culposa - nomeadamente, e para o que aqui releva, se agravou a situação pré-existente à data de Março de 2012.

A este propósito, censurou-se na sentença recorrida a decisão da administração que, ao invés “de se apresentar à insolvência, como era seu dever, até Março de 2012, e permitir aos credores da insolvente decidir sobre o respectivo futuro … optou por prosseguir o seu próprio projecto de recuperação”, e isto porque “Se conseguiu com este projecto diminuir o passivo global da devedora, esta diminuição, como resulta dos factos constantes dos n.ºs 14 a 16 e 23 a 25, foi acompanhada de uma diminuição ainda mais acentuada do respectivo activo. Deste modo, o capital próprio da insolvente, correspondente no essencial à sua situação líquida, passou de - € 505.379,94 no final do exercício de 2011 para -€ 851.815,01 no final do exercício de 2012, pelo que parece manifesto que a situação de insolvência se agravou em consequência do retardamento da apresentação à insolvência da devedora”.

Decisivamente, acrescentou-se que “a não apresentação à insolvência da devedora nos primeiros meses do ano de 2012 permitiu que ao longo desse ano a respectiva administração continuasse a transmitir a maior parte da sua frota transportadora, bem como todo o seu património imobiliário, para sociedades de que o seu accionista maioritário era também accionista/sócio maioritário ou gerente. Tratando-se de uma sociedade comercial que tinha por objecto o transporte de mercadorias, parece necessária a conclusão de que, com as alienações, terá deixado de ter meios produtivos para continuar a exercer a sua actividade, e gerar rendimentos que lhe permitissem assegurar o cumprimento das suas obrigações para com os credores. Ou seja, a administração da devedora amputou a capacidade produtiva da empresa, do mesmo passo que frustrou, ou pelo menos dificultou enormemente, a possibilidade de satisfação dos credores da insolvência, na medida em que à data da declaração da insolvência poucos eram os bens que integravam (ainda) o património da insolvente e que eram assim susceptíveis de responder pelo seu passivo”.

Tal argumentação afigura-se substancialmente correcta.

Não temos dúvida, e os factos apurados revelam-no com clareza, que a intenção do aqui apelante, Presidente do Conselho de Administração, era proceder à recuperação da apelante: di-lo o facto de ter subscrito um aumento de capital no valor de €500.000,00, integralmente realizado, confirmam-no os suprimentos realizados, em quantia superior a €100.000,00, bem como os acordos de renegociação que culminaram com a assunção pessoal das dívidas por meio da prestação do seu aval (cf. factos 64. a 66.) e, finalmente, o facto de ter liquidado antigas contribuições em dívida à SS, cumprindo os acordos celebrados, deixando por pagar aquelas por cujo pagamento será pessoalmente responsável uma vez operada a reversão.

Também resultou provado que o projecto de recuperação que delineou para a sociedade agora insolvente foi amplamente contrariado por factores em tudo estranhos à sua vontade e fora do seu controle, em particular o aumento do custo dos combustíveis (sendo certo, toda a gente o confirmou, que representa entre 40 a 50% dos custos da actividade), aumento das portagens e introdução de portagens em vias onde antes não existiam. Mas se assim é, verificado o fracasso do seu projecto, tal não exonerava a devedora, na pessoa do seu administrador, de se apresentar à insolvência, por forma a não agravar a situação dos seus credores. E o que se verifica, do confronto dos elementos contabilísticos referentes aos anos de 2011 e 2012, foi que a situação efectivamente se agravou, mantendo-se a exploração deficitária e consumindo-se o activo, nomeadamente os activos fixos tangíveis, que incluem os imóveis, a um ritmo superior ao da diminuição do passivo, com agravamento da situação líquida.

E por assim ser, não tendo sido ilidida a presunção de culpa grave que onera o apelante, e demonstrado que está o agravamento da situação da insolvente, mantém-se a qualificação também por esta al. a) do n.º 3 do art.º 186.º.

*

v. do sacrifício injusto e desproporcionado que resulta da aplicação da al. e) do n.º 2 do art.º 289 – do abuso de direito na condenação-.

A Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, veio dar nova redacção ao art.º 189.º, introduzindo-lhe a al. e), por cujos termos deverá o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, “condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados”.

