Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
187/11.7GBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA DA INFRACÇÃO
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 153º E 155º, DO C. PENAL
Sumário: O crime de ameaça agravada tem natureza pública e, como tal a desistência da queixa é ineficaz.
Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I. Relatório.

1.1. No decurso da audiência aprazada nos autos supra epigrafados, a M.ma Juiz que à mesma presidia proferiu despacho cujo (parcial) teor passamos a reproduzir:

«O arguido vem acusado da prática de dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1, 1, do Código Penal, dois crimes de perturbação da vida privada, previstos e punidos pelo artigo 190.º, n.º 2, do Código Penal, e um crime de ameaça na forma agravada, previsto e punido, pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Atento o disposto nos artigos 188.º e 198.º do Código Penal, os crimes de injúria e de perturbação da vida privada revestem, respectivamente, natureza particular e semipública.

Por seu turno, é nosso entendimento que o artigo 155.º do Código Penal estabelece apenas uma agravação dos tipos legais ínsitos nos artigos 153.º e 154.º do mesmo diploma, não prevendo, portanto, uma incriminação autónoma. Acresce que nos referidos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), está em causa a tutela dos mesmos bens jurídicos. Assim sendo, consideramos que o crime em apreço mantém a natureza semipública (cfr. o artigo 153.º, n.º 2, do Código Penal).

Do exposto resulta que os crimes por que o arguido vem acusado admitem desistência de queixa. Assim, por serem legalmente admissíveis, tempestivas e apresentadas por quem tem legitimidade para o efeito e dada a não oposição do arguido, homologo as desistências, extinguindo-se o procedimento criminal (artigos 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2, do Código Penal, 48.º, 49.º, 51.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).»

1.2. O Ministério Público, porquanto inconformado com o segmento de tal despacho que determinou a extinção do procedimento criminal respeitante ao indiciado crime de ameaça na forma agravada, interpôs o presente recurso extraindo da motivação correspondente esta ordem de conclusões:

A. Ao contrário do que sucedia antes da reforma penal de 2007, o crime de ameaças agravado é de natureza pública, assim se reforçando a protecção jurídica conferida pela lei aos bens jurídicos lesados por uma conduta dotada de um especial acréscimo de ilicitude.

B. A técnica legislativa utilizada não deixa dúvidas quanto à alteração da sua natureza jurídica, prevendo-se apenas para o crime base do art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal, a necessidade de apresentação de queixa para legitimar processualmente a intervenção do Ministério Público.

C: Nada se fazendo constar a esse título do art.º 155.º, que abrange o tipo agravado de ameaças e de coacção, impõe-se concluir que em causa nesta norma estão crimes públicos.

D. O mesmo sucede com outros tipos legais de crime, como por exemplo o furto e o dano [cfr. art.ºs 203.º e 204.º, para o furto; 212.º e 213.º, para o dano], relativamente aos quais não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à natureza pública dos crimes qualificados.

E. Sendo este crime de natureza pública a desistência de queixa apresentada nos autos pelo ofendido, nesta parte, é irrelevante e, portanto, inoperante.

F. Subsequentemente, não poderia a mesma ter sido homologada e em consequência declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido por este crime.

G. Decidindo pela forma em que o fez, a M.ma Juiz a quo fez incorrecta interpretação da lei, violando o disposto nos art.ºs 48.º, do Código de Processo Penal; 116.º, 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), estes todos do Código Penal.

Terminou pedindo a revogação do questionado segmento do despacho recorrido, substituindo-se por outro que julgando ineficaz a desistência da queixa apresentada pelo ofendido, consequentemente determine que os autos prossigam seus termos com a realização da audiência de julgamento atinente ao respectivo objecto processual.

1.3. Notificados os demais sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto pelo art.º 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nenhum deles respondeu

1.4. Proferido despacho admitindo o recurso interposto, cumpridas as formalidades devidas, remeteram-se os autos para esta instância.

1.5. Aqui, com vista nos termos do art.º 416.º, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente ao seu provimento, e, corolário, à revogação do aludido excerto do despacho recorrido.

1.6. No âmbito do subsequente art.º 417.º, n.º 2, o arguido não respondeu.

1.7. Aquando do exame preliminar dos autos, ut n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se que nenhuma circunstância determinava a apreciação sumária do recurso, ou obstava ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir, com a recolha de vistos (o que se verificou) e submissão a conferência.

