Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
587/11.2TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA
RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR
PERDA DA COISA
ÓNUS DA PROVA
RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
FRANQUIA
SALVADOS
IVA
MORA
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: CMR ( DL Nº 4623 DE 18/3/65, DL Nº 72/2008 DE 16/4, ARTS. 804 E 813 CC)
Sumário: 1 - O contrato de transporte terrestre não é um contrato formal, não se encontrando sujeito a forma escrita, valendo a declaração de expedição como mera formalidade necessária para legitimar a circulação terrestre da mercadoria e como meio de prova da sua existência.

2.-No contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada, a regra é a de que o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega.

3.- O transportador só fica desobrigado dessa responsabilidade se a perda teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta sua, um vício próprio da mercadoria ou circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, cabendo ao transportador o ónus de alegação e de prova das referidas circunstâncias com vista a eximir-se da responsabilidade decorrente da perda da mercadoria.

4.-Se o transportador recorreu a terceiro para lavar a cisterna, ele é ainda responsável pela conferência da lavagem adequada desta, tendo ao seu alcance formas de a confirmar. A certificação de lavagem pelo terceiro não desobriga o transportador da responsabilidade pela contaminação do produto transportado na cisterna.

5. - A falta de reservas na declaração de expedição, aquando do recebimento da mercadoria, faz presumir que esta não tinha qualquer avaria, mas a presunção é ilidível, podendo o destinatário provar que a mercadoria está realmente avariada.

6 - O objeto salvo do sinistro (salvado) não está, em regra, na disponibilidade da seguradora.

7.- O interessado referido no art.16º, 3, da Convenção relativa ao transporte internacional de mercadorias por estrada não é a seguradora.

8.- Salvo nos termos gerais, a seguradora não pode ser responsabilizada pela gestão que a transportadora ou a destinatária da mercadoria fizeram dos salvados.

9.- A franquia condiciona o valor da prestação a realizar pela seguradora e fica a cargo do segurado.

10. - O Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) não é um efetivo dano da empresa indemnizada pela perda da mercadoria transportada.

11. - A mora do credor não exige a sua culpa, mas os atos omitidos têm de ser essenciais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Transportes Rodoviários de Mercadoria (…), S.A., intentou ação contra Companhia de Seguros (…), S.A., pedindo a condenação desta:

a) A pagar-lhe, a título de indemnização pelo sinistro ocorrido a 26/01/2010, a quantia de €115.302,59, acrescida dos juros de mora vincendos e da quantia de €235,49, por cada dia de paralisação da cisterna;

b) A pagar-lhe, a título de indemnização pelo sinistro ocorrido a 28/07/2010, a quantia de €57.417,46, acrescida dos juros de mora vincendos e da quantia de €235,49, por cada dia de paralisação da cisterna;

c) A pagar-lhe, a título de indemnização pelo sinistro ocorrido a 15/12/2010, a quantia de €49.559,14, acrescida dos juros de mora vincendos e da quantia de €235,49, por cada dia de paralisação da cisterna;

d) A pagar-lhe o valor a liquidar em sede de execução de sentença pela descarga e armazenamento dos produtos contaminados.

No decurso da ação, a Autora amplia/rectifica o pedido formulado, relativamente ao 2.º sinistro, de €17.451,84 para €19.775,39 e liquidou o pedido formulado na quantia de €43.330,16 e de €974,14 (relativamente ao 1.º sinistro) e na quantia de €7.010,64 (relativamente ao 3.º sinistro).

Para tanto, a Autora alegou, em síntese:

No âmbito da sua actividade de transporte internacional de mercadorias por estrada, em três ocasiões diferentes do ano de 2010, foram contaminados os produtos que transportava, sendo responsável perante o respectivo lesado pelo  pagamento de indemnização pelos prejuízos causados, nos valores mencionados, responsabilidade que havia transferido para a Ré.

Face à inércia desta em assumir o pagamento da indemnização devida ou por aguardar instruções da parte desta sobre o destino dos produtos contaminados, a Autora veio ainda a sofrer prejuízos pela paralisação dos veículos e outros que reclama.

A Ré contestou, em síntese:

A destinatária dos produtos não era a identificada “V (…)”.

Não foi feita reserva na receção do produto no 2º sinistro.

A Autora não tem qualquer culpa e nada mais podia fazer quanto à lavagem, obtendo o certificado da mesma.

A Autora é responsável pelos salvados.

A Autora não colaborou com a Ré no apuramento das responsabilidades.

Foi admitida a intervenção acessória de T (…), S.L., M (…), Lda. e de L (…)  S.A.

Apenas a primeira apresentou contestação, alegando que a cisterna em causa ficou limpa de qualquer resíduo ou impureza.

Realizado o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

Condenar a Ré Seguradora a pagar à Autora (Transportadora) a quantia de €88.761,44 (oitenta e um mil, setecentos e sessenta e um euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação da sentença até efectivo pagamento.

Condenar a Seguradora a pagar à Autora a quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, correspondente a metade do montante despendido com as despesas com a descarga do produto contaminado do 2.º transporte/sinistro (encaminhamento como resíduo ou outro destino), acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Absolver a Ré dos restantes pedidos.


*

           

Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)


*

Também inconformada, a Seguradora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)


*

            Apenas contra alegou a interveniente T (…) relativamente ao 1º sinistro, defendendo que não teve qualquer participação no que se passou após a operação de limpeza, nomeadamente com os salvados, paralisação da cisterna e negociações entre a Autora e a Ré, para regularização do sinistro, e aderindo à argumentação desta última.

*

            Questões a decidir:

            Reapreciação da matéria de facto.

Quem é a destinatária da mercadoria e parte nos contratos de transporte no 1º e 3º sinistros.

            A responsabilidade da transportadora.

           

A falta de reservas no recebimento da mercadoria no 2º sinistro.

