Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1157/22.5T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
INCOMPLETUDE FORMAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
REJEIÇÃO DA DECISÃO
DEVOLUÇÃO À ENTIDADE ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 15.º E 25.º DA LEI N.º 107/2009, DE 14-09, E 311.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Uma decisão administrativa condenatória formalmente incompleta deve ser rejeitada pelo tribunal aquando do saneamento a realizar no momento do recebimento da impugnação.
II – O tribunal terá o poder-dever de rejeitar essa decisão e devolvê-la à entidade administrativa que a proferiu.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

A..., Lda. veio recorrer da decisão da Autoridade das Condições do Trabalho que lhe aplicou a coima de €4.998,00 pela prática da contraordenação p. e p. pelas disposições conjugadas do nº 6 do art.º 8, do Regulamento (CEE) n.º 561/2006 do Conselho, de 15 de março de 2006, o que constitui contraordenação muito grave, nos termos previstos na alínea c) do nº 5 do art.º 14º da Lei nº 27/2010.

Tal decisão da ACT fundou-se no Auto de Contraordenação levantado pela Guarda Nacional Republicana e que se mostra junto a fls. 3, com o aditamento de fls. 20.

O Auto de Notícia certificava que no dia 26.07.2021, pelas 16h20m, no Parque TIR de Vilar Formoso, Guarda, foi verificado que o condutor AA não havia compensado até à terceira semana o descanso reduzido efetuado no dia 03.07.2021 e 04.07.2021, já que o mesmo efetuou nesse período um descanso reduzido de 27h08, não tendo compensado 17h52 até à terceira semana posterior. O condutor conduzia um veiculo trator de mercadorias de matrícula ..-..-SR, de serviço de aluguer, sendo titular da carta de condução nº c-...75 e fazia-o por conta da arguida A..., Lda., pessoa coletiva ...55, com sede em Estrada ..., ..., o, ... ....

Notificada a arguida, não veio a mesma apresentar oposição dentro do prazo legal, tendo então sido elaborada pelo instrutor do processo proposta de decisão (fls. 31 a 36) que, tendo sido acolhida pela Direção da ACT, culminou na decisão de fls. 37, datada de 6/04/2022.

A arguida apresentou, no quadro do seu recurso da decisão administrativa, as alegações de fls. 57 a 64.

Recebido o recurso no Juízo de Trabalho ..., veio, o Ministério Público deduzir acusação nos termos previstos no art.º 37.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09.

O recurso foi judicialmente admitido por despacho de fls. 80.

Foi ordenada a abertura de vista ao MP para se pronunciar sobre a nulidade da decisão administrativa arguida pela recorrente.

O Ministério Público pronunciou-se a fls. 81-86, declarando ainda que não se opõe à decisão do recurso de contraordenação por mero despacho.

O recorrente respondeu à pronúncia do MP, declarando também que não se opõe a que a decisão seja proferida por mero despacho.

Por despacho de fls. 92 a 147, proferido em 11/04/2023 foi julgada procedente a impugnação judicial, e em consequência, julgada verificada, por provada, a nulidade da decisão administrativa, absolvendo-se a arguida A..., Lda., da prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punível pelos artigos 8.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006 e 20.º, n.º 5, al. c) e 14.º, n.º 4, ambos da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto.

Inconformado com esta decisão, Ministério Público interpôs recurso, apresentando as correspondentes motivações que terminam mediante a formulação das conclusões, que se transcrevem:

“1. Não foi dada igual oportunidade ao Ministério Público de se pronunciar nos autos quanto à questão da nulidade invocada pela arguida, assim se violando o principio do contraditório e da igualdade, geradora de nulidade da decisão recorrida.

2. A decisão administrativa, nos termos do artigo 25, n.º 4 do RPCOLSS remeteu, quanto aos factos dados como provados, quanto à descrição dos factos imputados, das provas e circunstâncias relevantes para a decisão para o auto de notícia (e seu aditamento).

3. Da leitura do auto de noticia e seu aditamento (auto de noticia de fls. 3 e aditamento ao auto de noticia de fls. 20) emergem, todos os factos necessários à decisão e à qualificação jurídica, ao invés do referido pela arguida.

4. É bastante dizer-se ali que o condutor não compensou até à terceira semana o descanso reduzido efectuado no dia 03.07.2021 e 04.07.2021 e que este efectuara nesse período um descanso reduzido de 27h08m, não tendo compensado 17h52m até à terceira semana posterior.

5. O que releva para o cometimento da infração e o preenchimento dos elementos típicos objectivos da mesma é que nos dias 03 e 04 de julho de 2021 (Sábado e Domingo respectivamente) o condutor gozou apenas 27h08m de repouso (o que, de acordo com a definição legal configura um descanso reduzido) que não compensou até à terceira semana posterior.

