Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1455/23.0T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA PÊGO BRANCO
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
SUSPENSÃO DA DECISÃO
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 148º E 169º, N.º 4, DO CÓDIGO DA ESTRADA; 101º A 103º DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
Não é legalmente admissível a suspensão da execução da cassação do título de condução ou a sua substituição pela frequência de formações no âmbito da prevenção rodoviária ou mesmo pela obrigação de obtenção de novo título.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Cristina Branco
1.ª Adjunta: Alcina Ribeiro
2.ª Adjunta: Alexandra Guiné

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Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de contra-ordenação com o n.º 1455/23.0T9CBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2, AA impugnou judicialmente a decisão administrativa da ANSR – Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, que lhe determinou a cassação do seu título de condução, ao abrigo do disposto no art. 148.º, n.ºs 4, al. c), e 10, do C. Estrada.

2. Por despacho proferido nos termos do art 64.º, n.º 2, do RGCOC[1], foi julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão administrativa proferida.

3. Inconformado com essa decisão, interpôs o arguido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.º- Dos factos provados e de relevo constantes da sentença recorrida dos pontos I, a), b) e c), II, 2-, a), b) e c), assim como dos que não foram tidos em consideração ( e deveriam sê-lo ) por o Tribunal recorrido considerá-los factos conclusivos ou que evidenciam factualidade irrelevante para a decisão, resulta que o recorrente se consciencializou da vida que fazia quando não estava a trabalhar, que se arrependeu desses factos, e que verificou a necessidade de procurar ajuda, motivo pelo qual frequentou o programa “Taxa Zero” da D.G.R.S., de modo completo, estando clinicamente estabilizado.
2.º- Existem amplas melhorias no estado psicológico do recorrente, nomeadamente na sua autoestima, possibilitando que no seu trabalho tenha melhor desempenho, tornando-se melhor profissional.
3.º- Se o recorrente não conseguir ir trabalhar por não deter carta de condução, terá de o deixar de fazer, ficando sem rendimentos, o que logo à partida se apresenta como atentatório da dignidade da pessoa humana ( não podendo ainda transportar os seus pais, idosos, ao médico).
4.º- A sentença de que agora se recorre contém decisão que determina que se considere que “a “perda de pontos” acrescentada ao Código da Estrada é uma sanção ou pena que tem na origem uma condenação por um acto ilícito contra-ordenacional ou criminal (artigo 69º, nº 1 do Código Penal) e que é aplicada de forma indirecta, automática e indefensável [sublinhado nosso] de cada vez que o cidadão é condenado, seja em processo contraordenacional, seja num processo criminal” – cfr. Ac. T.R.E. de 23/03/2021, proc. n.º 38/20.1T8ODM.E1, voto de vencido do distinto Juiz Desembargador João  Gomes de Sousa in www.dgsi.pt.
5.º- O caso sub judice encontra “no seio daquilo que sempre foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, a “automaticidade” de uma condenação que é efectivamente sujeita à indefesa”, motivo pelo qual a decisão recorrida é inconstitucional por violação dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P. - cfr.,Ac. cit..
6.º- Nos termos destes artigos da Lei fundamental dever-se-ia ter acautelado que os direitos de defesa de qualquer arguido – mesmo do recorrente, no âmbito de processo contraordenacional – devem ter a mesma medida que os direitos previstos no âmbito do Código Penal, o que manifestamente não ocorreu.
7.º- O automatismo da perda de pontos no título de condução diminui a “extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” - art. 18.º, n.º 3 CRP.
8.º- A sentença recorrida não observou, ainda, o vertido no art. 32.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P., nomeadamente não considerou que o “processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso” (n.º 1), e que todo “o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa” (n.º 2).
9.º- À decisão da ANSR que se impugnou, à sentença de que agora se recorre, bem como ao regime apelidado de “carta por pontos” é de aplicar os arts. 101.º a 103.º do Cód. Penal porquanto o sistema sancionatório em causa se apresenta como “misto no sentido (...) indicado (contra-ordenações mais crimes) e sempre o seria subsidiariamente mesmo que o sistema se limitasse às contraordenações do CE” - cfr., Ac. cit..
10.º- O art. 102.º, n.º 1 do Cód. Penal refere que no “caso de se verificarem os pressupostos da reincidência (...) o tribunal pode impor ao agente o cumprimento das regras de conduta previstas nas alíneas b) a f) do n.º 2 do artigo 52.º, quando elas se revelarem adequadas a evitar a prática de outros factos ilícitos típicos da mesma espécie”, algo que o Tribunal recorrido ignorou, omitiu.
11.º- Entendendo o recorrente ser de aplicar o art. 103.º, n.º 1 do Código Penal, no âmbito do qual se “decorridos os prazos mínimos das medidas previstas nos artigos 100.º e 102.º, se verificar, a requerimento do interdito, que os pressupostos da aplicação daquelas deixaram de subsistir, o tribunal declara extintas as medidas que houver decretado”, algo que a sentença recorrida desconsiderou, indevidamente.
12.º- Não “se vê como – sem gravíssima violação do “direito ao juiz” e, logo, dos artigos 20º, nº 1 e 202º da CRP – possa um Director-Geral, Director ou Presidente de um instituto público, seja ele qual for, aplicar uma medida de segurança penal sequencial à prática de crime e/ou contra-ordenação.” - cfr., Ac. cit., voto de vencido.
13.º- Motivo pelo qual se considera inconstitucional a sentença recorrida por violação do vertido nos arts. 20.º, n.º 1 e 202.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P., dado que não foi, efetivamente, assegurado ao recorrente o “acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, porque a sentença recorrida considera automática a decisão de cassação dos pontos da carta de condução.
14.º- Tendo-se, ainda, por inconstitucional a sentença recorrida uma vez que aceitou decisão proferida pelo Presidente da ANSR – “entidade incompetente para sobre o tema decidir”, cfr. Ac., cit. –, quando é certo que são os “tribunais (…) os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”, havendo que não olvidar que na “administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.
15.º- Face ao acima exposto, resulta incontraditável que a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da C.R.P., assim como nos arts. 101.º a 103.º do Cód. Penal.
16.º- Por consequência, deve determinar-se a frequência pelo recorrente de ações de formação, ou prestação de nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, com suspensão de qualquer decisão de cassação, por somente assim se atingirem as bases do Direito Penal e se manter cumprida a legalidade e a constitucionalidade da decisão recorrida.
17.º- Devendo sempre atender-se à situação factual do recorrente, sua condição pessoal e personalidade, sua recuperação, o que não ocorreu na sentença recorrida.
18.º- Na sequência da vinda de Sua Santidade o Papa Francisco a Portugal, num espírito mais cristão – pese embora não oficialmente reconhecível atendendo à separação entre o Estado e a Igreja – foi aprovada a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, na qual são perdoadas penas e amnistiadas infrações.
19.º- Nesse âmbito de “perdão”, o tribunal a que se recorre deve fazer Justiça, atendendo à recuperação do recorrente/arguido e à sua nova e melhor postura perante a sociedade, autorizando-se ainda que possa conduzir somente para levar os seus pais ao médico, ou a atendimento hospitalar de urgência.
Termos em que, deve o presente recurso ser recebido, julgado procedente e, por consequência, ser revogada a sentença recorrida por inconstitucionalidade da decisão face à violação dos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da C.R.P., e ilegalidade por violação dos arts. 101.º a 103.º do Cód. Penal, substituindo-a por decisão que admita a suspensão da decisão de cassação do título de condução, por período no qual o recorrente terá de frequentar ações de formação ou prestar nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, ou assim se não entendendo, que seja autorizado a conduzir somente para levar os pais do recorrente, idosos, ao médico, só assim se fazendo JUSTIÇA!»