            A liquidação do IVA.

A liquidação das franquias.

A responsabilidade pelos salvados e paralização das cisternas. Valor diário da referida paralização.

            Definição da mora.

Danos sofridos no veículo durante a paragem deste no 3º sinistro.


*

Reapreciação da matéria de facto.

(…)


*

            Os factos provados são então os seguintes:

1. A Autora dedica-se aos transportes rodoviários ocasionais de mercadorias, nacionais e internacionais e à compra e venda de materiais de construção e produtos conexos.

2. A Ré dedica-se, à actividade seguradora.

3. Autora e Ré celebraram um “contrato de seguro” de «Responsabilidade Civil do Transportador que se regula pelas Condições Particulares, Condições Especiais, Condições Gerais desta apólice e pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)», titulado pela apólice 790015687, de acordo com o qual, «…garante a responsabilidade civil do Segurado, que, nos termos da Convenção, lhe seja imputável na qualidade de Transportador Rodoviário Internacional de Mercadorias», «…abrange, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que, nos termos da Convenção, sejam devidas pelo Segurado na qualidade de transportador, em consequência de perdas ou danos causados às mercadorias transportadas no veículo transportador, exclusivamente durante o

respectivo transporte» e «Esta garantia inicia-se, sem prejuízo do disposto no artigo 6.º, no momento em que as mercadorias são carregadas no veículo transportador no local de início da viagem, vigora durante o percurso normal desta…».

4. De acordo com aquelas condições gerais, “TERCEIRO” é «Aquele que, em consequência de um sinistro sofra uma lesão material que origine danos susceptíveis de, nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparados e indemnizados» e “SINISTRO” é «O acontecimento de carácter fortuito, súbito e independente da vontade do Tomador do Seguro ou do Segurado, susceptível de fazer funcionar as garantias do contrato».

5. Entre outras exclusões, o contrato de seguro em causa «nunca garante os danos, perdas ou despesas que decorram, directa ou indirectamente, de (...) acto ou omissões dolosos do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis».

6. E «nunca garante os danos, perdas ou despesas, directa ou indirectamente de (...) remoção de destroços das mercadorias transportadas (ou de) perdas de mercado, demora na entrega ou quaisquer outras perdas consequenciais».

7. Nos termos do referido contrato são obrigações da ora Autora «fornecer ao segurador todas as provas solicitadas, bem como os relatórios e documentos que possua ou venha a obter», «não abonar extrajudicialmente a indemnização reclamada sem autorização escrita do segurador, bem como não formular ofertas, tomar compromissos ou praticar algum acto tendente a reconhecer a responsabilidade do segurador, a fixar a natureza e o valor da indemnização ou que, de qualquer forma, estabeleça ou signifique a sua responsabilidade».

8. Mais ficou a ora Autora obrigada «a enviar ao segurador, o mais rapidamente possível, (...) cópia da factura comercial».

9. O segurador obriga-se, entre outras, a “Efectuar com prontidão e diligência as averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, sob pena de responder por perdas e danos” e a “Pagar a

indemnização devida logo que concluídas as averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento da responsabilidade do segurado e ao estabelecimento do acordo quanto ao valor a indemnizar. Se decorridos 30 dias, o segurador, de posse de todos os elementos indispensáveis à reparação dos danos ou ao pagamento da indemnização acordada, não tiver realizado essa obrigação, por causa não justificada ou que lhe seja imputável, incorrerá em mora, vencendo a indemnização juros à taxa legal em vigor”.

1.º Transporte/sinistro [26 de Janeiro de 2010]:

10. O semi-reboque com a matrícula L-17 (...) CE ficou abrangido pelo contrato de seguro dos autos como aderente n.º 0009.

11. Tendo sido estabelecido para aquele um capital seguro de €25.000,00 e uma franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização sempre a cargo da ora Autora, de «10,00% dos prejuízos indemnizáveis, mínimo de 500,00 €».

12. No dia 21 de Janeiro de 2010, o conjunto de veículos tractor com a matrícula (...) CE e cisterna com a matrícula L – 17 (...) CE, carregou em França um produto designado por EMULWAX SW 330 – parafina.

13. Daí foi transportado e descarregado em Espanha no dia 25 de Janeiro de 2010.

14. No mesmo dia, 25 de Janeiro de 2010, após a dita descarga, procedeu-se à limpeza da já identificada cisterna no Lavaderos de Tradilo em Tarragona, Espanha.

15. Naquele lavadero foram lavados e vaporizados todos os tanques da cisterna.

16. Além disso, foram também lavados os circuitos e ar, porta mangueiras e todos os outros acessórios, tendo-se procedido à respectiva operação de purificação.

17. O conjunto destas operações de limpeza deu origem à emissão por parte do Lavadero Tradilo do certificado de lavagem n.º ES-EN 0742433 datado de 25 de Janeiro de 2010.

18. No dia 26 de Janeiro de 2010, o mesmo conjunto de veículos, carregou em Tarragona, Espanha, na Sociedade S... Europe S.L., o seguinte:

a) 11.980 kg de uma mercadoria designada por Acetato de Metilo;

b) 6.660 Kg de uma mercadoria designada Monoetilenoglicol.

19. Apesar de constar da declaração de expedição (CMR) como destinatário C... Portugal, S.A., os produtos melhor identificados no artigo anterior tiveram com destino final a sociedade V... , Lda., em Alcanena, Portugal.

20. No dia 28 de Janeiro de 2010 quando se ia proceder à descarga dos produtos na V (…) Lda. verificou-se que, com excepção de 5.260 KG de acetato de Metilo, os produtos encontravam-se contaminados com resíduos de parafina, ou seja, resíduos do anterior produto transportado.

