Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA PÊGO BRANCO | ||
Descritores: | CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO SUSPENSÃO DA DECISÃO | ||
Data do Acordão: | 03/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2) | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 148º E 169º, N.º 4, DO CÓDIGO DA ESTRADA; 101º A 103º DO CÓDIGO PENAL | ||
Sumário: | Não é legalmente admissível a suspensão da execução da cassação do título de condução ou a sua substituição pela frequência de formações no âmbito da prevenção rodoviária ou mesmo pela obrigação de obtenção de novo título. | ||
Decisão Texto Integral: | Relatora: Cristina Branco 1.ª Adjunta: Alcina Ribeiro 2.ª Adjunta: Alexandra Guiné * Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º 1455/23.0T9CBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, AA impugnou judicialmente a decisão administrativa da ANSR – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que lhe determinou a cassação do seu título de condução, ao abrigo do disposto no art. 148.º, n.ºs 4, al. c), e 10, do C. Estrada. 2. Por despacho proferido nos termos do art 64.º, n.º 2, do RGCOC[1], foi julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão administrativa proferida. 3. Inconformado com essa decisão, interpôs o arguido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual, sem formular conclusões, se pronuncia pela sua improcedência. 5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11077954), no qual acompanha o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância, ao qual acrescenta doutas considerações, e se pronuncia pela improcedência do recurso. 6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu o recorrente, reafirmando o teor da sua peça recursória e requerendo a aplicação ao caso da amnistia de infracções e perdão de penas prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08. 7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC[2]), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. In casu, de acordo com as suas conclusões, o recorrente coloca a questão de saber se a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º, todos da CRP, assim como nos arts. 101.º a 103.º, ambos do CP, devendo ser substituída por outra que admita a suspensão da decisão de cassação do título de condução, sujeita à condição de o recorrente frequentar acções de formação ou nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, ou, assim não se entendendo, que seja autorizado a conduzir somente para levar os seus pais, idosos, ao médico. * 2. Da decisão recorrida Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da decisão recorrida. * Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, constituem factos repetitivos, conclusivos ou contêm factualidade irrelevante para a presente decisão.* (…)* 3. Da análise dos fundamentos do recurso De acordo com as regras de precedência lógica importará, em primeiro lugar, apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão. Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. Por fim, das questões relativas à matéria de direito. * Antes de mais, importará sublinhar, que, em face do que dispõe o n.º 1 do art. 75.º do RGCOC[3], em matéria contra-ordenacional o Tribunal da Relação tem o seu poder de cognição limitado à matéria de direito, funcionando como Tribunal de revista ampliada, ou seja, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o art. 410.º do CPP, dado que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional (cf. arts. 41.º, n.º 1, e 74.º, n.º 4, ambos do RGCOC). O que significa que está arredada do conhecimento do tribunal de recurso a impugnação ampla da matéria de facto a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP, restando a este Tribunal da Relação a avaliação dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do mesmo diploma (a chamada revista alargada), que têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
Inexiste questão que possa obstar ao conhecimento do mérito da decisão, e da leitura do texto da sentença recorrida, concretamente dos factos provados e não provados e da fundamentação da convicção formada, constata-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão incongruente, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum na análise e valoração das provas disponíveis, tendo a convicção expressa pelo tribunal suporte razoável nas mesmas, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar uma segura solução de direito. Não ocorre, pois, qualquer dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP (que o recorrente também não invoca), pelo que a matéria de facto terá de considerar-se definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido.
