Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3360/21.6T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: CASO JULGADO
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 580.º E 581.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
Para efeitos de procedência da exceção do caso julgado, existe identidade de pedidos e de causa de pedir entre uma primeira ação que tinha como pedido a redução da extensão das penhoras sobre 2 imóveis e como causa de pedir ter o exequente fixado em € 25.000 o valor garantido pela hipoteca sobre cada um dos imóveis limitando, por via disso, a hipoteca a esse montante (relativamente ao pedido principal) e ser de € 40.000 o valor de cada um dos prédios à data das doações, e na subsequentemente interposta, que, quanto ao pedido (tendo como pressuposto que à data da venda cada um dos imóveis tinha, no caso de nele não existir qualquer construção, o valor de € 60.000) a condenação da Ré no pagamento do montante correspondente ao diferencial entre o valor da venda e o já referido de € 60.000 e como causa de pedir o injustificado enriquecimento da Ré por ter obtido com a venda um montante superior ao do valor do objeto garantido, à custa do património dos AA..

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 3360/21.6T8LRA.C1

Juízo de Central Cível de Leiria – Juiz 3

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, BB e B..., Lda. , melhor identificados nos autos, instauraram a presente ação declarativa, de condenação, sob a forma comum, contra Banco 1..., S.A., pedindo, com os fundamentos que constam da petição inicial “
A- Declarar-se que cada um dos lotes de terreno referidos no artigo 3.º desta petição teria, no caso de sobre eles não incidir qualquer construção, à data da venda, no dia 02.09.2020, um valor de 60.000, 00 €, ou outro que se venha a apurar;
B- Condenar-se a Ré a restituir/pagar à 1.ª Autora AA, a quantia de 192.023,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...83/..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 252.023,00 € pelo qual foi vendido o prédio;
C- Condenar-se a Ré a restituir/pagar ao 2.º Autor BB a quantia de 193.737,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...83/..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 253.737,00 € pelo qual foi vendido o prédio;
D- [2]Condenar-se a Ré a restituir/pagar à 3.ª Autora B..., Lda. a quantia de 6.880,00 €, correspondente à diferença entre o valor da venda do seu imóvel que foi de 253.880,00 € e o de 247.000, 00 €”


*

A Ré contestou, ao demais invocando a exceção do caso julgado e impugnando os demais fundamentos constantes da petição inicial, pedindo, a final,
1) Seja conhecida e declarada procedente a exceção dilatória do caso julgado
ou, se assim não se entender,
2) Ser declarada por não provada e improcedente a ação, absolvendo-se a Ré dos pedidos.

*

Os AA. Responderam à exceção do caso julgado considerando dever a mesma ser julgada improcedente, por serem distintos os pedidos e a causa de pedir constantes desta ação e os objeto da oposição à execução n.º 14767/16.0T8LRS-A.

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Por decisão de 16.03.2022 foi julgada procedente a exceção do caso julgado e, em consequência, absolvida a Ré da instância.