4. Admitido o recurso, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual, sem formular conclusões, se pronuncia pela sua improcedência.

5. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11077954), no qual acompanha o teor da resposta apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância, ao qual acrescenta doutas considerações, e se pronuncia pela improcedência do recurso.

6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu o recorrente, reafirmando o teor da sua peça recursória e requerendo a aplicação ao caso da amnistia de infracções e perdão de penas prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 02-08.

7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

Em processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75.º, n.º 1, do RGCOC[2]), sem prejuízo do aludido conhecimento oficioso relativamente aos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.

In casu, de acordo com as suas conclusões, o recorrente coloca a questão de saber se a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º, todos da CRP, assim como nos arts. 101.º a 103.º, ambos do CP, devendo ser substituída por outra que admita a suspensão da decisão de cassação do título de condução, sujeita à condição de o recorrente frequentar acções de formação ou nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, ou, assim não se entendendo, que seja autorizado a conduzir somente para levar os seus pais, idosos, ao médico.


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2. Da decisão recorrida

Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta da decisão recorrida.
«A) Factos a considerar:
I. Processo crime n.º 332/18...., da Procuradoria do Juízo Local Cível e Criminal ..., da Comarca ...
a. O recorrente no dia 06/08/2018 conduzia um veiculo a motor, quando submetido ao teste de presença de álcool no sangue, tendo registado uma TAS superior a 1,2 g/l no sangue, tendo agido livre, voluntária e conscientemente do estado em que se encontrava, facto que não o inibiu de conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei [Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal].
b. Por despacho do Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca ... – Procuradoria do Juízo Local Cível e Criminal ..., foi determinada a suspensão provisória do processo ao abrigo do art. 281º do Cód. Processo Penal em face aos factos supra referidos e com o acordo do arguido, pela indiciada prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.s 292º, nº1 e 69º, nº1, al. a) do Código Penal, ficando sujeito à injunção de proibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses, o que cumpriu [Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal].
c. O Ministério público determinou que se comunicasse à ANSR, nos termos do art. 148º, nº2 do CE, o arquivamento dos autos em 29/03/2019, e que o arguido cumpriu a injunção de proibição de condução de veículos com motor o que implicou a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada;
II. Processo crime n.º 468/21.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ... – Tribunal Judicial da Comarca ...;
a. O recorrente no dia 20/04/2021, conduzia um veiculo a motor, quando submetido ao teste de presença de álcool no sangue registou uma TAS superior a 1,2 g/l no sangue, tendo agido livre, voluntária e conscientemente do estado em que se encontrava, facto que não o inibiu de conduzir, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei [Crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por infração ao n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal].
b. Por Sentença judicial proferida e notificada ao arguido em 05/05/2021, transitada em julgado em 04/06/2021, foi condenado, entre o mais, na pena acessória de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias de proibição de conduzir veículos a motor.
c. Nessa sentença, a final, foi determinado a comunicação à ANSR, o que implicou a perda de seis pontos, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada;
III. O arguido trabalha na mesma empresa em ... há cerca de 28 anos; e é filho único, tendo atualmente os seus pais quase 80 anos de idade.

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Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, constituem factos repetitivos, conclusivos ou contêm factualidade irrelevante para a presente decisão.
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(…)

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3. Da análise dos fundamentos do recurso

De acordo com as regras de precedência lógica importará, em primeiro lugar, apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.

Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes aos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Por fim, das questões relativas à matéria de direito.


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Antes de mais, importará sublinhar, que, em face do que dispõe o n.º 1 do art. 75.º do RGCOC[3], em matéria contra-ordenacional o Tribunal da Relação tem o seu poder de cognição limitado à matéria de direito, funcionando como Tribunal de revista ampliada, ou seja, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios a que alude o art. 410.º do CPP, dado que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional (cf. arts. 41.º, n.º 1, e 74.º, n.º 4, ambos do RGCOC).

O que significa que está arredada do conhecimento do tribunal de recurso a impugnação ampla da matéria de facto a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP, restando a este Tribunal da Relação a avaliação dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do mesmo diploma (a chamada revista alargada), que têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

Inexiste questão que possa obstar ao conhecimento do mérito da decisão, e da leitura do texto da sentença recorrida, concretamente dos factos provados e não provados e da fundamentação da convicção formada, constata-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão incongruente, arbitrária ou violadora das regras da experiência comum na análise e valoração das provas disponíveis, tendo a convicção expressa pelo tribunal suporte razoável nas mesmas, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar uma segura solução de direito.

Não ocorre, pois, qualquer dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP (que o recorrente também não invoca), pelo que a matéria de facto terá de considerar-se definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido.

Analisemos, então, as questões de direito suscitadas.

O recorrente alega, em síntese, que «o caso sub judice encontra “no seio daquilo que sempre foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, a “automaticidade” de uma condenação que é efectivamente sujeita à indefesa”, motivo pelo qual a decisão recorrida é inconstitucional por violação dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 2 da C.R.P.».

«[Q]ue à decisão da ANSR que se impugnou, e à sentença de que agora se recorre, bem como ao regime apelidado de “carta por pontos” será de aplicar os arts. 101.º a 103.º do Cód. Penal uma vez que o sistema sancionatório em causa se apresenta como “misto no sentido (...) indicado (contra-ordenações mais crimes) e sempre o seria subsidiariamente mesmo que o sistema se limitasse às contraordenações do CE».

