Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/09.7TBIDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: IDANHA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 211, 212 CRP, 26 Nº1 LOFTJ, 1, 4 ETAF, 96 CPC
Sumário: 1. - Da interpretação concatenada das normas pertinentes da Constituição e do actual regime do ETAF, resulta que o critério decisivo fulcral para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, não é o cariz de gestão publica ou gestão privada do acto, mas antes depender a decisão do objecto da acção, tal como é delineado pelo autor, da aplicação de normas de natureza público-administrativa e, na acção, o ente publico actue ou invoque poderes de autoridade, de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade.

2. - Se, ao invés, a apreciação do pedido depender, exclusiva ou essencialmente, da interpretação e aplicação de normas de índole jurídico-privada e, na acção, o ente publico actue, no processo, despojado de tais poderes, ou seja, em paridade e com igualdade de armas relativamente à outra parte, emerge a competência residual dos tribunais judiciais comuns.

3. - Verifica-se esta última situação quando uma Junta de Freguesia propõe contra privados acção declarativa, de condenação, com vista ao reconhecimento do seu direito de propriedade relativamente a um bem imóvel, com invocação do instituto da usucapião.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            1.

Junta de Freguesia da (…) intentou contra F (…) e mulher M (…)acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária.

 Pediu.

 A declaração de que o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 2 da Secção B2 da Freguesia de (…) é propriedade da Autora, em virtude de o ter adquirido por usucapião e de que o prédio rústico inscrito sob o artigo 2 Secção B2 da ... corresponde ao artigo matricial ... da mesma Freguesia, bem como a serem os Réus condenados a absterem-se praticar quaisquer actos turbadores do exercício pleno do direito de propriedade sobre o terreno e a absterem-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização pela Autora da parcela de terreno e, por fim, ser ordenado o cancelamento, na respectiva Conservatória, da aquisição a favor dos Réus, feita pela apresentação ...de 26/02/2009, apresentada na Conservatória do registo Predial de Gondomar, e, em consequência, todos e quaisquer registos subsequentes que, porventura, hajam sido feitos, sobre o mencionado bem.

Contestaram os Réus.

Arguindo, além do mais, a incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Idanha-a-Nova, e pugnando pela competência da jurisdição administrativa para conhecer do objecto dos presentes autos.

 Alegando, em síntese que, as questões relativas à delimitação do domínio público passaram a ser da competência dos tribunais administrativos, sendo a relação objecto dos presentes autos uma relação administrativa.

A Autora respondeu à contestação.

Pugnando, além do mais, pela improcedência da excepção deduzida, qualificando a questão objecto dos presentes autos – aquisição da propriedade de um terreno por usucapião – como uma questão de direito privado e, por conseguinte, subtraída à apreciação dos tribunais administrativos.

2.

Foi proferida decisão que:

Julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Idanha-a-Nova, decretando-o incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, cabendo tal competência ao Tribunal Administrativo e, em consequência, absolveu os Réus da instância.

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes nucleares conclusões:

Para a determinação da competência em razão da matéria importa atender ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.

Para, perante eles, se concluir se estamos perante um acto de gestão publica ou de gestão privada.

São actos de gestão publica os actos praticados por pessoa colectiva, no exercício de função publica, com poderes de autoridade e numa posição de superioridade, jus imperi, para prosseguir fins ou interesses de direito publico da pessoa colectiva, legalmente definidos.

O acto de adquirir um prédio rústico por usucapião não é, manifestamente, uma emanação de autoridade de pessoa pública, agindo a entidade publica em igualdade de circunstancias com o particular e regida por normas de direito privado.

O terreno em questão não é do domínio publico, caso em que seria insusceptível de aquisição por usucapião e o facto de a recorrente permitir que os particulares utilizem o prédio não significa que estejamos perante um acto de gestão pública ou de satisfação de um interesse publico, não sendo o caso em apreço um caso de delimitação do domínio publico.

A douta sentença parte de uma errada qualificação do interesse prosseguido pela autora e da qualidade e da forma que intervem, além de uma, também errada, distinção entre actos de gestão privada e publica, distinguindo-os apenas pela entidade que os pratica e não pela natureza dos mesmos.

