Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | VASQUES OSÓRIO | ||
Descritores: | QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL INCIDENTE ADVOGADO INTERESSE JUSTIFICAÇÃO PEDIDO | ||
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Data do Acordão: | 03/04/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | LEIRIA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL | ||
Decisão: | INDEFERIDO | ||
Legislação Nacional: | ART.87.º, DA LEI Nº 15/05; ARTS. 135.º E 182.º, DO CPP | ||
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Sumário: | I - O segredo profissional não é um segredo absoluto e inafastável, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o advogado o possa quebrar. II - Uma primeira situação em que o advogado deixa de estar sujeito ao segredo profissional decorre da sua desvinculação pelo próprio cliente, quando este autoriza a revelação do segredo. Uma segunda situação corresponde à dispensa do segredo profissional requerida pelo advogado ao Presidente do Conselho Distrital respectivo e por este autorizado [trata-se do procedimento previsto no art. 87º, nº 4 do EOA]. E uma terceira situação corresponde ao incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art. 135º do C. Processo Penal [aplicável ao processo civil, por força do disposto no art. 417º, nº 4 do C. Processo Civil], a qual tem específico relevo para a questão a decidir. III - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer. IV - Na questão subjudice, para além dos conflituantes, interesse do Estado na realização da justiça penal, e interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, há que reconhecer a presença de um terceiro interesse, o da defesa do arguido em processo penal com consagração constitucional no art. 32.º da Lei Fundamental, mas aqui com a particularidade do seu titular, o arguido, não ser o obrigado ao segredo cujo levantamento é pretendido. V - A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; VI - Não sendo indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, susceptíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento, não existe razão objectiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra I. RELATÓRIO Corre termos em Alcobaça – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 1, da Comarca de Leiria, o processo comum, com intervenção do tribunal singular, nº 60/10.6TAMGR, no qual o Ministério Público deduziu acusação contra C... , D... , E... e A... , todos com os demais sinais nos autos, imputando aos três primeiros arguidos a prática, em co-autoria, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art. 227º, nº 1, a), b) e c) do C. Penal, conjugado com o art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE, e à última arguida, em cumplicidade, a prática do mesmo crime.
Em 30 de Janeiro de 2014 a arguida A... apresentou contestação onde, relativamente à imputação que lhe foi feita na acusação pública, remeteu para a discussão a realizar na audiência de julgamento e arrolou testemunhas a inquirir, a primeira das quais o Advogado Dr. B... .
Em 13 de Novembro de 2014 a testemunha Dr. B... juntou aos autos o indeferimento pelo Exmo. Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados do requerimento por si apresentado do pedido de dispensa de sigilo profissional e requereu a escusa de prestação de depoimento na audiência de julgamento.
Em 17 de Novembro de 2014 a arguida A... requereu a «quebra do Sigilo Profissional da testemunha Dr. B... , uma vez que o mesmo foi Advogado do Senhor F... , considerando-se o seu depoimento pertinente e imprescindível no âmbito da descoberta da verdade, no que respeita à matéria constante nos autos, podendo a mesma beneficiar com os seus esclarecimentos. Assim, requer-se a V/Exª, que se digne, face ao supra requerido, a remeter expediente para o tribunal da relação de Coimbra nos termos do art. nº 135 nº 3 do CPP.».
Na audiência de julgamento de 18 de Novembro de 2014, após ter sido assegurado o contraditório e nada ter sido oposto pelo Ministério Público e demais arguidos, por despacho então proferido pela Mma. Juíza, foi decidido suscitar o incidente de levantamento do segredo profissional, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135º, nº 3 do CPP, determinando-se a remessa do referido incidente ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra. * Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir. * * II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Como regra geral, pode dizer-se que o segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, pág. 961). Trata-se, portanto, da reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício (Ac. da R. de Coimbra de 21 de Setembro de 2011, processo nº 968/09.1TACBR.C1, in www.dgsi.pt).