Analisemos, então, as questões de direito suscitadas. O recorrente alega, em síntese, que «o caso sub judice encontra “no seio daquilo que sempre foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, a “automaticidade” de uma condenação que é efectivamente sujeita à indefesa”, motivo pelo qual a decisão recorrida é inconstitucional por violação dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P.». «[Q]ue à decisão da ANSR que se impugnou, e à sentença de que agora se recorre, bem como ao regime apelidado de “carta por pontos” será de aplicar os arts. 101.º a 103.º do Cód. Penal uma vez que o sistema sancionatório em causa se apresenta como “misto no sentido (...) indicado (contra-ordenações mais crimes) e sempre o seria subsidiariamente mesmo que o sistema se limitasse às contraordenações do CE». E ainda que «“não se vê como – sem gravíssima violação do “direito ao juiz” e, logo, dos artigos 20º, nº 1 e 202º da CRP – possa um Director-Geral, Director ou Presidente de um instituto público, seja ele qual for, aplicar uma medida de segurança penal sequencial à prática de crime e/ou contra-ordenação.”». Concluindo que «tendo a ANSR decidido pela cassação do título de condução ao recorrente – “entidade incompetente para sobre o tema decidir”, cfr. Ac., cit. –, e tendo a sentença recorrida mantido na íntegra aquela decisão, esta sentença gerou, manteve, a supra indicada inconstitucionalidade.»
Como se vê pelas conclusões da sua impugnação judicial, transcritas na decisão agora recorrida, estas questões foram suscitadas nessa mesma impugnação e sobre elas se pronunciou o Tribunal recorrido, nos seguintes termos (transcrição): * O recorrente propugna ainda que a ter-se como determinada tal cassação a mesma não seja efectiva, ou seja, que a decisão de cassação do titulo de condução deverá ser suspensa na sua execução atendendo à imprescindibilidade do título de condução para a prossecução da sua atividade profissional e à concomitante necessidade de defesa da dignidade humana com direito ao trabalho e auferir rendimentos.Entende, pois, o recorrente que a restrição de direitos decorrentes da cassação do título de condução pela entidade administrativa (e a efectividade dessa execução) na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos, apresenta-se como desproporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito ao trabalho, pelo que viola os princípios da proporcionalidade e da necessidade, impondo-se, ao invés, a existência de um juízo de valoração e ponderação, em concreto, sobre a adequação e proporcionalidade da pena, face à gravidade do ilícito e da culpa. Em conformidade, pretende que, no caso em apreço, sejam ponderadas as circunstâncias de necessitar da carta de condução para o exercício da sua atividade profissional e para transportar os pais idosos aos serviços de prestação de cuidados médicos, tendo aquele no âmbito do primeiro processo crime cumprido até injunção respeitante à frequência do programa “Taxa Zero” da DGRSP. Pugna, assim, pela suspensão da decisão de cassação do título de condução com a imposição da obrigação de frequência de ações de formação [ou tão somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata]. Todavia, também neste ponto, não lhe assiste razão. São inquestionáveis as exigências de prevenção geral positiva porquanto a condução sob o efeito do álcool é no nosso país um flagelo, contribuindo de forma decisiva para a mortalidade nas estradas portuguesas – cfr. o elevadíssimo número de infracções detectadas sob a influência do álcool as quais potenciaram em muito a sinistralidade rodoviária de acordo com os últimos relatórios anuais. Aliás os acidentes de viação são a principal causa de morte em crianças e adultos jovens dos 1 aos 25 anos, sendo a mortalidade no sexo masculino três vezes mais elevada do que a registada no sexo feminino, de acordo com um parecer médico elaborado por Rui Tato Marinho. Corrobora este parecer um estudo realizado por Jorge Barbosa, director do Serviço de Toxicologia Forense do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, em que refere que cerca de 25% dos condutores envolvidos em acidentes de viação estavam sob o efeito do álcool6[9]. Portanto, é inquestionável que o álcool é um problema de saúde pública grave nestas duas vertentes, sendo que relativamente à questão de potenciar a elevada sinistralidade rodoviária exige que todas as autoridades