*

Inconformados, os AA. interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”
1) Por escritura – ABERTURA DE CRÉDITO COM HIPOTECA – outorgada em 23.03.2001, os segundos outorgantes, na qualidade de fiadores – CC e DD – constituíram hipoteca a favor da ora Ré dos seguintes lotes de terreno para construção, sitos em ... – ..., ...:
a) lote ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...81 / ...
b) lote ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...83 / ...
c) lote ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...85 / ...
2) No dia 13.11.2006, por escritura de DOAÇÕES outorgada no extinto Cartório Notarial ..., os segundos executados efectuaram as seguintes doações, com dispensa de colação:
a) À sua filha EE doaram a parcela de terreno para construção, designada por lote ..., ao qual atribuíram o valor de 25.000,00 €;
b) À sua filha AA doaram a parcela de terreno para construção, designada por lote ..., ao qual atribuíram o valor de 25.000,00 €;
c) Ao seu filho BB doaram a parcela de terreno para construção, designada por lote ..., a que atribuíram o valor de 25.000,00 €.
3) Os referidos lotes foram doados sem que sobre os mesmos incidisse qualquer construção ou benfeitoria.
4) No ano de 2008 os referidos AA, EE e BB deram início à construção de uma moradia unifamiliar e muros de vedação em cada um dos respectivos lotes, construções essas que foram concluídas no ano de 2013, e no dia 07.02.2014, foi-lhes concedida pela Câmara Municipal ... os alvarás de utilização n.ºs 21/14, 22/14 e 23/14, respectivamente.
5) No ano de 2015, B..., LDA adquiriu a EE o prédio urbano que esta havia construído no referido lote ....
6) A Ré instaurou em 28/12/2016 ação executiva n.º 14767/16.0T8LRS, que correu termos no Juízo de Execução ... – Juiz ..., contra “E..., S.A.”, CC, DD, “B..., Lda.”, “Q..., Ldª.”, BB, AA.
7) Os aqui AA foram demandados naquela execução tão só pelo facto de terem adquirido os referidos lotes hipotecados, nos termos do artigo 54 n.º 2 do CPC porque não figuram no título executivo como devedores.
8) Os AA não contraíram a dívida em execução e não são nem eram pessoalmente responsáveis pelo cumprimento das obrigações garantidas pelas hipotecas que incidiam sobre os lotes de terreno que adquiriram.
9) No referido processo executivo n.º 14.676.0T8LRS a aqui R. procedeu à penhora das casas de habitação que estes haviam construído nos indicados lotes de terreno.
10) Os ora AA. deduziram oposição à penhora naquele processo executivo com os seguintes pedidos:
A) Declarar-se que o valor garantido pelas hipotecas que incidem sobre os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial ..., sob os n.ºs ...81, ...83 e ...85 da freguesia ..., é de 25.000,00 € para cada um daqueles prédios.
B) Ordenar-se a redução da penhora que incide sobre cada um daqueles prédios para o valor de 25.000,00 €.
SE ASSIM se não entender, e sem prescindir,
C) Declarar-se que o valor dos terrenos onde foram construídos os prédios que fazem parte das descrições n.ºs ...81, ...83 e ...85 da freguesia ..., do Registo Predial da ..., é de 40.000,00 € para cada um daqueles prédios.
D) Ordenar-se a redução da penhora que incide sobre cada um daqueles prédios para o valor de 40.000,00 €.
11) A oposição à penhora foi julgada improcedente por não ser ter provado que a ora R. tivesse fixado em 25.000,00 € constante das 3 declarações emitidas pela exequente, o valor em dívida garantido pelas hipotecas e por entender não ser admissível na oposição á penhora a redução judicial do valor da hipoteca e subsequente penhora que incide sobre cada um dos lotes dos AA. atento o princípio da indivisibilidade consagrado no artigo 696.º do Código Civil, decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa proferida no dia 12.05.2020.
12) No mesmo processo executivo a ora R. adquiriu, no dia 02.09.2020, os prédios urbanos dos AA. pelos seguintes preços:
A - A casa construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...83/... pertencente à A. AA, por 252.023,00 €;
B - A casa construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...85/... pertencente ao A. BB, por 253.737,00 €.
C – A casa construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...81/... pertencente à A. B..., Lda, por 252.880,00 €
13) Invocaram os AA. na presente acção que cada um dos lotes de terreno teria, à data da venda, no dia 02.09.2020, se neles não existissem as construções das moradias e muros de vedação, um valor não superior a 60.000,00 €.
14) E que com a venda das referidas moradias, a R. apropriou-se dos seguintes valores correspondentes às benfeitorias pertencentes aos AA.:
a) Benfeitoria construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...83/... pertencente à A. AA – 192.023,00 € (252.023,00 € - 60.000,00 €)
b) b) Benfeitoria construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...85/... pertencente ao A. BB – 193.737,00 € (253.737,00 € - 60.000,00 €)
c) Benfeitoria construída no lote ... registada na CRP ... sob o número ...81/... pertencente à A. B..., Lda – 192.880,00 € (252.880,00 € - 60.000,00 €)
15) E formularam na presente acção os seguintes pedidos:
A – Declarar-se que cada um dos lotes de terreno referidos no artigo 3.º desta petição teria, no caso de sobre eles não incidir qualquer construção, à data da venda, no dia 02.09.2020, um valor de 60.000,00 €, ou outro que se venha a apurar;
B – Condenar-se a Ré a restituir / pagar à 1.ª Autora AA, a quantia de 192.023,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...83/ ..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 252.023,00 € pelo qual foi vendido o prédio;
C – Condenar-se a Ré a restituir / pagar ao 2.ª Autor BB a quantia de 193.737,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...85 / ... ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 253.737,00 € pelo qual foi vendido o prédio.
D – Condenar-se a Ré a restituir / pagar à 3.ª Autora B..., Lda a quantia de 197.880,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...81 / ..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 253.880,00 € pelo qual foi vendido o prédio.
16) Os pedidos formulados no processo de oposição à penhora e nesta acção, não são iguais nem idênticos, nem os efeitos jurídicos pretendidos são os mesmos.
17) Na oposição à penhora os AA. pretendiam excluir da penhora as casas que não pertenciam aos devedores; nesta acção os AA. pretendem que a R. lhes restitua o que deles receberam, por nada lhes deverem.
18) Na oposição à penhora o pedido consistiu na redução das penhoras que incidem sobre cada um dos 3 imóveis.
19) o processo executivo procedeu-se à venda dos 3 imóveis, a exequente, aqui R., apropriou-se da totalidade do produto das vendas, criou-se uma nova realidade jurídica que fundamentou a presente acção.
20) O pedido formulado na presente acção consiste na restituição aos AA. Das quantias com que o R. se locupletou à custa dos AA., na sequência das vendas efectuadas.
21) Para apurar esse locupletamento injustificado, os AA. pediram o apuramento do valor de cada um dos lotes considerando a inexistência de qualquer construção sobre os mesmos, de modo a que as construções em nada possam prejudicar as hipotecas a favor da Ré.
22) O facto jurídico concreto em que se baseou o pedido formulado na oposição à penhora, foi a penhora das construções pertencentes aos AA., ou a extensão dessas penhoras, e teve por fundamento legal o disposto no artigo 784 do CPC.
23) O facto jurídico gerador da presente acção consiste na apropriação por parte da R. da totalidade do produto da venda dos 3 imóveis penhorados, o que consubstancia um locupletamento injustificado à custa dos AA., nos termos previstos no artigo 473 do Código Civil.
24) Nesta acção não está em causa a abrangência da hipoteca e subsequente penhora, mas está em causa saber se a A. se pode apropriar do produto da venda de bens que não pertencem ao devedor ou se terá de devolver aos AA. a parte do produto da venda dos bens destes que não respondem, nos termos do direito substantivo, pela divida exequenda.
25) Ao serem notificados das penhoras, apenas assistia aos AA. o direito de reagir contra a penhora mediante oposição à penhora, nos termos dos artigos 784 e 785 do CPC, com os fundamentos, com os prazos e tramitação aí previstos.
26) As garantias de defesa dos AA. naquele processo estavam limitadas à reacção contra a penhora.
27) Tendo-se procedido à venda, foi criada uma nova realidade jurídica na qual se fundamenta a presente acção.
28) Na d. sentença não se fez correcta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 580 e 581 do CPC, normas que foram violadas.

Concluiu no sentido de a sentença dever ser revogada devendo ser ordenado o prosseguimento do processo para conhecimento dos pedidos.


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A Recorrida respondeu acentuando o acerto da decisão impugnada, tendo formulado as conclusões que se passam a transcrever:

(…).