E ainda que «“não se vê como – sem gravíssima violação do “direito ao juiz” e, logo, dos artigos 20º, nº 1 e 202º da CRP – possa um Director-Geral, Director ou Presidente de um instituto público, seja ele qual for, aplicar uma medida de segurança penal sequencial à prática de crime e/ou contra-ordenação.”».

Concluindo que «tendo a ANSR decidido pela cassação do título de condução ao recorrente – “entidade incompetente para sobre o tema decidir”, cfr. Ac., cit. –, e tendo a sentença recorrida mantido na íntegra aquela decisão, esta sentença gerou, manteve, a supra indicada inconstitucionalidade.»

Como se vê pelas conclusões da sua impugnação judicial, transcritas na decisão agora recorrida, estas questões foram suscitadas nessa mesma impugnação e sobre elas se pronunciou o Tribunal recorrido, nos seguintes termos (transcrição):
«Do conspecto factual resulta que o recorrente praticou duas infracções de natureza penal com reflexos na condução estradal:
- sofreu injunção de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do Processo crime n.º 332/18...., da Procuradoria do Juízo Local Cível e Criminal ..., da Comarca ....
- sofreu condenação por sentença transitada em julgada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, no âmbito do Processo crime n.º 468/21.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ... – Tribunal Judicial da Comarca ...
Nos termos do disposto no art.º 121.º A n.º1 do Código da Estrada na redacção da Lei n.º 116/2015, de 28 de Agosto1[4] – que entre outro, introduziu o “sistema de pontos” na carta de condução- são atribuídos doze pontos a cada condutor.
Em conformidade com o n.º2 do artigo 148.º do Código da Estrada que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.“
Portanto, tanto no arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, como na sentença penal a verificação da infração penal traz como consequência automática a perda de 6 pontos.
Importa esclarecer que a perda de pontos no arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, não obstante, não decorra propriamente de uma sentença penal, está perfeitamente legitimada, posto que se trata de uma decisão definitiva que assenta numa solução de consenso encontrada no âmbito da suspensão provisória do processo, pela qual os sujeitos processuais envolvidos, entre eles o próprio arguido, aceitaram, desde logo, a verificação da infração penal indiciada, porquanto a mesma era pressuposto da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, assim como das injunções e regras de conduta sugeridas ou encontradas, sendo certo que as mesmas só foram oponíveis ao arguido, mediante o acordo deste.
Assim, em face do acordo do arguido, e obtida a concordância do juiz de instrução, nos termos do nº 1 do art.º 281º, a respetiva decisão de suspensão provisória do processo tornou-se definitiva, não sendo suscetível de impugnação2[5].
A realçar, ainda, com relevância para o caso decidendo, o disposto no art.º 282º, nº 3, do CPP, que estatui que se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo este ser reaberto.
Isto para dizer que, este dipositivo legal consagra um verdadeiro efeito de caso julgado material, sendo precisamente de tal efeito que também a lei se faz prevalecer, no citado art.º 148º, nº 2, do Código da Estrada, ao determinar a subtração de 6 pontos ao condutor, em condições análogas à condenação, precisamente por ser aquele o momento em que se tornou estável a solução de consenso encontrada, desde logo também quanto à autoria do crime que materialmente justificou aquela perda de pontos.
No caso em apreço, como supra referimos, recorrente aceitou as injunções e regras de conduta propostas pelo Ministério Público, cumpriu-as, e entre elas a de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, aceitando, desse modo, ter cometido o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º, nº 1, do CP, ao qual é aplicável a sansão acessória de proibição de condução de veículos a motor prevista no art.º 69º, nº 1, al. a), do CP. Daí também a injunção ser obrigatoriamente oponível ao arguido, nos termos do art.º 281º, nº 3, do CPP, e desse modo também as consequências legais da perda pontos, a que se refere o art.º 148º, nº 2, do Código da Estrada.
De igual forma, com a condenação criminal devidamente transitada em julgado (em 04-06-2021) pela prática o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º, nº 1, do CP, o arguido sofreu 3 (três) meses e 15 (quinze) dias de pena acessória de proibição de conduzir
Daqui resulta que por cada uma das infracções penais sobreditas, em pena acessória de proibição de conduzir, fonte ou fundamento jurídico-material da perda de pontos automaticamente estabelecida no art.º 148º, nº 2, do Código da Estrada, foram retirados ao título de condução do recorrente seis pontos por cada uma, o que determinou a perda dos doze pontos atribuídos.
Em conformidade com o disposto na alínea c) do n.º 4 e n.º10 do art.º 148.º do mesmo Código a cassação tem que ser ordenada após a perda total dos pontos atribuídos ao título de condução do recorrente, razão pela qual se mostra válida a organização/tramitação do competente processo autónomo, não merecendo censura a decisão da entidade administrativa de cassação do titulo de condução.
Com efeito, a punição com uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor na via pública acarreta, ope legis, a perda de seis pontos na carta de condução, após o trânsito em julgado da sentença condenatória que a tanto o pune, passando a constar do registo de infracções existente na ANSR, talqualmente está previsto no artigo 149.º do Código da Estrada.
Senão vejamos.
Invoca o recorrente que as normas do artigo 148º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução enfermam de inconstitucionalidade, por violação dos arts. 18º e 32º, nº1 e 2 da CRP, porque colidem, num primeiro plano, com o principio da automaticidade proibida pelo(s) princípio(s) da proporcionalidade [e da necessidade], e num segundo plano, que a restrição de direitos decorrentes da cassação do título de condução na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos, apresenta-se como desproporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito ao trabalho, pelo que viola os princípios da proporcionalidade e da necessidade.
Prima facie, será (materialmente) inconstitucional a norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, quando ali se prevê a cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor?
O arguido/impugnante defende que sim, por tal colidir - se bem se interpretou a alegação expendida -, com o princípio consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição [“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”], no artigo 30.º, n.º 4, da Lei Fundamental [“Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos”] e, ainda, no artigo 58.º, n.º 1, da Constituição [“Todos têm direito ao trabalho”].
Cumpre apreciar.
Desde já, entrando na análise da primeira questão suscitada, adiantamos, que se entende não existir incompatibilidade entre o regime que prevê a cassação do título de condução com o princípio inserto no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, aqui citando Damião da Cunha (in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687), «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto (…)», não se vislumbrando qualquer violação do principio da proporcionalidade no caso em apreço.
A Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, procedeu à décima quarta alteração ao Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, nomeadamente introduzindo o “sistema de pontos” na carta de condução.
O sistema de pontos traduz-se uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar, em termos de perigosidade, os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais poderem vir ou não a ter no futuro, no que toca a uma eventual reavaliação da autorização administrativa habilitante ou licença de condução de veículos automóveis, atribuída a um determinado particular. Tal sistema visa apenas evidenciar, através de um registo central, com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização, os efeitos penais ou contraordenacionais das infracções cometidas, segundo a respectiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infracções, sendo que o efeito que possam ter para a determinação da cassação do título de condução, em virtude de uma eventual perda total de pontos, é apenas o de facilitação do cálculo do número de infracções cometidas e da sua gravidade. Porém, um tal resultado nunca será à partida certo, porquanto o próprio decurso do tempo e a posterior conduta do condutor tornarão contingentes os efeitos que daquelas infracções possam materialmente resultar, designadamente para a eventual cassação da carta, pois é a própria lei a prever que aos doze pontos de que dispõe cada condutor, poderão ainda acrescer mais três, até ao limite máximo de quinze pontos, sempre que no final de cada período de três anos não exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, ou ainda um ponto mais em cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento. Nessa medida, e conforme se esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.05.2018, (Relator: Francisco Mota Ribeiro, Processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt) que vimos seguindo o sistema de pontos reveste uma índole pedagógica, seja pela subtracção de pontos efectuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infracção concretamente cometida, seja estimulando o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtracção ocorre como efeito automático da infracção cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infracção cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração.