públicas lhe façam um combate sem tréguas7[10]. Calcorreada a exposição de motivos8[11] da proposta de Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto verifica-se que tal alteração ao Código da Estrada teve o propósito assumido de provocar uma alteração no comportamento dos condutores portugueses9[12] em ordem a combater o elevado índice de sinistralidade rodoviária existente no nosso país para o que se têm revelado insuficientes as sucessivas campanhas de prevenção rodoviária. Como já salientado, a cassação do título de condução traduz-se numa medida de segurança, de carácter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente ao condutor cujas condutas, material e processualmente determinadas, vieram revelar a existência daquela inaptidão, sendo tais condutas o fundamento material da cassação. Tais condutas revelam um grau de censurabilidade acrescida, porquanto atingem valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como é a segurança da circulação rodoviária e a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, sendo premente a proteção do bem jurídico em causa. Consequentemente, não é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto. No caso em apreço, como supra demos conta, o recorrente viu ser-lhe subtraída a totalidade dos doze pontos que lhe haviam sido atribuídos, em virtude de ter praticado duas infracções de natureza penal com reflexos na condução estradal (dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez)10[13]: tudo conforme resulta dos factos provados, o que tem como consequência necessária a cassação do seu título de condução. Ora, contrariamente ao entendimento do recorrente, e como deixámos exarado supra, o que está em causa na cassação é a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, e não um novo sancionamento pela prática daqueles crimes. – Ac. RG de 17-12-2020, proc. n.º 1732/20.2T8BCL.G1 in www.dgsi.pt. Como já referimos, a perda de pontos por si só não acarreta a perda de quaisquer direitos a que alude o n.º4 do art.º 30.º da CRP. O que determinou a cassação da carta e as inerentes consequências que daí decorrem para a vida do recorrente, certamente gravosas a nível profissional, foram as sucessivas condenações do recorrente que implicaram a sucessiva perda de pontos verificando-se ainda que nem o decurso do tempo nem a consequente conduta posterior permitiram ao recorrente a angariação de outros pontos. O direito a conduzir decorre da titularidade da respectiva licença mas não existe um direito absoluto. Ademais, não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir veículos automóveis. A cassação apenas determina que o recorrente perde a habilitação que detinha, para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título. Por outro lado, como sublinha o citado Ac. do TC n.º 260/2020, não existe uma restrição de um direito fundamental, porquanto, não existe um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador. Reitera-se, assim, pela conformidade da norma constante do artigo 148º do Código da Estrada, com os princípios constitucionais vigentes. Relativamente à suspensão da execução da cassação requerida pelo condutor, saliente-se que o artigo 148.°, n.° 4 do Código da Estrada é claro ao determinar que a subtração de todos os pontos ao condutor implica a cassação do titulo de condução, a qual se traduz, portanto, numa consequência necessária da referida perda de pontos, do que resulta que a suspensão não é legalmente admissível, não sendo de aplicar os artigos 101º a 103º do CPenal. Com efeito, a cassação da carta de condução por perda total de pontos, mencionada no artigo 148.°, nº 4, c) do Código da Estrada, não se confunde com a medida de segurança de cassação do título de condução revista no artigo 101.° do Código Penal. Enquanto que esta é aplicada no âmbito de um processo crime, a primeira é aplicada no âmbito de um processo administrativo autónomo por parte do Presidente da ANSR, desde que se verifique a perda total de pontos, e não depende de qualquer juízo de necessidade, subsidiariedade ou proporcionalidade ou da verificação de qualquer um dos requisitos previstos do artigo 101.° do Código Penal. Assim, no caso em apreço, não há que recorrer ao disposto no artigo 101.° do Código Penal.. Acresce que as pretensões do recorrente mostram-se inviabilizadas pelo disposto nos n.