Cabe agora ponderar e decidir.


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II. Fundamentação.

2.1. Como se mostra por demais consabido, o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 335, bem como a jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. de 28 de Abril de 1999, in CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência aí citada -], mas isto sem prejuízo todavia das de conhecimento oficioso.

In casu, e porquanto se não vislumbra emergir fundamento conducente a tal intervenção oficiosa, atentando às conclusões mencionadas, o thema decidendum reconduz-se a aquilatar da natureza pública (versão do recorrente) ou semi-pública (versão assumida pelo despacho recorrido) do crime de ameaça previsto e punido através das disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal e, consequentemente, do destino a dar ao despacho prolatado.

2.2. Com data de 26 de Junho passado, no âmbito do recurso n.º 207/10.2 GAPMS.C1, do Tribunal Judicial de Porto de Mós [1.º Juízo], prolatámos acórdão ajuizando de questão idêntica à ora elencada. Nenhum elemento distinto sobrevém, quer nos autos ora em análise, quanto nos normativos convocáveis, donde que, por economia processual, passemos a remeter para o que então e aí escrevemos, mormente:

«2.2. Como Adjunto, assinámos aresto decidindo da problemática ora ajuizada, concretamente no processo deste Tribunal n.º 550/09.3 GCAVR.C1, acessível em www.dgsi.pt. Porque nele se rebate já o entendimento que a M.ma Juiz a quo colige em seu favor – Pedro Daniel dos Anjos Frias, in Revista Julgar n.º 10, págs. 39 a 57 –, permitimo-nos elencar o então consignado pelo seu respectivo Ex.mo Desembargador Relator, Dr. Jorge Dias:

«O objecto do recurso do Ministério Público incide sobre a questão de saber se é ou não admissível a homologação da desistência de queixa, quando o arguido está acusado de crime de ameaça agravado p. e p. nos arts. 153 n.º 1 e 155 n.º 1-a) do Código Penal, cometido em 7/10/2009.

Importa, pois, determinar se o crime de ameaça agravado imputado ao arguido é de natureza pública ou semi-pública.

Na vigência do Código Penal na versão original e posteriores alterações, mas antes da alteração operada pela Lei 59/2007, o crime de “ameaça” e o de “ameaça agravado” eram de natureza semi-pública (artigo 155 n.º 3 do CP na versão original e artigo 153 n.º 3 do CP na versão revista em 1995), o que significava que dependiam de queixa do respectivo ofendido/queixoso e poderiam ser objecto de desistência dessa mesma queixa até à publicação da sentença em 1.ª instância.

Antes da reforma aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, a forma qualificada do crime de ameaça (que consistia na circunstância de a ameaça ser com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos) estava prevista na mesma norma que previa a forma simples ou base do tipo legal.

A ratio da agravação consistia, como diz Taipa de Carvalho in anotação ao art. 153, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 345., “na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção directa entre a gravidade do crime objecto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação.”

Por isso, concluiu que essa agravação se traduzia num crime de ameaça qualificado pela gravidade do crime ameaçado.

Assim, o tipo base ou simples e o tipo qualificado do crime de ameaça (previstos na mesma norma) tinham natureza semi-pública antes da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9.

Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, o legislador entendeu alterar a natureza do crime de ameaça agravado ou qualificado.

Com efeito, enquanto o crime base (previsto no artigo 153 do CP na versão de 2007) manteve a natureza semi-pública (ver n.º 2 do mesmo artigo), o mesmo já não sucedeu com o crime qualificado (previsto agora também no artigo 155, onde não se faz qualquer referência à dependência de queixa para o procedimento criminal).

Actualmente e, desde a reforma de 2007, no artigo 155 prevêem-se as agravantes aplicáveis quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção.

Tais circunstâncias (agravantes que, no caso do n.º 1, revelam “um maior desvalor da acção”, reportando-se quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coacção), traduzem um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental.

Nessa medida, verificando-se qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155 do CP, após a reforma de 2007, o crime de ameaça (ou de coacção) passa a ser qualificado.

Tratando-se de crime qualificado obviamente que é distinto, diferente do tipo fundamental, percebendo-se que o legislador lhe confira diferente natureza, à semelhança do que sucede com outros tipos legais (v.g. artigos 203 e 204, 212 e 213, 143 e 144, do CP).

O legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa).