Do mesmo modo, continua, o sistema de pontos constitui um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne (ou não) as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. Inserir-se-á, portanto, tal desiderato, no âmbito dos poderes de administração do Estado. Aliás, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respectivo titular os referidos doze pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, traduzem decisões de carácter administrativo.
Ora, a sucessiva prática de ilícitos criminais puníveis com penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor na via pública determina, materialmente, um juízo de inaptidão para o exercício da condução, condicionando, seguidamente, a validade do título de condução, e levando inevitavelmente à sua cassação.
Aliás a compatibilidade da sanção de inibição de conduzir e da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição foi já analisada em múltiplas ocasiões pelo Tribunal Constitucional (ver, entre muitos outros, os acórdãos n.ºs 522/1995, 202/2000 e 563/2003, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt). Ora, a tese uniformemente seguida por esse Tribunal foi a de que não se verifica a automaticidade vedada por tal princípio se a aplicação dessas sanções depender de uma operação judicial de mediação que pondere em concreto a sua adequação e proporcionalidade. Este entendimento foi reafirmado nos acórdãos nºs 574/2000, 461/2000, 45/2001 e 472/2007 (também acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
A teologia intrínseca do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir que de forma mecânica, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou politica do cidadão (Acórdãos do TC n.ºs 16/84, 91/84,310/85, 75/86, 94/86,284/89, 748/93,522/95,202/00, 563/03 e muitos outros). Impõe-se, pois, em todos os casos, a existência de juízos de valoração ou de ponderação a cargo do Juiz (Acórdãos do TC n.ºs 522/95 e 422/01). Embora o n.º4 se refira apenas à proibição de efeitos necessários das penas, a proibição estende-se também, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à condenação pela prática de certos crimes, pois não se vê razão para distinguir (…)” – cf. cf. Constituição da República Portuguesa Anotada – J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 2007, Volume I, Pág. 504 e 505.
É certo que no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 472/2007 se escreveu a propósito “A proibição de penas automáticas pretende impedir que haja um efeito automático da condenação penal nos direitos civis do arguido. A sua justificação é simultaneamente a de obviar a um efeito estigmatizante das sanções penais e a de impedir a violação dos princípios da culpa e da proporcionalidade das penas, que impõem uma ponderação, em concreto, da adequação da gravidade do ilícito à da culpa, afastando-se a possibilidade de penas fixas ou ex lege”. Mas também aí se escreveu “Todavia, a proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 362/92 — Diário da República, 2.a série, de 8 de Abril de 1993, 183/94, Diário da República, 2.a série, de 13 de Julho de 1999, e 327/99 — Diário da República, 2.a série, de 19 de Julho de 1999).
Ora, resulta e forma vítrea do disposto no art. 148º, nº1 e 2 do Cód. Penal que no caso em apreço, foram as condenações em penas acessórias de proibição de conduzir que determinaram a perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, a que alude o nº 4, al. c), do mesmo artigo.
Isto para dizer que não se trata de uma sanção acessória dependente e arrimada à aplicação de uma pena principal cominada em condenação, mas de medida de natureza administrativa decorrente diretamente das estritas infrações que a determinam só não prevalecendo em caso de não procedimento criminal ou contraordenacional operando as respetivas causas de extinção, ou por absolvição em julgamento.
No mais, incluindo o caso dos autos, nem o Tribunal nem o Ministério Público determinam qualquer perda de pontos na carta de condução, antes se limitando a ordenar as comunicações à ANSR impostas pela Lei, incumbindo a tal entidade administrativa a inscrição no Registo de Infrações do Condutor (RIC).
A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.
O direito a conduzir depende de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico. Não existe um direito absoluto a conduzir, mas si um direito generalizado a obter e dispor de uma licença dentro das condições legalmente previstas.
Ou seja, não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir. A cassação apenas determina que o recorrente perde a habilitação que detinha para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título. Na verdade, o condutor a quem a carta de condução foi cassada pode reaver a habilitação para conduzir, decorrido que seja o período de dois anos e depois de ser aprovado em nome exame de condução (cfr. art. 148º, n.º 11, do Código da Estrada).
Aliás, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença.
Esta posição é analisada no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 30.04.2019, Relator: Pedro Vaz Pato, Processo n.º 316/18.0T8CPV.P1, acessível em www.dgsi.pt, o qual aludindo à jurisprudência do Tribunal Constitucional respeitante à caducidade da carta de condução provisória em caso de condenação pela prática de crimes e contraordenações rodoviárias – [cfr. Acórdãos n.os 461/2000, 574/2000, 45/2001 e 472/2007, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt]- dos mesmos consta que “atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional e que é legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias durante um período experimental. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa. Ao estabelecer, um regime de carta «por pontos», com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. Também neste aspeto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de «carta por pontos» nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao «bom comportamento rodoviário». É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período). Não estaremos, pois, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito”.
Perfilhando o entendimento do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.01.2020 (proc. 2302/19.3T8VCT.G), “o direito a conduzir não é um direito absoluto e incondicional, dependendo de pressupostos positivos e negativos, entre eles o da ausência de condenações rodoviárias que importam a subtração total de pontos. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa”.
Assim não há qualquer desrazoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.
Em rigor, o direito a conduzir depende de um conjunto de condições, de perícia e de comportamento psicológico, não existindo, portanto, um direito absoluto a conduzir, mas si um direito (generalizado) a obter e dispor de uma licença dentro de pressupostos legalmente previstos, positivos e negativos, entre eles naturalmente o da ausência de condenações pela prática de crimes rodoviários, que importam, no limite, a subtracção total de pontos. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode afirmar-se estarmos perante a perda de um direito “adquirido” [a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição], quando apenas se retiraram as consequências da verificação de uma sua condição negativa, aplicável a todo e a qualquer cidadão.
No caso em apreço, não restam dúvidas que o arguido se colocou numa situação em que perdeu essas condições, as quais são impostas por lei em função dos potenciais riscos dessa atividade para bens jurídicos essenciais. Ou seja, o que se verificou no caso decidendo é que o arguido/impugnante praticou - num breve período de tempo - dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, ficando sujeito a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, vindo a cassação do título de condução nessa sequência. O seu surgimento é desencadeado pela sucessão de condenações a que o arguido foi sendo sujeito, estando em causa a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução.
Reitera-se, ainda, que a cassação não torna definitiva a interdição, não havendo uma perda definitiva da faculdade de conduzir veículos com motor. Na verdade, a cassação apenas determina que o arguido/impugnante perde a habilitação que detinha para conduzir veículos com motor e que, durante o período de dois anos, fica impedido de obter novo título.
O condicionamento da atribuição de licença de condução aqui em causa, não diz respeito à prática de qualquer crime ou infração, mas à prática sucessiva de crimes rodoviários ou contra-ordenações muito graves ou graves. Não se verifica, pois, qualquer automaticidade contrária ao princípio da proporcionalidade, ou qualquer incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
Nestes termos, não se vislumbra que a sobredita automaticidade seja suscetível de violação do princípio da proporcionalidade ou da necessidade decorrente da cassação do título de condução do impugnante, com a consequente impossibilidade de concessão de novo título de condução de veículos com motor de qualquer categoria pelo período de dois anos por violação dos arts. 18º e 32º, nº1 e 2 da CRP.
No mesmo sentido, na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, já se debruçaram sobre esta temática vários arestos dos Tribunais da Relação, designadamente, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-12-2019 (processo n.º 576/19.9T9GRD.C1), de 06-11-2019 (processo n.º 4289/18.0T8PBL.C1), de 23-10-2019 (processo n.º 83/19.0T8OHP.C1), de 08-05-2019 (processo n.º 797/18.1T8VIS.C1), de 10-11-2021V((proc. 484/20.0T9LRA.C1)3[6], de 10-11-2021 (proc. 65/21.1T9PBL.C1)4[7], de 05-05-2021 (processo 221/20.0T8MGL.C)5[8], do Tribunal da Relação de Évora 03-12-2019 (processo n.º 1525/19.OT9STB.E1) e do Tribunal da Relação do Porto de 09 de maio de 2018 (processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1) e de 30-04-2019 (processo n.º 316/18.0T8CPV.P1), e do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.01.2020 (proc. 2302/19.3T8VCT.G1) todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
Pelo exposto, não se verifica, qualquer inconstitucionalidade.
Improcede assim este pressuposto de defesa.