ºs 4 e 11 do artigo 148º, do CE, os quais passamos a transcrever para melhor percepção: «4- A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor. 11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.» O processo de cassação do título de condução, de natureza administrativa e da competência da ANSR, depende da verificação de concretos pressupostos: sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor, não sendo de considerar as condições pessoais do condutor, designadamente a de precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional e dar assistência nos transportes aos pais idosos. Por consequência, não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação. E, quanto à frequência de acções de formação de segurança rodoviária, tal só seria possível se o condutor tivesse cinco ou menos pontos; o que não é o caso, dado o recorrente ter perdido todos os pontos, como consequência necessária e automática do trânsito em julgado das sentenças condenatórias que lhe aplicou as penas acessórias de proibição de conduzir. Do exposto, resulta a inadmissibilidade legal da substituição da cassação do título de condução pela frequência de ações de formação ou pela realização da prova teórica do exame de condução. Ademais, a frequência da ação de formação prevista no art. 148º, nº4, al. a) do Estrada não confere a atribuição de pontos, a qual apenas pode ocorrer nos termos previstos nos nº 5 a 7 do mesmo preceito legal. Portanto, no tocante à alternativa esgrimida pelo arguido/impugnante - de ver suspensa a decisão de cassação pela obrigação de frequência de formações no âmbito da prevenção rodoviária ou mesmo, em última análise, à obrigação de obtenção de novo título, mas de forma imediata -, a mesma também está votada ao insucesso, por inadmissibilidade legal, uma vez que a cassação do título decorre da estrita aplicação da lei, não existindo, nem da parte da autoridade administrativa, nem agora do tribunal, qualquer margem de discricionariedade, que permita ponderar as circunstâncias do caso concreto, designadamente para efeitos de um juízo de suspensão da decisão de cassação. Improcede, pois, na totalidade, a argumentação do recorrente.»
Analisados os factos dados como assentes à luz das regras legais atinentes, não podemos deixar de subscrever na íntegra esta apreciação, que temos por correcta, completa e esclarecedora, pelo que pouco haverá a acrescentar. O entendimento vertido na decisão recorrida corresponde (como, aliás, se reconhece no voto de vencido lavrado no acórdão do Tribunal da relação de Évora de 23-03-2021, proferido no Proc. n.º 38/20.1T8ODM.E1, no qual o recorrente sustenta a sua argumentação) ao que vem sendo uniforme na jurisprudência. Na verdade, para além dos referidos na decisão sob recurso, no mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos desta Relação de Coimbra de 13-11-2019, Proc. n.º 186/19.0T8CTB.C1, de 15-01-2020, Proc. n.º 576/19.9T9GRD.C1, de 02-02-2022, Proc. n.º 209/21.3T9MGR.C1, e de 07-06-2023, Proc. n.º 78/22.6T8ALD.C1; da Relação de Lisboa de 16-03-2021, Proc. n.º 3523/19.4T9AMD.L1-5, e de 19-10-2021, Proc. n.º 326/20.7Y5LSB.L1-5; da Relação do Porto de 10-02-2021, Proc. n.º 118/20.3T9AGD.P1, de 12-05-2021, Proc. n.º 3577/19.3T8VFR.P1, e de 18-01-2023, Proc. n.º 2629/22.7T8VFR.P1; da Relação de Évora de 20-10-2020, Proc. n.º 218/20.T8TMR.E1, e de 27-04-2021, Proc. n.º 1377/20.7T8TMR.E1; e da Relação de Guimarães de 10-10-2022, Proc. n.º 486/21.0T8AVV.G1, todos in www.dgsi.pt. Também a jurisprudência do Tribunal Constitucional se mantém constante nesta matéria. Sobre a conformidade constitucional da possibilidade da cassação do título de condução vir a ser decretada através da operação do «sistema de pontos», nos termos do art. 148.º do C. Estrada, se pronunciaram, mais recentemente, já após o acórdão n.º 260/2020, a que a decisão recorrida alude, também os seus acórdãos n.ºs 154/2022, 722/2022, 214/2023 e 215/2023[14], sempre reafirmando o entendimento de que a mesma, nos termos aí legalmente previstos, não belisca qualquer princípio constitucional, designadamente os previstos nos arts. 18.º, n.ºs 2 e 3, 29.º, n.º 5, 30.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 10, e 202.º, n.º 1, todos da CRP. Assim, em complemento da fundamentação já aduzida na decisão recorrida, diremos apenas que, como se refere no acórdão do TC n.