De resto, não existe qualquer outra norma a conferir a natureza de crime semi-público (ou a fazer depender de apresentação de queixa o procedimento criminal) no caso de se verificar a agravação prevista no artigo 155 do CP, na versão de 2007.

(…)

Ao arguido foi imputado o crime de ameaça agravado ou qualificado previsto nos artigos 153 n.º 1 e 155 n.º 1-a) do CP, que é distinto do crime base previsto no artigo 153 do mesmo código.

Tal crime qualificado não depende de participação, sendo de natureza pública.

Nessa medida é irrelevante a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado aqui em apreço.

No mesmo sentido, entre outros, Acórdãos da Rel. Porto, de 1/7/2009, proferido no processo n.º 968/07.6 PBVLG.P1, e de 6/1/2010, proferido no recurso n.º 540/08.3 TAVLG.P1.

No mesmo sentido, Ac. da Rel. Guimarães, de 15-11-2010, no processo 343/09.8 GBGMR.G1, com o sumário: “O crime de ameaça agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, ambos do C. Penal passou, após a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, a ter natureza pública.”

Nesse aresto se refere, sempre que há um crime “simples” e um “qualificado” ou “agravado”, «se o legislador pretende atribuir natureza “semi-pública” ao simples e “pública” ao qualificado, coloca a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo simples e antes do qualificado, leva-nos a concluir que se trata de crime público. É assim nas ofensas corporais (arts. 143 e 144), no furto (arts. 203 e 204), no abuso de confiança (art. 205 n.ºs 1, 3 e 4) e na burla (arts. 217 e 218). Quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, é no fim do respectivo capítulo que faz a concretização – por exemplo, arts. 178 (para os crimes sexuais) e 187 (para os crimes contra a honra)».

No mesmo sentido, Ac. da rel. Lx de 13-10-2010, proferido no Proc. 36/09.6 PBSRQ.L1 3.ª Secção.

Do exposto entendemos não ser de sufragar a posição assumida no despacho recorrido e sustentada com fundamento na opinião de Pedro Daniel dos Anjos Frias, in Revista Julgar n.º 10, pág. 39 a 57.

É certo que para a reacção penal mais gravosa prevista no art. 155 do CP, será sempre necessário o preenchimento do tipo matricial do art. 153 n.º 1. Mas o mesmo acontece em relação ao crime de furto simples e furto qualificado, arts. 203 e 204, referindo aquele os elementos objectivos do tipo e limitando-se este a referir, “quem furtar”, sendo que necessariamente tem de ser “coisa móvel alheia”, o mesmo em relação ao dano simples e qualificado, arts. 212 e 213 em que em ambos se reproduzem os mesmo elementos do tipo, apenas acrescentando este as qualificativas e como em relação ao dano, no crime de ofensa à integridade física simples e grave, arts. 143 e 144 do CP.

Por outro lado, verifica-se que na ofensa à integridade física simples, art. 143 n.º 2 do CP, não é possível a desistência da queixa, já que o procedimento criminal não depende de queixa, “quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções e por causa delas” e, uma das qualificativas da ameaça, art. 155 n.º 1 al. c) do CP, é esta concretizar-se contra as pessoas referidas na al. l) do n.º 2 do art. 132, no exercício das suas funções ou por causa delas, sendo que essas pessoas são, entre as demais indicadas na referida alínea l), “agente das forças ou serviços de segurança”, “agente de força pública”, no exercício das suas funções ou por causa delas.

Ora, a razão para que a ameaça agravada seja crime público, nesta hipótese será a qualidade do sujeito ameaçado, e esta será a razão para que “não se possa dar relevância à vontade da vítima”.

Situação idêntica à da qualificativa da al. b) do n.º 1 do referido art. 155 do CP, em que a ameaça é praticada “contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”. Visa-se uma maior protecção do sujeito ameaçado, dada a sua especial vulnerabilidade.

E, não faria qualquer sentido que a ameaça qualificada pelas als. c) ou b), do art. 155 n.º 1 do CP fossem insusceptíveis de desistência da queixa e, a qualificada pela al. a) tivesse tratamento jurídico diferenciado.

Sendo que estas qualificativas das als. b) e c) do art. 155 inexistiam como agravantes da ameaça, antes da alteração operada pela Lei 59/2007.»