21. Mediante tal constatação, o produto contaminado não foi aceite pela cliente V... , que procedeu à sua devolução.

22. Tendo aqueles produtos permanecido nos tanques dos veículos da Autora, que assim ficou imobilizado naquelas instalações, o que impediu a A. de retirar os rendimentos da sua utilização até que fosse dado o destino final àquele produto contaminado.

23. (Alterado) Os produtos contaminados valiam sem IVA a quantia de € 12.541,20”.

24. Toda a factualidade sobre o sinistro foi comunicada, por fax, no dia 1 de Fevereiro à sociedade L... S.A., corretora de seguros da Autora que, por sua vez, o comunicou à Ré.

25. (Alterado) A 20 de Abril de 2010, a L... enviou à Autora a mensagem de correio electrónico documentada a fls. 62 dos autos, na qual informa que a Ré assumia a responsabilidade no sinistro mas fazia depender a indemnização da apresentação prévia de uma factura comercial dos produtos contaminados.

25-A (Aditado) “Em 20.10.2010, a Ré solicitou à Autora as facturas comerciais do transporte efectuado, conforme o teor de fls. 69.

26. (Alterado) A solicitação da Autora, a sociedade V (…), Lda., informou não possuir uma factura de aquisição daqueles produtos, por alegadamente fazer as compras em quantidades globais e que o fornecimento em causa era apenas parcial. (Porém, a faturação da expedidora corresponde aos documentos de fls.73 e 74.)

27. (Alterado) Em 17 de Janeiro de 2011, uma factura de €18.084,48 (com IVA) foi apresentada à seguradora.

28. A Ré não procedeu ao pagamento daquele valor debitado pela cliente V (…) no valor de €18.084,48 (dezoito mil e oitenta e quatro euros e quarenta e oito cêntimos).

29. (Alterado) Por alegadas (pela Autora) razões de segurança, os produtos contaminados permaneceram acondicionados nos tanques dos veículos pertença da Autora, desde 28 de Janeiro de 2010.

30. Neste período a Autora solicitou à Ré instruções e autorizações para proceder à descarga dos produtos contaminados, bem como do destino final a dar aos mesmos.

31. (Alterado) A Autora apresentou proposta para venda daqueles produtos à sociedade espanhola “ R... ”. A L... informou que a Autora não deveria vender os produtos à dita empresa.

32. (Alterado) Aquele veículo cisterna ficou imobilizado nas instalações da Autora até 31 de Outubro de 2011.

33. De acordo com a tabela de paralisações inserida no acordo Antram-APS de 2009, em relação aos serviços internacionais, a paralisação corresponde a um valor diário de €235,49.

34. No dia 31 de Outubro de 2011 aquele produto foi encaminhado para a empresa devidamente licenciada para o efeito (…), S.A., com sede em Pombal.

35. A referida empresa EGEO cobrou à Autora a quantia de €974,14 pela recepção e encaminhamento (valorização) daqueles resíduos.

36. Factura essa que foi efectivamente liquidada pela Autora.

2.º Transporte/sinistro [28 de Julho de 2010]:

37. O semi-reboque com a matrícula L- (...) 94 ficou abrangido pelo contrato de seguro dos autos como aderente n.º 0011.

38. Tendo sido estabelecido para o mesmo um capital seguro de € 25.000,00 e uma franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização sempre a cargo da ora A., de «10,00% dos prejuízos indemnizáveis, mínimo de 500,00 €».

39. No dia 28 de Julho de 2010, o conjunto de veículos tractor matrícula (...) OP e cisterna matrícula L – (...) 94, carregou na C.E.P.S.A. em San Roque, Cadiz, Espanha, os seguintes produtos e nas seguintes quantidades:

a) Granel PETROSOL 15A 15/20 – White Spirit – 10.860 kg;

b) Granel PETROSOL TOLUENO – Tolueno – 13.000 kg.

40. Os produtos melhor identificados no artigo anterior tiveram com destino final a sociedade V (…). em Alcanena, Portugal.

41. No dia 29 de Julho de 2010, o conjunto de veículos tractor matrícula (...) OP e cisterna matrícula L – (...) 94 foi recebido nas instalações da V (…)., onde os funcionários desta verificaram que os já identificados produtos apresentavam cor amarelada, cheiro a amónia e libertação de fumos.

42. Perante a inconformidade das características verificadas e as características normais que os produtos deveriam apresentar e que não se apuraram, a V (…)., não procedeu à descarga e aceitação dos mesmos.

43. Em consequência disso, o conjunto de veículos tractor com a matrícula (...) OP e cisterna com a matrícula L – (...) 94 está até ao dia de hoje imobilizado e carregado com a mercadoria, nas instalações da V... , Lda..

44. Toda a factualidade sobre este 2.º sinistro foi comunicada, por fax, datado de 29 de Setembro de 2010, à sociedade L (…)a S.A. corretora de seguros da Autora que por sua vez, o comunicou à companhia de seguros F...S.A..

45. A SC... na qualidade de Peritos Reguladores nomeados pela F (…), S.A., solicitou amostras do produto contaminado, documentos relativos à contaminação do produto transportado, documentos do conjunto de veículos tractor matrícula (...) OP e cisterna matrícula L – (...) 94, a comparência de representante da empresa de limpeza da cisterna e cópia do tacógrafo para certificar quilómetros e percursos.

45-A (Aditado) Em 11.1.2011, a Ré solicitou à Autora documentos, conforme o teor de fls. 147 e 148.

46. Relativamente às amostras de produtos, por Fax, datado de 18 de Novembro de 2010, a Autora comunicou à SC... que tais amostras, por normas de segurança no manuseamento de produtos perigosos, são obtidas pelo expedidor e pelo destinatário das mercadorias e por isso, na qualidade de transportador, não gozava do direito a obter tais amostras.

47. No mesmo fax, foi reiterado que a Autora estava na posse de certificado de lavagem confirmativo da realização dos serviços conforme os procedimentos normais, razão pela qual não foi efectuada qualquer reclamação contra a entidade que procedeu à lavagem do veículo já identificado.