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O recorrente propugna ainda que a ter-se como determinada tal cassação a mesma não seja efectiva, ou seja, que a decisão de cassação do titulo de condução deverá ser suspensa na sua execução atendendo à imprescindibilidade do título de condução para a prossecução da sua atividade profissional e à concomitante necessidade de defesa da dignidade humana com direito ao trabalho e auferir rendimentos.
Entende, pois, o recorrente que a restrição de direitos decorrentes da cassação do título de condução pela entidade administrativa (e a efectividade dessa execução) na sequência da perda da totalidade dos pontos atribuídos, apresenta-se como desproporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito ao trabalho, pelo que viola os princípios da proporcionalidade e da necessidade, impondo-se, ao invés, a existência de um juízo de valoração e ponderação, em concreto, sobre a adequação e proporcionalidade da pena, face à gravidade do ilícito e da culpa. Em conformidade, pretende que, no caso em apreço, sejam ponderadas as circunstâncias de necessitar da carta de condução para o exercício da sua atividade profissional e para transportar os pais idosos aos serviços de prestação de cuidados médicos, tendo aquele no âmbito do primeiro processo crime cumprido até injunção respeitante à frequência do programa “Taxa Zero” da DGRSP.
Pugna, assim, pela suspensão da decisão de cassação do título de condução com a imposição da obrigação de frequência de ações de formação [ou tão somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata].
Todavia, também neste ponto, não lhe assiste razão.
São inquestionáveis as exigências de prevenção geral positiva porquanto a condução sob o efeito do álcool é no nosso país um flagelo, contribuindo de forma decisiva para a mortalidade nas estradas portuguesas – cfr. o elevadíssimo número de infracções detectadas sob a influência do álcool as quais potenciaram em muito a sinistralidade rodoviária de acordo com os últimos relatórios anuais.
Aliás os acidentes de viação são a principal causa de morte em crianças e adultos jovens dos 1 aos 25 anos, sendo a mortalidade no sexo masculino três vezes mais elevada do que a registada no sexo feminino, de acordo com um parecer médico elaborado por Rui Tato Marinho. Corrobora este parecer um estudo realizado por Jorge Barbosa, director do Serviço de Toxicologia Forense do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, em que refere que cerca de 25% dos condutores envolvidos em acidentes de viação estavam sob o efeito do álcool6[9].
Portanto, é inquestionável que o álcool é um problema de saúde pública grave nestas duas vertentes, sendo que relativamente à questão de potenciar a elevada sinistralidade rodoviária exige que todas as autoridades públicas lhe façam um combate sem tréguas7[10].
Calcorreada a exposição de motivos8[11] da proposta de Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto verifica-se que tal alteração ao Código da Estrada teve o propósito assumido de provocar uma alteração no comportamento dos condutores portugueses9[12] em ordem a combater o elevado índice de sinistralidade rodoviária existente no nosso país para o que se têm revelado insuficientes as sucessivas campanhas de prevenção rodoviária.
Como já salientado, a cassação do título de condução traduz-se numa medida de segurança, de carácter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente ao condutor cujas condutas, material e processualmente determinadas, vieram revelar a existência daquela inaptidão, sendo tais condutas o fundamento material da cassação.
Tais condutas revelam um grau de censurabilidade acrescida, porquanto atingem valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade, como é a segurança da circulação rodoviária e a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, sendo premente a proteção do bem jurídico em causa.
Consequentemente, não é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto.
No caso em apreço, como supra demos conta, o recorrente viu ser-lhe subtraída a totalidade dos doze pontos que lhe haviam sido atribuídos, em virtude de ter praticado duas infracções de natureza penal com reflexos na condução estradal (dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez)10[13]: tudo conforme resulta dos factos provados, o que tem como consequência necessária a cassação do seu título de condução.
Ora, contrariamente ao entendimento do recorrente, e como deixámos exarado supra, o que está em causa na cassação é a inidoneidade para a condução de veículos com motor, decorrente das anteriores condenações por crimes rodoviários, e não um novo sancionamento pela prática daqueles crimes. – Ac. RG de 17-12-2020, proc. n.º 1732/20.2T8BCL.G1 in www.dgsi.pt.
Como já referimos, a perda de pontos por si só não acarreta a perda de quaisquer direitos a que alude o n.º4 do art.º 30.º da CRP. O que determinou a cassação da carta e as inerentes consequências que daí decorrem para a vida do recorrente, certamente gravosas a nível profissional, foram as sucessivas condenações do recorrente que implicaram a sucessiva perda de pontos verificando-se ainda que nem o decurso do tempo nem a consequente conduta posterior permitiram ao recorrente a angariação de outros pontos.
O direito a conduzir decorre da titularidade da respectiva licença mas não existe um direito absoluto. Ademais, não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir veículos automóveis. A cassação apenas determina que o recorrente perde a habilitação que detinha, para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título.
Por outro lado, como sublinha o citado Ac. do TC n.º 260/2020, não existe uma restrição de um direito fundamental, porquanto, não existe um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador.
Reitera-se, assim, pela conformidade da norma constante do artigo 148º do Código da Estrada, com os princípios constitucionais vigentes.
Relativamente à suspensão da execução da cassação requerida pelo condutor, saliente-se que o artigo 148.°, n.° 4 do Código da Estrada é claro ao determinar que a subtração de todos os pontos ao condutor implica a cassação do titulo de condução, a qual se traduz, portanto, numa consequência necessária da referida perda de pontos, do que resulta que a suspensão não é legalmente admissível, não sendo de aplicar os artigos 101º a 103º do CPenal. Com efeito, a cassação da carta de condução por perda total de pontos, mencionada no artigo 148.°, nº 4, c) do Código da Estrada, não se confunde com a medida de segurança de cassação do título de condução revista no artigo 101.° do Código Penal. Enquanto que esta é aplicada no âmbito de um processo crime, a primeira é aplicada no âmbito de um processo administrativo autónomo por parte do Presidente da ANSR, desde que se verifique a perda total de pontos, e não depende de qualquer juízo de necessidade, subsidiariedade ou proporcionalidade ou da verificação de qualquer um dos requisitos previstos do artigo 101.° do Código Penal. Assim, no caso em apreço, não há que recorrer ao disposto no artigo 101.° do Código Penal..
Acresce que as pretensões do recorrente mostram-se inviabilizadas pelo disposto nos n.ºs 4 e 11 do artigo 148º, do CE, os quais passamos a transcrever para melhor percepção:
«4- A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.»
O processo de cassação do título de condução, de natureza administrativa e da competência da ANSR, depende da verificação de concretos pressupostos: sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor, não sendo de considerar as condições pessoais do condutor, designadamente a de precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional e dar assistência nos transportes aos pais idosos.
Por consequência, não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
E, quanto à frequência de acções de formação de segurança rodoviária, tal só seria possível se o condutor tivesse cinco ou menos pontos; o que não é o caso, dado o recorrente ter perdido todos os pontos, como consequência necessária e automática do trânsito em julgado das sentenças condenatórias que lhe aplicou as penas acessórias de proibição de conduzir.
Do exposto, resulta a inadmissibilidade legal da substituição da cassação do título de condução pela frequência de ações de formação ou pela realização da prova teórica do exame de condução. Ademais, a frequência da ação de formação prevista no art. 148º, nº4, al. a) do Estrada não confere a atribuição de pontos, a qual apenas pode ocorrer nos termos previstos nos nº 5 a 7 do mesmo preceito legal.
Portanto, no tocante à alternativa esgrimida pelo arguido/impugnante - de ver suspensa a decisão de cassação pela obrigação de frequência de formações no âmbito da prevenção rodoviária ou mesmo, em última análise, à obrigação de obtenção de novo título, mas de forma imediata -, a mesma também está votada ao insucesso, por inadmissibilidade legal, uma vez que a cassação do título decorre da estrita aplicação da lei, não existindo, nem da parte da autoridade administrativa, nem agora do tribunal, qualquer margem de discricionariedade, que permita ponderar as circunstâncias do caso concreto, designadamente para efeitos de um juízo de suspensão da decisão de cassação.
Improcede, pois, na totalidade, a argumentação do recorrente.»