6. É irrelevante, salvo melhor opinião (ou constitui um facto meramente acessório que poderia até ser comunicado ao arguido nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal saber em que aqui aplicável, depois de produzida a prova em audiência de julgamento) data gozou o motorista da arguida o seu descanso semanal regular na semana de 21 a 27 de Junho de 2021, tanto mais que a lei estabelece o que se entende por semana (período entre as 00h00 de segunda-feira e as 24h00 de domingo),

7. Não é correcta a decisão do Tribunal a quo no sentido de que a decisão administrativa omite factos que permitiriam extrair tal conclusão e que se traduziriam na concreta menção de todos os períodos de repouso gozados pelo motorista até ao final da terceira semana.

8. Muito menos com a conclusão de que a decisão da entidade administrativa não contém a narração dos factos necessários ao preenchimento do elemento objectivo da infracção imputada à arguida, e com a declaração de nulidade insanável da decisão da ACT

No entanto, Vossas Excelências mais sabiamente decidirão e farão a costumada JUSTIÇA.”

A arguida apresentou resposta, tendo formulado as seguintes conclusões que se transcrevem:

(…).

Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Não houve resposta a este parecer.

O recurso foi admitido pelo relator.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

OBJETO DO RECURSO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 33.º, número 1 e 50.º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e, subsidiariamente, dos artigos 412.º e 420.º, número 1, alínea c) do Código de Processo Penal.

Questões a resolver:
1. Nulidade da decisão recorrida por violação do principio do contraditório e da igualdade.
2. Nulidade da decisão administrativa

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Há a considerar a seguinte factualidade provada:

1.- Resulta do auto de noticia de fls. 3 que:

- “No dia 26.07.2021, pelas 16h20m, no Parque TIR de Vilar Formoso, Guarda, foi verificado que o “condutor AA” “não havia compensado até à terceira semana o descanso reduzido efectuado no dia 03.07.2021 e 04.07.2021”, já que “o mesmo efectuou nesse período um descanso reduzido de 27h08, não tendo compensado 17h52 até à terceira semana posterior.

- O condutor conduzia um veiculo tractor de mercadorias de matrícula ..-..-SR, de serviço de aluguer, sendo titular da carta de condução nº c-...75 (… seguem-se os dados de identificação do condutor).

- Fazia-o por conta da arguida A..., Lda., pessoa colectiva ...55, com sede em Estrada ..., ..., ... ...;

- Foi infringido o artigo 8º do REG 5561/06 conjugado com a alínea c) do nº 5 do artigo 20º da lei…;

juntam-se os talões do período da infração de 03.07.2021 a 26.07.2021.

2.- Por seu turno, do aditamento ao auto de noticia de fls. 20 resulta, com relevo, que:

“MATÉRIA DE FACTO: A infratora identificada no auto de notícia supra mencionado (…) no dia 26 de julho dê 2021, pelas 16 horas e 20 minutos, no Parque TIR Vilar Formoso, Comarca e Distrito da Guarda, mantinha ao seu serviço, sob as suas ordens e direção e mediante remuneração, o trabalhador AA, melhor identificado nos autos, o qual conduzia o veículo pesado/trator de mercadorias, de matrícula ..-..-SR, de que é proprietária, tendo verificado o agente autuante que o condutor não compensou até à terceira semana o descanso reduzido efetuado - no dia 03/07/2021 e 04/07/2021 – mesmo - efetuou -nesse período um descanso reduzido de 27h08, não tendo compensado 17h52 até à terceira semana posterior.

MATÉRIA DE DIREITO: A factualidade supra descrita indicia a violação do disposto no artigo 8.º, conjugado com o artigo 4.º, alínea h) do Regulamento n. 0 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.

"Em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar pelo menos: dois períodos de repouso semanal regular, ou um período de repouso semanal regular e um período de repouso semana/ reduzido de, no mínimo, 24 horas — todavia, a redução deve ser compensada mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão.”

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Nulidade da decisão recorrida por violação dos princípios do contraditório e da igualdade

Alega o Ministério Público como questão prévia a violação do princípio do contraditório, por não lhe ter sido dada oportunidade de se pronunciar quanto à argumentação invocada pela arguida na resposta fundamentada que apresentou à notificação que lhe foi dirigida para esclarecer se mantinha interesse na apreciação da invocada nulidade da decisão administrativa.

Respondeu a recorrente que não assiste razão ao M.P., não padecendo a decisão/sentença do vício que lhe é apontada.