48. A Autora não entregou cópia do tacógrafo.

49. Após a referida explicação e entrega de parte da referida documentação, e após várias interpelações para que a Ré assumisse a sua responsabilidade pelo sinistro, após a Autora ter fornecido à Ré a factura com o valor da mercadoria sinistrada – €19.775,391(dezanove mil setecentos e setenta e cinco euros e trinta e nove cêntimos), até à presente data esta não assumiu a responsabilidade pelo pagamento da dita mercadoria.

50. Quantia, esta, que a sociedade V (…) reteve, não pagando à aqui Autora, créditos de igual montante, tendo já informado verbalmente que face ao arrastamento da regularização deste processo, irá brevemente debitar aquele valor à Autora.

51. (Alterado) Por alegadas razões (pela Autora) de segurança, os produtos contaminados permaneceram acondicionados nos tanques da cisterna pertença da Autora, desde 29.07.2010, nas instalações da sociedade V (…)

52. (Alterado) Neste período, a Autora e a V (…) solicitaram uma à outra instruções para proceder à destruição dos produtos contaminados.

53. (Alterado) Aquela cisterna ficou imobilizada nas instalações da dita sociedade V... o, até à presente data.

54. De acordo com a tabela de paralisações inserida no acordo Antram-APS de 2009, em relação aos serviços internacionais, a paralisação corresponde a um valor diário de €235,49.

3.º Transporte/sinistro [15 de Dezembro de 2010]:

55. O semi-reboque com a matrícula L- (...)59 ficou abrangido pelo contrato de seguro dos autos como aderente n.º 0014.

56. Tendo sido estabelecido para o mesmo um capital seguro de €25.000,00 e uma franquia, ou parte primeira de qualquer indemnização sempre a cargo da Autora, de «10,00% dos prejuízos indemnizáveis, mínimo de 500,00 €».

57. No dia 14 de Dezembro de 2010 o conjunto de veículos tractor matrícula (...)ZS e cisterna matrícula L – (...)59, depois de ter descarregado a carga de emulsão de parafina no cliente T (...) em Solsona, Espanha foi lavado nos Lavadeiros de (...) no porto de Barcelona.

58. Por essa lavagem foi emitido um certificado europeu de lavado.

59. No dia 15 de Dezembro de 2010 foram carregados na cisterna com a matrícula L - (...)59 dois produtos, com destino às instalações da sociedade V (…), Lda., em Portugal, conforme CMR 01/2610 e CMR 28412, que se juntam:

a) Na TEPSA, no Porto de Barcelona 40.180 Kg (37.320 + 2.860) de Ac (...);

b) Na C... S.A., em Saint Vincenz de Castellet, Barcelona, 13.760,00 kg de Di (...).

60. Em conjunto os ditos produtos têm um valor de €28.481,80 (12.521,60 + 9.039,00 + 6921,20).

61. Aquando do segundo carregamento de “Isopropilo”, nas instalações da C... , S.A., foi verificado pelas pessoas que procediam a tal operação, que os ditos tanques estavam contaminados, apresentando-se o colector todo branco de parafina e o produto tinha partículas em suspensão.

62. De imediato a Autora deu conhecimento aos “Lavaderos L (...)”, desse incidente, solicitando com carácter de urgência a deslocação de uma perito indicado por aquela sociedade para apurar o sucedido, bem como comprovar a alegada contaminação, conforme cópia de correio electrónico que se junta.

63. Sendo que a seguradora daqueles “Lavadero L (...)” declinaram qualquer responsabilidade na indemnização dos danos causados por aquela contaminação.

64. A Autora participou este sinistro à Ré Seguradora, por correio electrónico de 16.12.2010.

65. A Autora sempre manifestou a vontade que o produto contaminado fosse descarregado, por forma a que os ditos veículos pudessem ser utilizados na sua actividade económica, uma vez que se encontravam “retidos” no parque da “ C... ”, em “S. Vincenz de Castellet.

66. Por correio electrónico de 28 de Dezembro de 2010, a sociedade correctora de seguros L... , confirma à Autora que a Ré seguradora já havia indicado um perito em Espanha para apurar o sucedido e, que este nada tinha a opor à descarga da cisterna.

67. Todavia, advertia que os custos de tal armazenamento e descarga não seriam suportados pela Ré seguradora, caso se viesse a concluir pela responsabilidade da contaminação viesse a ser imputada à “L (...).

68. Daí que a 29 de Dezembro, a sociedade V (…) não autorizou a descarga da cisterna sem qualquer informação por parte da seguradora ou das seguradoras.

69. Face ao impasse, estando o motorista e veículos impedidos em Espanha, pelas razões já expostas, a 30 de Janeiro de 2011 a Autora enviou à Correctora de Seguros L... , correio electrónico onde informa que a C... só procederia à descarga dos produtos contaminados, com a autorização da Ré seguradora.

70. A Autora assumiu perante aquela “ C... ” o custo da descarga e armazenamento dos produtos contaminados, tendo para o efeito solicitado orçamentos.

71. Aquela sociedade comunicou por correio electrónico de 28 de Março de 2011 que os custos da operação seriam:

a) €77,00 por unidade de contentores a utilizar;

b) €18,00/tonelada pela descarga para tais contentores;

c) €18,00/tonelada/mês para armazenamento de tais produtos.

72. Preços que a Autora se viu obrigada a aceitar, por forma a liberar quer os seus veículos, quer o seu motorista que ali se encontrava desde a data do sinistro.

73. A 30 de Março de 2011, foi aquela operação de descarga concluída, tendo os veículos pertença da Autora regressado a Portugal.

74. Salienta-se que tal assunção teve por objectivo libertar o veículo e cisterna que ali se encontravam “retidos”, pois o prazo para a realização de nova inspecção estava a terminar, sendo certo que aqueles veículos, expirado o dito prazo de validade da inspecção, não teria condições para circular na via pública, o que acarretaria ainda maiores prejuízos à Ré.