*

Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

    *

II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (art. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a decidir é a de saber se não se verifica a exceção do caso julgado por inexistência de identidade de pedidos e da causa de pedir entre esta ação e a que correu os seus termos sob o n.º 1467/16.08LRS.


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III-Fundamentação

Com vista à incursão na questão objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada.

- Na presente acção os Autores formulam contra a Ré os seguintes pedidos:

«A Declarar-se que cada um dos lotes de terreno referidos no artigo 3.º desta petição teria, no caso de sobre eles não incidir qualquer construção, à data da venda, no dia 02.09.2020, um valor de 60.000,00 €, ou outro que se venha a apurar;

B Condenar-se a Ré a restituir / pagar à 1.ª Autora AA, a quantia de 192.023,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...83 / ..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 252.023,00 € pelo qual foi vendido o prédio;

C Condenar-se a Ré a restituir / pagar ao 2.ª Autor BB a quantia de 193.737,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...85 / ... ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 253.737,00 € pelo qual foi vendido o prédio;

D Condenar-se a Ré a restituir / pagar à 3.ª Autora B..., Lda a quantia de 197.880,00 €, correspondente às benfeitorias construídas sobre o lote ... registado na CRP ... sob o número ...81 / ..., ou outro valor que se venha a apurar resultante da diferença entre o valor do lote à data em que foi vendido e no pressuposto de sobre ele não existirem construções, e o preço de 253.880,00 € pelo qual foi vendido o prédio.».

- Entretanto este pedido foi reduzido para a quantia de €6.880,00 (…)

- E para o efeito, muito sinteticamente, os AA. alegaram que a R., na qualidade de exequente (no processo 14767/16.08LRS - que correu termos no Juízo de Execução ..., Juíz ...) visto o seu crédito pago, pelo património dos AA. executados, designadamente 3 lotes de terreno descritos na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., com os registos (i. nº3281 - lote ... pertencente à A. FF, ii. n.º 3283 - lote ... pertencente à A. AA e, iii. n.º 3285 - lote ... pertencente ao A. BB), entendem que os edifícios que construíram sobre aqueles prédios, dados de hipoteca ao banco, não deveriam ter respondido pela quantia exequenda, uma vez que, à data da constituição da hipoteca, não existiam, assim concluindo pelo enriquecimento sem causa da R.

- E no processo n.º 14767/16.08LRS, que correu termos no Juízo de Execução ..., Juíz ..., onde os AA. foram executados e a R. exequente, foram formulados os seguintes pedidos:

«A) Declarar-se que o valor garantido pelas hipotecas que incidem sobre os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial ..., sob os n.ºs ...81, ...83 e ...85 da freguesia ..., é de 25.000,00 € para cada um daqueles prédios.

B) Ordenar-se a redução da penhora que incide sobre cada um daqueles prédios para o valor de 25.000,00 €.

SE ASSIM se não entender, e sem prescindir,

C) Declarar-se que o valor dos terrenos onde foram construídos os prédios que fazem parte das descrições n.ºs ...81, ...83 e ...85 da freguesia ..., do Registo Predial da ..., é de 40.000,00 € para cada um daqueles prédios.

D) Ordenar-se a redução da penhora que incide sobre cada um daqueles prédios para o valor de 40.000,00 €.».

- E no referido processo n.º 14767/16.08LRS foram dados como provados, em 1.ª instância, os seguintes factos:

“1- A “Banco 1..., S.A” instaurou em 28/12/2016 acção executiva contra “E..., S.A.”, CC, DD, “B..., Lda”, “Q..., Ldª”, BB, AA, para pagamento da quantia de 6.195.042 €.

2- A exequente, no exercício da sua actividade de instituição de crédito, emprestou à sociedade executada “E..., S.A.”, por contrato de abertura de crédito celebrado por escritura pública datada de 23/3/2001, a quantia de 1.000.000.000$00, contravalor de 4.987.978,97 €, à taxa de juro anual, actualizável, de 6,131% e nas demais condições constantes da escritura, cujo teor aqui se por reproduzido.

3- Tal contrato foi alterado por adicionais celebrados em 23/3/2006, 26/4/2011, 22/11/2011 e 2/8/2012.

4- Para garantia do integral cumprimento das obrigações contratuais assumidas ou a assumir pela executada “E..., S.A.” foi constituída pelos Executados CC e DD hipoteca a favor da exequente sobre os seus imóveis melhor identificados na cláusula da escritura referida em 1.

5- Consta da escritura que a hipoteca é constituída para garantia de todas as obrigações assumidas pela sociedade “E..., S.A.” e ainda, até ao montante de capital de mil milhões de escudos:

a) Pagamento de toda e qualquer letra, livrança, cheque ou extracto de factura de que a ... seja portadora e em que a Parte Devedora, isoladamente ou em conjunto ou solidariamente com terceiros se haja obrigado por aceite, subscrição, saque, aval ou endosso, ou ainda, que por actos diferentes;

b) Pagamento de toda e qualquer quantia que a referida ... tenha emprestado ou venha a emprestar, através de mútuo, abertura de crédito, saldos devedores ou descobertos em contas de depósito e de que a Parte Devedora, isoladamente ou em conjunto ou solidariamente com terceiros seja devedora, e, ainda, de qualquer crédito concedido pela ..., proveniente de contrato de desconto, ou de aceite em títulos de crédito dos quais seja sacadora a Parte Devedora, por forma isolada, solidária ou conjunta ;

c) Pagamento dos juros à taxa nominal anual de 5,875% que incidam sobre qualquer montante em dívida à ... e provenientes de qualquer das operações atrás referida;

d) Pagamento da cláusula penal que incide sobre o capital em dívida, à sobretaxa de 4% ao ano, correspondente ao tempo da mora.