Para o efeito do artº 1º do ETAF não á no caso em apreço qualquer relação administrativa e não há recurso a qualquer norma de direito administrativo.

Perante o artº 4º do ETAF  os tribunais administrativos não são competentes para dirimir todos e quaisquer litígios onde intervenham entes públicos mas apenas quando estão em causa actividades de natureza administrativa, regidas por normas de cariz administrativo ou quando há emanação do exercício do poder de autoridade..

O caso em apreço também não se subsume na al.g) do artº 4º do ETAF pois que não foi a autora que procedeu à  expropriação do prédio em causa.

10ª

Inexiste, in casu, controversia sobre relações jurídicas reguladas por normas de direito administrativo.

11ª

A Freguesia também é um sujeito de direito privado podendo constituir todo um património desse tipo.

12ª

Sendo que o bem em causa é do chamado domínio privado das Freguesias, podendo ser pertença de um  particular, pois que não é um bem que satisfaça o interesse publico para o efeito de inclusão no artº 4º do ETAF.

13ª

Sob pena de em todas as acções onde intervem uma entidade de direito publico, estar em causa o interesse publico.

Contra-alegaram os recorridos, pugnando pela manutenção do decidido.

Para o efeito, e na essência, disseram que, versus o que sucedia no regime do anterior ETAF – al. e),  do nº1 do artº4º, entretanto eliminada -, actualmente  as acções atinentes à  qualificação dos bens como pertencentes ao domínio público, passam a integrar a clausula geral de atribuição de competência aos tribunais administrativos e que a Junta de Freguesia está munida de “jus imperii” perante os réus meros particulares.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questões essencial decidenda é a seguinte:

Qual o tribunal materialmente competente para dirimir o litigio: o comum ou o administrativo

5.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra.

Havendo ainda que consignar, para uma melhor apreensão e percepção do caso, que a autora alegou:

 Ser proprietária do prédio objecto dos autos desde 1976, ano em que o mesmo lhe foi entregue, na sequencia de expropriação, pelo Ministério da Agricultura e das Pescas, sendo que, desde aquele ano, o tem possuído, de forma continuada, com conhecimento de toda a gente, e sem oposição de ninguém e com ânimo de que possui coisa que por inteiro lhe pertence, pelo que o adquiriu por usucapião.

E que tem procedido à sua gestão, permitindo, como é de conhecimento público, que anualmente, o mesmo seja explorado agrícola e pecuariamente por residentes na dita Freguesia de (…) através de um processo que, consiste na divisão do mesmo em lotes de terreno, de acordo com um regulamento existente, e posterior sorteio dos mesmos pelos residentes em ..., que necessitem de terra para cultivar e pastorear.

6.

Apreciando.

6.1.

 Nos termos do artº 211, nº1 da Constituição:

 «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

E estatui o artº 26º nº1 da Lei 52/2008 de 28.08 (LOFTJ) que:

 «Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Pode assim concluir-se que a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, ela apenas emerge se a questão não tiver de ser apreciada e decidida por outra ordem jurisdicional.

Importando assim, aprioristicamente, indagar  se o caso se subsume em qualquer previsão legal que atribua a competência para a sua decisão às outras ordens de tribunais e só se se concluir que eles a não possuem, emergirá a competência material dos tribunais judiciais.

6.2.

Por outro lado e como constituem doutrina e jurisprudencia pacíficas para o efeito de determinação do tribunal competente, em razão da matéria, deve atender-se ao pedido formulado na acção e à causa de pedir.

No fundo o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma do processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos.

Daí que, in casu, a questão da competência dos tribunais comuns ou dos tribunais administrativos tenha que ser aferida pelo modo como a lide nos aparece delineada pelos autores, quer objectiva quer subjectivamente.

E atender-se ao pedido na sua essencialidade relevante, que não a aspectos circunstanciais ou incidentais suscitadas nos articulados.

Pois que, mesmo que relativamente a estes aspectos seja competente um outro tribunal, vg. o administrativo, o tribunal judicial cobra  competência para eles, desde que competente seja para a questão fulcral.

Na verdade o art. 96, nº1, do C.P.C., estabelece a competência do tribunal competente para a acção para também conhecer das questões incidentais ou prejudiciais que nela se levantem.