Em obediência a tal comando, foi o aqui apelante condenado a indemnizar os credores da insolvente “no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos, deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência até às forças do respectivo património”.

Insurge-se, como vimos, contra tal condenação, que crê violadora dos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, pondo em causa a sua subsistência económica, o que constitui um abuso de direito.

Vejamos da valia de tal argumentação.

Antes de mais, cumpre precisar que o dispositivo legal em causa, “tendo criado um novo efeito da qualificação da insolvência ao estabelecer os pressupostos para a constituição do direito de indemnização (alterando e ampliando a fattispecie constitutiva), não se aplica aos factos anteriores à sua entrada em vigor, ocorrida em 21 de Maio de 2012[10].

No entanto, como se viu, os (f)actos que serviram de suporte à qualificação da insolvência como culposa foram praticados ou prolongaram-se para lá da data da entrada em vigor da Lei que introduziu a solução legal ora questionada, donde ser aplicável ao caso vertente.

A condenação segundo esta novel al. e) é um verdadeiro imperativo do Tribunal que, uma vez qualificada a insolvência como culposa, não poderá deixar de responsabilizar o culpado.

No que respeita ao “quantum” indemnizatório rege o disposto no n.º 4, nos termos do qual “Ao aplicar o disoto na al. e) do n.º 2, deve o juiz fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não se mostrar possível, em virtude de não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofrido, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença”. Não nos diz a lei quais os critérios de fixação, mas o montante a indemnizar terá necessariamente como limite a observar, por um lado, o valor dos créditos não satisfeitos e, por outro, o do património pessoal dos responsáveis.

Comentando o preceito, depois de observarem que o modelo em que está desenhada esta responsabilidade dos administradores “revela que, a mais da função ressarcitória que realiza, assume manifestamente um carácter de penalização pela culpa da insolvência”, assinalam J. Labareda e Carvalho Fernandes[11] que se “recuperou substancialmente a solução que fora acolhida nos art.ºs 126.º-A e 126.º-B do CPEREF, introduzidos pelo DL 315/98, de 20 de Outubro”, embora com diferenças relevantes, de que aqui se destaca o facto da nova lei não fazer “nenhuma referência à possibilidade de a responsabilidade ser limitada ao dano efectivamente causado pelo culpado quando inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa, diferentemente do que sucedia com a parte final do n.º 1 do art.º 126.º.B.[12]

Contudo, atribuindo ao n.º 4 do preceito o significado relevante “de permitir ao juiz referenciar factores que, designadamente, em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo” abrindo consequentemente “espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação de insolvência”, interrogam-se os mesmos AA se, devendo o juiz proceder na sentença de qualificação à respectiva fixação, consoante prevê a parte final da al. a) do n.º 2 do art.º 189.º, o que releva inequivocamente para efeitos da duração das inibições, deverá considerar-se excluída a possibilidade de interferir igualmente com a própria medida da responsabilidade do culpado.

Ora, a resposta à questão enunciada é, em nosso entender, claramente negativa, por entendemos que o(s) acto(s) determinante(s) da culpa não podem deixar de ser atendidos na quantificação da indemnização pela qual os afectados são responsáveis.

O TC, no recente acórdão 280/2015, DR 115/2015, Serie-II, chamado a pronunciar-se sobre a conformidade à Lei Fundamental do art.º 15.º do CIRE, em determinada interpretação[13], ponderou, com relevo para a questão que ora nos ocupa: “Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (é nosso o destaque).

A Lei Concursal espanhola, assumidamente a fonte inspiradora do legislador português, na redacção dada ao n.º 1 do art.º 172.º pela Lei 17/2014, de 30 de Setembro, coloca nas mãos do juiz a decisão de condenar (ou não) os afectados com a qualificação (el juez podrá) “a cobrirem, total ou parcialmente, o deficit, na medida em que a conduta que determinou a qualificação como culposa tenha criado ou agravado a insolvência”[14]. Da solução legal espanhola decorre agora claro, parece-nos, que o montante da condenação há-de ser fixado em função da incidência que a apurada conduta, que determinou a qualificação da insolvência como culposa e determinou a sua afectação, teve na criação ou agravação da situação de insolvência, entendimento que, de resto, já vinha sendo adoptado, resultando clarificado pela redacção ora introduzida[15].