O segredo profissional na Advocacia encontra-se regulado no art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados [doravante EOA], aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro, com as alterações do Dec. Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro e da Lei nº 12/2010, de 25 de Junho. Dispõe este artigo no seu nº 1 que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, seguindo-se depois a enunciação, não taxativa, nas sua alíneas a) a f), de específicas situações sujeitas ao referido segredo que traduzem meras explicitações da norma que constitui a matriz. O seu nº 4 estabelece que, o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento. E o seu nº 6 estatui que, ainda que dispensado nos termos do disposto no nº 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
Como se vê, não estamos perante um segredo absoluto e por isso, inafastável, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o advogado o possa quebrar. Brevitatis causa, diremos que uma primeira situação em que o advogado deixa de estar sujeito ao segredo profissional decorre da sua desvinculação pelo próprio cliente, quando este autoriza a revelação do segredo. Uma segunda situação corresponde à dispensa do segredo profissional requerida pelo advogado ao Presidente do Conselho Distrital respectivo e por este autorizado [trata-se do procedimento previsto no art. 87º, nº 4 do EOA]. E uma terceira situação corresponde ao incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art. 135º do C. Processo Penal [aplicável ao processo civil, por força do disposto no art. 417º, nº 4 do C. Processo Civil], a qual tem específico relevo para a questão a decidir. Vejamos então.
2. O C. Processo Penal regula o incidente de quebra do segredo profissional nos seus arts. 135ºe 182º. Estabelece o nº 1 do art. 135º que, os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
Depois de algumas divergências a que o Acórdão Uniformizador nº 2/2008, de 13/02/2008 [DR I, de 31 de Março de 2008] pôs termo, o incidente é assim processado: - Invocada a escusa por quem a lei permite ou impõe que guarde segredo e existindo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, o tribunal onde ela foi deduzida procede às averiguações necessárias e caso conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento ou da forma de cooperação pretendida (art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal); - Sendo legítima a escusa, compete ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente foi suscitado decidir sobre a quebra do segredo (art. 135º, nº 3 do C. Processo Penal), depois de ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (nº 4 do mesmo artigo). Suscitado o incidente e chegado este ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do art. 135º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos.
O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer. Tais interesses são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça, especificamente, na realização da justiça penal, e por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão que a Lei Fundamental considera elemento essencial à administração da justiça (art. 208º da Constituição da República Portuguesa). No confronto entre dever de cooperação com a justiça e dever de segredo foi intenção da lei, como nota Costa Andrade, sujeitar o tribunal a padrões objectivos e controláveis, admitindo a justificação da violação do segredo desde que esteja em causa a dimensão repressiva da justiça penal relativamente aos crimes mais graves, aos que provocam maior alarme social, mas apenas quando o sujeito ao segredo é chamado ao processo penal na qualidade de testemunha (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, pág. 1157). Posto isto.
3. Muito embora no despacho que suscitou a intervenção do tribunal da Relação a Mma. Juíza não tenha reconhecido expressamente a legitimidade da escusa da testemunha Dr. B... em prestar depoimento, a própria prolação do despacho significa implicitamente o reconhecimento dessa legitimidade cuja existência é, aliás, inquestionável, uma vez que o autor da escusa é advogado e o Exmo. Presidente do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados indeferiu o pedido de dispensa do segredo profissional por aquele apresentado. Quanto ao mais.
4. Os autos supra identificados têm por objecto a imputação de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art. 227º, nº 1, a), b) e c) do C. Penal, conjugado com o art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE, como co-autores, a três sócios da sociedade G... , Lda. – C... , D... e E... – e como cúmplice, à arguida requerente do incidente por, em síntese, e na parte em que agora releva, a requerente, na qualidade de advogada da G... , Lda., ter aconselhado os demais arguidos a encontrarem alguém de confiança que reclamasse e fizesse executar sobre a sociedade um crédito de € 350.000 [crédito, supostamente, inexistente], a entregarem, para pagamento da suposta dívida, as instalações da sociedade e todos os seus bens móveis, ficando o suposto credor obrigado a efectuar a locação dos mesmos bens à sociedade e devendo este requerer ainda a insolvência da sociedade mas só depois da actividade desta ser transmitida para a sociedade G... II, Lda., sendo sócios desta, o arguido E... e F... [já falecido], irmão do arguido C... . A pessoa de confiança encontrada foi o citado F... que, de acordo com os arguidos C... , D... e E... , e na execução do plano aconselhado pela requerente, executou em Março de 2008 uma letra no montante de € 350.000, relativa a um contrato de mútuo celebrado em Dezembro de 1996, em Agosto de 2008 os arguidos C... , D... e E... , por um lado, e o F... , por outro, celebraram um contrato-promessa de dação em cumprimento dos lotes 30 e 31 da zona industrial Casal da Areia, Alcobaça, onde se encontravam instaladas as duas referidas sociedades, e dos demais bens da G... , Lda., em Setembro de 2008 foi transferido, por € 40.000, todo o imobilizado da G... , Lda. para a G... II, Lda., em data não apurada mas para produzir efeitos a partir de 26 de Setembro de 2008, foi celebrado contrato de sublocação e aluguer de coisas móveis entre F... e a G... . Lda., em 10 de Setembro de 2008 F... requereu a insolvência de G... , Lda., e a partir de 1 de Outubro de 2008 aFacerpa II, Lda. iniciou a sua actividade nas instalações da G... , Lda., com recurso aos trabalhadores, carteira de clientes, equipamentos e know-how desta.