º 154/2022, «(…) em face da perigosidade da condução de veículos automóveis para uma pluralidade de direitos e interesses sob tutela constitucional − designadamente a vida, a integridade física e o património de terceiros −, é manifesta a existência de um fundamento geral para a adoção de medidas restritivas, consubstanciadas tanto na necessidade de atribuição inicial de uma licença administrativa – o título de condução –, dependente da aferição de um conjunto de requisitos de aptidão física e psíquica para a operação técnica dos veículos e para o conhecimento e observância das normas jurídicas que regulam a circulação automóvel, como ainda na verificação periódica da subsistência dessas condições ao longo do período de atividade do sujeito, traduzida na existência de causas de caducidade e na possibilidade de revogação do título. Daí que se diga que o «o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular» (Acórdão n.º 260/2021).»; «(…) «é de reconhecer que a cassação do título de condução se traduz numa inadmissibilidade de conduzir na via pública os veículos para os quais tal título habilitava o seu titular e que essa proibição é passível de dificultar o exercício de uma variedade de atividades, designadamente laborais. Porém, da circunstância de ter esses efeitos, que são inerentes à própria natureza da medida de cassação e sem os quais as finalidades que presidem à sua aplicação se esvaziariam, não se segue que a cassação seja um efeito automático de uma pena; ou que a cassação, por sua vez, implique a perda de quaisquer outros direitos que não o de conduzir na via pública os veículos mencionados no título cassado. Para além disso, reitere-se que a aplicação da medida de cassação se inscreve num sistema gradativo de consequências, que comporta vários elementos de ponderação em favor e desfavor do condutor, pelo que está longe de poder ser vista, mesmo no ambiente normativo em que se insere, como de aplicação puramente automática.»; «Importa sublinhar que a cassação do título de condução, nas condições previstas na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, incorpora as principais variáveis de aferição da aptidão ou inaptidão do condutor para o exercício da atividade, como a gravidade e a frequência dos ilícitos praticados, o lapso do tempo em que se dê a respetiva ocorrência e o registo de ações de natureza corretiva. Trata-se, como é bom de ver, de um sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa.». E, por outro lado, como também ali se lê: «(…) ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão». Daí que, como se explica no acórdão do TC n.º 214/2023, também não ocorra nenhuma violação do n.º 1 do artigo 202.º da CRP: «Em primeiro lugar, não obstante a decisão de decretar a cassação do título de condução, nos termos do artigo 148.º, n.º 10, do Código da Estrada, seja tomada, em primeira linha, por uma entidade administrativa por via de um procedimento contraditório e regulado na lei, tal decisão é passível – como sucedeu in casu – de impugnação judicial, nos termos do regime geral das contraordenações, como prevê o n.º 13 do mesmo artigo, impugnação essa que comporta uma apreciação contenciosa de plena jurisdição. Equivale isto a dizer que a decisão em causa, em todas as suas vertentes, está sujeita a controlo judicial. Essa conclusão é inteiramente conciliável com a circunstância de nem todos os factos geradores da perda dos pontos serem decisões judiciais transitadas em julgado. Como se disse acima, na senda do Acórdão n.º 154/2021, o processo de cassação não visa reapreciar as situações que deram origem aos factos geradores da perda de pontos tipificadas no n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada, nem aplicar medidas sancionatórias que constituam efeitos jurídicos da prática desses ilícitos contraordenacionais ou criminais, sendo essa a razão pela qual a norma em causa não incorre em violação da proibição do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição. O procedimento cassatório destina-se somente a extrair consequências de âmbito não penal dos desfechos daqueles processos (abstraindo da factualidade subjacente), usando-os como fundamentos para a revogação de uma licença necessária à prática da condução de veículos motorizados, na medida em que mostram que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.» Não assiste, assim, razão ao recorrente relativamente à invocada «inconstitucionalidade da decisão face à violação dos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da C.R.P».