Tendo em conta tal solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos art.ºs 186.º e 189.º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afectado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.

Mas a favor de quem deverá reverter a indemnização fixada? No silêncio da lei, há que recorrer ao elemento sistemático pelo que, tendo em atenção o princípio “par condito creditorum”, afigura-se que os valores indemnizatórios fixados deverão ser integrados na massa e distribuídos pelos credores cujos créditos, reconhecidos, não hajam obtido satisfação.

Transpondo quanto ficou dito para o caso que nos ocupa, terão de ser aqui ponderados os importantes esforços desenvolvidos pelo apelante no sentido de recuperar a devedora ora insolvente, aportando fundos pessoais, renegociando dívidas, que acabou por avalizar, e empenhando-se na angariação de novos clientes, sem esquecer o decisivo contributo para o inêxito da projectada recuperação de factores externos e não controláveis. Tais circunstâncias, de pendor claramente atenuativo da sua culpa no que à circunstância prevista na al. a) do n.º 3 diz respeito, permitem que o recorrente deva ser apenas responsabilizado pela diferença que apresentem os créditos reconhecidos e não satisfeitos entre 31/3/2012 e a data da declaração da insolvência, até porque apenas nesta medida a sua actuação agravou a situação destes credores.

Indemnizará ainda os mesmos credores até ao montante que se apurar corresponder à diferença entre o valor que os bens apreendidos tinham à data da apreensão e aquele que teriam caso não tivessem sido retirados e/ou substituídos os componentes discriminados no ponto 39., tudo a quantificar em liquidação de sentença, nos termos da parte final do n.º 4 do art.º 189.º do CIRE.

Com o que procedem, ainda que apenas parcialmente, as derradeiras conclusões recursivas.

III. Decisão

Em face do exposto, e na parcial procedência do recurso interposto, acordam os juízes da 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em, mantendo-a quanto ao mais, alterar a sentença recorrida no que respeita à al. e) do dispositivo e condenar o apelante P...:

a) a indemnizar os titulares dos créditos sobre a insolvente reconhecidos e não satisfeitos pela massa pelo montante correspondente à diferença entre o valor que tinham em 31/3/2012 e o seu valor à data da declaração da insolvência;

b) a indemnizar os mesmos credores até ao montante que se apurar corresponder à diferença entre o valor que os bens apreendidos tinham à data da apreensão e aquele que teriam caso não tivessem sido retirados e/ou substituídos os componentes discriminados no ponto 39., tudo a quantificar em liquidação de sentença, nos termos da parte final do n.º 4 do art.º 189.º do CIRE, montantes que passarão a integrar o activo.

Custas a cargo do recorrente e da massa insolvente, na proporção de metade para cada, procedendo-se a rateio após a liquidação.

Relatora:

Maria Domingas Simões

Adjuntos:

1º - Jaime Ferreira

2º - Jorge Arcanjo


[1][1] Neste sentido, citando-se a título meramente exemplificativo, acórdão desta mesma Relação de 18/11/2014, proferido no processo n.º 628/13.9TBGRD.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[3] Assim, Carvalho Fernandes/João Labareda, CIRE anotado, 2.ª ed., págs. 718-719, Menezes Leitão, Direito da insolvência, 5.ª ed., pág. 248, o qual esclarece que “verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art.º. 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”, e ainda Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, pág. 122, aí distinguindo entre “o elenco de situações em que se presume inilidivelmente que a insolvência é culposa (n.º 2 do art.º 186.º) e um elenco de situações em que se presume inilidivelmente a existência de culpa grave (n.º 3 do art.º 186º)”.
[4] Acs de 19/12/2012, processo n.º 2458/10.0 TBPBL e de 28/5/2013, processo n.º 102/12.0 TBFIG, amos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Carvalho Fernandes, Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, página 95, nota 23.