O crime de insolvência dolosa, punível com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, não é, seguramente, uma bagatela penal, antes podendo ser incluído na média criminalidade. Numa outra perspectiva, trata-se de um ilícito típico com significativo peso em épocas de crise económica.
Na questão subjudice, para além dos conflituantes, interesse do Estado na realização da justiça penal, e interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, há que reconhecer a presença de um terceiro interesse, o da defesa do arguido em processo penal com consagração constitucional no art. 32º da Lei Fundamental, mas aqui com a particularidade do seu titular, o arguido, não ser o obrigado ao segredo cujo levantamento é pretendido.
Não é possível extrair dos termos da acusação pública, supra sintetizada, os específicos conhecimentos profissionais que a testemunha Dr. B... possa ter sobre a matéria ali versada, na medida em que dela não consta qualquer conduta atribuível à testemunha da qual pudessem inferir-se os factos eventualmente por si conhecidos e sujeitos ao segredo. Por outro lado, no requerimento onde suscitou o incidente, a requerente limitou-se a dizer, conclusivamente, que o mesmo foi Advogado do Senhor F... , considerando-se o seu depoimento pertinente e imprescindível no âmbito da descoberta da verdade, no que respeita à matéria constante nos autos, podendo a mesma beneficiar com os seus esclarecimentos. Da circunstância de a testemunha ter sido Advogado de F... – e sem se questionar sequer que este não seja o F... mencionado na acusação pública – não resulta, sem mais, a imprescindibilidade do seu depoimento, já que esta mesma qualidade não pode considerar-se demonstrada pela sua mera afirmação pela requerente. Na verdade, e como supra se referiu já, apesar de o segredo profissional do Advogado não ser absoluto, o seu levantamento só deve ser possível em casos excepcionais. Por isso, quando seja arrolado como testemunha um Advogado e se pretende que deponha sobre factos sujeitos ao segredo, há que observar algumas cautelas em razão da qualidade da testemunha. Queremos com isto significar que, no caso em apreço, se impunha que a requerente, na dedução do incidente, tivesse indicado, com o pormenor que lhe fosse possível, como é óbvio, os concretos factos supostamente conhecidos da testemunha, sobre os quais era pretendido o seu depoimento pois só assim o tribunal da Relação poderia formular um juízo sobre a imprescindibilidade do depoimento, sendo esta, como se viu, um dos factores que densificam o princípio da prevalência do interesse preponderante. É que, se pode aceitar-se que o Advogado que patrocina um cliente numa determinada negociação tem conhecimento privilegiado dos respectivos factos, a omissão da delimitação destes no incidente de quebra de segredo profissional determina a impossibilidade de se concluir, sem mais, que a prova desses factos só pode ser feita através do seu [do Advogado] depoimento. * Em síntese conclusiva: - A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo; - No requerimento que deu origem ao presente incidente não foram indicados os factos, eventualmente conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de Advogado, susceptíveis de demonstrarem a absoluta necessidade ou imprescindibilidade do seu depoimento; - Por isso, não existe razão objectiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis, deva ser quebrado aquele segredo. * * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em indeferir o incidente de quebra do segredo profissional de Advogado, mantendo, em consequência, a proibição de o Sr. Dr. B... depor como testemunha.
Incidente sem tributação. * Coimbra, 4 de Março de 2015
(Heitor Vasques Osório – relator) (Fernando Chaves – adjunto) |