Analisados os factos dados como assentes à luz das regras legais atinentes, não podemos deixar de subscrever na íntegra esta apreciação, que temos por correcta, completa e esclarecedora, pelo que pouco haverá a acrescentar.

O entendimento vertido na decisão recorrida corresponde (como, aliás, se reconhece no voto de vencido lavrado no acórdão do Tribunal da relação de Évora de 23-03-2021, proferido no Proc. n.º 38/20.1T8ODM.E1, no qual o recorrente sustenta a sua argumentação) ao que vem sendo uniforme na jurisprudência.

Na verdade, para além dos referidos na decisão sob recurso, no mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos desta Relação de Coimbra de 13-11-2019, Proc. n.º 186/19.0T8CTB.C1, de 15-01-2020, Proc. n.º 576/19.9T9GRD.C1, de 02-02-2022, Proc. n.º 209/21.3T9MGR.C1, e de 07-06-2023, Proc. n.º 78/22.6T8ALD.C1; da Relação de Lisboa de 16-03-2021, Proc. n.º 3523/19.4T9AMD.L1-5, e de 19-10-2021, Proc. n.º 326/20.7Y5LSB.L1-5; da Relação do Porto de 10-02-2021, Proc. n.º 118/20.3T9AGD.P1, de 12-05-2021, Proc. n.º 3577/19.3T8VFR.P1, e de 18-01-2023, Proc. n.º 2629/22.7T8VFR.P1; da Relação de Évora de 20-10-2020, Proc. n.º 218/20.T8TMR.E1, e de 27-04-2021, Proc. n.º 1377/20.7T8TMR.E1; e da Relação de Guimarães de 10-10-2022, Proc. n.º 486/21.0T8AVV.G1, todos in www.dgsi.pt.