[6] Neste sentido, o acórdão desta mesma Relação proferido no processo n.º n.º828/12.9TBPBL relatado pelo Ex.mº Sr. Desembargador Emídio Santos, no qual a ora relatora interveio como 2ª. adjunta, aqui seguido de perto.
[7] Carvalho Fernandes, Themis, loc. cit.
[8] A responsabilidade dos administradores na insolvência, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 66.º, Volume II, disponível no sítio http://www.oa.pt.

[9] No que tange à caracterização das situações elencadas no n.º 2 do preceito, duvidou-se no mencionado acórdão que se trate de verdadeiras presunções, uma vez que “(…) o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa”. Acrescentou, porém, que “…numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de culpa, factos -índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência”.

Em todo o caso, reconhecendo que a solução introduz uma limitação ao âmbito da defesa potencial do interessado, considerou-se que a proibição da indefesa não obsta a que o legislador estabeleça presunções iuris et iure, com as consequentes limitações ao âmbito da prova dos factos que as poderiam infirmar, desde que as mesmas visem atingir um fim legítimo e não se revelem desproporcionadas. E assinalando a vantagem que o estabelecimento da presunção representa, obstando à subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico, ao mesmo tempo que supera as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo que envolveu a situação de insolvência, ali se concluiu que se trata de objectivos perfeitamente legítimos, alicerçados não só em razões de segurança jurídica, mas também de justiça material, que justificam uma limitação ao âmbito de apreciação e, consequentemente, ao objecto de prova, mediante a imposição normativa (ex vi legis) de uma conclusão jurídica, perante a verificação de certos factos que o interessado pode discutir nos termos gerais.

[10] Ac. desta Relação e secção de 27/5/2015, processo n.º 617/10.5 TBMMV, acessível em www.dgsi.pt
[11] CIRE anotado, 2.ª Ed., pág. 736.
[12] Com o seguinte conteúdo: 1 - No caso de responsabilidade civil dos fundadores, gerentes, administradores ou directores, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ou no caso de responsabilidade solidária decorrente do disposto no artigo anterior, pode o tribunal, a todo o tempo, e sem prejuízo do regular andamento do processo contra o devedor, uma vez verificados os pressupostos da responsabilidade, fixar prazo para os responsáveis satisfazerem o passivo conhecido da sociedade ou pessoa colectiva, a descoberto, à data da declaração da falência, ou apenas o montante do dano por eles causado, se for considerado inferior.
[13] Vindo a proferir julgamento de inconstitucionalidade, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que directamente afectam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 15.º do CIRE, e artigos 304.º, primeira parte, e 629.º, n.º 1, do CPC, interpretadas no sentido de que não cabe recurso de decisões proferidas no incidente de qualificação da insolvência cujo valor, determinado pelo activo do devedor, seja inferior ao da alçada do tribunal de primeira instância.

[14] Artículo 172 bis Responsabilidad concursal

1. Cuando la sección de calificación hubiera sido formada o reabierta como consecuencia de la apertura de la fase de liquidación, el juez podrá condenar a todos o a algunos de los administradores, liquidadores, de derecho o de hecho, o apoderados generales, de la persona jurídica concursada, así como los socios que se hayan negado sin causa razonable a la capitalización de créditos o una emisión de valores o instrumentos convertibles en los términos previstos en el número 4.º del artículo 165, que hubieran sido declarados personas afectadas por la calificación a la cobertura, total o parcial, del déficit, en la medida que la conducta que ha determinado la calificación culpable haya generado o agravado la insolvencia.

Si el concurso hubiera sido ya calificado como culpable, en caso de reapertura de la sección sexta por incumplimiento del convenio, el juez atenderá para fijar la condena al déficit del concurso tanto a los hechos declarados probados en la sentencia de calificación como a los determinantes de la reapertura.

En caso de pluralidad de condenados, la sentencia deberá individualizar la cantidad a satisfacer por cada uno de ellos, de acuerdo con la participación en los hechos que hubieran determinado la calificación del concurso.

É a mesma a solução francesa – cf. Article L651-2 do Code de Commerce, na redacção da Lei n.º 2010-1512, de 9 de Dezembro de 2010.

[15] Cf. declarações de voto apostas ao acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, Sala de lo civil, pleno, no recurso de cassação 473/2013, acessível em Buscador del sistema de jurisprudencia.