75. Daí a urgência em libertar os veículos e motorista, conforme foi explicado no correio electrónico de 23 de Março de 2011.

76. O valor da mercadoria sinistrada ascende a €28.481,80 (vinte e oito mil quatrocentos e oitenta e um euros e oitenta cêntimos).

77. Quantia esta que a sociedade V (…) tem retido, não pagando à aqui Autora créditos de igual montante, tendo já informado verbalmente que face ao arrastamento da regularização deste processo, irá brevemente debitar aquele valor à Autora.

78. Por razões de segurança e por forma a permitir as diligências periciais, os produtos contaminados permaneceram acondicionados nos tanques da cisterna pertença da Autora, desde 15/01/2011, nas instalações da sociedade C... , em S. Vincent de Castellet, em Espanha, até 30 de Março de 2011.

79. Neste período a Autora solicitou à Ré instruções e autorizações para proceder à descarga dos produtos contaminados, bem como do destino final a dar aos mesmos.

80. (Eliminado).

81. (Alterado) Em 28/03/2011, através de corrector de seguros da autora, foram entregues à Ré cópias da factura comercial relativa aos produtos contaminados.

82. De acordo com a tabela de paralisações inserida no acordo Antram-APS de 2009, em relação aos serviços internacionais, a paralisação corresponde a um valor diário de €235,49.

83. Durante o período em que os veículos estiveram imobilizados nas instalações da C... , os ditos veículos, durante a noite, foram por diversas vezes vandalizados, tendo sido furtados farolins traseiros e o pisca frontal do lado esquerdo do tractor e os extintores e dois pneus do 3.º eixo que foram furados.

84. Para a reparação de tais danos, a Autora despendeu a quantia de €740,25.

85. Tais danos, que foram causados por desconhecidos nos veículos da Autora, ocorreram durante aquele período de imobilização e estando aparcados nas instalações daquela sociedade C... .

86. Inicialmente o produto contaminado esteve armazenado na cisterna que serviu de transporte até 30 de Março de 2011, data em que os mesmos foram transvasados para contentores, a fim de libertar a cisterna.

87. E só em Outubro de 2011 foram encaminhados para a empresa Q (...), sita na Zona Industrial (...), em Pombal, para reutilização, após devida valorização.

88. A sociedade Q (...) recebeu aquele produto em troca das despesas com o transporte e valorização do produto a partir de S. Vicent de Castellet, Barcelona, onde o mesmo estava armazenado, nada liquidando à Autora ou à sua cliente V (…).

89. Entre Abril e Setembro de 2011, os produtos contaminados, depois de descarregados da cisterna pertença da Autora, ficaram armazenados em tanques, em S. Vicent de Castellet, Barcelona.

90. A sociedade V (…)., debitou à Autora a quantia de €3.436,87 a título de despesas pelo enchimento para os ditos tanques.

91. E debitou ainda a título de despesas de armazenamento dos produtos contaminados, a quantia de €3.573,77.

92. Despesas que totalizam a quantia de €7.010,64, que foram efectivamente liquidadas àquela sociedade por encontro de contas.


*

Quem é a destinatária da mercadoria e parte nos contratos de transporte no 1º e 3º sinistros.

(Nota prévia: as partes não discutem e não há dúvidas sobre a aplicação da Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, inserida no direito português pelo DL 46235, de 18.3.1965. Também não se discute que é um contrato de seguro o celebrado entre as partes, submetido às regras da Convenção referida e às suas condições particulares e gerais.)  

Alega a Recorrente Seguradora que os contratos de transporte são formais, deles resultando que o destinatário das mercadorias é a C... Portugal e  não a V (…). Assim, a responsabilidade da Autora, a existir, seria perante aquela e não perante esta V (…).

Seguindo de perto o acórdão da Relação de Lisboa, de 30.6.2011, no processo 789/09, em www.dgsi.pt, podemos afirmar que o contrato de transporte terrestre não é um contrato formal, não se encontrando sujeito a forma escrita, valendo a guia de transporte como meio de prova da sua existência.

“São partes iniciais no contrato o expedidor e o transportador, quando o transporte é contratado por aquele, ou entre o transportador e o destinatário (importador) quando é este que contrata o transporte. Mas entende-se que o destinatário passa a ser parte do contrato a partir do momento em que a ele adere pela posse do título que lhe permite reclamar a mercadoria do transportador, a que acresce o direito a eventual indemnização por perdas e danos.“

O regime da Convenção CRM abrange os sujeitos da relação jurídica substantiva passível de ser qualificada como contrato de transporte e não terceiras entidades cuja intervenção se confina rigorosamente a outro tipo de contratos dele autónomos, embora funcionalmente interligados.

Mas não é o documento apelidado de CMR - simples declaração de expedição - que define, imperativamente, quais os sujeitos da relação jurídica de transporte. Serve o preenchimento do CMR como mera formalidade necessária para legitimar a circulação terrestre daquela concreta mercadoria.

Como preceitua o art.4º da CMR, “a falta, irregularidade ou perda da declaração de expedição não prejudicam nem a existência nem a validade do contrato de transporte que continua sujeito às disposições da presente Convenção.

O expedidor tem o direito de dispor da mercadoria, em especial pedindo ao transportador que suspenda o transporte desta, de modificar o local previsto para a entrega e de entregar a mercadoria a um destinatário diferente do indicado na declaração de expedição – cfr. art. 12.º, §1, CMR.

O direito de disposição pertence ao destinatário a partir do preenchimento da declaração de expedição se o expedidor inscrever tal indicação na referida nota – cfr. art. 12.º, §3, CMR.