Também a jurisprudência do Tribunal Constitucional se mantém constante nesta matéria.

Sobre a conformidade constitucional da possibilidade da cassação do título de condução vir a ser decretada através da operação do «sistema de pontos», nos termos do art. 148.º do C. Estrada, se pronunciaram, mais recentemente, já após o acórdão n.º 260/2020, a que a decisão recorrida alude, também os seus acórdãos n.ºs 154/2022, 722/2022, 214/2023 e 215/2023[14], sempre reafirmando o entendimento de que a mesma, nos termos aí legalmente previstos, não belisca qualquer princípio constitucional, designadamente os previstos nos arts. 18.º, n.ºs 2 e 3, 29.º, n.º 5, 30.º, n.º 4, 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 10, e 202.º, n.º 1, todos da CRP.

Assim, em complemento da fundamentação já aduzida na decisão recorrida, diremos apenas que, como se refere no acórdão do TC n.º 154/2022,

«(…) em face da perigosidade da condução de veículos automóveis para uma pluralidade de direitos e interesses sob tutela constitucional − designadamente a vida, a integridade física e o património de terceiros −, é manifesta a existência de um fundamento geral para a adoção de medidas restritivas, consubstanciadas tanto na necessidade de atribuição inicial de uma licença administrativa – o título de condução –, dependente da aferição de um conjunto de requisitos de aptidão física e psíquica para a operação técnica dos veículos e para o conhecimento e observância das normas jurídicas que regulam a circulação automóvel, como ainda na verificação periódica da subsistência dessas condições ao longo do período de atividade do sujeito, traduzida na existência de causas de caducidade e na possibilidade de revogação do título. Daí que se diga que o «o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular» (Acórdão n.º 260/2021).»;

«(…) «é de reconhecer que a cassação do título de condução se traduz numa inadmissibilidade de conduzir na via pública os veículos para os quais tal título habilitava o seu titular e que essa proibição é passível de dificultar o exercício de uma variedade de atividades, designadamente laborais. Porém, da circunstância de ter esses efeitos, que são inerentes à própria natureza da medida de cassação e sem os quais as finalidades que presidem à sua aplicação se esvaziariam, não se segue que a cassação seja um efeito automático de uma pena; ou que a cassação, por sua vez, implique a perda de quaisquer outros direitos que não o de conduzir na via pública os veículos mencionados no título cassado. Para além disso, reitere-se que a aplicação da medida de cassação se inscreve num sistema gradativo de consequências, que comporta vários elementos de ponderação em favor e desfavor do condutor, pelo que está longe de poder ser vista, mesmo no ambiente normativo em que se insere, como de aplicação puramente automática.»;

«Importa sublinhar que a cassação do título de condução, nas condições previstas na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, incorpora as principais variáveis de aferição da aptidão ou inaptidão do condutor para o exercício da atividade, como a gravidade e a frequência dos ilícitos praticados, o lapso do tempo em que se dê a respetiva ocorrência e o registo de ações de natureza corretiva. Trata-se, como é bom de ver, de um sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa.».

E, por outro lado, como também ali se lê:

«(…) ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão».

Daí que, como se explica no acórdão do TC n.º 214/2023, também não ocorra nenhuma violação do n.º 1 do artigo 202.º da CRP:

«Em primeiro lugar, não obstante a decisão de decretar a cassação do título de condução, nos termos do artigo 148.º, n.º 10, do Código da Estrada, seja tomada, em primeira linha, por uma entidade administrativa por via de um procedimento contraditório e regulado na lei, tal decisão é passível – como sucedeu in casu – de impugnação judicial, nos termos do regime geral das contraordenações, como prevê o n.º 13 do mesmo artigo, impugnação essa que comporta uma apreciação contenciosa de plena jurisdição. Equivale isto a dizer que a decisão em causa, em todas as suas vertentes, está sujeita a controlo judicial.

Essa conclusão é inteiramente conciliável com a circunstância de nem todos os factos geradores da perda dos pontos serem decisões judiciais transitadas em julgado. Como se disse acima, na senda do Acórdão n.º 154/2021, o processo de cassação não visa reapreciar as situações que deram origem aos factos geradores da perda de pontos tipificadas no n.º 1 do artigo 148.º do Código da Estrada, nem aplicar medidas sancionatórias que constituam efeitos jurídicos da prática desses ilícitos contraordenacionais ou criminais, sendo essa a razão pela qual a norma em causa não incorre em violação da proibição do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição. O procedimento cassatório destina-se somente a extrair consequências de âmbito não penal dos desfechos daqueles processos (abstraindo da factualidade subjacente), usando-os como fundamentos para a revogação de uma licença necessária à prática da condução de veículos motorizados, na medida em que mostram que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.»

Não assiste, assim, razão ao recorrente relativamente à invocada «inconstitucionalidade da decisão face à violação dos arts. 18.º, 20.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 2 e 202.º da C.R.P».

O recorrente considera, por outro lado, que, por aplicação do disposto nos arts. 101.º a 103.º, a sua conduta deveria ter sido analisada tendo em conta os factos provados e a sua personalidade, e que a decisão recorrida deverá ser substituída por outra que admita a suspensão da decisão de cassação do título de condução, sujeita à condição de o recorrente frequentar acções de formação ou nova prova teórica, visando a recuperação de pontos na carta, ou, assim não se entendendo, que seja autorizado a conduzir somente para levar os seus pais, idosos, ao médico.

Mas também esta sua pretensão não pode proceder.

O instituto da cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.

Como cristalinamente se explica no acima mencionado acórdão deste Tribunal da Relação de 13-11-2019, que seguimos de perto,

«(…) no C. Penal, encontra-se previsto no art. 101º, com a epígrafe Cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, cuja inserção sistemática não deixa margem para qualquer dúvida quanto a tratar-se de uma medida de segurança não privativa da liberdade [Livro I – Parte Geral / Título III – Das consequências jurídicas do facto / Secção IV – Medidas de segurança não privativas da liberdade], aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos.