Vejamos:

O principio do contraditório nos recursos de contraordenação tem consagração nos artigos 32º, nº 10, da CRP e 50º do RGCO (embora aqui perspetivado no âmbito dos direitos de defesa e de audiência do arguido.)

 “…, em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

Cabe ao juiz observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre as mesmas.”[1]

Em 13-09-2022 foi proferido o seguinte despacho:

“Por estar em tempo, deter a recorrente legitimidade para o efeito e terem sido observadas as exigências de forma, registe e autue como Processo de Impugnação Judicial (cfr. artigos 32.º a 37.º do Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14.09), à qual se atribui efeito suspensivo (cfr. artigo 35.º n.º 2 do Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social).

*

Antes de mais, e uma vez que a recorrente alega, designadamente, a nulidade da decisão administrativa, matéria sujeita a exercício do contraditório, abra vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto à mesma.”

Em 5-01-2023 o Ministério Público pronunciou-se sobre a nulidade arguida, concluindo que a decisão recorrida e os autos de noticia para os quais remete, não padece de qualquer nulidade, muito menos a invocada pela arguida, pelo que tal invocação deve improceder.

Em 12-01-2023 foi proferido o seguinte despacho:

“Antes de mais, notifique a recorrente do teor da promoção que antecede, devendo, ainda, no prazo de 10 dias, esclarecer se, em face da mesma, mantém interesse na apreciação da invocada nulidade da decisão administrativa.”

Em 23-01-2023 a arguida pronunciou-se sobre a promoção do MP, concluindo que não estão satisfeitas as exigências previstas no artigo 58º, nº 1 do RGCO e no artigo 25º da Lei 107/2009, que mantém interesse na apreciação da invocada nulidade e que tratando-se o thema decidendum de uma questão estritamente de direito, não se opõe a arguida a que a decisão seja proferida por mero despacho.

Em face destes factos, temos de concluir que o Ministério Público contraditou a questão da nulidade suscitada pela arguida, pelo que a decisão recorrida não enferma de nulidade por violação do principio do contraditório (e da igualdade).


2. Nulidade da decisão administrativa

No despacho final entendeu-se que: “…analisada a decisão administrativa, assim como o auto de notícia e os elementos documentais juntos com a mesma, afigura-se-nos que assiste razão à recorrente quanto à invocada nulidade, já que, do ponto de vista dos elementos objectivos do ilícito contraordenacional imputado à arguida, é a decisão administrativa, quanto a nós, insuficiente para concluir pela verificação de tais elementos objectivos.

Desde logo, resulta da decisão administrativa que está em causa a prática de uma contra-ordenação muito grave “por o condutor ter efetuado período de repouso semanal regular inferior a 45 h consecutivas e a 36 horas”, resultando, então, do auto de notícia que “o condutor não compensou até à terceira semana o descanso reduzido efetuado no dia 03/07/2021 e 04/07/2021. O mesmo efetuou nesse período um descanso reduzido de 27h08, não tendo compensado 17h52 até à terceira semana posterior.

(…).

Certo é que, analisada a decisão administrativa (e, bem assim, o auto de notícia), constatamos que a mesma não contém tal descrição circunstanciada dos factos, limitando-se a uma descrição parcial do início e termo de um período de repouso inferior a 45 horas realizado pelo motorista em determinada semana, ou seja, limita-se a concluir que o condutor da arguida efectuou um repouso de 27h08 entre o dia 03.07.2021 e 04.07.2021, tratando-se de um repouso semanal reduzido que tem de ser compensado, desconhecendo-se de que forma se chega a tal conclusão, referindo, então, que até ao final da terceira semana seguinte a tal período de repouso não foi gozado um período de repouso compensatório de 17h52.

Ou seja, a decisão administrativa omite factos que permitiriam extrair tal conclusão e que se traduziriam na concreta menção de todos os períodos de repouso gozados pelo motorista até ao final da terceira semana, pelo que se nos afigura que a mesma não contém a narração dos factos necessários ao preenchimento do elemento objectivo da infracção imputada à arguida (contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelo artigo 8.º do Regulamento n.º 561/2006, de 15 de Março de 2006 e pelos artigos 20.º, n.º 5, al. c) e 14.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2010, de 30.08), sendo manifestamente insuficiente a fundamentação de facto quanto ao elemento objectivo da infracção em causa, razão pela qual, a nosso ver, não reúne os requisitos previstos no artigo 58..º, n.º 1, do RGCO e, bem assim, no artigo 25.º da Lei n.º 107/2009, de 14.09.”