Neste contexto jurídico, a prova do destino efetivo, conforme a aquisição probatória do caso, supra reavaliada (o frete foi solicitado pela V... o), sem oposição à conduta desta no processo de sinistro, permite perceber que houve encontro de vontades para a entrega da mercadoria à “ V... o”, como efetiva destinatária contratual, sendo esta quem controlava o recebimento, substituíndo-se à C... .

Pelo exposto, improcede esta primeira objeção da Seguradora.


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A responsabilidade da transportadora.

Alega a Recorrente Seguradora que a Autora, depois de pedir a lavagem das cisternas e o respetivo certificado da mesma, nada mais poderia ter feito para assegurar a boa condição dos transportes em causa. Demonstrada assim a inexistência de culpa daquela, não pode a sua seguradora ser responsabilizada pelos danos ocorridos às mercadorias que transportou.

Sem prejuízo das reservas motivadas do transportador na declaração de expedição (art. 8.º, §1-b), CMR), dispõe o n.º 1 do artigo 17º da CMR que “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.

Trata-se de uma presunção de culpa do transportador (ainda o art.799º do Código Civil), que só fica desobrigado dessa responsabilidade, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 18º da CMR, “compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa de um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2º.

Também constituem exceção à regra da responsabilidade da transportadora pela perda da mercadoria até à sua entrega ao destinatário, as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário, como resulta do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 383º e 376º do Código Comercial.

Caso fortuito, em matéria de obrigações, é o acontecimento imprevisível que se tivesse sido previsto poderia evitar-se. (Acórdão do STJ, de 15.5.2013, no processo 9268/07, no sítio digital referido.)

O art.13º da CMR confere ao destinatário o direito de exigir ao transportador a indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento (ou do cumprimento defeituoso) do contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada.

Ora, uma contaminação nas cisternas, decorrente de transporte sucessivo de matérias diferentes, não é um acontecimento imprevisível.

Sendo previsível, são necessárias todas as cautelas na lavagem das cisternas entre transportes.

A transportadora não pode bastar-se com a certificação pelo lavador. Ela mesma deve conferir a lavagem adequada, tendo formas técnicas de fazer aquela conferência (por exemplo, fazendo passar líquido de controle de resíduos pelo sistema da cisterna).

A transportadora responde, como se fossem cometidos por ela própria, pelos actos e omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorre para a execução do transporte, quando esse agente ou essas pessoas actuam no exercício das suas funções – cfr. art. 3.º, CMR.

O lavador profissional é ainda uma pessoa a quem recorre o transportador para efetivar o transporte de matérias na sua cisterna, sem contaminação. Apesar  de ato prévio ao transporte propriamente dito, a lavagem neste caso não pode ser dissociada do mesmo.

Aquela norma é paralela à do art.800º do Código Civil.

Não é, portanto, excluída a negligência da Autora.

Em consequência, improcede esta objeção da Seguradora.


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A falta de reservas no recebimento da mercadoria no 2º sinistro.

            Alega a Recorrente Seguradora que, quanto ao segundo sinistro, não foi formulada qualquer reserva pelo destinatário da mercadoria, nem quando a recebeu nem nos 7 dias seguintes, só havendo uma reclamação por parte da V... um mês depois dessa receção. Esta falta viciou completamente a prova da desconformidade da mercadoria, por impedir a contraditoriedade da verificação dos danos na mesma.

Efetivamente, no caso concreto em apreciação, não foram feitas as referidas reservas por escrito na respectiva declaração de expedição e a reclamação do destinatário a dar nota da contaminação ao transportador ocorreu efectivamente depois do prazo referido no art. 30.º, §1, CMR.

Esta circunstância faz presumir que a mercadoria não tinha qualquer avaria, mas a presunção é ilidível, podendo o destinatário provar que a mercadoria está realmente avariada.

Ora, no caso concreto, a destinatária, sem oposição da transportadora (ou a Autora, sem oposição da V (…) fez prova da contaminação da mercadoria, resultante do transporte, logrando ilidir a presunção de conformidade.

Conforme o art.30º da Convenção em aplicação, a contraditoriedade estabelece-se entre o transportador e o destinatário. A Seguradora pedirá depois as informações ao transportador.

Se o transportador podia ter sido mais exigente na prova da desconformidade é questão que não colide a prova aceite pelo julgador.

Pelo exposto, improcede esta objeção da Seguradora.


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A liquidação do IVA.

A destinatária da mercadoria, a V (…), é uma empresa que deduz o imposto que paga aos seus fornecedores do imposto que cobra dos seus clientes.

Em regra, o IVA não representa para a mesma uma diminuição patrimonial.

A aquisição daquela mercadoria configura uma operação inerente à respectiva atividade empresarial, o que, nos termos do artigo 20º, nº 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, confere o direito à dedução do IVA que a Autora pagou, uma vez que aquela aquisição se destinou à realização de operações tributáveis - no caso, a comercialização dos bens que a Autora produz.

“Nas operações inerentes à atividade empresarial, o IVA nunca é custo para a empresa que o paga, pois, a final, tem direito à respectiva dedução”. (Acórdão do STJ, de 12.9.2013, no processo 372/08, em www.dgsi.pt.)

Admitindo-se que, por qualquer razão, a empresa não conseguisse que aquela dedução fosse feita, então teria que ser alegada e provada a respetiva matéria de facto, para depois se ajuizar se tal facto resultava ou não de culpa da empresa e se decidir em função do disposto no artigo 570º do Código Civil.

No caso concreto nada foi alegado quanto a esta matéria.

            Não sendo o IVA um efetivo dano, a “V (…)” não o podia cobrar à transportadora e a Autora não estava obrigada a pagá-lo, não podendo reclamá-lo agora da seguradora.

A Autora não adquire mercadorias e paga antes uma indemnização. O IVA, como imposto sobre o valor acrescentado, não se aplica a esta.