No C. da Estrada o instituto tem sofrido variações, de acordo com as sucessivas alterações legislativas. Assim, conforme se refere no acórdão desta Relação de 8 de Maio de 2019, proferido no processo nº 797/18.1T8VIS.C1, que julgamos ainda inédito, na sua redacção primitiva (a do Dec. Lei nº 114/94, de 3 de Maio) e até à redacção dada pelo Dec. Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, o C. da Estrada configurava o instituto como uma medida de segurança, pois que a sua aplicação era da competência de um tribunal e tinha como pressupostos, além de outros, a gravidade da contra-ordenação praticada e a personalidade do condutor.

Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, a cassação do título de condução – arts. 148º e 169º, nº 4 – passou a ser da exclusiva competência do Director-Geral de Viação, sendo determinada na decisão do processo da contra-ordenação mais recente, logo que o agente tivesse sido condenado pela prática de contra-ordenação grave ou muito grave e nos cinco anos imediatamente anteriores, tivesse sido condenado pela prática de três contra-ordenações muito graves ou pela prática de cinco contra-ordenações entre graves e muito graves [este regime não sofreu alterações significativas com a redacção do Dec. Lei nº 113/2008, de 1 de Julho].

Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto, foi introduzido no C. da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus, tendo actualmente o art. 148º com a epígrafe Sistema de pontos e cassação do título de condução, a seguinte redacção: (…)

Nos sucessivos regimes legais manteve-se a competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução – competência exclusiva e pessoal, já não do Director-Geral de Viação, mas do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (art. 169º, nº 4).

Mas no actual regime legal a cassação do título de condução é da exclusiva e pessoal competência do Presidente da ANSR portanto, de uma autoridade administrativa, cujo decretamento depende da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao título habilitante, perda de pontos esta previamente decidida em decisão administrativa condenatória ou através de sentença transitada em julgado, consistindo assim a cassação do título numa numa sanção administrativa, razão pela qual da respectiva declaração cabe recurso para os tribunais, termos do regime geral das contra-ordenações (cfr. nº 13 do art. 148º do C. da Estrada).

Em suma, cassação do título de condução não é agora uma medida de segurança mas uma sanção administrativa

Estando em causa uma medida administrativa e não uma medida de segurança, não tem cabimento a aplicação do disposto nos arts. 101.º a 103.º do CP.

A intervenção da autoridade administrativa, na pessoa do Presidente da ANSR, cinge-se à verificação dos pressupostos formais da cassação, fundando-se apenas na perda total de pontos resultante da prática das infracções que lhe subjazem, não pressupondo ou sequer permitindo qualquer ponderação ou valoração da perigosidade ou das concretas condições pessoais do visado, pelo que carece de qualquer suporte legal a pretensão do arguido de que, consideradas essas suas condições e a sua personalidade, fosse a medida de cassação do seu título de condução objecto de suspensão, ainda que com sujeição a regras de conduta, ou de substituição por outra medida ou, ainda, de que lhe fosse permitida a condução, a título excepcional, em determinadas circunstâncias.

Por todo o exposto, improcede o recurso, sendo de manter na íntegra a decisão recorrida.

(…)


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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, AA, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, ambos do CPP, 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).

Notifique.


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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelos demais signatários, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

*
Coimbra, 20 de Março de 2024



[1] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12.
[2] Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, e sucessivamente alterado pelos DL n.º 356/89, de 17-10, n.º 244/95, de 14-09 e 323/2001, de 17-12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24-12.
[3] «1 - Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.»
[4] 1 E que procedeu à décima quarta alteração ao Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio.
Dispõe esse artigo o seguinte “1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos.
2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º
3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º”
[5] 2 Sem prejuízo, claro está, de o arguido ter podido vir a fazer prosseguir o processo, nos termos do art.º 282º, nº 4, al. a), do CPP, não cumprindo as injunções e regras de conduta, entre elas a de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses, ou incorrendo na prática de factos que o colocassem sob a alçada da al. b) do nº 4 do mesmo artigo, circunstâncias que não ocorreram no caso dos autos
[6] 3 Relatado pela Ex.ma Senhora Desembargadora Elisa Sales: “I – A decisão administrativa da cassação do título de condução, proferida em processo autónomo, relativa à perda total dos pontos atribuídos ao condutor, sendo a consequência legalmente prevista das condenações anteriormente sofridas por aquele, e não uma punição pelos mesmos factos, não viola o princípio ne bis in idem.II – O artigo 148.º do CE respeita os princípios constitucionais vigentes.
[7] 4 Relatado pelo Ex.mo Senhor Desembargador Jorge França “I – A cassação do título de condução prevista na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada não constitui uma penalidade acessória ou uma medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de uma pena de inibição de conduzir. II – É diversa a natureza jurídica das infracções determinantes da perda de pontos e da cassação do título de condução; esta não é efeito directo da prática de um crime ou de uma contra-ordenação, mas sim do cometimento reiterado daquelas infracções.III – Deste modo, o regime previsto na norma referida não ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação, nem tão pouco o princípio ne bis in idem.”
[8] 5 Relatado pela Ex.ma Senhora Desembargadora Ana Carolina Cardoso “Não padece de inconstitucionalidade material, por violação das disposições contidas nos artigos 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 5, e 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, a previsão normativa do artigo 148.º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada”.”
[9] 6 Este número poderá ter sido calculado por defeito, já que nos acidentes com feridos mais graves ou com mortos a Taxa de alcoolémia no Sangue (TAS) muitas vezes não é possível de determinar.
[10] 7 No caso dos tribunais, tal só pode justificar uma maior atenção à punição destas situações, quer ao nível do crime p. e p. pelo art.º 292º do C.Penal, quer especialmente relativamente à sanção acessória prevista no art.º 69º do C.Penal. Aliás tal necessidade foi sentida pelo legislador, que em 2001 triplicou os limites mínimos e máximos da referida sanção, sendo que tal indicação não pode deixar de ser tida em conta pelo julgador aquando da sua aplicação, sendo certo que há que enquadrar tal sanção num regime mais lato que culmina na cassação da carta ou licença de condução.
[11] 8 Aí se escreve da “análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.»
[12] 9 Os portugueses são os europeus que ingerem mais álcool, de acordo com uma publicação World Drink Trends, estimando-se que existam cerca de um milhão de bebedores excessivos e quinhentos a setecentos mil doentes alcoólicos. Em média, cada português ingere anualmente cerca de 120 litros de bebidas alcoólicas.
[13] 10 O recorrente sofreu injunção de 4 (quatro) meses de proibição de conduzir, pela prática respectivamente de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, no âmbito do proc.175/17.0PTCBR e sofreu condenação por sentença transitada em julgada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de multa e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, no âmbito do proc. 60/18.8GCLSA.
[14] Todos in www.tribunalconstitucional.pt