6- Que Alguns dos imóveis hipotecados foram, entretanto, alienados pelos executados CC e DD e adquiridos (entre outros) pela sociedade “B..., Lda” (prédios rústicos descritos na ... Conservatória do Registo Predial ... sob os nºs. ...09, ...10, ...22 e ...98, freguesia ..., e prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...81, freguesia ...), por AA (prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...83, freguesia ...) e por BB (prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...85, freguesia ...).

7- Por autos lavrados em 12/1/2017 foram penhorados:

-Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...81 (lote ...).

-Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...83 (lote ...).

-Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...85 (lote ...).

8 - Por escritura de “Doações”, outorgada em 13/11/2006, CC e DD declararam que, com dispensa de colação, fazem aos seus filhos as seguintes doações, os quais declararam aceitar: -À sua filha EE, doam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...81 (lote ...), com o valor patrimonial de 24.001,85 €, a que atribuem o valor de 25.000 €. sua filha AA, doam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...83 (lote ...), com o valor patrimonial de 24.360,09 a que atribuem o valor de 25.000 €.

-Ao seu filho BB doam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...85 (lote ...), com o valor patrimonial de 23.882,44 a que atribuem o valor de 25.000 €.

9- Consta da escritura de “Doações” que “sobre cada um dos referidos lotes incide uma hipoteca voluntária C-Um de cada descrição, a favor da Banco 1..., S.A”.

10- Da mesma escritura consta que foram arquivadas “três declarações bancárias com o montante em dívida para cada fracção”.

11- Em 8/11/2006 a exequente (na pessoa da gerente do balcão de ... GG) emitiu três declarações, com o seguinte teor:

“Para os devidos efeitos, e a pedido dos interessados, se declara que sob o prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho ... descrito na ... Conservatória do Registo Predial da ...85, incide uma hipoteca a favor desta Instituição no valor de 25.000 euros”.

12- Por escritura de “Compra e Venda” outorgada em 23/2/2015, EE, com o consentimento do marido HH, declarou que pelo preço global de 247.000 vende à sociedade “B..., Lda”, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...81 (lote ...), o que esta declarou aceitar.

13- Consta da referida escritura de compra e venda que “sobre o bem incide uma hipoteca a favor da Banco 1..., S.A (...) para garantia de um empréstimo cujo montante de capital em dívida à data e referente a este prédio é de duzentos e quarenta e sete mil euros” e que “a sociedade compradora assume o pagamento do referido montante de capital em dívida, pelo que não lugar ao pagamento do preço”.

- No processo 14767/16.08LRS foram, ainda, dados como não provados em 1.ª instância, os seguintes factos:

“I- A exequente fixou em 25.000 o valor em dívida garantido pelas hipotecas.

II- A sociedade “B..., Lda” comprou o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...81 (lote ...) a EE no pressuposto de sobre o prédio incidir o encargo de 25.000,00 a favor da exequente.”

- No âmbito do mesmo processo, em sede de recurso dos AA. o Tribunal da Relação de Lisboa aditou ainda aos factos provados:

“8-A- Os referidos lotes foram doados sem que sobre os mesmos incidisse qualquer construção ou benfeitoria.

8-B- Após terem comprado aqueles lotes, requereram à Câmara Municipal ... o averbamento dos respectivos processos em seu nome, pedido que lhes foi deferido por despacho de 18.01.2008.

8-C- No ano de 2008 os referidos AA, EE e BB deram início à construção de uma moradia unifamiliar e muros de vedação em cada um dos respectivos lotes”, construções essas que foram concluídas no ano de 2013, e no dia 7/2/2014, foram-lhes concedidos pela Câmara Municipal ... os alvarás de utilização nºs. 21/14, 22/14 e 23/14, respectivamente”.

- Com base nos referidos factos o Tribunal da Relação de Lisboa analisou as questões suscitadas pelos AA., naquela ação executados, designadamente:

a. Se deveria reduzir o valor da penhora que incidia sobre cada um dos imóveis dos AA/executados,

b. Se existiria, precisamente, enriquecimento sem causa, da Banco 1..., S.A.

- Onde consta, para além do mais o seguinte:

“(…)

Em primeiro lugar, afirmam eles que os edifícios que construíram sobre os imóveis hipotecados não deverão responder pela quantia exequenda, pois a recorrida está a executar o património que não é do devedor, mas dos oponentes. As casas por eles construídas não estão vinculadas à garantia do crédito.

No essencial, pretendem os recorrentes que se considere que a penhora dos imóveis em causa não abrange as construções que neles estão implantadas, devendo a penhora incidir unicamente sobre o terreno, pois à data da constituição da hipoteca os edifícios não existiam.

Como resulta da factualidade a recorrida é titular de hipoteca voluntária a seu favor, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...81 (lote ...), sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...83 (lote ...) e sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o registo nº ...85 (lote ...).

Posteriormente, os mesmos foram doados pelos seus proprietários aos recorrentes AA e BB, bem como a EE, que posteriormente o vendeu à apelante “B..., Lda”.

Estes prédios foram penhorados nos presentes autos.

Defendem os recorrentes que a hipoteca e posterior penhora, apenas pode incidir sobre os referidos prédios e não sobre as edificações que neles implantaram.

Esta questão tem tido da parte da Jurisprudência e da Doutrina nacionais uma resposta uniforme no sentido de que uma hipoteca constituída sobre um prédio rústico (um terreno) se estende aos edifícios nele posteriormente implantados (cf. Acórdão da Relação de Évora de 25/5/2017, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Como é sabido, a hipoteca, é um direito real de garantia, por via do qual se confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de imóvel, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade no registo (artº 686º 1 do Código Civil).

Sobre a extensão da hipoteca, dispõe o artº 691º do Código Civil que “a hipoteca abrange : a) As coisas imóveis referidas nas alíneas c) a e) do n.º 1 do art.º 204º ; b) As acessões naturais ; c) As benfeitorias, salvo o direito de terceiros”.