Os valores a considerar, também em face do recurso da Seguradora, que procede nestes limites, são então os seguintes:

1º sinistro: €12.541,20;

2º sinistro: €19.775,39;

3º sinistro: €28.481,80.


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A liquidação das franquias.

Diz-nos o artigo 49.º do  DL 72/2008, de 16.4:

(Capital seguro) 1 — O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato. 2 — (…) 3 — As partes podem fixar franquias, escalões de indemnização e outras previsões contratuais que condicionem o valor da prestação a realizar pelo segurador.

Dizem as condições gerais do contrato de seguro dos autos que a franquia é a “importância que, em caso de sinistro, fica a cargo do segurado e cujo montante ou forma de cálculo se encontra estipulado nas condições particulares.”

A franquia é a parte do sinistro que convencionalmente fica a cargo do segurado. A franquia condiciona o valor da prestação a realizar pelo segurador. Além da franquia (na relação com o segurador), o segurado pagará a responsabilidade que ultrapasse o valor da prestação, condicionada, a realizar pelo segurador (na relação com o lesado).

Sendo assim, como defende a Recorrente Seguradora, a franquia contratual só é aplicada depois de reduzido o valor do dano efectivo ao do capital seguro, e não antes, sem o que, em sinistros cujos danos fossem superiores a 110% do valor do capital seguro sempre seria indiferente haver ou não haver franquia. Nestes casos, ao contrário do pretendido pela figura, o segurado não pagaria qualquer valor à seguradora (ou, dito de outra forma, não estaria condicionado o valor a pagar pela seguradora, na relação com o segurado).

Procedendo esta objeção da Seguradora, considerando a franquia de 10%, os valores a considerar, também em face do recurso da mesma, são então os seguintes:

1º sinistro: €11.287,08;

2º sinistro: €17.797,85;

3º sinistro: €22.500,00.

No total de €51.584,93.


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A responsabilidade pelos salvados e paralização das cisternas. Valor diário da referida paralização.

Este concreto seguro “garante a responsabilidade civil do Segurado, que, nos termos da Convenção, lhe seja imputável na qualidade de Transportador Rodoviário Internacional de Mercadorias” e “abrange, até ao limite do valor seguro constante das Condições Particulares, o pagamento de indemnizações que, nos termos da Convenção, sejam devidas pelo Segurado na qualidade de transportador, em consequência de perdas ou danos causados às mercadorias transportadas no veículo transportador, exclusivamente durante o respectivo transporte”.

O contrato de seguro está sujeito ao regime decorrente do DL 72/2008, de 16.4.

Segundo o artigo 129.º desta lei (Salvado), “o objecto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer.”

Segundo o art.16º, 3, da Convenção, “o transportador pode promover a venda da mercadoria sem esperar instruções do interessado, quando a natureza deteriorável ou o estado da mercadoria o justifiquem ou quando as despesas de guarda estão desproporcionadas com o valor da mercadoria. Nos outros casos, pode também promover a venda quando não tenha recebido do interessado, em prazo razoável, instruções em contrário cuja execução possa ser equitativamente exigida.”

Aquele interessado que dá instruções ao transportador é o expedidor ou o destinatário, conforme o disposto nos arts.12º e 14º a 16º da Convenção.

Sendo assim, não cabe à Seguradora determinar o que fazer ao salvado.

A relação relativa ao destino das mercadorias estabelece-se entre a transportadora, a expedidora e a destinatária. Já a relação de seguro estabelece-se entre a transportadora e a seguradora, salvaguardando a indemnização devida pela transportadora ao terceiro, pela mercadoria perdida.

De acordo ainda com o concreto contrato de seguro, o sinistro é o acontecimento de caráter fortuito, súbito e independente da vontade do segurado e do tomador do seguro.

De acordo com as suas condições gerais, terceiro é “aquele que, em consequência de um sinistro sofra uma lesão material que origine danos susceptíveis de, nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparados e indemnizados”.

Também, entre outras exclusões, o contrato de seguro em causa “nunca garante os danos, perdas ou despesas que decorram, directa ou indirectamente, de (...) remoção de destroços das mercadorias transportadas (ou de) perdas de mercado, demora na entrega ou quaisquer outras perdas consequenciais”.

Então, para fundamentar uma indemnização da seguradora ao segurado transportador, fora do âmbito do seguro da mercadoria transportada, temos de a encontrar nos termos gerais da responsabilidade civil (art.483º do Código Civil), com fundamento na violação de deveres contratuais ou gerais.

Na análise do facto ilícito, não encontramos conduta alguma da seguradora que legitime uma responsabilização. Ela não tem o domínio da coisa e não tem competência para determinar o seu destino. A Autora não dependia da sua colaboração.

A comunicação da L... , no 1º sinistro, para não vender à empresa espanhola, significa pouco, mesmo que possa ser imputada à Ré. Não significa não autorizar a liberação da cisterna e não significa que não deva a Autora minorar os encargos rapidamente, de acordo com a legislação que invoca mas não especifica.

O silêncio da Ré, alegado pela Autora, não tem sentido declarativo (art.218º do Código Civil).

O mesmo acontece na análise da culpa. Decorrente da culpa da Autora nos sinistros, é ela a interessada em definir rapidamente o destino dos salvados, em colaboração com a compradora, consoante esta tenha ou não abandonado as mercadorias.

Dar destino aos salvados não significa tomar qualquer compromisso relativo à responsabilização.

No 1º sinistro são relevantes os factos nº22, 29 a 32 e 34.

No 2º sinistro são relevantes os factos nº43, 51 a 53.

No 3º sinistro são relevantes os factos nº65 a 70, 74, 87, 88 e 90.

Se, como diz a Autora, por razões de segurança, o encaminhamento do salvado só é possível dentro de certos limites legais, existentes para resíduos perigosos, então ela estava legitimada a concretizar esse encaminhamento legal obrigatório. Fá-lo-ia com e perante quem tinha o domínio da coisa,considerando se esta estava devolvida ou não.