2.3. O entendimento sufragado no Ac. mencionado tem merecido sucessivo e unânime (se bem sabemos) acolhimento, como nos dão nota o recurso interposto e o parecer do Ex.mo PGA, exemplificativamente.

Em reforço, apenas coligimos – pela proficiência da argumentação utilizada –, um outro mais recente, proferido no âmbito do recurso então pendente no Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 16/11.1 GAMAC.E1, acedido em www.dgsi.pt, e, no qual, a 15 de Maio de 2012, a Ex.ma Desembargadora Relatora Ana Bacelar Cruz, após escrever – «De forma muito simples, pode dizer-se que há crimes cuja perseguição está dependente de queixa, outros de queixa e de acusação particular e outros em que a lei nada exige.

Os primeiros são os denominados crimes semipúblicos, os segundos crimes particulares e os últimos crimes públicos.

Relativamente aos primeiros, para que o Ministério Público, titular da ação penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou pessoa (s) a quem e lei confira legitimidade para tal, apresente queixa – artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Quanto aos crimes particulares, a legitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal também está dependente de queixa do ofendido ou de quem para tal tenha legitimidade mas, para além disso, aquele tem que constituir-se assistente e deduzir acusação particular – artigo 50.º do Código de Processo Penal.

Por fim e relativamente aos crimes públicos, o Ministério Público, por sua iniciativa, tem legitimidade para promover a ação penal.

No artigo 116.º do Código Penal, que se reporta, também, à desistência da queixa diz-se, no n.º 2, que «O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.»

De onde decorre que a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela.

Relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa não produz o efeito de extinguir o procedimento criminal.

Na versão do Código Penal resultante da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça simples continua a estar previsto no artigo 153º, onde se mantém o procedimento criminal dependente de queixa [n.º 2]. O crime de ameaça agravada passou a estar previsto no artigo 155.º, onde nada se diz quanto ao procedimento criminal.

Temos como certa a opção por técnica legislativa que consiste em colocar a menção de que “o procedimento criminal depende de queixa” após a definição do tipo base e antes do qualificado, ou então em artigo autónomo quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie. E não vislumbramos razão para suspeitar ou concluir que tal procedimento foi alterado na situação que nos ocupa – previsão do artigo 155.º do Código Penal» –, mais avocou o expendido num outro aresto ainda desse mesmo Tribunal – recurso n.º 2140/08.9 PAPTM.E1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Edgar Gouveia Valente, a 12 de Novembro de 2009, também acessível em www.dgsi.pt – nos seguintes termos:

«Relativamente à questão de saber a quem compete a iniciativa (o impulso) de investigar a prática de crime e de a submeter ou não a julgamento, distingue a doutrina três tipos de delitos, a saber: “dizem-se públicos aqueles delitos relativamente aos quais o M. P. exerce a acção penal incondicionalmente, i.e, sem dependência de denúncia ou acusação dos particulares. São particulares latu sensu, os delitos cuja acusação pública terá de ser ou precedida de denúncia particular ou acompanhada de acusação particular (…). A denúncia e a acusação particulares são, pois, nestes casos condições de procedibilidade.” [2].

Em termos legais, constituem, hoje, as mencionadas condições de procedibilidade, a queixa (art.º 49.º n.º 1 do CPP), quanto aos crimes semi-públicos, bem como esta mesma queixa, a constituição de assistente e a dedução de acusação particular (cfr. art.º 50.º, n.º 1 do CPP), quanto aos crimes particulares.

“O fundamento da existência de crimes particulares lato sensu reside, por um lado, em que certas infracções (por exemplo, certas formas de ofensas corporais, danos, furtos, injúrias) não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão – v.g. atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir automaticamente contra o infractor. Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que o assunto não merece ser apreciado em processo penal.

Complementa a consideração anterior a ideia de que em certas infracções (…) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse do particular, considerado em si mesmo e no reflexo que assume em interesses públicos.” [3].

In casu, no despacho recorrido interpreta-se o art.º 155.º do C. Penal como uma norma definidora apenas de um conjunto de circunstâncias agravantes, não constituindo autonomamente qualquer crime, o que implica que se mantêm intocadas, quanto ao impulso processual, as naturezas originárias dos crimes abrangidos, ou seja, a natureza semi-pública do crime de ameaça (cfr. art.º 153.º, n.º 2 do C. Penal) e pública do crime de coacção (cfr. art.º 154.º, n.º 4 do C. Penal, a contrario).