Esta extensão da competência visa evitar a suspensão da causa principal até ao julgamento das questões prejudiciais ou incidentais.

Por isso, sendo o tribunal comum o competente, em razão da matéria, para conhecimento da questão principal, será também ele competente para conhecimento das questões conexas, incidentais ou prejudiciais, ainda que para estas, quando isoladamente consideradas, fosse competente o foro administrativo.

Até porque a decisão dessas questões prejudiciais ou incidentais constitui apenas caso julgado formal, não tendo força fora do processo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude, nos termos do nº2 do citado artº 96º – cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 12.01.2010, 14.01.2010 e de 06.05.2010,dgsi.pt.,ps.1337/07.3TBABT.E1.S1, 1450/06.4TBALMA.S1 e 3777/08.1TBMTS.1.

6.3.

Nos termos do artigo 212.°, n.° 3, da Constituição :

 «Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais».

Estatui o artigo 1.º nº1 do ETAF:

«Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais

E prescreve o artigo 4º do mesmo diploma:

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

                a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

                b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

                c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

                d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

                e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

                f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

                g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

                h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

                i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

                j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

                l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

                m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

                n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.»

                (sublinhado nosso).

            6.4.

A Sra. Juíza aduziu como fundamento para a sua decisão o seguinte discurso argumentativo:

«Em anotação a este preceito, (artigo 212.°, n.° 3, da Constituição) Gomes Canotilho e Vital Moreira - “Constituição da República Portuguesa Anotada” 3 ed. pág. 815 – referem que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: primeira, as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; segunda, as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal

Para Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, pág. 79.)
define-se a
relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

No artigo 4.° do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido artigo 1.°, outras em desconformidade com ela.

Importa, porém, salientar que é “preciso, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições”. (Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I págs. 26 e 27.)

O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.

O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público ( Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9 edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258. )…

Ainda na procura de um conceito mais afinado sobre o conceito em apreço Fernandes Cadilha sustenta que: “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n° 1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”(“Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118.).

Conscientes da relatividade dogmática das opções do ETAF nesta matéria, pode então dizer-se, a propósito dos referidos factores de determinação das pretensões jurídicas formuláveis perante a jurisdição administrativa, que o legislador fez prevalecer aí, umas vezes critérios objectivos ou materiais, abstraindo da sua pertinência subjectiva (pública).

Nesses casos, foi a natureza administrativa da relação jurídica, a sua regulação por normas de direito administrativo, o factor determinante da sujeição das pretensões conexas à jurisdição dos tribunais administrativos, levando a incluir no seu âmbito litígios em que não é parte a  administração Pública, uma qualquer Administração Pública, mas órgãos de outros poderes do Estado ou até sujeitos privados a actuar no exercício de poderes ou de funções administrativas (…).

Noutros casos, passa-se o contrário, e é o factor subjectivo ou orgânico, digamos assim, que determina o domínio da justiça administrativa, independentemente da natureza das relações jurídicas litigiosas. O legislador, nessas hipóteses, atribuiu competência aos tribunais administrativos porque se trata de conflitos em que estão envolvidos entes com natureza ou forma jurídico pública, sem se preocupar se os mesmos são regulados pelo direito administrativo ou privado, ou se confluem ambos na sua regulação”  (Maria e Rodrigo Esteves de Oliveira, ob. cit. pág. 27).

Como bem salienta o acórdão do STA, de 11.07.2000, proc. 000318, disponível em www.dgsi.pt em 03.01.2010, citado pelos RR., “A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor ou requerente deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estrib,..”.

Dúvidas não existem que as autarquias locais integram a Administração Pública autónoma de base territorial, desempenhando actividade administrativa de gestão pública ao nível local. Por sua vez, os Réus são sujeitos privados.

Por outro lado, a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio eliminar a cláusula de exclusão de competência dos tribunais administrativos quanto à questão da qualificação dos bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza (anterior al. e), do n.º 1, do art. 4.º, do ETAF).

Ora, com bem salienta Vieira de Andrade, com tal eliminação, a apreciação de tal questão passa a integrar a competência dos tribunais administrativos porque se trata de uma questão de direito administrativo, nos termos e para os efeitos do artigo 1.ºdo citado diploma legal (ob. cit., pág. 130 e 131).

Face à conformação da causa de pedir pela Autora – i.e. possuidora e proprietária do prédio objecto dos autos desde 1976, ano em que o mesmo lhe foi entregue pelo Ministério da Agricultura e das Pescas, sendo que, desde 1976, como é de conhecimento público, a Autora, anualmente, permite que o mesmo (os dois prédios) seja explorado agrícola e pecuariamente por residentes na dita Freguesia de ..., através de um processo que, consiste na divisão do mesmo em lotes de terreno, de acordo com um regulamento existente, e posterior sorteio dos mesmos pelos residentes em ..., que necessitem de terra para cultivar e pastorear – e à natureza jurídica desta, dúvidas não restam que, nos presente autos, a Autora actua com vista à realização de um interesse público e na qualidade de ente público, no exercício de um poder de autoridade, não obstante o conflito em causa ser regulado por normas de direito privado, sendo da competência do Tribunal Administrativo o conhecimento da questão objecto dos presentes autos…»

(sublinhado nosso)

6.5.

Mostra-se acertado, na sua essencialidade relevante, esta explanação teórico-dogmática relativamente à interpretação dos citados artigos atinentes à atribuição de competência material aos tribunais administrativos.

Mas desde já se adianta, e salvo o devido respeito, não ter a Sra. Juíza retirado, no caso concreto, e dados os seus contornos, a ilação mais curial  que é imposta por tais ensinamentos.

Efectivamente e perante o actual teor dos normativos pertinentes supra citados pode dizer-se que: «aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo estes os que se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração.

Sendo que: «são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. Este é, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adopta um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal» - JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, págs. 117 a 118.

Nesta conformidade e numa perspectiva positiva ou afirmativa: «pode afirmar-se que a jurisdição administrativa tem competência para a apreciação dos litígios com origem na Administração pública lato sensu (ou seja, aquela que também é integrada pelas entidades privadas investidas de funções administrativas) e que envolvam a aplicação de normas de direito administrativo ou fiscal ou a prática de actos a coberto do direito administrativo. – Acs. do STJ de 02.07.2009, dgsi.pt., p. 334/09.9YFLSB e de 06.05.2010, p. 3777/08.1TBMTS.P1.S1.

Certo é que o actual ETAF desvalorizou a distinção entre actos de gestão publica e actos de gestão privada para a atribuição de competência material aos tribunais administrativos.

Antes colocando o enfoque  no tipo ou natureza da relação jurídica que está na base do litigio e da natureza das normas que o disciplinam: se é de cariz jurídico-administrativo e regulada por normas de direito administrativo, é o tribunal administrativo o competente.

O que, adrede e meridianamente, emerge do teor dos supra citados normativos,  maxime das partes sublinhadas.

Caso contrário o tribunal administrativo não é o competente, emergindo, assim, a competência residual dos tribunais comuns – Cfr. Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p.p. 09A0078.

O que se compreende, por razões de oportunidade, conexão da matéria com os conhecimentos e as atribuições do julgador e, consequentemente, até celeridade.

Efectivamente:

 «A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”» -  Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p. 08A4090, citando ainda os Acs. do STJ de 27.05.03, p. 03A1376 e de 11.12.03, p. 03B3845.

Do que se pode retirar a seguinte conclusão:

Pelo menos por via de regra, mais do que saber se nos encontramos perante um acto de gestão pública ou de gestão privada, releva o facto de o cerne da acção, tal como delineado pelo autor, ter, ou não, a ver com o chamamento, interpretação e aplicação de regras de cariz administrativo.

Podendo, assim, no limite, o tribunal comum ser o competente, mesmo que o autor actue no âmbito da gestão publica, desde que para a tutela da sua pretensão convoque normas de índole jurídico-privada e se coloque numa posição processual  de igualdade perante a outra parte.

Na verdade…

São actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, "jus imperii", e, regulados por normas de direito público, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público  e visando a satisfação de interesses.