Por outro lado, se as despesas da paralização das cisternas podem ser desproporcionadas, como o foram, relativamente ao valor da mercadoria, a Autora estava legitimada a dar destino ao salvado, com urgência, sem esperar sequer as instruções do expedidor ou do destinatário da mercadoria.

No 1º sinistro, nada impediu a Autora de proceder à destruição (ou valorização) de 31.10.2011.

No caso do 2º sinistro, conforme os factos 43, 51 a 53, explicados ainda na motivação dos mesmos, a V... ainda hoje não sabe como lidar com as exigências legais da Alfândega.

No 3º sinistro, as alegadas razões de segurança não impediram a Autora de proceder à descarga do produto para contentores.

Estas condutas são expressão da falta de fundamento para a paralização que se pretende ressarcida.

E o dano da paralização seria sempre desproporcionado relativamente ao valor (do seguro) da mercadoria.

Sem prejuízo de tudo isto, no caso das despesas com o transbordo no 3º sinistro, não vemos como a V... vem cobrar tais despesas à Autora, quando o contrato não é com ela, conforme se retira dos factos 70 a 72 e 90 a 92. Alguma confusão de sociedades que se detetou neste julgamento pôde ser superada na análise da destinatária das mercadorias, mas neste particular não há qualquer explicação para o sucedido.

Pelo exposto, na procedência desta objeção da Seguradora, a Autora não tem direito à indemnização pela paralização concreta das cisternas e não tem direito às documentadas despesas com o referido transbordo ou com o encaminhamento dos salvados, ficando prejudicadas as respetivas questões levantadas pela Autora no seu recurso (a repartição de culpas e a aplicação do acordo da Antram).


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            Definição da mora.

Nos termos do contrato de seguro em aplicação, são obrigações da Autora/Transportadora “fornecer ao segurador todas as provas solicitadas, bem como os relatórios e documentos que possua ou venha a obter”, “não abonar extrajudicialmente a indemnização reclamada sem autorização escrita do segurador, bem como não formular ofertas, tomar compromissos ou praticar algum acto tendente a reconhecer a responsabilidade do segurador, a fixar a natureza e o valor da indemnização ou que, de qualquer forma, estabeleça ou signifique a sua responsabilidade”.

Mais ficou a Autora obrigada “a enviar ao segurador, o mais rapidamente possível, (...) cópia da factura comercial”.

Por seu lado, o segurador obriga-se, entre outras, a “efectuar com prontidão e diligência as averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, sob pena de responder por perdas e danos” e a “pagar a indemnização devida logo que concluídas as averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento da responsabilidade do segurado e ao estabelecimento do acordo quanto ao valor a indemnizar. Se decorridos 30 dias, o segurador, de posse de todos os elementos indispensáveis à reparação dos danos ou ao pagamento da indemnização acordada, não tiver realizado essa obrigação, por causa não justificada ou que lhe seja imputável, incorrerá em mora, vencendo a indemnização juros à taxa legal em vigor”.

Ainda de acordo com o art. 813.º do Código Civil, “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.”

Conforme interpretação do STJ (ac.de 14.1.2014, no processo 511/11, em www.dgsi.pt), a mora do credor não exige a sua culpa mas os atos omitidos têm de ser essenciais.

Por seu lado, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido (art.804º, nº2, do Código Civil).

No caso, a fatura da aquisição da mercadoria, de acordo com o art.23º da Convenção, é, em regra, elemento adequado e essencial para a prova do valor do dano. No caso, foi esse o elemento ponderado, não tendo sido invocado outro que se apresentasse mais adequado à situação.

Vejamos os factos provados.

No 1º sinistro, de acordo com os factos 25 e 27, solicitada a referida fatura, ela só foi apresentada em 17.1.2011 e não corresponde ao valor devido, o que só foi conferido em julgamento. Assim, a mora foi da Autora e os juros só são devidos a contar da sentença.

No 2º sinistro, de acordo com os factos 45, 46 e 48, com a prova da avaria apenas feita no julgamento, tendo antes sido a seguradora impedida de a ela aceder, a mora foi da Autora e os juros só são devidos a contar da sentença.

No 3º sinistro, considerando os factos 77 e 81, a mora foi da Autora e os juros só são devidos a contar da sentença. Se a transportadora ainda não tinha definido o valor e pago, não há mora da seguradora. A transportadora também não foi sujeita a uma cobrança de juros.


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Danos sofridos durante a paragem do veículo.

Conforme resulta dos factos provados em 83 e 85, no 3º sinistro, a Autora entendeu aparcar o veículo nas instalações da C... e foi nestas que se deu a sua vandalização e furto.

Subjacente a este aparcamento só pode existir um acordo entre a Autora e aquela C... .

            O depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida (art. 1185º do Código Civil).

O depositário é obrigado a guardar a coisa depositada (art.1187º, a), desta lei).

Assim, na falta de outros elementos, a responsabilidade pelos referidos danos discute-se entre a Autora e a referida sociedade, não cabendo à Seguradora pagá-los sem mais.


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Decisão.

            Julga-se o recurso da Seguradora parcialmente procedente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida e condena-se aquela Seguradora a pagar à Autora a quantia de €51.584,93 (cinquenta e um mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação da sentença até efetivo pagamento.

Absolve-se a Seguradora da condenação/pedido de pagamento à Autora da quantia que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, correspondente a metade do montante despendido com as despesas com a descarga do produto contaminado do 2.º transporte/sinistro.

Julga-se o recurso da Autora improcedente.

Mantém-se o demais decidido pela decisão recorrida.

            Custas pela Autora e Ré na proporção do decaimento.


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Coimbra, 2015-5-27


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro( Relator )

 (Luís Filipe Dias Cravo)

 (António Carvalho Martins)