A questão que se coloca é: será tal interpretação de seguir?

Segundo o art.º 9.º, n.º 1 do C. Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei , mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Segundo o n.º 2 do mesmo normativo, não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Como nos diz José de Oliveira Ascensão [4] o ponto de partida da interpretação tem de estar na letra, que, porém, não é só o ponto de partida mas também um elemento irremovível de toda a interpretação (podemos dizer, de outro modo, que toda a interpretação começa com as palavras).

A técnica que o CP segue para apontar, quanto ao impulso processual, a natureza do crime, é a de, em caso de omissão à necessidade de queixa ou acusação particular [5], ter aplicação plena o princípio da oficialidade, ou seja, tratar-se de um crime público.

Assim, uma interpretação (meramente) literal do art.º 155.º do C. Penal, aponta para a natureza pública do crime de ameaça agravado, dada a inexistência de norma ressalvando a necessidade de queixa ou acusação particular.

Porém, se entendermos que o art.º 155º apenas define atomisticamente um conjunto de circunstâncias agravantes, mantendo-se o tipo-base do crime de ameaça no art.º 153.º, também resulta indiscutível que, assim, terá de se considerar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado (por força do disposto no art.º 153.º, n.º 2 do C. Penal).

Deste modo, o elemento literal da interpretação é insuficiente para nos dar uma resposta sobre a questão em causa.

Será que o pensamento legislativo (cfr. o acima mencionado art.º 9.º, n.º 1 do C. Civil) permitirá esclarecer qual a interpretação correcta do referido binómio normativo (art.º 153.º/ 155.º)?

Mostra-se hoje obsoleta a concepção subjectiva do pensamento legislativo que o identificava com os trabalhos preparatórios, conferindo-lhes quase a autoridade duma interpretação autêntica [6].

De qualquer forma, e uma vez que (apesar de não decisivo) se trata de um elemento interpretativo relevante, sempre diremos que a Exposição de Motivos da Proposta de Lei de Revisão do Código Penal não esclarece cabalmente este ponto interpretativo concreto:

Com efeito, quer o despacho recorrido (a fls. 176 dos autos), quer a motivação do recurso (a fls. 211/2 dos autos) se referem ao mesmo parágrafo daquela, onde se refere a intenção expressa de equiparar o regime do crime de ameaça agravada ao regime do crime de coacção agravada.

Porém, como se afirma no despacho recorrido, “nem uma palavra” é dita quanto à natureza dos dois tipos fundamentais, quanto à questão do impulso processual.

Já o ponto 2, parágrafo 1 da mencionada Exposição de Motivos (mencionado na motivação de recurso a fls. 212) nos parece um pouco menos inócuo, se bem que não determinante.

Com efeito, afirmar que uma das orientações da reforma é o reforço da tutela dos destinatários previstos nas alíneas b) e c) do nº 1 do art.º 155.º do C. Penal, poderá constituir um indício quanto à natureza dos crimes em causa.

É hoje dominante a tese que identifica o pensamento legislativo com a intenção objectiva da lei:

«A intenção objectiva são os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar e que constituem a sua razão de ser; a interpretação funcional visa a descobrir essa razão da norma, ou seja, o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar.» [7]

Em sede específica de direito penal, deve hoje entender-se a querela da escolha da interpretação objectiva / subjectiva da lei (a que acima aludimos) nos seguintes termos:

A solução correcta está no meio termo: há que dar razão à teoria objectiva de que não são decisivas as efectivas representações (que normalmente nem se podem averiguar) das pessoas e grupos que participaram no processo legislativo; por outro lado, tem razão a teoria subjectiva segundo a qual o juiz está vinculado à decisão valorativa político-jurídica do legislador histórico.

A hipótese de que existe um “sentido objectivo” da lei, independente daquela decisão, do ponto de vista lógico, não é comprovável, sendo que a adopção de tal hipótese como válida, ou seja, alheada dos objectivos originários da lei, realmente consistiria em prosseguir, no plano interpretativo, concepções subjectivas do juiz, assim se depreciando o princípio da legalidade. [8]

Procurando, assim, no caso dos autos, o referido meio termo interpretativo:

Como é dito (com alusão especificada à evolução histórica do respectivo normativo) no despacho recorrido, até à reforma penal de 2007, o crime de ameaça (s) agravado sempre teve (desde o Código Penal de 1982), pacificamente, natureza semi-pública.