Os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, com sujeição exclusiva a normas de direito privado e despido do seu poder de soberania ou do seu "jus auctoritatis" - Marcello Caetano , Manual, tomo II, 8ª edição, p.1134; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1º, 10ª ed., p. 648 e 649 e Ac. S.T.A. de 24/01/2002, p. nº. 048274.

6.6.

No caso vertente.

 A julgadora concluiu que:  «dúvidas não restam que, nos presente autos, a Autora actua com vista à realização de um interesse público e na qualidade de ente público, no exercício de um poder de autoridade, não obstante o conflito em causa ser regulado por normas de direito privado, sendo da competência do Tribunal Administrativo o conhecimento da questão objecto dos presentes autos…»

Ora não é exactamente assim.

Primus certo é que a autora, pretendendo ver declarado que é proprietária de um determinado bem imóvel por força do instituto da usucapião, naturalmente que invocou apenas as regras pertinentes que são, obviamente, apenas de natureza jurídico privada e que constam desde logo no CC.

Secundus, e aqui versus o entendido na 1ª instancia e pelos recorridos, é evidente que, tal como a autora configurou a causa nos seus elementos objectivos: pedido, causa petendi e normas aplicáveis, não pode ela apresentar-se numa posição de superioridade relativamente aos réus decorrente do exercício de um poder público, do "jus imperii".

Antes, nos autos, ela se devendo conformar, tanto em termos processuais como substantivos, a uma posição de igualdade ou paridade com os demandados.

Tertium porque, bem vistas as coisas e no rigor dos princípios, não trata a acção, como defendem os recorridos, de um caso de qualificação dos bens como pertencentes ao domínio público, mas antes e apenas da estabilização na esfera jurídica patrimonial da autora de um bem que ela entende sempre lhe ter pertencido desde 1976, e, assim, integrar, desde há muito, tal domínio.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda e se conceda que algum interesse publico haverá na  integração ou consolidação do prédio na esfera jurídica da autora, tal não é o bastante para se concluir pela bondade da posição do tribunal a quo, pois que, para a consecução de tal desiderato, não foram aduzidas razões ou normas de cariz publico-administrativo mas apenas e exclusivamente de natureza jurídico privada.

É assim, evidente que neste circunstancialismo é o juiz do tribunal comum o que se encontra em melhor posição para, com mais propriedade, julgar o caso.

O que, como supra se viu, é factor determinante, para a afectação da decisão de uma certa questão jurídica a um determinado tribunal mais ou menos especializado na matéria versada na acção.

            Em suma, no caso em apreço, embora a autora seja pessoa colectiva de direito público, não está em questão, na acção, qualquer acto por ela praticado com poderes de autoridade nem a relação que se discute é regulada, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal, antes se  situando no plano e no âmbito de um conflito de direito privado regido pelas regras atinentes e pertinentes.

Tanto basta para que a competência seja atribuída ao tribunal recorrido.

            Procedem, assim, in totum, a  argumentação e a pretensão da recorrente.

6.7.

Sumariando:

I- Da interpretação concatenada das normas pertinentes da Constituição e do actual regime do ETAF, resulta que o critério decisivo fulcral para a atribuição da competência material aos tribunais administrativos, não é o cariz de gestão publica ou gestão privada do acto, mas antes depender a decisão do objecto da acção, tal como é delineado pelo autor, da aplicação de normas de natureza publico-administrativa e, na acção, o ente publico actue ou invoque poderes de autoridade, de “jus imperii” que o coloquem numa posição de superioridade.

II- Se, ao invés, a apreciação do pedido  depender, exclusiva ou essencialmente, da interpretação e aplicação de normas de índole jurídico-privada e, na acção,  o ente publico actue, no processo, despojado de tais  poderes, ou seja, em paridade e com igualdade de armas relativamente à outra parte, emerge a competência residual dos tribunais judiciais comuns.

II- Verifica-se esta última situação quando uma Junta de Freguesia propõe contra privados acção declarativa, de condenação, com vista ao reconhecimento do seu direito de propriedade relativamente a um bem imóvel,  com invocação do instituto da usucapião.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, declarar a competência material do tribunal recorrido, com as legais consequências.

Custas pelos recorridos.


Carlos Moreira (Relator)
Teresa Pardal
Moreira do Carmo