Sustenta o MP que “A decisão administrativa, no uso de faculdade que lhe é concedida legalmente no artigo 25, n.º 4 do RPCOLSS remeteu, quanto aos factos dados como provados, quanto à descrição dos factos imputados, das provas e circunstâncias relevantes para a decisão para o auto de notícia (e seu aditamento).

Na verdade, estatui-se neste normativo que “Não tendo o arguido exercido o direito de defesa nos termos do n.º 2 do artigo 17.º e do n.º 1 do artigo 18.º, a descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão é feita por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infracção“, podendo a “fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respectivo processo de contra-ordenação” (nº 5 deste normativo).

Ora, da leitura do auto de noticia e seu aditamento (auto de noticia de fls. 3 e aditamento ao auto de noticia de fls. 20) emergem, do nosso ponto de vista e sempre salvo o devido respeito por interpretação diversa, todos os factos necessários à decisão e à qualificação jurídica, ao invés do referido pela arguida, incluindo quanto à qualificação jurídica.

A factualidade ali descrita é bastante para subsumir factualmente a conduta da arguida à previsão da norma em que se fundou a decisão, dali constando – e além do mais –as circunstâncias de tempo e lugar da infracção, a identificação do condutor/motorista e do veiculo, e o facto verificado pelos agentes: que o condutor não compensou até à terceira semana o descanso reduzido efectuado no dia 03.07.2021 e 04.07.2021. O mesmo efectuou nesse período um descanso reduzido de 27h08m, não tendo compensado 17h52m até à terceira semana posterior.

Ao invés do referido pela arguida não era necessário que da decisão constasse em que data gozou o motorista da arguida o seu descanso semanal regular na semana de 21 a 27 de Junho de 2021, pois que tal não é elemento do tipo e a infracção mostra-se preenchida por tal descanso reduzido não ter sido compensado até à terceira semana posterior como expressamente se refere nos autos de noticia para os quais remete a decisão.

Tal facto, não sendo um elemento do tipo, poderia ser qualificado como um facto acessório, isto é que permitiria a explicitação do facto descrito no auto de noticia e seu aditamento. Mas, a omissão da descrição de tal facto (que não é elemento do tipo) não poderia, sempre salvo melhor opinião, conduzir à decisão recorrida (nulidade insanável da decisão administrativa).

Quer nos autos de noticia, quer na decisão se descrevem factos dos quais é possível concluir a verificação da infracção, não configurando aquela afirmação qualquer conclusão, mas um facto.”

Respondeu a recorrida, dizendo em síntese que “Considerar uma paragem de atividade de motorista de 27h08 inferior a 45 horas sem se saber quando foi praticado o descanso regular anterior e posterior a esse período não pode, sem mais, ser considerado um descanso reduzido, sendo meramente conclusiva tal qualificação. A verificação do incumprimento do tempo de repouso semanal pressupõe a descrição de todos os repousos semanais e diários realizados pelo condutor ao longo de, pelo menos, quatro semanas consecutivas com vista a determinar quando foi gozado o último descanso regular válido (no mínimo de 45 horas) e a partir dele, se foram ou não cumpridos pelo motorista todos os tempos de repouso semanal mínimos, que podem consistir em períodos de repouso semanal regular ou em período de repouso semanal reduzido”.

Vejamos:

Dispõe o artigo 8.º do Regulamento CE n.º 561/2006, de 15.03, que:

“1. O condutor deve gozar períodos de repouso diários e semanais.

2. O condutor deve gozar um novo período de repouso diário dentro de cada período de 24 horas após o final do período de repouso diário ou semanal precedente.

Se a parte do período de repouso diário abrangida pelo período de 24 horas tiver pelo menos 9 horas, mas menos de 11 horas, o período de repouso diário em questão será considerado como um período de repouso diário reduzido.

3. O período de repouso diário pode ser alargado para perfazer um período de repouso semanal regular ou um período de repouso semanal reduzido.

4. O condutor pode fazer, no máximo, três períodos de repouso diário reduzido entre cada dois períodos de repouso semanal.

5. Não obstante o disposto no nº 2, o condutor de um veículo com tripulação múltipla deve gozar um novo período de repouso diário de pelo menos 9 horas nas 30 horas que se sigam ao termo de um período de repouso diário ou semanal.

6. Em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar pelo menos:

- Dois períodos de repouso semanal regular, ou

- Um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido de, no mínimo, 24 horas — todavia, a redução deve ser compensada mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão.

O período de repouso semanal deve começar o mais tardar no fim de seis períodos de 24 horas a contar do fim do período de repouso semanal anterior.

7. Qualquer período de repouso gozado a título de compensação de um período de repouso semanal reduzido deve ser ligado a outro período de repouso de, pelo menos, 9 horas.