O recorrente considera, por outro lado, que, por aplicação do disposto nos arts. 101.º a 103.º, a sua conduta deveria ter sido analisada tendo em conta os factos provados e a sua personalidade, e que a decisão recorrida deverá ser substituída por outra que admita a suspensão da decisão de cassação do título de condução, sujeita à condição de o recorrente frequentar acções de formação ou nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, ou, assim não se entendendo, que seja autorizado a conduzir somente para levar os seus pais, idosos, ao médico. Mas também esta sua pretensão não pode proceder. O instituto da cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada. Como cristalinamente se explica no acima mencionado acórdão deste Tribunal da Relação de 13-11-2019, que seguimos de perto, «(…) no C. Penal, encontra-se previsto no art. 101º, com a epígrafe Cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, cuja inserção sistemática não deixa margem para qualquer dúvida quanto a tratar-se de uma medida de segurança não privativa da liberdade [Livro I – Parte Geral / Título III – Das consequências jurídicas do facto / Secção IV – Medidas de segurança não privativas da liberdade], aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos. No C. da Estrada o instituto tem sofrido variações, de acordo com as sucessivas alterações legislativas. Assim, conforme se refere no acórdão desta Relação de 8 de Maio de 2019, proferido no processo nº 797/18.1T8VIS.C1, que julgamos ainda inédito, na sua redacção primitiva (a do Dec. Lei nº 114/94, de 3 de Maio) e até à redacção dada pelo Dec. Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, o C. da Estrada configurava o instituto como uma medida de segurança, pois que a sua aplicação era da competência de um tribunal e tinha como pressupostos, além de outros, a gravidade da contra-ordenação praticada e a personalidade do condutor. Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, a cassação do título de condução – arts. 148º e 169º, nº 4 – passou a ser da exclusiva competência do Director-Geral de Viação, sendo determinada na decisão do processo da contra-ordenação mais recente, logo que o agente tivesse sido condenado pela prática de contra-ordenação grave ou muito grave e nos cinco anos imediatamente anteriores, tivesse sido condenado pela prática de três contra-ordenações muito graves ou pela prática de cinco contra-ordenações entre graves e muito graves [este regime não sofreu alterações significativas com a redacção do Dec. Lei nº 113/2008, de 1 de Julho]. Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto, foi introduzido no C. da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus, tendo actualmente o art. 148º com a epígrafe Sistema de pontos e cassação do título de condução, a seguinte redacção: (…) Nos sucessivos regimes legais manteve-se a competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução – competência exclusiva e pessoal, já não do Director-Geral de Viação, mas do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (art. 169º, nº 4). Mas no actual regime legal a cassação do título de condução é da exclusiva e pessoal competência do Presidente da ANSR portanto, de uma autoridade administrativa, cujo decretamento depende da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao título habilitante, perda de pontos esta previamente decidida em decisão administrativa condenatória ou através de sentença transitada em julgado, consistindo assim a cassação do título numa numa sanção administrativa, razão pela qual da respectiva declaração cabe recurso para os tribunais, termos do regime geral das contra-ordenações (cfr. nº 13 do art. 148º do C. da Estrada). Em suma, cassação do título de condução não é agora uma medida de segurança mas uma sanção administrativa.»