Esta alínea c) expressamente estipula que a hipoteca abrange as benfeitorias, mas é omissa se estas compreendem as construções.

Sobre a questão foi proferido o Parecer da Procuradoria Geral da Republica 34/67, de 23/11/1967 (publicado no B.M.J. 177, pgs. 97 e ss.), que começou por considerar que as novas construções no prédio hipotecado, estavam abrangidas pelo artº 691º al. a) do Código Civil, nomeadamente com a sua remissão para o artº 204º 1 do Código Civil, mais concretamente para a sua alínea d), que alude “aos direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores”.

Assim, sendo um desses direitos o de transformação, indiscutivelmente uma das faculdades que integram o direito de propriedade, nos termos do artº 1305º do Código Civil, “não restaria dúvida de que pela alínea a) do artº 691º, a hipoteca se estenderia ao edifício incorporado no solo posteriormente à constituição da referida hipoteca. E, com efeito, poderá dizer-se que, ao hipotecar-se o solo, se inclui o direito de edificar pois, de outra sorte, se limitaria injustificadamente o objecto da hipoteca”.

Numa segunda linha de argumentação, considerou tal Parecer que na al. c) a expressão “benfeitorias” não foi utilizado apenas no seu significado normal como simples melhoramento da coisa existente mas pretendeu abranger a transformação com a construção de uma casa.

Também neste sentido Vaz Serra, na Rev. Leg. Jur., Ano 101º, pg. 296, escreve : “A solução de a hipoteca se estender às construções resulta de uma interpretação lata da palavra “benfeitorias” do artigo 691º, alínea c), considerando-se como benfeitorias as obras destinadas a conservar ou melhorar a coisa, ainda que a transformem (isto é que lhe alterem a natureza ou o destino)”.

Uma terceira ordem de argumentação da garantia abranger as construções efectuadas no prédio hipotecado prende-se com a sua característica da indivisibilidade, consagrada no artigo 696º do Código Civil (veja-se o citado Parecer a pgs. 107 e 108).

Como se referiu a hipoteca é um direito real de garantia e sendo real é inerente à coisa (cf. Parece de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, sobre “Expurgação da Hipoteca”, Publicado na Col. Jur., Ano XI, Tomo 5, pgs. 37 e ss.).

Por isso, como escreve Vaz Serra na Rev. Leg. Jur., Ano 101º, pg. 300, “se a hipoteca tiver por objecto um terreno e neste for feita uma construção a hipoteca estende-se a esta, pois, de contrário, seria diminuído o valor do prédio hipotecado e da garantia do credor hipotecário, que o terreno por si não teria o mesmo valor que tinha antes da construção”

Veja-se também, seguindo esta posição, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pg. 683.

No mesmo sentido escrevem Romano Martinez e Fuzeta da Ponte (in “Garantias Especiais das Obrigações”, ed., pg. 200) : “Atento esse princípio da indivisibilidade, a hipoteca que incide sobre determinado terreno estende-se aos edifícios nele posteriormente implantados e às fracções autónomas que se venham a constituir por sujeição ao regime de propriedade horizontal Do artº 696º do Código Civil resulta que as partes podem afastar o princípio da indivisibilidade, mas no caso dos autos não consta que tal tivesse sucedido.

A Jurisprudência nacional, como se referiu, tem decidido uniformemente que uma hipoteca constituída sobre o terreno se estende aos edifícios nele posteriormente implantados. Assim vejam-se os Acórdãos da Relação de Évora, de 15/4/1999 (in Col. Jur., 2/99, pg. 270) e da Relação de Lisboa, de 11/10/1990 (in Col. Jur., 4/90, pg. 147). Mais recentes, vejam-se os Acórdãos da Relação do Porto de 11/3/2010, da Relação de Lisboa de 12/10/2006, e da Relação de Évora de 25/5/2017 (todos consultados na “internet” em www.dgsi.pt. Também o S.T.J. se tem pronunciado no mesmo sentido sobre a questão da extensão da hipoteca. Veja-se, por todos, o Acórdão do S.T.J. de 3/12/1998, consultado na “internet” em www.dgsi.pt, que decidiu : “A hipoteca sobre um terreno estende-se ipso jure aos edifícios nele incorporados e ainda que em execução, o titulo de arrematação transfere directamente para o arrematante a propriedade da coisa arrematada”.

Temos, pois, que do artº 691º 1, als. a) e c) do Código Civil e do princípio da indivisibilidade consagrado no artº 696º do Código Civil, resulta que uma hipoteca voluntária constituída sobre um prédio se estende ao edifício nele posteriormente implantado, dado nada ter sido convencionado em contrário, tendo o credor hipotecário (“in casu” a recorrente) direito a ser pago com o produto da venda desse imóvel, nos termos do artº 686º 1 do Código Civil.

Este entendimento é extensivo à penhora dos bens hipotecados nos termos do disposto no artº 752º e 758º do Código de Processo Civil.

A tese defendida pelos apelantes, a ser aceite (para além de não ter fundamento legal) redundaria na redução da garantia da hipoteca, porquanto ao excluir da hipoteca os edifícios construídos, a garantia que a mesma representa para a credora fica substancialmente enfraquecida, uma vez que a autonomização das construções reduziria drasticamente o valor da área hipotecada.

E tal enfraquecimento da garantia ficaria a dever-se, exclusivamente, a iniciativa dos devedores (“in casu” os recorrentes), através de obras que transformam o imóvel objecto da hipoteca.

Ora a redução da hipoteca voluntária excepcionalmente é admitida. O artº 719º do Código Civil, admite a redução voluntária da hipoteca por parte do beneficiário. Por sua vez, o artº 720º do Código Civil regula a redução judicial das hipotecas legais e judiciais e no seu 2 prevê também em que condições pode ser admitida a redução de hipotecas voluntárias, a requerimento de qualquer interessado, consagrando-se que a redução judicial é admitida:

-Se, em consequência do cumprimento parcial, ou outra causa de extinção, a dívida se encontrar reduzida a menos de dois terços do seu montante inicial;

-Se, por virtude, de acessões naturais ou benfeitorias a coisa ou o direito hipotecado se tiver valorizado em mais de um terço de seu valor à data da constituição da hipoteca.