8. Caso o condutor assim o deseje, os períodos de repouso diário e os períodos de repouso semanal reduzido fora do local de afectação podem ser gozados no veículo, desde que este esteja equipado com instalações de dormida adequadas para cada condutor e não se encontre em andamento.

9. Um período de repouso semanal que recaia sobre duas semanas pode ser contabilizado em qualquer uma delas, mas não em ambas.”.

Por seu turno, resulta do artigo 7.º do citado Regulamento que:

“Após um período de condução de quatro horas e meia, o condutor gozará uma pausa ininterrupta de pelo menos 45 minutos, a não ser que goze um período de repouso.

Esta pausa pode ser substituída por uma pausa de pelo menos 15 minutos seguida de uma pausa de pelo menos 30 minutos repartidos pelo período de modo a dar cumprimento ao disposto no primeiro parágrafo.”

Define, ainda, o artigo 4.º do aludido diploma legal o que se entende por:

“h) «Período de repouso semanal»: período semanal durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo e que compreende um «período de repouso semanal regular» ou um «período de repouso semanal reduzido»:

- «Período de repouso semanal regular»: período de repouso de, pelo menos, 45 horas;

- «Período de repouso semanal reduzido»: período de repouso de menos de 45 horas, que pode, nas condições previstas no nº 6 do artigo 8º, ser reduzido para um mínimo de 24 horas consecutivas;

i) «Semana»: período entre as 00h00 de segunda-feira e as 24h00 de domingo; (…)

k) «Tempo diário de condução»: total acumulado dos períodos de condução entre o final de um período de repouso diário e o início do período de repouso diário seguinte ou entre um período de repouso diário e um período de repouso semanal;

l) «Tempo semanal de condução»: total acumulado dos períodos de condução durante uma semana; (…)

q) «Período de condução»: o período de condução acumulado a partir do momento em que o condutor começa a conduzir após um período de repouso ou uma pausa, até gozar um período de repouso ou uma pausa. O período de condução pode ser contínuo ou não.”

Daqui resulta que o período de condução há-de corresponder à soma dos tempos de condução registados e neles não se contabilizam as interrupções da condução, ainda que a estas não corresponda um tempo de pausa ou repouso.

Com efeito, a regulamentação social comunitária prevê outros tempos que devam ser objeto de registo próprio, para além das pausas e repouso diário ou semanal, como os tempos dedicados pelo motorista a outros trabalhos, ou os tempos de disponibilidade, os quais, não contando como pausa ou repouso, também não se podem considerar de condução. O mesmo se dizendo de outras interrupções da condução que não possam ser enquadradas naquelas categorias por não ter sido comutado o seletor do aparelho para a posição adequada ou por não terem a duração mínima legal para serem consideradas como pausas ou repouso diário, já que, como tempos de condução apenas podem ser contabilizados aqueles que como tal se encontrem registados.

A Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, alterada pelas Diretivas n.ºs 2009/4/CE da Comissão, de 23 de janeiro e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de Janeiro.

Assim, além do mais, como decorre do artigo 1.º, al. a) de tal diploma legal, o mesmo estabelece o regime sancionatório da violação, no território nacional, das disposições sociais constante do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho.

Por seu turno, no seu artigo 19.º prevê as contraordenações respeitantes à violação do citado artigo 7.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006, reportando-se o n.º 1 à violação do limite máximo do período de condução ininterrupta e o n.º 2 ao incumprimento da pausa de modo que esta seja inferior aos limites mínimos de duração previstos na regulamentação comunitária; sendo que o artigo 20.º estabelece as contraordenações respeitantes à violação do artigo 8.º do aludido Regulamento, prevendo nos n.ºs 1 a 4 o incumprimento dos tempos de repouso diário e nos n.ºs 5 e 6 o incumprimento dos tempos de repouso semanal.”[2]

Estabelece o art.º 15 da Lei n.º 107/2009, de 14/09, regime processual das contraordenações laborais e da segurança social (RPCLS), sob a epigrafe Elementos do auto de notícia, da participação e do auto de infração, que:

1 - O auto de notícia, a participação e o auto de infração referidos nos artigos anteriores mencionam especificadamente os factos que constituem a contraordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome e categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas.

2 - Quando o responsável pela contraordenação seja uma pessoa coletiva ou equiparada, indica-se, sempre que possível, a sede da pessoa coletiva e a identificação e a residência dos respetivos gerentes, administradores ou diretores.

3 - No caso de subcontrato, indica-se, sempre que possível, a identificação e a residência do subcontratante e do contratante principal.

Estipula por seu turno o art.º 25, concernente à Decisão condenatória administrativa que:

 1-A decisão que aplica a coima e ou as sanções acessórias contém:

a) A identificação dos sujeitos responsáveis pela infração;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

2 - Da decisão consta também a informação de que:

a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos dos artigos 32.2 a 35.2;

b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso os sujeitos responsáveis pela infração, o Ministério Público e o assistente, quando exista, não se oponham, mediante simples despacho.

3 - A decisão contém ainda a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão.

4 - Não tendo o arguido exercido o direito de defesa nos termos do n.º 2 do artigo 17.º e do n.º 1 do artigo 18.º, a descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão é feita por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infração.

5 - A fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respetivo processo de contraordenação.

Conjugando o art.º 15 com o n.º 4 do art.º 25 resulta claramente que, não tendo o arguido exercido o direito de defesa antes da prolação da decisão administrativa, esta é feita, no capitulo atinente à descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão, por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infração.

A lei apenas exige que o auto contenha especificadamente os factos que constituem a contraordenação, - o dia, a hora, - o local e as circunstâncias em que foram cometidos.

O teor do citado art.º 25º resulta da transposição, quase ipis verbis, do art.º 58º do RGCO.

Interessam-nos, fundamentalmente, as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 58.º do RGCO.

“Sobre o que seja a “descrição dos factos imputados”, a jurisprudência não tem seguido uma orientação uniforme.

Encontramos, de um lado, diversos acórdãos em que foi entendido, aliás com formulações muito semelhantes entre si, que a descrição dos factos imputados na decisão administrativa condenatória não tem de ser feita com o mesmo rigor que numa sentença, tendo-se em vista, ora a forma como a descrição de cada facto é feita, ora a completude dessa mesma descrição.

(…).

Encontramos, em contraponto, jurisprudência que considera que “é preciso descrever o facto, dizendo em que consistiu, designadamente que actos concretos é que consubstanciam a ”prática da infracção”[3], que “uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contra-ordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar”[4], que se impõe, "quer à entidade administrativa, quer ao tribunal a quo, (...) a ”precisa delimitação legal da situação de facto apresentada”, e que “elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória – a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão – são os factos que forem considerados provados e que constituem a base imprescindível à aplicação das normas chamadas a intervir”.[5]

(…)

Cumprida a tarefa de demonstrar que o conceito de “descrição dos factos” é unívoco, trate-se de uma decisão administrativa condenatória, de uma sentença penal, de uma sentença cível ou de uma sentença contra-ordenacional, seguir-se-ia, logicamente, a de definir “facto”. Trata-se, porém, de tarefa ociosa, pois é tema abundantemente tratado noutros lugares. Consabidamente, factos são acontecimentos da vida real, não o sendo conclusões, juízos de valor, conceitos jurídicos ou meras reproduções de fórmulas legais, seja em processo penal ou civil, seja em processo contra-ordenacional e, neste último, seja na decisão administrativa condenatória ou na sentença do tribunal de primeira instância. Como acima referi, não há fundamento para considerar que o conceito de “facto” constante do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, apresenta qualquer especificidade.

O mesmo se diga relativamente à necessidade de a descrição dos factos imputados na decisão administrativa condenatória ser completa, na mesma medida em que tal é exigível em qualquer decisão condenatória, seja ela de que natureza for. Também neste aspecto inexiste fundamento para uma menor exigência no cumprimento dos requisitos formais expressamente previstos na lei apenas porque se trata de decisão proferida por autoridades administrativas, como se estas beneficiassem de algum privilégio de cumprimento facultativo da lei processual. Os requisitos formais que o artigo 58.º do RGCO estabelece têm de ser cumpridos exactamente com o mesmo rigor que é exigido aos juízes no cumprimento dos requisitos que os códigos de processo impõem para as sentenças ou despachos. O direito processual é para ser cumprido por todos, não gozando a Administração Pública de qualquer privilégio neste domínio.[6]

A propósito da falta de imputação de factos imprescindíveis para o perfeccionamento do tipo contra-ordenacional que a administração considera praticado pelo arguido visado, diz-nos Nuno Brandão[7] que “Faz, assim, pleno sentido a censura de que todos os lados é processsualmente dirigida àquelas imputações constantes da decisão/acusação que, na descrição dos factos, fiquem aquém do necessário para o preenchimento do tipo contra-ordenacional, apresentando-se como formalmente insuficientes.

Mais adiante, escreve este autor[8] “Com efeito, cremos que a disposição da alínea c) do n.º 3 do 311.º do cpp, aqui subsidiariamente aplicável, abrange, pelo menos, duas espécies de realidades: aqueles em que o pedaço de vida a que a acusação se refere é manifestamente desprovido de relevância criminal; e aqueles em que, pelo contrário, nele será divisável uma materialidade criminal que, todavia, não foi adequadamente descrita. Na primeira espécie justifica-se que o juiz encerre definitivamente o processo mediante decisão de mérito que julgue improcedente a imputação. Caso em que a rejeição da acusação porá termo ao processo e implicará uma proibição de ne bis idem. Já na segunda espécie deverá ser tomada uma decisão de forma, que corresponda a um não recebimento da imputação, na qual a rejeição da acusação envolverá uma sua “devolução à procedência”, ficando aberta a possibilidade da sua reformulação[9], em princípio, no mesmo processo.

É neste segundo tipo de casos que deverão integrar-se as decisões contra-ordenacionais incompletas a que nos vimos referindo. A decisão condenatória proferida pela administração que deixe de imputar ao arguido certo ponto de facto indispensável para perfeccionar o tipo legal de contra-ordenação pelo qual o condena é uma decisão/acusação inepta. E por isso, quando presente ao tribunal, deve ser por este rejeitada, determinando-se a sua devolução à entidade administrativa que a tomou.

Ainda que não expressamente arguido ou alegado pelo recorrente condenado, este vício deve ser conhecido e declarado pelo juiz, com a consequente remessa do processo à entidade administrativa recorrida, que assim terá oportunidade, se o entender devido, de reformular a decisão condenatória.

Só desta forma será possível compatibilizar a estrutura acusatória da fase judicial do processo de contra-ordenação e o direito de defesa do arguido com a finalidade de prossecução de realização da justiça contra-ordenacional que ao processo é cometida. Na verdade, deparamos aqui com um problema que põe à prova duas garantias fundamentais do arguido:

o direito a juiz imparcial e o direito de defesa. Como vimos, o princípio da imparcialidade do juiz deve inibi-lo de participar no papel de definição do conteúdo da acusação e é decisivo para que a fase judicial deva ser organizada segundo um modelo acusatório. A conjugação desta exigência com o dever de garantir ao arguido a possibilidade de exercício de uma defesa eficaz traduz-se numa proibição de ser o próprio juiz a suprir a falha detectada.”

Concorda-se assim integralmente com a decisão recorrida quando refere “Ora, conforme se refere na sentença proferida no âmbito do Proc. N.º 1415/17.0T8BGC, que foi junta pela recorrente com a impugnação judicial, e cujo entendimento acompanhamos, tratando-se tal infracção (relativa ao incumprimento do tempo de repouso semanal) “de uma infracção complexa, cuja verificação pressupõe a descrição de todos os repousos, semanais e diários, realizados pelo condutor ao longo de, pelo menos, quatro semanas consecutivas, com vista a determinar quando foi gozado o último descanso regular válido (no mínimo de 45 horas) e, a partir dele, se foram, ou não, cumpridos pelo motorista todos os tempos de repouso semanal mínimos, que podem consistir em períodos de repouso regular ou em períodos de repouso semanal reduzidos. A única forma de estabelecer os elementos objectivos da infracção aos tempos de repouso semanal é descrevendo discriminadamente todos os períodos de repouso semanal e diários gozados pelo motorista naquele período de tempo”.

Certo é que, analisada a decisão administrativa (e, bem assim, o auto de notícia), constatamos que a mesma não contém tal descrição circunstanciada dos factos, limitando-se a uma descrição parcial do início e termo de um período de repouso inferior a 45 horas realizado pelo motorista em determinada semana, ou seja, limita-se a concluir que o condutor da arguida efectuou um repouso de 27h08 entre o dia 03.07.2021 e 04.07.2021, tratando-se de um repouso semanal reduzido que tem de ser compensado, desconhecendo-se de que forma se chega a tal conclusão, referindo, então, que até ao final da terceira semana seguinte a tal período de repouso não foi gozado um período de repouso compensatório de 17h52.

Ou seja, a decisão administrativa omite factos que permitiriam extrair tal conclusão e que se traduziriam na concreta menção de todos os períodos de repouso gozados pelo motorista até ao final da terceira semana, pelo que se nos afigura que a mesma não contém a narração dos factos necessários ao preenchimento do elemento objectivo da infracção imputada à arguida (contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelo artigo 8.º do Regulamento n.º 561/2006, de 15 de Março de 2006 e pelos artigos 20.º, n.º 5, al. c) e 14.º, n.º 4 da Lei n.º 27/2010, de 30.08), sendo manifestamente insuficiente a fundamentação de facto quanto ao elemento objectivo da infracção em causa, razão pela qual, a nosso ver, não reúne os requisitos previstos no artigo 58..º, n.º 1, do RGCO e, bem assim, no artigo 25.º da Lei n.º 107/2009, de 14.09”.

Ou como refere, a recorrida na sua resposta ao recurso “Não constando da matéria de facto em que data foi praticado um descanso regular anterior a uma paragem de 27h08 nem o descanso regular posterior, não se pode concluir que essa paragem tivesse tratado de um descanso reduzido que nos termos da lei devesse ter sido compensado; considerar uma paragem de atividade de motorista de 27h08 inferior a 45 horas sem se saber quando foi praticado o descanso regular anterior e posterior a esse período não pode, sem mais, ser considerado um descanso reduzido, sendo meramente conclusiva tal qualificação; a verificação do incumprimento do tempo de repouso semanal pressupõe a descrição de todos os repousos semanais e diários realizados pelo condutor ao longo de, pelo menos, quatro semanas consecutivas com vista a determinar quando foi gozado o último descanso regular válido (no mínimo de 45 horas) e a partir dele, se foram ou não cumpridos pelo motorista todos os tempos de repouso semanal mínimos, que podem consistir em períodos de repouso semanal regular ou em período de repouso semanal reduzido; a falta de descriminação circunstanciada dos factos relativos aos períodos de repouso semanal regular praticado não permite extrair a conclusão de que o período de paragem de 27h08 entre 03.07.2021 e 04.072021 tratou-se de um período de repouso semanal reduzido.  Sendo insuficiente a fundamentação de facto quanto ao elemento objetivo da infração, não estão preenchidos os requisitos previstos nos artigos 58.+, n.º 1 do RGCO e do artigo 25.º da Lei n.º 107/2009” (conc. II, III, IV, V e VI).

Já não se concorda com a decisão recorrida quanto à consequência da falta ou insuficiência da narração dos factos imputados à arguida. Com efeito, o tribunal tem o poder dever de rejeitar a decisão administrativa condenatória formalmente incompleta e devolvê-la à entidade administrativa.

Em suma: procede o recurso, com rejeição da decisão administrativa, e subsequente devolução à entidade administrativa que a proferiu.

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acordam os juízes que integram esta Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Pública, ainda que com fundamento diferente, nos termos acima expostos, e revogar a decisão recorrida na parte em que julgou verificada, por provada, a nulidade da decisão administrativa, absolvendo-se a arguida A..., Lda., da prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punível pelos artigos 8.º do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006 e 20.º, n.º 5, al. c) e 14.º, n.º 4, ambos da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, decidindo, em substituição, rejeitar a decisão administrativa/acusação, devendo o Tribunal de 1ª instância, ordenar a devolução à entidade administrativa que proferiu aquela decisão.

                   Sem custas.

Coimbra, 13 de dezembro de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Jorge Loureiro- adjunto

Paula Roberto- adjunta

Sumário (elaborado pelo relator)

(…).

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original


([1]) Cfr. Ac. do TRC, de 8-02-2023, proc. 168/19.2GTLRA.C1, relator Alice Santos, www.dgsi.pt.

([2]) Cfr. decisão recorrida.
([3]) Ac. do STJ, de 21-12-2006, proc. n.º 06P3201, relator Rodrigues Costa, www.dgsi.pt.
([4]) Ac. do STJ de 06-11-2008 , proc. n.º 08P2804, relator Rodrigues Costa, www.dgsi.pt.
([5]) Ac. do STJ, de 29-01-2007, proc. n.º 06P3202, relator Henriques Gaspar, www.dgsi.pt.
([6]) Vítor Sequinho, O dever de fundamentação da decisão administrativa condenatória em processo contra-ordenacional, E-Book do CEJ, Contraordenações, 2ª ed., pp. 119, 120, 121 e 122.
([7]) O controlo judicial da decisão administrativa condenatória infundada no processo contra-ordenacional, pp. 324-325, https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/1604.
([8]) Obra citada, pp. 325-326.
([9]) Nesta conclusão, Ac. do TRE, de 6-03-2012, proc. 790/10.2TAABF.E1, relator António João Latas, (mas enquadrando a questão na alínea do n.º 3 do artigo 311.º do cpp), Ac. do TRE, de 5-07-2016, proc. 132/13.5TAABF.E1, relator Alberto Borges. Contra, o Ac. do TRL, de 30-01-2007, proc.  10221/2006-5, relator José Adriano, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Cf. ainda Ac. do TC nº 246/2017, relator Cons. José António Teles Pereira,  https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170246.html.  com o seguinte sumário: “decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes”.