Estando em causa uma medida administrativa e não uma medida de segurança, não tem cabimento a aplicação do disposto nos arts. 101.º a 103.º do CP. A intervenção da autoridade administrativa, na pessoa do Presidente da ANSR, cinge-se à verificação dos pressupostos formais da cassação, fundando-se apenas na perda total de pontos resultante da prática das infracções que lhe subjazem, não pressupondo ou sequer permitindo qualquer ponderação ou valoração da perigosidade ou das concretas condições pessoais do visado, pelo que carece de qualquer suporte legal a pretensão do arguido de que, consideradas essas suas condições e a sua personalidade, fosse a medida de cassação do seu título de condução objecto de suspensão, ainda que com sujeição a regras de conduta, ou de substituição por outra medida ou, ainda, de que lhe fosse permitida a condução, a título excepcional, em determinadas circunstâncias. Por todo o exposto, improcede o recurso, sendo de manter na íntegra a decisão recorrida. (…) * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, AA, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa). Notifique. * * Coimbra, 20 de Março de 2024 [1] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12. [2] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12. [3] «1 - Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.» [4] 1 E que procedeu à décima quarta alteração ao Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio. Dispõe esse artigo o seguinte “1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos. 2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º 3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º” [5] 2 Sem prejuízo, claro está, de o arguido ter podido vir a fazer prosseguir o processo, nos termos do art.º 282º, nº 4, al. a), do CPP, não cumprindo as injunções e regras de conduta, entre elas a de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses, ou incorrendo na prática de factos que o colocassem sob a alçada da al. b) do nº 4 do mesmo artigo, circunstâncias que não ocorreram no caso dos autos [6] 3 Relatado pela Ex.ma Senhora Desembargadora Elisa Sales: “I – A decisão administrativa da cassação do título de condução, proferida em processo autónomo, relativa à perda total dos pontos atribuídos ao condutor, sendo a consequência legalmente prevista das condenações anteriormente sofridas por aquele, e não uma punição pelos mesmos factos, não viola o princípio ne bis in idem.II – O artigo 148.º do CE respeita os princípios constitucionais vigentes. [7] 4 Relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador Jorge França “I – A cassação do título de condução prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada não constitui uma penalidade acessória ou uma medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de uma pena de inibição de conduzir. II – É diversa a natureza jurídica das infracções determinantes da perda de pontos e da cassação do título de condução; esta não é efeito directo da prática de um crime ou de uma contra-ordenação, mas sim do cometimento reiterado daquelas infracções.III – Deste modo, o regime previsto na norma referida não ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação, nem tão pouco o princípio ne bis in idem.” [8] 5 Relatado pela Ex.ma Senhora Desembargadora Ana Carolina Cardoso “Não padece de inconstitucionalidade material, por violação das disposições contidas nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 5, e 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a previsão normativa do artigo 148.º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada”.” [9] 6 Este número poderá ter sido calculado por defeito, já que nos acidentes com feridos mais graves ou com mortos a Taxa de alcoolémia no Sangue (TAS) muitas vezes não é possível de determinar. [10] 7 No caso dos tribunais, tal só pode justificar uma maior atenção à punição destas situações, quer ao nível do crime p. e p. pelo art.º 292º do C.Penal, quer especialmente relativamente à sanção acessória prevista no art.º 69º do C.Penal. Aliás tal necessidade foi sentida pelo legislador, que em 2001 triplicou os limites mínimos e máximos da referida sanção, sendo que tal indicação não pode deixar de ser tida em conta pelo julgador aquando da sua aplicação, sendo certo que há que enquadrar tal sanção num regime mais lato que culmina na cassação da carta ou licença de condução. [11] 8 Aí se escreve da “análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.» [12] 9 Os portugueses são os europeus que ingerem mais álcool, de acordo com uma publicação World Drink Trends, estimando-se que existam cerca de um milhão de bebedores excessivos e quinhentos a setecentos mil doentes alcoólicos. Em média, cada português ingere anualmente cerca de 120 litros de bebidas alcoólicas. [13] 10 O recorrente sofreu injunção de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir, pela prática respectivamente de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do proc.175/17.0PTCBR e sofreu condenação por sentença transitada em julgada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de multa e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, no âmbito do proc. 60/18.8GCLSA. [14] Todos in www.tribunalconstitucional.pt |