Daqui resulta que, em princípio, a redução judicial pode ter lugar nas hipotecas legais e judiciais, uma vez que nessas se verifica a indeterminação dos bens sobre que incidem. Tratando-se de hipoteca voluntária (caso da dos autos), não se admite, como regra, a sua redução judicial (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pg. 555). Só, excepcionalmente, nas hipotecas previstas nas alíneas, do artº 720º 2 do Código Civil, ela será permitida e sempre a requerimento do interessado (cf. Acórdão do S.T.J. de 21/9/1992, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Ora no caso tal redução não foi pedida e consequentemente nem sequer pode ser equacionada

Em defesa da sua tese os apelantes invocam ainda que “embora sejam partes legitimas, não respondem ilimitadamente pela divida exequenda, mas apenas na medida do valor dos bens que adquiriram aos segundos executados. A não ser assim, estaríamos perante um enriquecimento sem causa do exequente que via o seu crédito ser pago pelo património de terceiros, sem qualquer fundamento ou titulo”.

Não vemos que lhes assista razão.

Na verdade, com a venda dos bens hipotecados e penhorados, o credor não irá receber mais do que o seu crédito, independentemente do valor do bem hipotecado e do preço em si mesmo considerado. Se os bens forem vendidos por valor superior ao crédito da recorrida, o remanescente, servirá para pagamento de outros créditos não garantidos, pagamento das custas e, havendo sobras, serão estas entregues ao executado. Ou seja, não é por o valor actual do prédio hipotecado ser muito superior ao do momento da constituição da garantia, que o credor irá receber mais que do que o exacto montante do seu crédito. Logo, nem se pode falar de enriquecimento, pois o credor limita-se a receber aquilo que lhe é devido, dentro da garantia de que goza.

Temos pois de concluir que a recorrida se limita a exercer o seu direito de credora hipotecária, dentro dos limites estipulados para tal garantia, face à não satisfação da obrigação garantida, nada havendo que censurar à decisão apelada.”

- E o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, a este propósito, em sumário, e ao que aos presentes autos interessa que:

“VI - Do princípio da indivisibilidade consagrado no artº 696º do Código Civil, e bem assim do disposto no artº 691º 1, als. a) e c) do Código Civil, resulta que uma hipoteca voluntária constituída sobre um terreno se estende ao edifício nele posteriormente implantado.

VII - Se o edifício implantado no terreno hipotecado, aportar a este, um valor muito superior ao que tinha no momento da constituição da hipoteca, nem por isso tal aumento se traduz num enriquecimento do credor porquanto o credor nunca irá receber mais que o exato montante do seu crédito.”

- Negando provimento à alegação dos aqui AA., mantendo integralmente a decisão proferida em primeira instância.

- Ao fazê-lo, e uma vez decorrido o prazo do trânsito em julgado da decisão, tal matéria ficou definitivamente decidida.


*

Perante este lastro factual, importa agora cuidar do mérito do recurso.

Na sentença recorrida foi julgada procedente a exceção do caso julgado e, em consequência, a Ré foi absolvida da instância.

Como é sabido, o caso julgado traduz-se na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respetivo trânsito em julgado - arts. 619.º n.º 1 e 628.º, ambos do Código de Processo Civil.

O instituto do caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que, a verificar-se, obsta que o tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância - art.º 576º, 577.º alínea i) e 578.º do Código de Processo Civil.

Conforme refere José Lebre de Freitas (Um polvo chamado autoridade do caso julgado, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 79, Jul-Dez.- 2019, pág. 693), esta “indiscutibilidade manifesta-se de dois modos:

— Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado);

— Entre as mesmas partes mas com objetos diferenciados, entre si ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação, mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado)”.

De acordo com o n.º 1 do art.º 580.º do Código de Processo Civil “as exceções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa, ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado”.

A este propósito Manuel de Andrade refere que a exceção do caso julgado manifesta-se porquanto “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social” (Noções Elementares de Processo Civil, páginas, 305 e 306,).

No dizer de Miguel Teixeira de Sousa, “a excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica” (O objecto da sentença e o caso julgado material, Boletim do Ministério da Justiça, 325, pág. 171 e seguintes).

Nos termos do estatuído no n.º 1 do art.º 581.º do Código de Processo Civil, que estabelece os requisitos da litispendência e do caso julgado, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e causa de pedir, prevendo-se nos números seguintes desse normativo, a exigência quanto à tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir).
i) Identidade de sujeitos

“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, ou seja, as partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial, não sendo exigível correspondência física e sendo indiferente a posição que adotem em ambos os processos.

Segundo Lebre de Freitas (obra citada, pág. 694 e 695) “na definição da identidade das partes há que atender, como diz o n.º 2 do art. 581.º, CPC, à qualidade jurídica em que autor e réu atuam. Daí deriva que, havendo representação, a parte é o representado e não o representante. Daí deriva também que, transmitida a terceiro a situação substantiva da parte, depois de transitada a sentença de mérito, se deva considerar que o adquirente tem a mesma qualidade jurídica do transmitente (cf. art. 54.º-1, CPC), pelo que há identidade de parte na nova ação em que o primeiro apareça no lugar que o segundo ocupou na primeira ação.

Igualmente há que atender, na definição de identidade das partes, à extensão subjetiva da eficácia da sentença, pois a identidade de sujeitos estende-se, além das partes: aos terceiros juridicamente indiferentes (o credor comum, ou outro titular de direito relativo, perante a sentença que declare que o seu devedor, ou outra contraparte, não é titular de certo direito absoluto, cuja titularidade é de quem com ele litigou — sem prejuízo do recurso de revisão fundado na simulação do litígio); aos titulares de situação jurídica concorrente com a que a sentença reconheceu (credor ou devedor solidário; credor de obrigação indivisível; contraente beneficiário da nulidade de cláusula contratual geral; comproprietário, co-herdeiro na fase da comunhão hereditária ou contitular de outro património comum); aos titulares de situação jurídica cuja conservação (subcontrato) ou constituição (direito de preferência; contrato a favor de terceiro) dependa do exercício da vontade negocial duma das partes no processo; ao sócio que não impugne a deliberação social; ao chamado a intervir como parte principal ou acessória que não intervenha; ao adquirente do direito litigioso ou do direito já reconhecido ou constituído pela sentença e aos outros substituídos processuais. Todos os casos de extensão a terceiros da eficácia da sentença são equiparados aos da estrita identidade de partes, para o efeito dos arts. 577.º-e e 581.º do CPC”.
ii) Identidade de pedido

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico, isto é, considera-se que existe identidade quando se verifica coincidência da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito impetrado.

Assinala-se que o pedido, enquanto efeito jurídico pretendido pelo demandante, declarado no efeito prático-jurídico que o demandante pretende, não deve ser entendido na pura literalidade em que se declara o petitório, mas com o alcance que decorre da respetiva conjugação como os fundamentos da pretensão arrogada, por forma a compreender o modo específico da pretendida tutela jurídica “basta que as partes tenham conhecimento do efeito prático que pretendam alcançar, embora careçam da representação do efeito jurídico. Por outras palavras, o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar; o objeto mediato deve entender-se como o efeito prático que o autor pretende obter e não como a qualificação jurídica que dá à sua pretensão” (Anselmo de Castro, in, Direito Processual Civil Declaratório, Volume I, Almedina, Coimbra, 1981, página 203)  

Seguindo Lebre de Freitas (artigo citado, págs. 695 a 697) “O pedido tem um elemento material e um elemento processual: o primeiro consiste, na maioria dos casos, na afirmação duma situação jurídica atual, que lhe constitui o conteúdo; o segundo consiste na solicitação duma providência processual para tutela dessa situação jurídica, constituindo a sua função. Ambos os elementos delimitam o conteúdo da sentença de mérito (cf. art. 10.º, CPC, n.ºs 2 e 3), mas é sobre o elemento material do pedido que se forma o caso julgado, sem prejuízo de o elemento processual da pretensão servir à definição da extensão do elemento material para os efeitos de delimitação do objeto do processo e do futuro caso julgado: se o direito do autor for de 50, mas ele só pedir a condenação do réu em 10, só estes 10 integram o objeto do processo e consequentemente integrarão o caso julgado.

Para chegar à definição da identidade do pedido, há que interpretar a sentença, atendendo ao seu objeto e às relações de implicação que a partir dele se estabelecem.

Em primeiro lugar, a liberdade de, em nova ação, pedir aquilo que não se pediu na primeira não se verifica quando o tipo da ação tenha função de carácter limitativo, nem quando o pedido se reporte a uma parte não individualizada do objeto do direito e a sentença seja absolutória ou condene em quantidade menor do que o pedido.

Em segundo lugar, a decisão exclui as situações contraditórias com a que por ela é definida, não sendo admissível ação que pudesse levar a solução incompatível com a decisão, nomeadamente por com ela constituir alternativa, ou que quantitativa ou qualitativamente nela se inclua.

Em terceiro lugar, com o caso julgado precludem, em caso de condenação no pedido, as exceções, invocadas ou invocáveis, contra o pedido deduzido, bem como, quando proceda uma exceção perentória, as contraexceções contra ele invocadas ou invocáveis.

Em quarto lugar, o caso julgado terá de se estender à decisão das questões prejudiciais quando, caso contrário, se possa gerar contradição entre os fundamentos de duas decisões que seja suscetível de inutilizar praticamente o direito que a primeira decisão haja salvaguardado, de impor praticamente um duplo dever onde apenas um existe ou de romper a reciprocidade entre o direito e o dever abrangidos pelo sinalagma.

Para o efeito, entende-se por questão prejudicial toda aquela cuja solução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, quer se trate de questão fundamental, relativa à causa de pedir ou a uma exceção perentória, quer respeite ao objeto de incidentes que estejam em correlação lógica com o objeto do processo”.
iii) Identidade de causa de pedir

De acordo com a norma, há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Assim, nas exemplificações do preceito, nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

O n.º 4 do art.º 581º do Código Processo Civil acolhe a doutrina da substanciação (por oposição à teoria da individualização), pelo que, a causa de pedir deve ser preenchida com os factos essenciais causantes do efeito jurídico pretendido.

Conforme refere Teixeira de Sousa, “A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico (…) É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir (…) Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais” (Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, páginas 395, 401 e 402).

Entendendo-se a causa de pedir como o próprio facto jurídico genético do direito, donde se deverá atender a todos os factos invocados que forem injuntivos da decisão, correspondendo, pois, à alegação de todos os factos constitutivos do direito e relevantes no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5º n.º 3, e nos limites do art.º 609º n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, independentemente da coloração jurídica dada pelo demandante (cfr. Ac. STJ de 14.01.2021, proferido no processo 2460/15.6T8LOU, disponível em www.dgsi.pt).

Objetivamente, “a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado; do ponto de vista subjectivo, em regra, o caso julgado tem eficácia restrita às partes processuais que o provocaram, embora se possa projectar, conforme o caso, na esfera jurídica de terceiros” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Dezembro de 2017, www.dgsi.pt).

“Por outro lado, havendo concurso de normas, para identificar os casos em que o apelo a uma norma distinta, ainda que sem previsão inteiramente coincidente, não impede que se verifique a identidade da causa de pedir, há várias distinções a fazer, consoante a modalidade (real ou aparente) do concurso e o tipo de relações (de aplicação cumulativa, subsidiária ou dependente) entre as normas materiais envolvidas.

Há ainda que ter em conta que há identidade da causa de pedir quando os factos que a constituem na segunda ação integrem, embora excedendo-os, os alegados, ao mesmo título, na primeira, desde que seja idêntico o seu núcleo essencial. (…) É sempre irrelevante a qualificação jurídica que se dê, na primeira e na segunda ações, aos factos constitutivos da causa de pedir” (Lebre de Freitas, artigo citado, pág. 699 e 700).

                                                                                   *

Deixada esta (provavelmente fastidiosa) incursão sobre a exceção do caso julgado, revertendo ao caso dos autos, afigura-se-nos que a mesma se tem como verificada, quer quanto à identidade dos pedidos, quer quanto à identidade da causa de pedir[3].

No que concerne à primeira das ações

i) pedido principal e subsidiário

a redução da extensão das penhoras sobre os imóveis, ou seja, limitar o âmbito da mesma aos valores limite que entendiam estar garantido pelas hipotecas (cada um de € 25.000/€ 40.000)

ii) a causa de pedir

por o exequente ter fixado em € 25.000 o valor garantido pela hipoteca sobre cada um dos imóveis limitando, por via disso, a hipoteca a esse montante (relativamente ao pedido principal),

- ser de € 40.000 o valor de cada um dos prédios à data das doações, não podendo, por via disso, a penhora abranger mais do que o valor correspondente ao dos imóveis aquando da transmissão (relativamente ao pedido subsidiário)

na presente, os AA., visam

- pedido

Tendo como pressuposto que à data da venda cada um dos imóveis tinha, no caso de nele não existir qualquer construção, o valor de € 60.000, a condenação da Ré no pagamento do montante correspondente ao diferencial entre o valor da venda e o já referido de € 60.000

- causa de pedir

O injustificado enriquecimento da Ré por ter obtido com a venda um montante superior ao do valor do objeto garantido, à custa do património dos AA.

A primeira das ações destinou-se a evitar a consumação da lesão (podendo, nessa exata medida, ser considerada como preventiva) e o desta a exigir o ressarcimento por essa mesma lesão (dano).

 Numa primeira base de argumentação poder-se-ia avançar que a mera circunstância de na primeira das ações os oponentes não terem logrado obter a redução da penhora (por imperativos ligados à indivisibilidade da hipoteca) e, consequentemente, modificar a extensão da penhora nos termos em que foi feita, não significa necessariamente que enquanto terceiros lesados (como se apresentam os autores) não possam, após a venda, consumado que foi o dano, obter o ressarcimento dos valores com que se viram empobrecidos.

Nessa perspetiva, a inevitabilidade da penhora (prevenção do dano) não tinha necessariamente que conduzir à irressarcibilidade do dano; à impossibilidade de os lesados obterem a restituição do valor com que se viram empobrecidos (o que é pretendido nesta segunda ação).

Só que essa base de argumentação colide frontalmente com o que ficou definitivamente decidido na primeira ação: a de que assistia à exequente (aqui Ré) o direito à penhora e ao produto obtido com a venda dos bens hipotecados até ao limite do seu crédito.

Tendo-lhe sido reconhecido esse direito, em respeito pela antecedência lógica emergente da primeira ação, e de prejudicialidade, não pode agora ser demandada com fundamento em como esse ato (penhora, e, consequentemente, venda e pagamento) se traduzir num enriquecimento injustificado, precisamente porque nessa primeira ação ficou afirmado que a penhora e o pagamento tinham cobertura jurídica (o designado efeito positivo do caso julgado).

Apesar de, pelo seu texto, os pedidos formulados nas ações se apresentarem, na sua aparência, distintos, como refere Lebre de Freitas (artigo citado, pág. 695.º) “o pedido tem um elemento material e um elemento processual: o primeiro consiste, na maioria dos casos, na afirmação duma situação jurídica atual, que lhe constitui o conteúdo; o segundo consiste na solicitação duma providência processual para tutela dessa situação jurídica, constituindo a sua função. Ambos os elementos delimitam o conteúdo da sentença de mérito (cf. art. 10.º, CPC, n.os 2 e 3), mas é sobre o elemento material do pedido que se forma o caso julgado”.

De resto, crê-se que os AA. perspetivaram em desacerto os sujeitos passivos da ação fundado na incorreta definição da entidade que injustificadamente terá ficado enriquecida.

E essa entidade, como se nos afigura, não é a ora Ré, – a quem, como ficou reconhecido na primeira das ações, lhe assistia o direito à cobrança do seu crédito com base na garantia constituída e independentemente dos seus elementos integrantes e respetivos titulares –, antes os executados dessa ação, que alegadamente  terão obtido o pagamento total ou parcial de uma dívida sua à custa da liquidação de elementos integrantes do bem hipotecado que pertenciam aos aqui AA..

Temos assim que, tal como decidido pela primeira instância, o efeito pratico-jurídico dos pedidos entre ambas as ações é substancialmente o mesmo (aferir da licitude/ilicitude da penhora e venda), tal como é a mesma a causa de pedir (saber se o direito dos autores integrado nos bens penhorados é suscetível de penhora e liquidação para satisfazer o crédito do aqui autor).

Impõe-se, como tal, a confirmação do decidido e a improcedência da apelação. 


    *

  Sumário[4]:

(…).

                                                                               *                                                     

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                                               *

Custas pelos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                               *

Coimbra, 28 de setembro de 2022


(Paulo Correia)

(Helena Melo)

(José Avelino)





[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Após redução do pedido efetuada nos autos.
[3] - A identidade de sujeitos não constitui objeto do recurso, sendo ainda manifesto que a mesma ocorre.
[4] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).