Logo, devemos interrogar-nos – tal reforma introduziu uma alteração da natureza do crime de ameaça agravada, no sentido de o passar a público?

Permitimo-nos recordar que, tal como Günther Jakobs [9] afirma, «a interpretação sistematicamente adequada supõe um sinal de que se acertou com a – patente ou meramente latente – “vontade da lei”».

Quanto à circunstância agravante prevista no art.º 155.º, n.º 1, alínea c), entendemos que o bem jurídico protegido (a liberdade pessoal) transcende, na sua essência, a esfera individual, pretendendo-se evitar a possibilidade de interferência no exercício de funções que prosseguem interesses públicos.

Nessa medida, não é o sujeito individual visado o ofendido, mas sim o Estado, entidade de visa a prossecução daqueles interesses.

Uma vez que é o Estado o verdadeiro ofendido neste tipo de crimes, devem os mesmos revestir natureza pública. [10]

Idêntico raciocínio se deve efectuar quanto à necessidade de defesa das pessoas particularmente indefesas referidas na alínea b) do citado normativo, entendendo-se que tal deve ser tarefa do Estado.

Tudo, assim, indica que o art.º 155.º não traduz, ao invés do que se defende no despacho recorrido, apenas uma diferente “arrumação sistemática” de circunstâncias agravantes, mas um verdadeiro tipo qualificado, com diferente natureza relativamente ao tipo básico.

Com efeito, existem no C. Penal diversos exemplos de tipos de crime que, na sua forma simples/básica têm natureza semi-pública, ao passo que na forma agravada têm natureza pública. (furto simples vs qualificado; ofensa à integridade física simples vs qualificada).

Assim, entendemos que o legislador, ao eleger a fórmula de prever numa só norma os crimes agravados de coacção e de ameaça, não fazendo qualquer alusão à necessidade de queixa, quis conferir-lhes natureza pública. [11]

Nestes termos, entendendo-se que o crime de ameaça agravada tem natureza pública, as desistências de queixa constantes dos autos são ineficazes, estando legalmente vedada a sua homologação, atento o disposto no artigo 155.º do Código Penal e art.º 48.º, bem como 49.º e 51.º (a contrario) do Código de Processo Penal.

(…)

_____________________________
[4]
In O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1980, páginas 353/354.

[5] Quando entende qualificar o tipo de crime como semi-público ou particular, o C. Penal fá-lo em número autónomo da descrição da factualidade típica, após esta (art.º 203.º, n.º 3), ou em artigo diverso reportado aos crimes previstos no Capítulo em causa (cfr. art.º 188.º) ou a um conjunto de crimes (art.º 178.º, números 1 e 2).

[6] Neste sentido, Francesco Ferrara in Interpretação e Aplicação das Leis (tradução de Manuel de Andrade), 4.ª edição, Coimbra, 1987, página 145.

[7] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil, Volume I, Lisboa, 1987, página 39.

[8] Seguimos, numa tradução livre, o entendimento de Claus Roxin, in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas, 1997, página 150/1.

[9] In Derecho Penal, Marcial Pons, 1995, página 94.

[10] Neste sentido, quanto ao regime anterior ao C. Penal de 1982, vide José António Barreiros in Processo Penal – 1, Almedina, Coimbra, 1981, página 457.

[11] Neste mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 01.07.2009 no âmbito do Processo 968/07.6 PBVLG.P1 disponível em http://www.dgsi.pt : “o art.º 155.º não contém norma que estabeleça a natureza semi-pública dos tipos qualificados de ameaça e de coacção e também não se encontra norma autónoma que, referida ao art.º 155º, a estabeleça, pelo que, na falta dessa expressa consagração, tem de concluir-se que os crimes de ameaça e de coacção qualificados, em função das circunstâncias elencadas nas alíneas do n.º 1 ou em função do resultado previsto no n.º 2, têm a natureza de crimes públicos.”»

Confortados pois nas peças citadas logo se alcança o teor da decisão reclamada.


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III. Dispositivo.

Perante todo o exposto, decidimos revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, julgando irrelevante a desistência da queixa relativa ao assacado crime de ameaças agravado, ordene o prosseguimento dos autos, com realização do respectivo julgamento.

Sem tributação.


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Brízida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves